Sara F. Costa Expectoração h | Artes, Letras e IdeiasAbutres Abutres Nightcrawler foi um daqueles filmes que me marcou, não só pela excelente atuação de Jake Gyllenhaal e da direção de Dan Gilroy, ou a fotografia de Paul Thomas Anderson mas, sobretudo, devido ao facto de retratar algo tão identificável e sobre o qual nos cansamos de desaprovar por ter-se tornado tão banal. No caso do filme, eram noctívagos, neste, podem ser ambos. Os abutres a que me refiro não são necessariamente aves de grande envergadura, que planam em correntes de ar quente. No entanto, nutrem-se com o mesmo alimento destas criaturas: cadáveres. Refiro-me aos abutres noticiosos. Quando me deparei com a trágica notícia da morte da jovem cantora Sara Carreira, havia registos visuais do aparatoso acidente, sem edição. A jovem estava ainda dentro do carro, morta, coberta por um lençol. É nestes momento que não é possível esquecer a forma como a arte imita a realidade e a realidade imite a arte em Nightcrawler. O filme sobre um cameraman amador que descobre um nicho particular de negócio: estar no sítio certo à hora certa, isto é, estar no sítio certo à hora errada. Os acidentes de carro acontecem sobretudo durante a noite e assim se propicia um cenário mais tétrico. A personagem de Jake Gyllenhaal monta uma equipa de repórteres (ou “repórteres”) que acabam por ter ligações corruptas com as autoridades. Estas facultam de imediato os sítios onde os acidentes rodoviários estão a acontecer em tempo real de modo que as câmaras se possam mover convenientemente para o local do desfortúnio. Desta forma, o repórter consegue captar a morbidez e o horror da aleatoriedade da morte dos outros com gráfico explícitos.Tenho a ligeira sensação de que isto não acontece só na Califórnia. Ver pessoas mortas em acidentes de carros pode ser um entretenimento em ascensão entre a população mundial que gosta das suas notícias bem apimentadas com calamidades fortuitas graficamente explícitas, mas quando a tragédia ocorre dentro de uma narrativa, ou seja, quando a vítima se conhece, estes repórteres não ganham só com a exploração da curiosidade sinistra dos olhares externos. Nestes casos, é possível explorar a representação simbólica da mitologia contemporânea edificada pelos media, encetar uma história romanesca cativante, com heróis e vilões e que irá captar diretamente o coração da audiência. Roland Barthes dizia que quando se recorre à semiótica para analisar a metodologia escondida nos media, esta mitologia é uma forma de entrar nas raízes da criação da realidade. Assim, temos todos os noticiários a abrir com a notícia da morte da jovem, filha de um herói nacional com o a sua descendência igualmente divina e orientada para o canto, vítima de um namorado que, possivelmente, circulava em excesso de velocidade, talvez sem o consentimento da jovem – possível sequela literária para alimentar os nossos criativos (imparciais, factuais) telejornais. O pai, herói nacional, intocável, com uma vida de fama e riqueza transforma-se, subitamente, num comum mortal como todos nós. Se antes não nos era possível identificar com a felicidade da sua fortuna e reputação, agora temos a oportunidade de identificar nele a dor semelhante à dor de uma pessoa comum, como nós. Alguém que tem tudo mas que tudo perde neste instante – o carro, o aparato, o cadáver coberto. Alguém me disse que, assim, através da simbologia mitológica, todos os pais que perderam filhos se identificam com esta dor. Será esta a notícia de que uma tragédia levou de nós uma jovem inocente que era penas um ser humano ou será, numa abordagem semiológica barthesiana, esta a notícia de que um ser humano morto não é notícia se não for transformado em mitologia? E, neste caso, serão os abutres os que produzem os conteúdos ou os que consomem o produto? Questões difíceis que deixo em aberto para reflexão individual, finalizando apenas com este pensamento: “Do not be scared much of death, but be scared of your inadequate life.” – Bertolt Brecht
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCristalizações 12/12/20 Uma mulher belíssima, com um olho vazado. Ou foi uma ilusão de óptica? Pode esta dúvida, por si, constituir personagem? Trazia com ela um lobo-de-alsácia que se alçou sobre as patas no largo parapeito da janela da cervejaria, nas minhas costas. As unhas do cão arranharam o alumínio e lancei um relance para trás das costas, vendo a mancha cinza do cão, a sua túmida língua rosa, e sobre a cabeça deste aquele semblante radioso, a quem a máscara não conseguia obstruir a luz, nem a sombra enigmática no olho esquerdo desfeava. Um cabelo à Lauren Bacall e traços que me evocavam uma mulher que julguei amar como uma estátua distante numa repetida rota de comboio e que, soube depois, morreria de aneurisma. O génio modernista não deixou de acoitar os seus cretinismos. Para Gertrude Stein chamar a uma obra artística bela significaria que ela estava morta. Que juízo austero! Contudo, a impressão que me deixou esta belíssima (mesmo com um olho vazado) e fugaz aparição feminina era a de que, rompendo qualquer insípida harmonia, me sorvia a atenção pela impossibilidade de ser definida, o que a tornava desejável e porosa, digamos, uma representação viciosamente viva. Como se aquele breve segundo não se dissipasse mas se se implantasse, imprimindo-me na retina uma obra de arte. A feiosa Gertrude que se dane! 15/12/20 Volto ao Brecht, à peça prometida à Maria João Luís, e que gostaria de terminar até ao fim do mês. Escreveu o dramaturgo alemão numa breve nota de 10.06.50, no seu Diário de Berlim: «Li um trabalho sobre mim e Gorky, escrito por um estudante trabalhador de Leipzig. Nada mais do que ideologia, mais ideologia e, sempre, ideologia. Em nenhuma das suas partes se enxerga um único conceito estético; o todo lembra vagamente a descrição de um prato onde nada seja dito sobre o sabor. Devemos organizar prioritariamente exposições e aulas destinadas à formação do gosto, i. é. que tenham em vista o prazer de viver.» Um pequeno reparo que me faz reconciliar com a personagem (visto que, como ser humano, quanto mais o conheço mais o acho um traste). Mas, curioso, é como fisionomicamente são parecidos, ele e o António Guerreiro. Se fizesse um filme sobre o Brecht recrutava-o. Tal como a Maria João Luís tem, é patente, o mesmo tipo físico da Heléne Weigel, que incorporá. E isto lembra-me um conto burlesco que escrevi, ainda inédito, onde exploro as cruéis ou divertidas parecenças entre algumas figuras da pintura clássica e algumas figuras públicas de diversos quadrantes. Como aqui: «Deixei então de querer ser um autor e comecei a sentir-me atraído pela ideia de me converter no sósia de um personagem que representasse indubitavelmente o estigma da Saudade. Que a superasse, dando-lhe um corpo. Posto ser a única esperança que nos resta para refundir o elo perdido: encarnar o avatar. Sempre me senti um artista, um artista verdadeiro, e como artista não queria fixar simplesmente a imagem para um corpo (o que não passaria de um espectro) mas sim construir um corpo para a imagem. Tive a certeza disso quando vi o retrato de Carlos III pelo Goya, e vi que o rei era afinal o actor Miguel Guilherme. A carreira de Miguel Guilherme, tenho a certeza, nunca descolará como verdadeira expressão artística e não crescerá internacionalmente (não falo da popularidade de que já beneficia em Portugal) antes dele assumir esta cristalização, tornando-se monárquico.» “Tem a certeza” o personagem do conto, não eu, que estimo e desejo os maiores sucessos ao Miguel Guilherme. Mas, digam-me lá se eu não dava para olheiro? Vou fazer uma agência de casting. 16/12/2020 Foi hoje a cerimónia de lançamento de dois livrinhos que fiz em colaboração com a Cooperação Espanhola, em Maputo. Dois livros bilingues, de cujas traduções me encarreguei (com a Teresa Noronha), O passo que se habita, um longo poema de 30 páginas (nesta edição) de Esther Peñas, e Escrever, de Chantal Maillard, outro poema unitário, de 19 páginas. Ficaram belíssimos, os livros – o projecto gráfico é do pintor e gráfico moçambicano Luís Cardoso. Agora, vamo-nos atirar aos próximos livros da colecção. Aqui deixo um excerto do primeiro: « As abelhas voltejam no portão que separa o deus despossuído/ da multidão que reclama sangue/ porque não reconhece o valor do sangue,/ se soubesse que o sangue que corre em cada homem,/ em cada deus,/ é, mais do que sangue, energia sagrada, mas a turba já/ esqueceu o sagrado e o seu conceito, já não sabe alimentá-lo/ de madeira nem talhar nela/ a cena da fome./ O deus ruge, a seu pesar,/ e parece menos deus assim, tão dolente,/ tão pouca coisa este deus que se sofre no seu infinito;/ as abelhas corroem o ferro, fundem-no,/ obstinam na ordem profunda dos humildes poetas que segregam seda/ para não perder o sonho,/ as abelhas/ corroem o ferro, fundem-no, / juntam-se aos pés do deus/ e essa imagem,/ as abelhas dispondo-se num cortejo inverosímil,/ as abelhas,/ que segregam sonhos,/ devolvem-lhe a sua natureza primeira, a sua altura celeste/ e o deus responde em actos, baixa do patíbulo e a sua presença/ derrama-se pela praça,/ a sua dignidade trémula impõe-se,/ a multidão abre-se de um só golpe/ e um silêncio cósmico ressoa/ enqunto o deus confia às abelhas a inércia do passo./ recompõe-se,/ abre os olhos,/ abre os olhos e vê o que está para além do que neles cabe;/ poderia vingar-se, sim,/ mas a sua é a bondade feita existência;/ as abelhas acompanham-no, como nuvem de gatafunhos;/ há medida e recato no seu gesto,/ é um gesto de homem caído a pique capaz de levantar-se./ As abelhas sabem a quem servem,/ porque segregam cera,/ e as talárias pressentem.» São duas poetas de respiração cósmica. Mas delas falarei numa próxima crónica.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasAmérica América Cada um de nós tem a sua América. Será um misto de fascínio, cinema, pragmatismo e universo de possibilidades, mas também de selvajaria, isolamento, ensimesmamento, rudeza e grandeza suicidária. O que tornou possível um Watergate, também tornou possível quatro anos de patologia Trump (sempre a mentir e a efabular), codificada, no entanto, como se se estivesse a viver num aquário da mais perfeita normalidade. O que fez a Europa sair do jugo nazi e das ameaças do gulag foi também o que tornou possível as chacinas da guerra fria no Vietname. Respirando fundo: a América de cada um de nós é, como toda a realidade, uma incongruência. Mas uma incongruência que nos permitiu muitas vezes poder respirar acima da linha de água. Sem a América, hoje não haveria democracia, tal como a entendemos. Há imensas abordagens sobre a América e nenhuma delas será a última e a perfeita. A maior parte delas provém dos americanos que não têm medo de levar a cabo a sua própria catarse quase em tempo real. Pouco tempo depois da guerra da Coreia, da questão cubana, da guerra do golfo, do 09/11 ou da invasão do Iraque, logo apareceram os filmes, as narrativas e um sem fim de diagnósticos que se auto-celebravam e sobretudo denunciavam. Sob este ponto de vista a América é única. Tenho sobre a mesa dois livros de autores europeus que analisaram a América em visita. Um e outro têm em comum um olhar em que o deslumbre se funde com a negação. O ‘América’ de Jean Baudrillard foi publicado em 1985 e o livro da Natália Correia, ‘Descobri que era Europeia’, desdobrou-se em três tempos (1950, 1978 e 1983). Ao fim e ao cabo, estamos perante duas visões que aterram no início dos anos oitenta e que tentam olhar em frente. É isso que faz um livro não ser estritamente actual e poder, por isso mesmo, merecer por parte do editor um aval que não corresponderá apenas à fome da liquidez imediata e efémera. Há três aspectos comuns nestes dois livros, provenientes, como se sabe, de sensibilidades muitíssimo diferentes: (a) selvajaria e utopia de mãos dadas, (b) paraíso e distopia e (c) uma inevitável colisão ‘Eu – Outro’ (que recairá ou na revelação ou numa estética da alienação). O primeiro aspecto levou Natália a sublinhar que os EUA nasceram “com o racismo”, “desenvolveram-se no racismo” e “vivem no racismo”. Este pano de fundo convive com um outro traduzido pela “descartabilidade do indivíduo” e ainda pelo contraste gritante entre a “submersão na racionalidade” e a cegueira primária, a solidão urbana ou a marginalização dos imigrantes vencidos e dos idosos. Por outras palavras: um vulcão por arrefecer que propõe fertilidade nas pradarias circundantes. Já Baudrillard preferiu referir-se a “uma imensa utopia realizada”, mas essencialmente paradoxal e que terá chegado a um ponto em que se tornou legítimo interrogar: “…e o que fazer depois da orgia?”