Como Zhao Ji Tocou o Gesto do Calígrafo

Por Paulo Maia e Carmo

Shouyang, a lendária princesa filha do imperador Wu de Liu Song (r. 363-422) teria adormecido num jardim, de súbito despertou quando a brisa leve fez descer e poisar sobre a sua testa uma flor de ameixieira. Um momento que foi sendo transmitido de geração em geração como um bom presságio, o aparecimento de surpresa da beleza, algo que não se espera que é, claro como o súbito anúncio da Primavera, a promessa de melhores dias. Uma variedade de ameixieira, designada em português como flor de cera (Chimonanthus praecox, do grego «flor precoce do Inverno») no original la mei seria escolhida por Zhao Ji (1082-1135) o imperador Huizong, para uma pintura em que reuniu apenas três elementos principais. Além da flor de cera e de um par de tentilhões, que a incluíam na classificação genérica de «Pássaros e flores», a pintura em rolo vertical a tinta e cor sobre seda, 83,3 x 53,3 cm, que está no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, contém um poema seu. E respondendo à atitude minuciosa do autor, deverá ser entendida nesses seus detalhes. Observando os pássaros encostados, como que se protegendo do frio, dir-se-ia uma apologia do matrimónio. Porém, a partir de um outro pequeno detalhe, a interpretação da pintura centrou-se num quarto, quase imperceptível elemento: junto ao tronco, batendo as asas, uma pequena abelha. O simbolismo da abelha que constrói as colmeias e faz o mel a partir da beleza das flores, vinha evoluindo desde que Guo Pu, no século IV, observara com apreço essas «incansáveis congregações na brisa/ Esvoaçando como flocos de neve,/ Uma massa indivisível», para se ir salientando o seu caráter de grupo organizado que obedecia a uma abelha rainha (descrita no masculino pengwang) exemplo que convinha à necessidade de ordem no império.

Zhao Ji poderia mostrar nessa pintura através do exemplo pessoal, além da vontade de ordem no seu império em paz, o desejo de domínio do tempo. Como está no poema, que especifica o que na pintura pode ser vago: «Tentilhões, pássaros da montanha envaidecidos, garbosos,/ Flores de ameixieira rosadas em que se confundem a macieza e a leveza./ Com esta pintura faço convosco um acordo:/ Passarão mil Outonos até que os cabelos brancos cubram a minha cabeça.» Escrito no seu estilo caligráfico «ouro elegante» shoujin, que se assemelha a filamentos de ouro retorcidos, que recorda o provérbio «por desvios, aceder a segredos», nesta proposta de compromisso com a Natureza através das três preciosidades, poderá estar sugerindo uma quarta arte etérea, que permeia as outras três e que o aparente imediatismo da caligrafia permite entrever antes de se manifestar. De súbito, a possibilidade da caligrafia (shufa) não ser só vestígio do momento em que o pincel tocou o papel mas memória do instante em que o calígrafo acariciou o gesto da mão, embalada no sopro do espírito.

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