A véspera

A véspera

A véspera não é nunca apenas “ontem”. Uma véspera é uma forma diferente de olhar para o dia de amanhã. Pode ser cheio de esperança e vivido com expectativa, entusiasmo e excitação. Pode ser desesperante, triste, vivido a querer que não chegue o dia de amanhã. Em ambos os casos testemunha-se com evidência a deposição no dia seguinte, por vir. Não podemos deixar de considerar que todos os dias anteriores são véspera dos dias seguintes que virão amanhã. Mas não esse o sentido que se sublinha com a “véspera”. Invoquemos algumas vésperas importantes.
A véspera de ir de férias, a véspera do primeiro dia de aulas, a véspera de uma competição, a véspera de um exame académico ou médico, a véspera da chegada de alguém que vive longe, a véspera da partida para viver no estrangeiro, a véspera do primeiro dia de aulas, a véspera de um casamento e a véspera de um funeral. Todos os dias seguintes são marcados por uma importância significativa na nossa vida. Não aconteceram ainda, porque serão no dia seguinte, amanhã. E, contudo, estão já a implicar-nos neles. Envolvem-nos como uma atmosfera. Estão já a abrir avenidas para eles. Podemos reagir da mais variada forma: não dormimos ou dormimos. Há uma tensão que não nos deixa pensar noutro conteúdo senão no que virá com o dia seguinte.
A véspera desses dias seguintes faz deles dias mais significantes do que dias anteriores. Não pensamos nisso, mas habitualmente estamos depostos sempre num futuro mais ou menos próximo que vivemos com maior ou menor tensão. De outro modo, não íamos fazer café, não subiríamos ou desceríamos escadas, não entrávamos para dentro do carro nem saíamos dele, não aquecíamos antes de treinar, não nos preparávamos mentalmente para o que quer que fosse. O mesmo se passa com o início da semana, do mês, do ano, do quer que seja. Já nem nos lembramos mas há um querer que se abre à possibilidade de sermos diferentes de como somos. Ou pelo menos há esse projecto: deixar-se de… e passar a ser de outro modo. Deitar a “carga” navio fora para não naufragar ou então zarpar para outras paragens.
A véspera abre também uma janela para o dia seguinte. A importância do dia de seguinte é definida pela véspera. Não há importância dada ao dia seguinte se a véspera não se perfilar no horizonte. Entre nós agora e nós no dia seguinte há a véspera. A véspera dá a importância ao dia. Faz do dia seguinte não um dia qualquer mas um dia importante.
É o que acontece com a véspera de Natal. A véspera de um nascimento é a véspera de um acontecimento que não acaba com o dia, mas começa com esse dia. É o princípio de uma vida. Uma vida humana tem um “ser”, uma “actividade”, diferente dos outros seres. Ao começar, inicia-se um horizonte temporal, uma vida lúcida com expectativas, sonhos, aspirações, ambições, vontades e querer e lucidez.
Na véspera de Natal espera-se o dia, não um dia qualquer por mais importância que sejam todos os dias. Não é apenas de Jesus, menino, que se está à espera, como de um filho de uma rainha. Nem é o que se espera pelo nascimento de uma menina ou de menino que nas nossas famílias ou do próprio tem uma importância tal que muda toda a nossa vida.
A véspera de Natal é a véspera de uma outra vida, com um outro ser no tempo. Não se espera apenas um nascimento singularmente importante. Espera-se um nascimento que não terminará com a morte o percurso vital. Com o nascimento de Jesus todos sem excepção e sem nenhuma acepção pessoal seremos portadores da possibilidade que inscreve cada nova vida e cada instante dela na eternidade.
É uma véspera “e peras”.
E, contudo, lembramo-nos mais de natais passados do dos natais futuros. Talvez por isso os natais presentes sejam “mais um”. E não são, porque antecipam uma outra possibilidade. E a possibilidade de se perder essa possibilidade como véspera.

O Horto das Oliveiras

Ele levantou-se sob a folhagem cinzenta
completamente cinzenta e solta no horto das Oliveiras
E apoiou a fronte cheia de pó
no fundo das suas mãos quentes feitas de pó.

Depois de tudo:— ISTO. E ISTO era o fim.
Agora eu tenho de ir, enquanto cego,
e por que queres Tu que eu tenha de dizer
que Tu existes, quando eu próprio já não Te encontro.

Eu já não Te encontro. Não em mim, não.
Não, nos outros. Não, nesta pedra.
Eu já não Te encontro. Eu estou só.

Eu estou só com toda a amargura dos homens
que eu, através de Ti, comecei a aliviar,
Tu que não existes. Oh! inominável vergonha…

Mais tarde, conta-se, apareceu um anjo-.

Porquê um anjo? Ah! veio a noite
e folheou com indiferença as árvores.
Os pequenos sossegavam nos sonhos.
Porquê um anjo? Ah! veio a noite.

A noite que veio não era uma qualquer;
dessas que há às centenas.
Ali dormem cães e há pedras.
Ah! é uma noite triste, aquela
em que se espera até que seja de novo madrugada.

É que os anjos não se aproximam de tais camas,
e as noites não são nunca tão longas como aquela.
Os que se perderam a si largam tudo,
e são abandonados pelos pais
e excluídos do colo das mães.

(Rainer Maria Rilke, 1907. Trad. minha.)

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