. O segundo aspecto circunscreveu-se para Natália ao “pragmatismo da felicidade”, embora associado, “à mais completa morte da individualidade e à mais completa morte da diferença física, emocional, intelectual e cultural”. Baudrillard foi menos impetuoso, mas alertou para o facto de o paraíso americano ser “fúnebre, monótono e superficial”. Tal como em Paris, Texas de Wenders, a metáfora do deserto envolve todos os interstícios profundos da América e permite aos americanos aceitar a sua insignificância diante da (ininterrupta) simulação de paraíso em que vivem (os “malls” são iguais em todas as Américas do mundo, convenhamos). O terceiro aspecto é o que incide na alteridade e na comparação. No caso de Natália, o efeito da visita foi decisivo. Leia-se: “Foi na América que tive a grande revelação. Levara comigo as minhas raízes europeias. Mas uma visão de contrastes e de agressivos antagonismos trouxe-me à consciência os ramos gerados na profundidade das minhas raízes. Descobri então com deslumbramento a minha posição no mundo: era europeia. E os laços temperamentais que me prendiam à família europeia, deixaram de ser líricas aspirações para se fundirem no aço dum deliberado amor.” A óptica de Baudrillard foi menos inocente e, à boa moda francesa, resgatou a “estrutura” da história como argumento: “Sem passado ou verdade fundadora, por não ter conhecido uma acumulação primitiva de tempo, a América vive numa atualidade perpétua” e numa “simulação perpétua”, pois “não experimentou uma acumulação lenta e secular”. Contudo, no final, Baudrillard colocou o dedo na ferida: “É esse o problema da América e, através dele, tornou-se do mundo inteiro”. Ou seja: “nós, europeus, não fazemos outra coisa senão imitá-los, parodiá-los com cinquenta anos de atraso, e sem sucesso, aliás. Falta-nos a alma e audácia do que se poderia chamar o grau zero de uma cultura, a potência da incultura”. Este indefinível território chamado América é parte de todos nós, contemporâneos do que, daqui a um milénio, se dirá ter sido a rápida transição entre a primeira e a segunda dezena de séculos dC. A América de cada um de nós, porventura à imagem da herança que Alexandre-o-Magno deixou nos povos por onde passou, corresponde a uma poética necessariamente de ignição violenta, mas que, para o bem ou para o mal, nos fornece também aquele êxtase próprio das drogas fortes. Assim é, quer por ingénua admiração, quer por preconceituosa (e ignorante) rejeição. A abrir as portas à fantástica “Beat Generation”, Allen Ginsberg, no seu poema ‘Uivo’, publicado em 1956, parece ter dito tudo. E fê-lo com o nitrato da explosão verbal que tudo absorve e absolve, seja a selvajaria, a utopia, o paraíso, a distopia e todas as indescortináveis colisões com o ‘Outro’ que podem, por sua vez, revelar, alienar, matar ou até reinventar o mundo inteiro de raiz. Termino com uma pequena parte desse poema memorável – ao jeito de uma torrente de lava – que fala realmente por si (tradução da Margarida Vale de Gato): “…um batalhão perdido de conversadores platónicos saltando o gradeado das escadas de incêndio dos parapeitos de janelas do Empire State além da Lua, patati‐patateando gritando vomitando sussurrando factos e memórias e anedotas e tripes oculares e choques elétricos dos hospitais das cadeias das guerras intelectos inteiros regurgitados em recordação total durante sete dias e noites de olhos brilhantes, carne para a Sinagoga atirada à calçada, que desapareciam para a Terra do Nunca da Nova Jérsia Zen deixando um rasto de ambíguos postais ilustrados da Assembleia Municipal de Atlantic City sujeitando‐se aos suores orientais e aos ossos triturados em Tânger e às enxaquecas na China sob uma ressaca de droga no quarto desmobilado de Newark…”. Etc, etc, etc. Baudrillard, Jean. ‘América’. Verso, Paris, 1988. Correia, Natália. ‘Descobri que era Europeia: impressões duma viagem à América’. Editorial Notícias, Mem Martins, 2002. Vale de Gato, Maria (Ed., intro, trans. and notes) de Allen Ginsberg, ‘O Uivo e Outros Poemas’ (The Howl and Other Poems). Relógio d’Água, Lisboa, 2014.
Duarte Drumond Braga Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasO canal e o engenheiro O canal e o engenheiro Opiário é o poema de Fernando Pessoa, publicado no primeiro número da revista Orpheu (1915) em que se estreia a voz do engenheiro naval Álvaro de Campos. Encontramo-lo a bordo de um navio, o que não seria à partida estranho, e de regresso à Europa. Mas o nosso engenheiro exprime a dada altura este estranho desejo: “Não chegues a Port-Said, navio de ferro! / Volta à direita, nem eu sei para onde”. Ora, Port Said fica na costa do mar Mediterrâneo, à entrada do Canal de Suez, de que o ano passado 150 anos decorreram sobre a abertura. O falso poeta Campos prefere antes ir para aquela direção misteriosa, entrevista por entre os vapores do ópio, e que havia sido formulada no quarto verso da estrofe introdutória: “Um Oriente ao oriente do Oriente”. É preciso ainda saber que o heterónimo escreve confinado na sua cabine, a bordo e em pleno canal. O paratexto dá a seguinte referência: “1914, Março. / No canal de Sués, a bordo”. Tudo ficcional, bem entendido. À época celebrada como grande proeza da engenharia moderna, o engenheiro Campos não parece interessar-se por essa marca do progresso material da “civilização ocidental”. Foi o pai gay de Álvaro de Campos (não que o filho deixasse de ser) e não o tímido pederasta Marinetti, que o ensinou a olhar para a tecnologia moderna. Para o poeta de Leaves of Grass, esta encontrava o seu fim último no continente americano, implicando uma genealogia civilizacional. Ora, um dos pontos focais de transferência dessa herança da Europa para as Américas é precisamente o Suez: “(…) the strong light Works of engineers,/(…)/ In the Old World the East the Suez canal” (Whitman, Passage to India), e um dos pontos de passagem da sua sexualização do cosmos, como um omphalos ou um genital do mundo. O Suez é, afinal, um episódio romântico, no sentido de haver sido assumido como forma de “progresso” técnico, afirmação espectaculosa e tardia de conquista da natureza. Na geografia simbólica da transição para o século XX, foi um local entendido como novo centro simbólico da terra, unindo Ocidente e Oriente. Aclamado como símbolo do progresso, louvado como prova de que a geografia deixaria de separar o Oriente e o Ocidente, o Oriente e o Ocidente, o canal foi quase o centro do mundo. Ao estudar o processo de construção desta obra, entra-se em pleno território simbólico, isto é, depara-se com o capital imaginário que as principais potências coloniais daquela época depuseram sobre um particular espaço geográfico. É toda uma complexa teia de representações aplicada a um espaço que, em termos materiais, se trata apenas de uma linha de água atravessando um deserto, em simultâneo causa e efeito do confronto de várias posturas ideológicas. Pouco importa a realidade objetciva, antes a sua representação, é o que o canal parece dizer, algo que na nossa modernidade não é nada estranho. Por tal razão, o projecto de engenharia é baptizado pelo seu idealizador, Ferdinand de Lesseps, como “pensée morale”, pensamento moral. O canal não é um canal, é um pensamento. Edward Said, no seu livro de 1978, Orientalism, que discute as representações que a Europa foi fazendo da Ásia, propô-lo como o sinal da viragem epistemológica que ocorre no próprio orientalismo: a passagem do Oriente, como categoria sinalizando um espaço perigoso e exterior, para uma “noção administrativa ou executiva” (2004, p. 107), já no contexto pan-imperial da segunda metade do século XIX, dominado pela Inglaterra e pela França. O feito de engenharia torna-se símbolo evidente da indistinção geográfica e política entre Oriente e Ocidente, de um Ocidente que devorou o Oriente. São, pois, vários os elementos que circulam em torno do canal. O promotor da escavação do istmo é francês, os seus construtores são egípcios, e o capital que patrocina a obra é, quer egípcio, quer o grande capital europeu. Por último, os seus detentores serão os ingleses, com a ocupação do Egipto e subsequente controlo do canal entre 1882 e 1956. É assim um fenómeno da comunidade internacional, promovido por interesses expansionistas, e que joga com a sobreposição de valores (capitais monetários e imaginários) sobre um território em constante redefinição. Se é certo que são a Inglaterra e a França os mais envolvidos na gestão real e simbólica do Suez, por serem as forças mais interessadas numa passagem de navegação entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, o canal também não deixa de remeter para a cultura portuguesa, uma vez que esta nova porta de acesso realiza por fim, ainda que por outras mãos, a necessidade antiga de chegar à Ásia por terra. O Suez vem tornar obsoleta a travessia marítima do continente africano que servira o projecto imperial português na sua formação. Ora, o português moderno e desiludido chamado Álvaro de Campos estudara engenharia naval em Glasgow. É significativo que este, como nós todos, herdeiro dos descobridores de Quinhentos se forme no Reino Unido, à altura possuidor da maior força naval do mundo. Mas agora vamos encontrá-lo duplamente desempregado. Não tem emprego certo, mero e desiludido passageiro de um cruzeiro quasi-burguês, e o mundo já não precisa de descobridores para as suas índias, já todas mais que descobertas: “Pertenço a um género de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem trabalho. A morte é certa./ Tenho pensado nisto muitas vezes”.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasXunzi 荀子 – Elementos de ética, visões do Caminho O Governo do Verdadeiro Rei, Parte V Usa as categorias apropriadas para lidar com casos confusos, e o usa o único padrão correcto para gerir a miríade de situações, começando e depois terminando, terminando e depois começando outra vez, tal como uma bracelete de jade, que não tem princípio nem fim. Se abandonares estas coisas, todo o mundo entrará em declínio. O Céu e a Terra são a origem da vida. Ritual e yi [justiça] são a origem da ordem. A pessoa exemplar é a origem do ritual e de yi. Praticando-os, ganhado o hábito deles, acumulando por eles grande estima, ganhando afecto por eles – essas são as origens da pessoa exemplar. Assim, Céu e Terra dão à luz a pessoa exemplar, que traz ordem ao Céu e à Terra. A pessoa exemplar é o terceiro parceiro do Céu e da Terra, um supervisor da miríade de coisas e uma mãe e um pai para o povo. Se não existissem pessoas exemplares, o Céu e a Terra não seriam apropriadamente ordenados e ritual e yi não teriam guia unificador. Em cima, não existiriam senhores ou mestres, em baixo, não existiriam pais e filhos. Esse é o estado de caos absoluto. Quando as posições de senhor e ministro, pai e filho, irmão mais velho e irmão mais novo, marido e mulher têm todas começo e fim, fim e começo, quando pertencem à mesma ordem do Céu e da Terra, durando tanto como a miríade de gerações – a tal se chama a grande raiz. Assim, os funerais, sacrifícios, cerimónias de corte, saudações reais e assuntos militares decorrem todos segundo esse padrão. Enobrecimento e degradação, dar a morte e dar à luz, dar e tirar, decorrem todos segundo este padrão. Tratar o senhor enquanto senhor, o ministro enquanto ministro, o pai enquanto pai, o filho enquanto filho, o irmão mais velho enquanto irmão mais velho e o irmão mais novo enquanto irmão mais novos são todas coisas que decorrem segundo este princípio. Tratar o lavrador enquanto lavrador, o oficial enquanto oficial, o artífice enquanto artífice e o mercador enquanto mercador são todas coisas que decorrem deste princípio. A água e o fogo têm qi, mas não têm vida. Ervas e árvores têm vida, mas não têm consciência. As aves e bestas têm consciência, mas não têm yi. Os humanos têm qi e vida e consciência, mas também têm yi. São, por isso, as coisas mais preciosas sob o Céu. Não são fortes como bois, nem velozes como cavalos, mas bois e cavalos são por eles usados. E porquê? Por causa das divisões sociais. De que modo podem as divisões sociais ser postas em prática? Através de yi. Se recorrem a yi para implementar divisões sociais, estarão em harmonia. Se estiverem em harmonia, estarão unificados. Estando unificados, terão mais força. Tendo mais força, serão mais fortes. Sendo mais fortes, serão capazes de dominar os animais. E, assim, chegam a viver em casas e palácios.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasElogio do fósforo Santa Bárbara, Lisboa, terça, 1 Dezembro Conversa quente pôs-me nas mãos a recente e completa edição, com abundantes notas, apresentação do seu editor primeiro e correspondência com leitores e críticos, do notabilíssimo ensaio de Isaiah Berlin, «O Ouriço e a Raposa» (ed. Guerra e Paz). Mergulhado em apneia no grande oceano das traduções literárias da última década, sinal de estranha vitalidade em país onde se lê de ouvido, fico preso ao detalhe que está na origem desta divisão dos seres vivos, logo tornada marca perene e ferramenta de análise. Berlin chega a confessar-se arrependido do título, afinal de tese sobre a visão da História em Tolstói, com paragem em Joseph de Maistre. Encontra-se brilhantismo a cada passo, dos que abrem sobre o concreto universos de pensamento, prática cada vez mais rara no ensaísmo literário contemporâneo, tão ensimesmado e afastado das coisas do mundo. O ponto de partida está no fragmento atribuído a Arquíloco, mas também a Homero, onde se observava que «a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa importante.» Algumas interpretações incluem a manha enquanto defesa, e até surge no apêndice uma tradução alternativa: «Raposa sabe/ Enésimas/ Manhas e ainda/ É apanhada:/ Ouriço sabe/ Uma mas ela/ Funciona sempre.» Quem se fecha, escapa. Os entusiastas não evitam as armadilhas da curiosidade. Basta este fósforo para que o ensaísta incendeie a planície do pensamento. E nos ponha a mapear a vida segundo os percursos de fogo do diletante e do obstinado. «Existe um grande abismo entre, por um lado, aqueles que associam tudo a uma visão única central, um sistema mais ou menos articulado, a partir de cujos termos compreendem, pensam e sentem – um princípio organizador único, universal, sobre o qual o significado de tudo o que são e dizem assenta em exclusivo – e, por outro lado, aqueles que perseguem muitas pontas, frequentemente não relacionadas e até contraditórias e, quando relacionadas, apenas nalgum sentido de facto, por alguma causa psicológica ou fisiológica, não relacionada com um princípio moral ou estético. Estes últimos conduzem vidas, desempenham actos e alimentam ideias centrífugas e não centrípetas; o seu pensamento é disperso ou difuso, move-se em muitos níveis, agarra-se à essência de de uma vasta diversidade de experiências e objectos por aquilo que eles são, sem, consciente ou inconscientemente, procurar excluí-los ou procurar que caibam numa qualquer visão unitária interior, imutável, abrangente, por vezes contraditória e incompleta, por vezes fanática.» Horta Seca, Lisboa, quarta, 9 Dezembro Demoramos talvez demasiado a tempo a entender que a vida não se faz de maneira única, dá que nos dá jeito. E por vida digo os outros, no caso os que bicicletandam. Nem tudo se constrói na base das palavras e de longas conversas. Por exemplo, tratamos a doença sem aquele cuidado desprezo que merece. A dita tem a mania de se chegar a nós e ocupar-nos por completo. Convém adestrá-la a doce e chicote, para que aprenda a respeitar-nos. Quem diz alimento e disciplina, diz olhar. Era essa a tua ferramenta, Edgar, e nessa troca de cromos nos fomos encontrando. Andavas por estes dias a exercitar a maquineta que te transportava o olhar ao céu. Andavas a treinar, safado. Naquilo o teu Oeste tornou-se distinto. O território ganhou outras texturas, contornos mais desenhados, a visão de conjunto, assim uma redução ao essencial. Com vista para o mar. Saltavas do detalhe discreto ao voo épico. Mas andavas lá por cima como se de bicicleta. As duas rodas prolongam-nos o corpo de uma certa maneira, assim uma peça de roupa, uma varinha de vedor, aqui água, ali caminho, acolá miradouro. E a tua timidez não dispensava gente, a gente. Tocavas música como quem anda de bicicleta nas nuvens. A fotografar, claro. Como aqui, nesta a rasgar a página, pertença de um portefólio para a «Torpor» sobre certo lugar de partidas e chegadas. Não falámos assim tanto da doença, mesmo lá no território que ela pensa ser o dela. Trocámos olhares, sobretudo nos dias em que a paragem do mundo fora agravava os silêncios dentro. Falámos de chapéus e da ausência dos rostos. Não era este silêncio que estava combinado entre nós e, além disso, a tua rua precisava ainda de som e de uma certa luz, a que resulta de quem pedala no escuro com o dínamo na roda. Vai custar a perceber o que foste iluminando à toa. Em Óbidos como nas Caldas da Rainha, as ruas ficaram mais estúpidas agora que o Edgar Libório morreu. Horta Seca, Lisboa, quinta, 10 Dezembro A Câmara Municipal de Lisboa resolve, em boa hora, estender programa de apoio cheio de urgências e boas intenções à restauração e outros sectores a rimar com aflição. E vai de incluir no pacote a cultura, por causa do óbvio e da pobreza. Crédulo, achei que talvez coubéssemos na gaveta. Nada disso: as editoras são inelegíveis. Pensando melhor, a que raio de necessidade damos nós, gastadores de papel e tempo, resposta? As florestas respiram de alívio. E podem continuar a dar abrigo aos medos ancestrais. Horta Seca, Lisboa, quinta, 10 Dezembro Os manos Valério [Romão] e José [Anjos] estão ocupados a reinventar o neorrealismo. Nasceu em bar, há muitas luas, e estava fadado para ficar por ali, revisitação episódica da antologia peculiar, «Iron Moon: An Anthology of Chinese Worker Poetry», de Eleanor Goodman. Onde mais poderia ficar a pátria do trabalho fabril senão na China? Esqueçam a prática milenar de captura dos versos etéreos nascidos da aguda observação da natureza ou dos subtis entrechoques do comportamento, enfim, dos estreitos caminhos que dão acesso à sabedoria. A realidade faz-se âncora, nestes versos não se levanta voo. «O trabalhador fabril contemporâneo chinês tem as mãos no século XXI, na linha de montagem, e o resto do corpo no século XIX. Exaustos, estes trabalhadores encontram nos produtos da indústria que os explora um refúgio inesperado. Passam parte das suas noites diminutas a escrever poemas nos ecrãs dos seus telemóveis e a publicá-los em fóruns onde se trocam versos amargos e os emojis de sorrisos possíveis. Pela primeira vez na história da China, a poesia não sai da rua para os corredores do palácio do imperador. Aquilo que os esmaga é também o que os liberta.» O tema de apresentação dos mao-mao dá ideia da dureza que se exprime com soturnidade: https://youtu.be/3ASWAD99JZc. «Filho» nasce de um poema de Chen Nianxi, trabalhador mineiro da província de Xianxim. Curioso vislumbre da sombra do punk nos amanhãs que serão cantados no concerto/espectáculo, do qual tomarão ainda parte Pedro Salazar (baixo) e os convidados especiais Sandra Martins (arranjos de violoncelo), Paula Cortes (voz) e António Jorge Gonçalves (imagens). Alguma ironia se deve soltar de aguardar o dito na vizinhança do ministério de uma economia tão amarelo-dependente.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasQuero é conversa Todos os reencontros são bons. Mas aqueles que o acaso nos oferece podem ter o sabor do mais doce fruto. Nestes dias reclusos, a sensação de alegria parece ainda ser maior. Foi o que me aconteceu quando uma destas manhãs deparei com a menina Marina numa carruagem de metro. A menina Marina, para quem não sabe, é uma sábia de bairro que durante algum tempo viveu também nesta página. Depois as vidas mudaram e perdemos o contacto. Mas nesse dia feliz, vislumbrei-a ao longe, o olhar vivo e inquisitivo realçado pela máscara sanitária. Fui sentar-me ao pé dela e ambos estávamos felizes por mais uma certeza do acaso. Conseguimos falar da vida e dos dias entre estações, trocar sentenças e piadas sobre tudo o que nos rodeia, sonhar com tempos melhores e mais livres. Mas uma vez sábio, sempre sábio. E à sua maneira a menina Marina voltou a apontar-me o caminho: «Olhe, senhor Nuno, mesmo com estas desgraças todas sabe o que mais me falta ? Isto.» «Isto?» «Isto. Conversar. Já ninguém conversa, senhor Nuno. E isso não foi causado pela praga. Já ninguém conversa há muito tempo.» Abençoada menina Marina: mais uma vez tinha razão, o melhor tipo de razão que se pode ter: vivida, sentida e não apenas proclamada ou, pior, imposta. Infelizmente é uma razão triste mas em que não estará sozinha. A conversação tem desaparecido das nossas vidas a um ritmo alucinante e invisível. Aquilo que, de forma justa e natural, já foi considerado uma arte diluiu-se na instantaneidade do presente. Mas reparai, amigos: já nem falo das épocas em que a conversa era uma das qualidades dos mais prósperos ou educados. Já nem falo, insisto, em que era uma prática bem-vinda, necessária. Em que as mesas de jantar eram campos de batalha onde a única munição permitida eram ideias e aforismos cintilantes. Não, não estou sequer a falar desse tempo dourado onde a própria conversação era alvo de ensaios, análises e entusiasmos. Não, amigos: eu e a menina Marina estamos a falar de agora mesmo. O prazer da conversa pela conversa tende a desparecer. Não há tempo nem vontade. A conversa vive do diálogo, o que antes de mais significa saber e querer ouvir, algo impossível se permanecermos em trincheiras. “O silêncio é uma grande arte da conversação”, já escrevia William Hazlitt na altura em que isso era possível. Agora não: quem quer ouvir o outro quando há uma caixa de comentários ali ao lado? Se pensam que esta angústia é anacrónica talvez tenham razão, amigos. Mas de repente deparo com um texto do grande David Brooks – colunista do New York Times e que já aqui incensei chamado Nine Nonobvious Ways To Have Deeper Conversations e que sugere maneiras práticas e bonitas das pessoas conversarem umas com as outras.A data: 19 de Novembro deste ano desgraçado. Isto entristece tanto quanto é necessário. Brooks sentiu a urgência de ajudar as pessoas a falarem entre si pouco antes da maior festa familiar dos Estados Unidos da América, o Dia de Acção de Graças. É um texto prático, nada paternalista mas melancólico pela própria existência. Entre episódios e anedotas somos lembrados de que conversar é precioso porque, entre outras coisas, nos liberta de nós mesmos para dar lugar ao outro. A conversa, para além de troca humana, obriga no seu melhor a colocar o interlocutor em primeiro lugar. Como exemplo maravilhoso do que agora afirmei repito o que Brooks foi buscar a Lady Randolph Churchill (mãe de Winston) e que resumiu na perfeição este sentimento ao dizer sobre dois primeiros –ministros ingleses que quando ouvia falar Gladstone sentia que o homem era o mais inteligente de Inglaterra; mas quando conversava com Disraeli era ela que se sentia a pessoa mais inteligente que alguma vez existiu. Conversar é também isto: uma arte de sedução. Mas fundamentalmente é sempre um câmbio de opiniões sobre seja o que for. Ao perdermos esta possibilidade deixamos fugir mais do que pensamos – a própria ideia de liberdade. Por isso conversai, amigos. Seduzam-se, contrariem-se, concordem, discordem, riam, chorem. Estamos a ficar sem rosto e sem voz. Façam isso, nem que seja pela menina Marina.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPONTUAÇÃO, POESIA A jovem Margarida Maldonado Mota escreveu um livro «sui generis» entre o ensaio e a poesia. Talvez se possa qualificar «Uma Vírgula no Coração» de ensaio poético e cujo título muito me alegra, pois trata-se de uma migalha de verso meu, no livro «A Arma do Rosto». O poema de onde a migalha lhe caiu no título é precisamente o que dá título ao meu livro, que começa e termina com este verso: «Trazias uma vírgula no coração e o cabelo de modo a mostrar a arma do rosto». Verso que aparece em epígrafe no livro da jovem escritora. Margarida Maldonado Mota – a partir de agora, MMM –, ao longo do seu pequeno livro, 89 páginas, mostra-nos vários modos de nos relacionarmos com a pontuação. Escreve logo no início: «Não se pontua apenas com regras, pontua-se com o coração.» O livro está dividido em vários capítulos: Ponto, Vírgula, Ponto e Vírgula, Dois Pontos, Ponto de Interrogação, Ponto de Exclamação, Reticências. Comecemos pelo fim, por citar um longo excerto do livro, de modo a compreender a escrita de MMM: «As reticências, mais do que silêncio, mais do que um não saber, mais do que interrupção ou tentativa de cortar uma frase, expressam uma tristeza. “Ai, se a vida…” ou “Estivesses tu aqui…” ou ainda “Talvez um dia…”. Exceptuando o primeiro exemplo, que não podia ter outra pontuação, os outros dois poderiam ter, quer ponto final, quer exclamação, mas isso alterava tudo. “Estives tu aqui!” mostra-nos a alegria a querer espreitar pela frecha da exclamação. “Talvez um dia.” é impossível não ver a resignação que aquele ponto de final confere. Mas as reticências não admitem dúvidas de que há ali tristeza com que se coçar. «Estivesses tu aqui…», mas não estás e tudo é triste como andar na vida. «Talvez um dia…», eu possa vir a ser quem não sou, a conseguir fazer o que não faço, mas sei no fundo que nunca vai acontecer e a tristeza com que calamos o que pensamos diz muito bem acerca desta evidência fúnebre. Por isso, não tenhamos dúvidas: onde há reticências há tristeza, ainda que possamos não saber o que dizer acerca dela. Mas para que a tristeza se faça sentir, não podemos usá-la continuamente, como fazemos com o ponto de final. Um texto povoado de tristeza não é nem texto nem tristeza, é alguém exageradamente maquilhado». Julgo que neste excerto conseguimos vislumbrar o que MMM faz ao longo do livro. Não apenas uma especulação reflexiva em torno dos sinais de pontuação, mas também uma especulação poética. Aliás, a própria poesia é reflexiva, como escreve a autora: «Os versos devem pensar. E devem fazê-lo tanto com as palavras quanto com a pontuação.» Depois MMM leva-nos por uma curta análise a um verso de Tiago Moledo, de o poema 7 de «Primeiro Livro»: «Leia-se o verso de Tiago Moledo, com que termina o poema 7 do seu “Primeiro Livro”: “Morte, é matar.” Aquela vírgula destabiliza o modo usual de lermos. Inicialmente parece que a vírgula comete o mais alto dos pecados contra a gramática: separa o sujeito do predicado. E, é sabido, nenhum mortal deve separar o que a gramática uniu. Mas é só a um primeiro instante que parece pecado. Rápido nos damos conta de estarmos perante uma construção gramatical que nos obriga a parar e a pensar. Mais do que encontrar o significado daquela vírgula ou do verso, o que importa é fazer-nos parar, fazer-nos pensar. Somos parados por uma vírgula. Só um poeta é capaz de parar alguém com uma vírgula.» Aqui, MMM destrói a ligação entre pensar e encontrar significado. Pensar para a autora não se reduz a encontrar uma direcção, um sentido, a resolver um problema, a encontrar um significado, pensar é parar. Parar de andar sem reparar, parar de ler sem ver. Pensar, no fundo, é começar a ver ou ver de novo ou simplesmente pôr em causa o que dávamos por certo. E autora mostra-nos isso através do uso da vírgula no último verso de um poema de Tiago Moledo. «A pontuação é mais do que a respiração do texto ou a organização lógica do mesmo, é parte do pensamento, parte do pensar.» Acerca do ponto de exclamação, que usualmente lemos como surpresa, efusividade, entusiasmo ou até uma ordem, MMM escreve, parafraseando Edward Albee: «Quem tem medo do ponto de exclamação? Quem vê na sua “falocidade” uma ordem ou um exagero vocal ou encontro entre duas tias de Cascais. Mas o ponto de exclamação pode ser delicado e preciso. Vejam-se estes exemplos: “Que vinho!” Conseguem pensar em mais algum elemento de pontuação para precisar o sabor que atingiu o sujeito daquela frase? Haverá maior precisão que aquele ponto de exclamação? Um ponto final ali dava cabo do vinho. As reticências seriam capazes de trazer algum mistério, é verdade, mas os três pontos seguidos não se livram de alguma tristeza… Vinho bom tem exclamação, sim. “Que vinho!” E o mesmo podemos dizer de uma mulher – ou de um homem – acerca de outra: “Que mulher!” Mas veja-se um outro exemplo onde além da precisão se introduz delicadeza: “Essa tua toalha de mesa é tão bonita!” ou “Estás tão elegante!” Conseguem imaginar um ponto de final a dar cabo da delicadeza com que a frase é dita e a emoção com que é recebida? O problema não é o ponto de exclamação, mas o seu uso. Parafraseando o poeta: todo o ponto de exclamação vale a pena se a delicadeza não for pequena.» Muitos são os exemplos com que a autora nos vai alegrando ao longo do livro. Muitas as reflexões. É um livro ímpar. Saímos dele a respirar melhor, a pensar mais, a ver de novo muitas coisas que tínhamos há muito deixado de ver, apesar de olharmos para elas diariamente. Resta-me agradecer a Margarida Maldonado Mota por este maravilhoso livro e por ligar um verso meu a ele.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO Concerto Desconhecido Max Bruch (1838-1920): Concerto para Violino e Orquestra no 3 em Ré menor, Op. 58 Max Bruch manteve um relacionamento constante com dois dos grandes violinistas da sua época, o húngaro Joseph Joachim e o espanhol Pablo de Sarasate. Joachim, uma estrela de grande influência no firmamento musical alemão, claramente respeitava-o, pois deu-lhe muitos conselhos e incentivo ao longo dos anos e ajudou-o a editar as partes a solo, até mesmo de obras destinadas ao seu rival Pablo de Sarasate. Foi para Joachim que Bruch compôs o Concerto para Violino e Orquestra nº 3 em Ré menor, Op. 58, trabalhando nele nos últimos meses da sua estadia em Breslau (hoje Wrocław na Polónia), cidade que deixou em Abril de 1890, antes de se mudar com a sua família para Berlim em Setembro do mesmo ano. Numa carta datada de 12 de Dezembro de 1890 ao seu editor Fritz Simrock, Bruch escreveu: “Voltei do meu descanso de Verão com, entre outras coisas, um Allegro de Concerto em Ré menor… e pensei em dedicá-lo a Joachim. Imediatamente antes da minha partida para a Rússia, estive com Joachim para analisar a obra com ele, e foi decidido expandir a peça para um concerto completo.” Joachim executou os dois primeiros andamentos do Concerto na Hochschule für Musik em Berlim, onde leccionava, em Fevereiro de 1891. Bruch estava presente e pôde fazer ajustes, mas não houve tempo para ouvir o finale até toda a obra ser executada na Hochschule no dia 21 de Abril seguinte. Joachim fez a estreia em Düsseldorf no dia 31 de Maio e posteriormente tocou-a em Hamburgo, Berlim, Frankfurt, Estrasburgo, Breslau, Leipzig, Colónia e Londres. A obra foi publicada por Simrock com uma dedicatória a Joachim, apesar de uma rixa ridícula entre o editor e o violinista, que estava quase loucamente ciumento e injustamente suspeitou que a sua esposa Amalie estivesse a ter um caso com Simrock. Esse comportamento, que resultou no divórcio dos Joachim, provocou um distanciamento entre o violinista e Johannes Brahms e também fez com que a sua amizade com Bruch esfriasse durante algum tempo. O Concerto para Violino e Orquestra no 3 nunca alcançou a proeminência do Primeiro Concerto de Bruch, apesar de ser advogado tanto por Joachim como por Pablo de Sarasate. Excepcionalmente, Bruch inicia o opulento primeiro andamento da obra, marcado Allegro energico, com um tutti orquestral e constrói o andamento na forma-sonata: o primeiro tema, como uma fanfarra, é seguido de forma clássica por um segundo tema lírico, e o violino solo, tendo entrado com um vistoso floreado, reapresenta essas ideias. O motivo da fanfarra é usado de forma bastante portentosa, até mesmo ameaçadora, no desenvolvimento, e o segundo tema oferece muitas oportunidades para o violino voar em arrebatamentos líricos antes do primeiro tema conduzir o andamento a um final dramático. No Inverno de 1890-91, Bruch acrescentou os dois andamentos extras que Joachim havia sugerido. O Adagio, inesperadamente em Si bemol maior, é um romance maravilhosamente simples: uma melodia de respiração longa é apresentada pelo solista e elaborada de encontro a um fundo orquestral tranquilo. No meio, há uma declaração orquestral particularmente adorável dessa melodia, que é então retomada pelo violino solo, e o solista termina o andamento silenciosamente na corda Mi. O finale é um rondó com um tema principal lúdico, quase como uma canção folclórica: dois dos episódios intermediários são muito líricos, proporcionando o máximo contraste, e o solista é obrigado a executar algumas cordas duplas atmosféricas. A conclusão é muito satisfatória, sem ser de todo bombástica. Sugestão de audição: Max Bruch: Violin Concerto No. 3 in E minor, Op. 58 Jack Liebeck, violin, BBC Scottish Symphony Orchestra, Martin Brabbins – Hyperion Records, 2014
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Quarto Continente O nome América apareceu pela primeira vez em Abril de 1507 num pequeno livro, Cosmographiae introductio, escrito por Martin Waldseemüller, cónego da Lorena em França, onde referia ter Americus Vespucci descoberto o novo continente, e no mapa colocou sobre a representação deste a palavra América, pois os continentes têm nomes femininos. Só mais tarde deu pelo erro, mas a rápida difusão do livro espalhou o nome e assim ficou a chamar-se América, segundo Daniel J. Boorstin em Os Descobridores (Gradiva, 1987), de onde provem algumas informações deste artigo. Américo Vespúcio (1454-1512) era um florentino ao serviço da família Medici em Espanha desde 1495 e como feitor e armador juntou-se em 1499 à expedição chefiada por Alonso de Ojeda. Nesse ano partiriam também Vicente Yañez Pinzon e Diego de Lepe a fim de explorar ao longo das costas do continente, que já se acreditava poder não ser a Ásia, apesar de Cristóvão Colombo, ao partir para a terceira viagem, onde então andava, crer ainda ser o Sinus Magnus (a Grande China) e tentava encontrar o Cabo de Catígara, como Ptolomeu chamara à ponta Sudeste do continente asiático, na península de Malaca, a Aurea Chersoneso, ou Quersoneso. Alonso de Ojeda (1470-1516), que acompanhara Colon numa das viagens, “foi o primeiro de quantos espanhóis se lançaram na exploração da região de Pária [Venezuela], descoberta por Cristóvão Colombo na sua viagem de 1498, e que se antolhava produtora de avultadas riquezas, como o nome de Costa das Pérolas, que por essa época lhe foi dado, testemunha. Partiu de Puerto de Santa Maria nos princípios de Abril de 1499, levando consigo o grande cartógrafo e piloto espanhol Juan de La Cosa [que acompanhara Colon nas duas primeiras viagens], e o mercador florentino Américo Vespucci”, segundo Damião Peres, que refere, “Na sua viagem de ida deve ter-se cingido à derrota seguida por Colombo, mas veio abordar a costa setentrional sul-americana um tanto mais a Leste do que aquela: , segundo sua própria afirmação. De Pária navegou Hojeda para a ilha do Haiti, onde se conservou cerca dum semestre, e daí regressou à Espanha, onde chegou pouco mais dum ano após a partida.” Na costa da actual Venezuela, ao comando de dois navios Vespúcio separou-se da expedição de Ojeda e foi explorar para Sul do Sinus Magnus, onde Colon pensara ter chegado, à procura do Cabo de Catígara, para passar ao Índico. Não o encontrou nas 400 léguas navegadas ao longo da costa, crendo assim poder tratar-se de um novo continente, mas teve tempo para observar e estudar as estrelas do hemisfério Sul. NEGÓCIO DAS ESPECIARIAS À caravela juntou-se em 1497 a nau e segundo Veríssimo Serrão, “Como a estrutura da caravela não garantia o êxito de uma viagem de tamanho alcance, deu-se preferência a embarcações de maior equilíbrio e robustez para vencer as intempéries do oceano. Por isso se utilizaram naus de três mastros, com a vela triangular na mezena e pano redondo com duas quadrangulares nos mastros do meio e da proa. Tratava-se de uma inovação náutica que assegurava melhor os objectivos científicos que a viagem pressupunha”. Inúmeras eram as expedições enviadas por o Rei D. Manuel (1495-1521) e entre elas a de Duarte Pacheco Pereira, que em segredo foi e veio em 1498 às ainda desconhecidas terras de Vera Cruz. Já a 8 de Julho de 1497, de Belém, Lisboa, largara a primeira frota à Índia capitaneada por Vasco da Gama. Com quatro naus velejou para Sul ao longo da costa africana mas, ao contrário de Bartolomeu Dias, fugiu das calmarias equatoriais rumando a Sudoeste, fazendo a volta no Atlântico para com um alísio de flanco encontrar os ventos fortes do Sul e passando o Cabo chegou ao Índico. Na Índia atingiu Calicute a 20 de Maio de 1498 e no regresso, a súbita doença de seu irmão Paulo da Gama, levou-o a aportar na Ilha Terceira, mandando à frente Nicolau Coelho a transmitir ao Rei a boa nova do caminho marítimo para a Índia. Este chegou a Cascais a 9 de Julho de 1499 e só dois meses depois apareceu Vasco da Gama, recebido com pompa por D. Manuel, que o cumulou de honras e benefícios. O carregamento de especiarias cobriu largamente os custos da expedição, no entanto, dos 148 tripulantes que partiram, só 55 voltaram, segundo Oliveira Marques. PEDRO ÁLVARES CABRAL E O BRASIL A segunda frota enviada à Índia tinha dez naus e três caravelas e era capitaneada por Pedro Álvares Cabral, com uma tripulação de 1200 homens, entre eles, Nicolau Coelho, Bartolomeu Dias e o irmão Diogo, assim como oito franciscanos. Largou a 9 de Março de 1500 e sem fazer escala nas Canárias e nas ilhas de Cabo Verde, onde passou a 22 de Março, aí gastou sem sucesso dois dias à procura de uma nau perdida. Aproveitou depois o vento alísio de Nordeste para singrar até próximo do Equador, zona de calmaria, onde apanhou o alísio de Sudeste e realizou a grande volta, atravessando o Atlântico. Ao fim de um mês, a 22 de Abril tinha terra à vista. No dia seguinte pisaram a Terra de Vera Cruz, que viria a chamar-se Brasil, devido ao pau-brasil, árvore de madeira encarnada abundante nessa costa. Em Porto Seguro, como baptizaram o local, permaneceram dez dias, enviando Cabral o pequeno navio dos mantimentos para Gaspar de Lemos ir dar nota ao Rei D. Manuel daquele achado, conhecido, mas mantido em segredo. Do continente sul-americano partiram a 2 de Maio, pois o foco estava no Oceano Índico, o mar do comércio, em espaço de domínio português. Na costa oriental africana, Diogo Dias deu com uma ilha, baptizada então de São Lourenço, mais tarde Madagáscar. A armada em Setembro chegou a Calicute e após negociar com o samorim, instalou uma feitoria, atacada em 16 de Dezembro por nativos muçulmanos, morrendo vários portugueses, entre eles, o escrivão Pêro Vaz de Caminha. Como represália, Cabral bombardeou Calicute e seguiu para Cochim, onde encontrou amigável acolhimento do hindu Rajá, inimigo do samorim, seu vizinho do Norte. Cochim e Calicute situavam-se na costa Malabar, onde crescia o gengibre e a melhor pimenta de todo o Oriente, sendo importantes portos de comércio desde a Antiguidade. Mais tarde, em Cochim os portugueses fizeram em 1503 a sua primeira fortaleza na Índia, ficando então como capital até à conquista de Goa em 1510. A 31 de Julho de 1501, Pedro Álvares Cabral chegava a Lisboa, após alguns barcos terem naufragado no Índico, mas vinha, segundo Joaquim Veríssimo Serrão, com uma “carga de 200 quintais de especiarias, obtidas a bom preço, o que se traduziu num verdadeiro negócio para a coroa portuguesa.” A segunda viagem de Américo Vespucci, agora às ordens de D. Manuel, partiu a 13 de Maio de 1501 com três caravelas e em 64 dias atingiu a zona portuguesa de Vera Cruz (Brasil) e navegando para Sul, entrou na parte espanhola até à Patagónia. Sondara quase toda a costa Oriental e sem aparecer o Cabo de Catígara, reconheceu ser um novo continente, que viria a tomar o nome América.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasO Passeio de Zhan Ziqian na Primavera Paulo Maia e Carmo Yang Jian (541-604) que inicialmente tinha o título de «duque de Sui», durante a dinastia Zhou do Norte (557-581) formaria uma nova dinastia e para a nomear fez uma mudança na morfologia do caracter «sui» que significa «seguir», retirando-lhe uma partícula que implica o «caminhar», inaugurando um período breve no tempo mas influente na História. Foi o primeiro sinal dado por aquele que ficaria conhecido como Wendi, «o imperador culto» (r. 582-604) da sua vontade de projectar o espírito fazendo-o agir sobre a matéria, modificando-a. Se no plano da cultura data dessa dinastia Sui (581-618) um renascimento do ideal de unificação sob a égide dos Han, como sucedera com Qin Shihuang (r. 221-210 a. C.) a que agora se juntava a conversão imperial ao Budismo, a sua acção no espaço geográfico ficaria marcada por grandes obras, como o início da construção em 589 do Grande Canal, a ligar a capital Changan ao rio Amarelo, a continuação da construção da Grande Muralha e depois uma nova capital em Kaifeng. Da sua actividade militar expansionista, um episódio, a conquista de Jiankang (Nanquim) aos Chen e a deslocação dos seus nobres para Norte resultou num profícuo despertar da curiosidade dos aristocratas da Corte pelas singularidades intelectuais do Sul. Este é também o tempo em que se revela uma nova forma de perceber a pintura em que, dado que na sua essência está o dinamismo dos seus componentes, tem o nome de pintura «shanshui». A mais antiga dessas pinturas registada pelos historiadores é nomeada com dois caracteres: you, chun, «Passeio de Primavera». Do seu autor pouco mais se sabe que um nome. Zhan Ziqian terá nascido em Yangxin, actualmente em Shandong, as suas datas de nascimento e morte desconhecidas, sabe-se que foi um funcionário do Estado, activo nessa segunda metade do século VI. É referida a sua habilidade para pintar pavilhões, pessoas e cavalos porém esta é a única pintura dele que hoje podemos observar e mesmo ela é seguramente uma cópia, feita algures durante a dinastia Song. A pintura em rolo horizontal (tinta e cor sobre seda, 43 x 80,5 cm) que se encontra no Museu do Palácio, em Pequim, executada com as características habituais das pinturas que usam os pigmentos minerais naturais verde, a partir da malaquite e azul, da azurite, conhecidas como qinglu, seriam populares durante a seguinte dinastia Tang, o que se percebe no comentário que Zhang Yanyuan (c.815-c.877) fez sobre ele: «As pinturas do período medianamente antigo eram feitas de maneira concisa e cheia de detalhes; são extremamente graciosas.» Mais do que tornar visível a dicotomia mística original própria do Daoísmo entre as águas (yin) e as montanhas (yang) será de notar como, na aurora de um novo género de pintura, estão representadas pessoas num acordo explícito com a natureza, integradas mas ao acaso, caminhando.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDesatinos O acaso atirou-me para o estômago de Xipamanine e só teria boleia duas horas depois. Andar de chapa em pleno Covid não me parecia prudente. Sentei-me na tasca mais protegida da poeira. Eles chegaram vinte minutos depois e abancaram na mesa ao lado da minha, num estardalhaço. Cinco bizarmas, altos e maçicos como zulus. Na melhor das hipóteses, seis ex-piratas convertidos ao basquetebol. Não eram, falavam em casas ardidas e em extorsões. E o líder – há azares que nunca vêem sós – achou graça que na mesa ao lado um white se procurasse concentrar na leitura. O que dava uma função diferente ao tampo das mesas, agastadas por décadas de cotovelos ébrios. Para mostrar-se magnânime, interpelou-me, queria pagar-me um copo. Escusei-me às primeiras, mas ele insistia e de cinco em cinco minutos voltava à carga. Ao cabo de vinte minutos amaldiçoei-me por não ter zarpado mais cedo nem poder agora evitar a oferta, sem parecer indelicado. Suspirei para dentro, apropriei-me com um olho de uma linha do livro que estava a ler e atirei para a mesa do lado, num sorriso contrafeito: – Bom, se até o Hegel, na Fenomenologia do Espírito, evoca a necessidade de tornar fluido o “pensamento congelado”, poderei eu recusar a sua oferta em oferecer-me uma cerveja? Fez-se silêncio e a coisa deve ter-lhe parecido rebuscada, de um momento para o outro eriçou-se. Lançou para os outros: – O white gosta de confusionar os bradas… – e sacando a pistola do bolso, pô-la em cima da mesa, sem deixar de me mirar – Vamos ver o que esse boss, como é que era mesmo o nome? – Hegel…- repeti, reprimindo a custo o soluço – é alemão… – Vamos ver o que esse boss fala depois de ver o buraco de uma bala no bucho… de outro white. – Bom, dou por alternativa aceitar o seu copo… – reagi, mansamente. Na hora seguinte, rodeado de risos e grunhidos e de mil disparos escatológicos, bebi cinco canecas a mata-cavalos, quase em silêncio; o capanga queria comprovar se o white aguentava. Não é verdade que cinco canecas depois se desloque o foco da depressão. E explicava ele aos outros, trocista, topando o meu incómodo: – Julgava que o “mano” lia uma cena de economia e nos ia falar como livrar impostos! Ficou o Hegel mais às curvas do que eu, apreensivo com os rumos de tanta generosidade. À sexta caneca, comprovando que a minha necessidade inata para ser tranquilizado me traía, deixei escapar um arroto. O que lhe provocou uma gargalhada e amenizou a tensão. Resolveu aí guardar a pistola e condescender: – O white sabe beber… – antes de prevenir, de seguida – mas para a próxima faço-te engolir o livro! O livro, de bolso por sinal, chama-se La Figure du dehors, e é do Kenneth White: daria uma bela e indigesta refeição. Sairam dez minutos depois, na mesma estúrdia em que tinham entrado, deixando-me a cismar na ressaca e na petulância com que a cultura às vezes arrisca não ser mais do que um descarnado out of time. Noutra vez resolvi ir experimentar o ambiente de um café novo, numa zona nobre da cidade, um pouco retro, bastante kitsch, e estupidamente caro. Normalmente, só levo comigo o suficiente para pagar dois cafés, para não me entregar a outros estragos. Estava naquele limiar em que começamos a pensar em ir para casa quando me abordou um tipo baixote, anafado e cinzento: – Desculpe. Dizem-me que o senhor escreve versos. – Às terças-feiras. Ele riu: – Hoje é domingo, mas poderei pagar-lhe. – Pagar-me o quê? – Um poema para a minha dama. Cocei o queixo, olhando-lhe os dedos encardidos do tabaco: – Hum, e qual é a pressa? – Ela faz anos hoje e fiquei de ir jantar com ela. Gostava de levar o poema comigo. Por quanto mo fazia? – É um uísque duplo, por quadra. Se for soneto, três. – Posso voltar daqui a meia hora? – Quarenta minutos, a primeira dose é para me descer a inspiração, só ao segundo começo. Espetou a mão sapuda no ar e selámos o acordo com um passou-bem. Pedi-lhe uma fotografia da amada. Bom, ela era o impossível cruzamento de um radiador de Mercedes Benz com uma fêmea de tubarão-martelo. Há gostos para tudo. Porém, se o Mallarmé fazia de encomenda poemas para os casamentos e depois explicava aos amigos que aqueles poemas não eram obscuros porque não tivera o tempo para isso, eu também seria capaz. Pedi o primeiro duplo. Ele voltou uma hora depois: – Não quis apressá-lo na sua escrita. Passei-lhe o poema. A cara dele alterou-se à primeira palavra: «Rémora grudada à sua pele/ lustrosa, o meu amor por ela./ (Ela não sabe que lhe chamo tubaroa!) / Rémora de si mesmo saudosa// mas rendida à emoção que só/ no seu flanco estua, quando ela arfa/ e um heliventilador me limpa o dó,/ no ar que me somava as derrotas.// (E quem mais aceitaria que eu/ fume por dia dois cinzeiros?) Rémora/ de amor ardente e ciúme ao rubro, e mui/ inquieta por fazer anos a minha fera/ e eu ainda à toa quanto ao presente…/ (Se ela soubesse que lhe chamo tubaroa!)» Desculpe, o que é rémora? – perguntou desconcertado. Expliquei-lhe. Não gostou do tom jocoso. Nem topou o verso camoniano. – O senhor é maningue excêntrico, o poema nem tem lírios! – Com emendas é mais um uísque! Irritou-o a piada. Pôs uma carranca e deixou-me a sós com a conta por pagar, num café fino onde nunca havia entrado e nos braços de um gerente, percebi depois, um bocado bruto para brancos desabonados. Este declinou a minha oferta com a sentença: – Os uísques pagam-se com o dinheiro e os sonetos com o aplauso. Gente ingrata, é o que é!
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasPessoa nu Há muitos anos que sei que Fernando Pessoa foi a Portalegre comprar uma tipografia. Sempre achei curiosíssimo por muitas razões, mas sobretudo porque Pessoa não gostava de viajar, ou seja, de cruzar o território físico (não outros, é claro). Numa das sessões recentes que tiveram lugar na EC.ON-Escola de Escritas, o Jerónimo Pizarro acentuou muito este facto e confirmou que o território de eleição do poeta era sobretudo a geometria da Baixa lisboeta. Todos os destinos do mundo, mesmo aqueles africanos de onde pela segunda vez regressou em 1905, se circunscreviam, na realidade, à pátria braquiana que liga, na capital, o Rossio ao cais das colunas. Esta semana, por acasos de um projecto de escrita em que ando envolvido, dei com uma carta escrita por Pessoa a Armando Teixeira Rebelo no dia 2 de Agosto de 1907, estando alojado precisamente em Portalegre no então “Hotel Brito”*. Relembremos que o poeta tinha na altura 19 anos (feitos em Junho, no dia de santo António e de Lisboa). O calor e o “nada” extremos vividos nessa viagem – não o “nada que é mito”, mas apenas o da mera carambolagem, como diria o dadaísta Tzara – tocaram de tal modo Pessoa que a carta acaba por roçar, cito, o “hiperaborrecimento, o ultra-estafanço-de-tudo, a absoluta sensação de o-que-há-de-fazer-um-tipo num sítio destes”. Raramente vi um documento em que a exaustão de uma atmosfera e de uma cidade fosse tão radical. Nada parece compensar Pessoa neste seu logro. Nem mesmo o poema que faz de ‘post-scriptum’ à epístola, intitulado “O Alentejo visto do comboio”, e que é uma verdadeira ‘quête’ do inferno. Reza assim: “Nada com nada em sua volta/ E algumas árvores no meio,/ Nenhuma das quais claramente verde,/ Onde não há vista de rio ou de flor./ Se há um inferno, eu encontrei-o,/ Pois se não está aqui, onde Diabo estará?”. Logo nas primeiras linhas da carta, Pessoa explica a Armando Teixeira Rebelo a razão que o terá levado a escrever: “a minha alma sentiu, como um suspiro mental, a necessidade de dar expressão do seu presente estado e tendências a um cérebro amigável como o teu”. Depois torna claro quais as “circunstâncias angustiosas” que estava a viver e que lhe deram a “ideia de que talvez o processo desta composição epistolar” pudesse “ser subjectivamente conducente a um alívio do meu fardo terreno neste momento”. Segue-se a este passo da carta a caracterização possível da cidade que teve nesses dias diante dos seus olhos: “Portalegre é um lugar em que tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter (depois de uma profunda análise), em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semiesPãholismo e nada. O vinho é bom (embora não daqui, creio), mas é decididamente alcoólico, especialmente quando a jarra de água está na outra extremidade da mesa e tu te esqueces (quer dizer, eu me esqueço) de o pedir.” Só quase no final é que a escrita acaba por dar conta da finalidade prática da ida de Pessoa a Portalegre: “A desmontagem e embalagem da tipografia está a levar um tempo danado — poeticamente falando, é claro. Apesar disso, os homens têm trabalhado bastante depressa e tenho os olhado e observado com a maior das energias.”. E pouco depois surge aquela que é talvez a confissão decisiva: “Acredito sinceramente que, se tivesse que aqui ficar um mês, teria de ir para Lisboa e depois para o Hotel Bombarda”. O que é extraordinário neste texto é verificar a auto-imagem de uma pessoa comum que se aborrece infinitamente com a viagem e com local visitado, chegando ao ponto de definir – com alguma ironia – uma certa distância entre si e a loucura, como se tudo fosse uno, unívoco e irreversível. Ou seja: a reversibilidade própria das heteronímias, o olhar oblíquo e transmutado ou ainda a coexistência entre o actual e o eu-atemporal estão completamente de fora deste jovem Pessoa que aqui escreve e se descreve no seu imenso fastio de Portalegre, ele que havia criado o primeiro heterónimo aos seis anos de idade (baptizado com o curioso nome de Chevalier de Pas). O homem aqui retratado chama a si o vinho e a linguagem para diluir a existência, queixando-se da pequenez, mas fazendo-se, de algum modo, refém dela ao espelhá-la através duma assimetria previsível e até lógica. Esperar-se-ia antes um fastio que fosse alvo de desmontagem (tal como os cubistas sabiam fazer) e que tivesse sido projectado num daqueles ecrãs interiores – afinal tão pessoanos – em que o sentido e o não sentido ou em que a realidade e a irrealidade andassem de mãos dadas. Mas não. O que irradia desta carta é sobretudo um “basta”, embora literária e engenhosamente ‘dito a arder’. O que vem provar que Fernando Pessoa tinha direito a ser uma pessoa como qualquer um de nós – como porventura o terá sido na larguíssima maior parte das suas vivências e misérias – e não o mago-mágico que amiúde comparece em muita da emoldurada mitografia lusitana. A sacralização da poesia (e do poeta absoluto) tem os seus reversos, um deles é esquecer que todos limpam o rabo seja em que papel for e seja em que partida e destino for.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasAi que Horta Seca, no passeio, Lisboa, quarta, 4 Novembro A sensação não nasceu por estes dias, mas acabo também eu por não praticar como devia o mergulho nas águas profundas da ficção científica. O almoço com o Filipe [Homem Fonseca] soube-me a intergaláctico, e dei por mim, sem uso de estupefacientes, a ver-nos tocar cada um para seu lado o teremim, que ele sabe bem e eu nada. Aliás, o instrumento exacto para quando nos impedem o contacto. Pode ter nascido daqui algo de outro mundo, mas a transversalidade do encontro deixou-me com mais rasgões do que a assistente serrada do mágico desajeitado. (Em breve e a propósito, a abysmo dará passo na direcção do mais-além viajando com prosa negra de FC. Sigam-nos se querem ver.) Vai daí, lembrei-me desta perturbadora ilustração de um extraordinário explorador visual destes territórios, Virgil Finlay (1914-1971). Fê-la para Hepcat of Venus, de Randall Garrett, onde um Observador Galáctico, semi-deus tudólogo, se deixa surpreender por «a jive trio in a beatnik hangout» onde os instrumentos são extensões do corpo dos intérpretes. Que andamos nós a compor e a tocar? Horta Seca, Lisboa, quarta, 2 Dezembro Revejo os ares e faltaram-me bumerangues: além de livros, que a casa quer-se pôr a celebrar a sua década e nisso há jornais, catálogo ambicioso, edições ainda mais especiais, e antologia peculiar, faltou tomar nota dos lugares doidos que querem cruzar o território com a palavra, o outro bêbado de vanguardismos que querer misturar realidade e ficção, ou os trabalhos em mãos com o João Francisco [Vilhena] para misturar rostos e memórias, e portanto território e ficção e palavra com realidade. Só para não me esquecer onde vou. Horta Seca, Lisboa, sexta, 4 Dezembro «Voilá: estava eu na minha biblioteca e o meu filho aproxima-se: ó mãe, diz ele, seria possível procurar-me nesta barafunda um livro que me emprestaram e eu quero devolver? Digo que sim, talvez, quem sabe. E como se chama o livro? Gritos da Minha Dança, responde-me.» Assim em sonho surgiu a Fernanda Botelho o nome deste seu derradeiro volume, que não o das Obras Completas, que a ordem escolhida foge à cronologia e procura propor maneiras de entrar em obra interpeladora. Outro objecto, mais ou menos inclassificável, colecção de fragmentos apanhados ora do chão quotidiano ora do céu da fulgurância. Tropeçamos a cada passo em subtilezas, de observação, de pensamento. E leituras de si. O conjunto apropriadíssimo para o entorno. «Que ninguém, no entanto, se engane ou caia em confusões: não será determinantemente uma biografia, muito menos uma autobiografia, se bem que de ambas tenha a sua parte. De diário, mensário ou anuário também um tanto terá, desordenado, ao sabor de caprichos ociosos, de apetites pontuais, de exigências compensatórias de silenciosas carências, de descargas emotivas, de recalques finalmente soltos e galopantes…» Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 4 Dezembro No dia em farias 90 anos, neva na tua Gardunha. Nunca te tratei por tu, pai, mas justifica-se agora para te dizer que a tenho visitado, nas palavras de portadores de ideias e comboios e granito e nuvens. Qual delas se trabalha melhor a maceta e escopro? Santa Quitéria, Lisboa, segunda, 7 Dezembro Afazer de susto põe-me a bater à porta da novíssima Snob em tarde chuvosa. Não há melhor lugar de recolhimento das intempéries, ainda que modestas ou íntimas, que uma livraria. Melhor ainda se fechada, a não ser para responder a sedes de passagem. A volta a dar será a do costume, estantes a esconder paredes, mesas a ocupar o centro com os rostos vociferantes ou sussurradoras. O novo convive aqui com o velho para dizer o óbvio, os tempos afinam-se para além dos calendários. Se fora o Inverno se anuncia, sem grande glamour, a arrumação dentro não esconde a imensa tempestade que aqui se conserva prestes a explodir em quem queira. Pode aceder-se à incontável floresta de lombadas de muitas maneiras, mas o bom livreiro conhece-as todas, temas e geografias, claro, mas também capistas e tradutores, desconfio que até tipos mal encarados e os tipográficos. Além da coordenada que interessa apenas a uns quantos, as editoras. (Tive a prova há tempos na Feira do Livro da capital quando um leitor atento trazia lista de bons livros, mas estava perdido por não saber onde encontrar as mães de cada um dos seus orfãos. Fiz de frustre livreiro, na ocasião.) Alegrei-me, portanto, com a nova casa do vagabundo Duarte [Pereira], que não deixou nunca de espalhar sabedoras orientações para quem navega em alto mar. Um farol, fica dito, dos que não se apagam nem quando o ecrã se quebra ou os satélites se escondem do lado errado. Santa Bárbara, Lisboa, terça, 8 Dezembro Fora isto diário despido, sobretudo dos enquadramentos, do sobretudo das consequências, teria que colocar aqui os veios do mármore em que tenho embatido. Faz um tempo de avaliações miudinhas, de molha tolos, portanto, e não escapo sem que a realidade me encharque. Um amigo, desconfio que sem querer ou por achar que eu devia ter disso consciência, deixa claro em amistosa conversa que a abysmo não está na lista das editoras capaz de enfrentar e servir a sua obra. Afinal, pouco mais será que capricho de meia idade de um doidivanas. Uma viagem em passo de corrida à tradução da última década deu-me a entender a que acontece uma atenção fervilhante e diligente às mais obscuras e perigosas paisagens do mundo literário. E nós, ensimesmados? No site, essa coisa prática e óbvia que conseguimos tornar projecto peregrino, o blogue vai chamar-se Mymosa. Quando a pandemia fechou a Mimosa do Camões, todos percebemos que o mundo e nós com ele havíamos mudado mais do que pensávamos. Durante uns anos valentes, aquelas salas foram prolongamento bastante mais do que físico do que a editora foi sendo. Ao fazer texto que olha para aquele mundo agora em ruínas, interrogo-me se não terá sido fogo fátuo, se dali terá nascido outra coisa que não espuma, se foi haiku. Diz o Luís [Carmelo], o primeiro a pôr o lugar no mapa da língua, no seu poema «Mymosidades», que acabou por dá origem à sua Nova Mymosa, depois de lido em voz alta em noite orgíaca: «[…]É verdade que o presente é um olimpo a desfazer a espuma nos lábios,/ talvez um estuário ou a cona de onde surgiu a cabeça e a maré a gritar a forma do/ ângulo raso. […]// Por vezes, há factores arbitrários/ como naquela noite em que nos sentámos a falar da tabuada/ e a bússola que cegava certezas se transformou/ no craque do lápis a quebrar-se em duas partes.// Foi o mais belo Haiku da minha vida.»
Nuno Miguel Guedes h | Artes, Letras e IdeiasO abraço Me abrace, que no abraço mais do que em palavras, as pessoas se gostam. Clarice Lispector Se é para escrever sobre os dias então que seja dito: a coisa tem sido difícil, desgraçada, às escuras. E de tantas maneiras e todas más: a incerteza, a insegurança, a distância, a ausência de tudo: de quem amamos, de nós, das rotinas, do dinheiro. Falo por mim, que tudo isto me bateu à porta e ainda se senta à sala. Não há como fugir e apenas se pode estar grato que o essencial ainda nos habite. Aquele velho adágio e final de discussão que tantas vezes trocei ganhou uma verdade ainda maior que já tinha, para minha vergonha: “Saudinha é que é preciso!”, diziam-me os mais velhos quando eu era imortal. E eu concordava hipocritamente sabendo que era precisamente a saudinha que desejava desperdiçar. Agora já não rio e digo exactamente o mesmo a quem me rodeia. Sem ironia nem displicência, infelizmente. Mas uma vez compreendido o essencial desta sabedoria fico com ainda muito por resolver. O mundo muda e eu não, ou pouco. Pela primeira vez percebo que a vida vai em excesso de velocidade para quem como eu gosta de registar as paisagens. Mas o que fazer, amigos? Num ano em que os obituários se sucedem, resta viver e tentar não ficar preso aos inventários das perdas. Infelizmente não consigo, por feitio ou convicção. E reparo mais no que me falta do que no que poderei ter. Coisas pequenas, por vezes, mas que crescem como flores selvagens e inacessíveis. Pequenos gestos que se engrandecem pela sua ausência – pelo menos a ponto de servirem de pretexto para estas palavras. Finalmente aqui chegados, peço: considerem o abraço. Gesto simples, outrora rotineiro e tantas vezes esperado. O abraço foi-nos tirado, amigos. Esse amplexo lindo e inocente que tanto serve um romance como uma amizade. Essa vontade definitiva de tocar quem estimamos ou amamos, esse “amor envergonhado” que sinaliza de forma visível as amizades ou reitera de forma casta quem desejamos. Por Deus, até os alemães – povo não dado a grandes extroversões afectivas – possuem o provérbio que diz, mais ou menos, que um abraço por dia mantém os demónios longe. Nestes dias, o abraço passou à clandestinidade. O novo protocolo sanitário aceita toques de falanges, metatarsos ou articulações sortidas mas proíbe o abraço. A prova desta afirmação é fácil: experimentem abraçar alguém em público, sem medo e de forma acolhedora e ireis ter ao vosso redor olhares que não deveriam lá estar. Sei do que falo porque sou um abraceiro convicto e enquanto ninguém me prender não me inibo de pôr os braços ao redor dos meus amigos, em público e sem medo. Mas que sinto o peso dos olhares de censura à beira da denúncia- ui, isso sinto. Abraçar, uma das saudações mais humanas e bonitas, transformou-se num acto de resistência. Mas por favor compreendam: não estou aqui a incitar o desprezo pelas regras de saúde pública. Apenas exaltar algo que não quero que desapareça, que quero que regresse com urgência. Por favor, não me façam escrever o obituário do abraço porque nesse dia desistirei de ser humano.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasColon e o Tratado de Tordesilhas [dropcap]N[/dropcap]o regresso da inaugural viagem às Índias, Cristóvão Colon chegou a Lisboa em Março de 1493 e, apesar de andar ao serviço de Espanha, visitou primeiro o Rei de Portugal D. João II e os seus matemáticos que, já antes dele partir, conheciam a existência de um continente no outro lado do Atlântico. Sabia-se também estar a Índia a 135º Leste de Espanha, logo Colon para aí chegar por Oeste precisara de ter viajado 225º. No mapa de Henricus Martellus do ano de 1489 aparecia o Oceano Índico já como um mar aberto, mas sem representação entre o Atlântico e a costa da China, e apresentava 24 fusos horários para os 360º da divisão da Terra, correspondendo cada fuso a 15º. O matemático cosmógrafo e navegador Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), autor do De Esmeraldo Situ Orbis, calculara o valor do grau de meridiano e o perímetro da Terra pelo Equador em 40.001 km; diferença de menos 74 km da actual. Os portugueses tinham transposto a linha do Equador em 1471, quando João de Santarém e Pêro Escobar encontraram o arquipélago de São Tomé e Príncipe e fruto da viagem de pesquisa de José Vizinho, em 1485 ficou pronta a Tabela da Altura do Sol no Equador. Nessa data, os físicos de Portugal, o cristão Rodriguo, o judeu Josefe e Martim de Boémia, criaram o astrolábio náutico. A chegada de Colon às Índias aguçou o apetite de Espanha nas viagens marítimas, enquanto a prioridade dos portugueses estava no explorar a Sul e a Sudeste do Atlântico para descobrir os ventos e correntes a facilitar o navegar até ao Índico e assim, abrir por Leste a rota para a Índia. “Portugal decidiu oferecer à Espanha um vasto território onde não existia qualquer comércio estabelecido, nenhuma cidade desenvolvida e nenhum porto construído para acolher navios, mas era perfeito para manter entretidos os exércitos de uma Espanha unificada, que ali iria ficar ocupada por largos tempos. Funcionou. A Espanha atirou-se à conquista do Novo Mundo…”, segundo Manuel da Silva Rosa, de quem provém muitas das informações encontradas no livro Portugal e o Segredo de Colombo, (Alma dos Livros, 2019), que revela ser Cristóvão Colon provavelmente Segismundo Henriques Jagiellon, neto do Infante D. Henrique. O Infante tivera uma relação com uma mulher da família Sá-Colonna e daí nasceu a Senhorita Anes, que se casou com o Rei Ladislau III da Polónia, Lituânia e Hungria, conhecido em Portugal por Henrique Alemão. Antes de partir para a segunda expedição, Cristóvão Colon recomendou à Rainha D. Isabel de Castela falar ao Papa Alexandre VI [o espanhol Rodrigo Borgia eleito em 1492] para criar um meridiano a dividir o mundo por conhecer entre a Espanha e Portugal. A inicial proposta portuguesa, não aceite por Espanha, foi dividir a Terra por meio dum paralelo traçado pelo Sul das Canárias, (que o Papa dera aos espanhóis o senhorio), ficando estes com a parte setentrional, excluindo-se contudo os Açores, pertença de Portugal, a quem cabia o hemisfério austral. A segunda viagem começou a 25 de Setembro de 1493 e desta vez seguiam três naus e catorze caravelas. Avistou as Pequenas Antilhas e foi a Martinica e depois para Norte chegou a Porto Rico. Voltou a Hispaniola (Haiti e Santo Domingos), mas a colónia fora arrasada pelos indígenas e deixando o seu irmão Bartolomeu com uma nova leva de homens, Cristóvão Colon rumou para Oeste, onde encontrou a Jamaica. Fundou La Isabela na actual Santo Domingos, República Dominicana, e regressou a Espanha em 1496. Desta vez trazia prova assinada na altura por os capitães dos barcos como, após explorar ao longo da costa [oriental de Cuba] e sem lhe ver fim, encontrara as costas do continente asiático, próximo da Aurea Chersoneso – (península de Malaca e Bornéu), registada por Ptolomeu com informações indianas chegadas a Alexandria. TRATADO DE TORDESILHAS O Papa Alexandre VI (1492-1503), por bulas Inter coetera de 3 e 4 de Maio de 1493, propôs aos reis da Península Ibérica criar um meridiano a 100 léguas para Oeste dos Açores e Cabo Verde, cabendo as terras ‘descobertas e por descobrir’ situadas a Oriente dessa linha a Portugal e para Ocidente, à Espanha. Ajudado nas complexas negociações por Duarte Pacheco Pereira, D. João II acreditava poder forçar D. Isabel de Castela a deixar-lhe um pedaço maior no Atlântico e propôs ser-lhe dado mais 120 léguas para Oeste, mas com a linha a ser medida desde Cabo Verde. As 100 léguas para Oeste dos Açores correspondiam a partir de Cabo Verde a 250 léguas, o rei português pedia agora 370 léguas para Oeste de Cabo Verde. Apenas mar para os espanhóis, mas permitia a Portugal ter no seu espaço um pouco da ainda então desconhecida terra de Vera Cruz. Procurando deixar de fora das conversações o Papa, em 1494 D. João II assentou directamente com os Reis Católicos [título concedido por o Papa em 1496 a Fernando de Aragão e a Isabel de Castela] o meridiano que pretendia, a dividir as duas zonas de influência. Com esta linha divisória foi assinado o Tratado de Tordesilhas a 7 de Junho de 1494. Relativamente a esse meridiano, a passar a 370 léguas a Oeste de Cabo Verde, o mundo ficava dividido entre o hemisfério ocidental para Espanha e Portugal com o oriental, sem saberem onde calhava essa fronteira no outro lado do mundo. A linha do Tratado correspondia hoje à longitude de 50º e o desvio mais para Oeste foi o suficiente para abranger no espaço português o Nordeste do Brasil, mas não a Terra Nova, que ficava já no lado espanhol. AS RESTANTES VIAGENS DE COLON Cristóvão Colon só chegaria da sua segunda viagem em Março de 1496, tendo até aí apenas contacto com os caraíbas das ilhas, experimentando o tabaco e visto animais, desconhecidos para os europeu, como papagaios, periquitos e perus e talvez provado alguns produtos da alimentação local como milho, mandioca, feijão, tomate, batata, abóbora, ou o ananás. A 30 de Maio de 1498, Colon iniciou a terceira viagem com seis naus e rumando a Cabo Verde, daí atravessou o Atlântico para Oeste numa atribulada navegação e encontrou a ilha da Trinidad. Depois, pisou pela primeira vez o continente. Voltou a São Domingos, em Hispaniola, onde na sua segunda viagem deixara o irmão Bartolomeu à frente da primeira colónia espanhola nas Américas e rumando a Sul, atingiu a 1 de Agosto de 1498 a costa da actual Venezuela. Procurava agora o estreito a dar passagem para o Índico. Regressou em 1500 à Hispaniola e entrou em conflito com o governador Francisco de Bobadilla, que enviou Colon com o seu irmão presos para Castela, mas logo à chegada foram libertados. Entre 1502 e 1504, a quarta e última viagem de Colon, que saiu de Cádis com quatro naus e avistou a Jamaica, andou no Yucatán, México e após uma grande tempestade chegou à pequena ilha de Guanaja nas Honduras. Avistou as costas da Nicarágua, Costa Rica e Panamá, mas com as naus muito maltratadas voltou a Hispaniola, de onde regressou a Espanha. O seu filho Diogo seria depois governador de Hispaniola. Cristóvão Colon morreu em Valladolid a 20 de Maio de 1506.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasHoras [dropcap]À[/dropcap]s vezes este silêncio novo da cidade. Como uma atmosfera fina em que pequenos sons esparsos se fazem notar. Passos. Um esvoaçar mais nítido. Estalar manso de pequenas matérias, que sobe aos andares acima da rua, um carro que acorda ao longe a face habitual. Motores geradores exaustores e outros incómodos roedores da floresta urbana, dormem por agora esquecidos do seu trabalho de atordoar. Surgem mais tarde, atrasados mas infalíveis como a natureza a acordar. E as pessoas invisíveis. Quase o marulhar dos lençóis afastados aqui e ali. Uma roupa sacudida do torpor, uma máquina de café. Uma frescura inicial, sempre, a da manhã. O piar de pássaros como uma primavera fora do sítio. Sinos, depois. São dez horas. Horas e meias horas. Catorze horas e aquela sensação de não haver deveres urgentes a distrair a mente desta espécie de desnecessidade estranha e culpada. Dezoito e quinze e a luta contra a falta de vontade das inúmeras coisas da vida pendentes a precisar de um v de efectuadas. Coisas indizíveis de pequeninas e tirânicas e mesquinhas etapas para o momento seguinte simplesmente com a sensação, aí sim, de estarem feitas, na sua insignificante e vazia importância. Coisas a despender o tempo e a cumpri-lo. Se nenhum relógio consegue tornar substância o tempo, como o podem os inúmeros ângulos aprisionados de passagem pelos olhos, os incontáveis objectos tocados e movidos, os sons alinhados na sua vizinhança aleatória, os passos na casa percorrida às quinze horas já de quilómetros. Dezanove e treze, ainda se espera algo que seja mesmo não mais que somente uma faúlha. A empurrar a vida para um pouco mais à frente. Vinte e duas. A inspirar fervorosamente os segundos e a adiar um pouco mais o jantar como o fecho da emissão. É difícil explicar como ainda se espera que uma coisa pequenina e ínfima – e porque só dessa escala se trata de esperar – aconteça vinda como estrela cadente com a proporção exacerbada pela luz, a parecer maior e mais bonita e luminosa ou acontecida a rasgar o negro do que for. Sim mesmo se somente uma dessas evanescentes estrelas cadentes a colher esta inexistência e a pedir um desejo. Vinte e três e dezoito. Quase a arrumar o dia e a recolher para dentro. O que foi como um intervalo. Na sala que ninguém acede e que é ausente de todos os trabalhos os bons e os maus. Uma distracção a acompanhar o jantar sempre atrasado e uma distância final, de tudo, que mesmo à ideia de que algo poderia chegar é já quase avessa. O dia terminado. Uma parte da casa adormece mais cedo e a outra acende-se em tons baixos e silenciosos. Uma será já difícil de acordar, como criança de sono bom, a outra será difícil de levar para a cama como uma que nunca quer dormir. Jantar tardio. Um copo de água à beira da cama – depois – não vá aquela sede imensa a desarrumar o sono, dar azo a pensamentos que se querem livres da realidade. No silêncio muito se dissolve, ou deveria dizer: dilui. Mas também muito de subtil se torna visível. Como as noites de aldeia em que o céu é repleto de todas as estrelas de sempre mas que na poalha luminosa que se evapora dos poros citadinos, não se deixam ver. Há sempre um médium no qual algo acontece. O solvente. Há uma certa poesia nas qualidades objectivas da matéria. Dissolver: desorganizar, estragar, corromper, dissociar, dispersar, misturar num meio em qualquer estado. Diluir é acrescentar solvente, logo diminuir a concentração do soluto, cuja massa se mantém inalterada. Volume e concentração são inversamente proporcionais. Por isso diria que no silêncio tudo se dissolve e dependendo do grau de diluição, o sabor, o perfume ou as qualidades dos reagentes, tornam-se mais ou menos evidentes. Mas se de vida se tratar, sendo o silêncio o solvente, pode acontecer que as partículas se tornem mais óbvias. Dependendo da sua massa e capacidade de dissolução. Se estas características são inversamente proporcionais pode acontecer uma enorme subtileza na matéria por entre o silêncio e entre isso e a inexistência ser possível a confusão. A ilusão de um vazio total, apenas porque as partículas são ínfimas, ao nível do átomo invisível ao olho, mas inexoravelmente existente e poderoso. A televisão continua a desfiar coisas e vidas. Isso, fora de horas. Depois outra vez seis e meia. Sete, nove.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasEcos do velho liceu [dropcap]N[/dropcap]a semana passada reflecti sobre os últimos romances que escrevi. Reservo hoje este espaço para uma reflexão paralela, incidindo agora na poesia. Começo por relembrar um poeta que foi meu professor de liceu, Fernando B. J. Martinho, e que, em 1970, fez publicar um livro intitulado ‘Resposta a Rorschach’. Trata-se de uma resposta poética às teses do psiquiatra suíço. Este modelo de diálogo – ao jeito de um directo vaivém – marcou-me bastante ao longo dos anos, mas nunca imaginei que acabasse por vincar de um modo tão acentuado a poesia que tenho escrito nestes últimos anos. Para a corrente hermenêutica que singrou na Alemanha nos anos 70 do século passado, sobretudo através de Hans Gadamer e de Hans Jauss, uma obra de arte é sempre a resposta a uma pergunta potencial, cabendo ao intérprete determinar essa pergunta e qual o modo como a obra lhe responde. Seguindo as pisadas de ‘Resposta a Rorschach’, os meus últimos livros de poesia têm respondido a interlocutores muito claros e de uma maneira que pouparia o trabalho que Jauss e Gadamer reservaram ao desgraçado do intérprete. A minha primeira aventura neste modelo aconteceu com o ‘Tratado’, livro composto por mais de trinta evocações a obras a que recorri ao longo de décadas (sobretudo devido às aulas). Sem que desse por isso, essas obras foram criando lendas e efabulações próprias que nada tinham que ver com o conteúdo que nelas se anunciava e congeminava. O papel dos poemas foi o de assaltar e pôr a nu a intimidade dessas lendas, geralmente bastante informes e abstractas. Um frente a frente com mais conotações e derivações de que uma simples resposta, facto que nos três livros posteriores teria já outros contornos. Comecemos por ‘Lucílio’, livro composto por 45 poemas que respondem às 124 cartas escritas por Séneca a Galo Lucílio Junior, durante a primeira metade dos anos sessenta da nossa era. O diálogo proposto não é denunciado e encontrou a sua forma nos hiatos deixados em branco pela linguagem das ‘Espitulae’. Na sua oitava carta, Séneca deixou vincada a elasticidade com que a filosofia e a poesia se brindam mutuamente (“Quantos poetas há que já disseram o que os filósofos ou já disseram também ou hão-de dizer um dia!”). Ao fim e ao cabo, nada nos pertence. Conceitos do último século, tais como a paródia, o intertexto ou o dialogismo, confirmam este despojamento das oficinas literárias e existenciais. Aliás, Séneca sinalizou esta verdade logo na sua primeira carta: “Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso”. O poema 40 reage à concepção estóica de que tudo à nossa volta são corpos: “…de véspera somos sempre incorpóreos/ ao ler os mais breves/ sinais/ que são inevitavelmente corpos// pois tudo quanto tenha força suficiente/ para nos impelir/ forçar ou impedir os movimentos// têm que ser também corpos// a liteira de séneca/ levada pelos escravos/ era ainda um corpo// e pesado…” (Poema 40). Passemos a ‘O Pássaro Transparente’ que se baseou numa resposta ao ‘Poema à Duração’ de Peter Handke. Se a duração é um propagar do imensurável, o tempo é a construção que ancora e se confunde com cada um de nós. Perceber este contraste é perceber que só há sentido no tempo. Bem sei que nem todo o tempo é homogéneo ou cronológico. Existem intensidades e grandes fugas que irradiam e que parecem, por vezes, lançar-nos num domínio que gravitaria fora do tempo. É o que acontece com certas assinaturas da experiência, caso do amor e de algumas viagens (nem sempre na casa da geografia). O tom de resposta neste texto é relativamente directo e abre-se, tal como no livro de Handke, a intervalos memoriais: “Como vês/ meu caro Peter/ também tive manhãs que foram únicas/ preciosas/ desensonadas// e apesar disso é como se não lhes pertencesse/ por causa da penugem negra dos guarda-chuvas/ e sobretudo por causa dos maus/ augúrios.// Com o indicador tive a tentação de esmagá-los/ um a um/ tal como se esmaga a penumbra no mar vermelho// lembro-me de que as montanhas eram de cor violeta/ escura// para verter o futuro do passado/ e coar a matemática da libertação até ao ermo/ dos corais. // No mesmo instante em que escrevias/ o teu poema// eu estava na praia de Dahab com a Ahuva/ uma polaca israelita e também goesa/ que muitos anos depois/ (foi o meu irmão que mo disse)/ viria a morrer num acidente de viação no Punjab…”. Deixemos para o final ‘Ofertório’ que é uma resposta clara ao livro ‘A Poesia do Pensamento’ de George Steiner. O retorno por que optei neste volume não foi também de teor mecânico, nem planificado, embora os poemas tenham sido redigidos seguindo a cronologia do livro base. Na Parte III, indo ao encontro da tese de Steiner, segundo a qual a linguagem filosófica e a linguagem poética têm uma mesma fonte, ficou registado que – “escrever é desabar/ dispor o barro atirado ao ar/ para que a parede se mova ao fim da tarde/ a receber as borboletas./ de início é desabar/ fazer como as borboletas que fracturam./ por fractura entende-se/ uma imensidão desregrada/ e é isso que a torna nítida/ é pois preciso trabalhar o escuro/ não com as mãos/ mas com o corpo todo que descentra o infinito/ permitindo encará-lo como mais um marinheiro/ de passagem…”. Se na matéria romanesca desconfio que ando a tentar sarar temas de amplitude incerta (temáticas sem perímetro definido, mas que apertam a garganta dos dias), já na matéria poética pareço um pouco mais desperto, como se existisse uma tertúlia virtual que me estivesse a espantar as solidões do fim da tarde. Na verdade, tal como o profeta Jonas sentado diante da cidade de Nínive à espera apenas do inesperado, nunca se saberá bem o que andamos todos a fazer neste mundo. Livros citados: – ‘Tratado’ (2018, Abysmo, Lisboa. Livro recomendado em 2018 pelo Plano Nacional de Leitura. Livro finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d´Escritas-2019. Livro pré-finalista do Prémio Oceanos-2019); ‘Ofertório’ (2018, Nova Mymosa, Lisboa); ‘O Pássaro Transparente’ (2019, Nova Mymosa, Lisboa) e ‘Lucílio’ (no prelo; 2021, Abysmo, Lisboa).
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo mal e da farsa [dropcap]O[/dropcap] problema com o mal é que é superficial e raras vezes ultrapassa o recorte da opereta. Ou seja, não é Lady Macbeth quem quer – até Macbeth soçobrou na tentativa. No desfecho do primeiro encontro entre o Fausto e o Mefistófeles, de Goethe, isso é-nos caridosamente explicado, quando o mafarrico, na impossibilidade de sair do Gabinete de Estudo conforme quer, concede que a “lei” não muda, o que leva Fausto a observar, triunfante: «Então até o Inferno tem as suas leis. Isso é óptimo. Quer dizer que um pacto feito com os senhores seria fielmente respeitado.» Pois é: então afinal o Diabo desordena, trapaceia, muda o quê? Pobre mártir das aparências. Daí que no essencial a tentação satânica traduza uma mera aceleração das potências do desejo ou funcione como um momentâneo e hipnótico inibidor do bem, sem que seja um domínio. É um enredo que entretém, sem resolver o enigma. Para o comprovar basta não ceder à coerção da violência: aí constata-se como o mal se dilui; de si mesmo alheio. Grande parte do mal advém de um desespero que não acedeu à lucidez, de uma energia mal orientada. Em Moçambique calhou-me enfrentar situações em que julguei estar face ao Mal. Essa percepção da maldade humana que experimentei, sufocava-me. Até que me apercebi que essas figuras vogavam em práticas de vida agónicas, e como, para além de se não divisar a vantagem que tiravam da sua ruindade, se sentiam absolutamente perdidas. Tornava essa irracionalidade mais distorcida a sua maldade? Sim, mas esvaziava-se no seu acto circunstancial, eles não representavam qualquer entidade – apenas, os filhos da mãe, desconheciam a bondade. Aí o “poder” inverteu-se. A obscenidade com que demasiadas vezes a ficção aposta no mal como efeito-placebo de uma suposta totalização do real resulta de uma necessidade que houve a jusante de dotar as narrativas de uma dimensão extra-moral (e foi uma dessacralização necessária, justíssima), mas a montante a representação do mal fetichizou-se, vulgarizou a perversão. Passou-se só a figurar a sombra, a violência, o mal, da mesma forma que a comunicação social ficou refém dos efeitos dramáticos que “intensificam” as mensagens. Talvez não fosse mau – lá está! – conseguirmos contrapor a esta pulsão uma certa «disseminação amante», usando uma expressão feliz de Ramos Rosa. Creio que uma das chaves para entender o Pessoa é aceitar que a sua multiplicidade nasce da sua resposta ao problema do Mal: primeiro o medo (ao que se enraízava na sua declarada compulsão para a loucura) levou-o a criar, em vez de fantasmas, duplos de si que o tornassem insituável, por fim, converteu-se na compreensão de que no uso do mal afinal só se condensa a escória de um tempo perdido e, que, em contrapartida, a prática do múltiplo vitamina o bem. Pessoa não está só nesta intuição, também Valery escreveu: «Penso muito sinceramente que se cada homem não pudesse viver uma quantidade de outras vidas para além da sua, nem a sua própria ele poderia viver». Há outra questão que não é de somenos. A tentação faustica – na sua face patológica, havendo outra benigna – pode nascer de uma fonte psíquica pouco sadia: a identificação com o equívoco que às vezes norteia a ideia de ser-se eleito. Fausto simboliza a arrogância de espírito que se julga acima da fona da populaça! Por isso desdenha de proximidades com a massa, ignara e tola, e impaciente observa: «É já tempo de provares, por actos, que a dignidade do homem não fica atrás da grandeza de um Deus», estatelando-se estridentemente na soberba. É normal que então se interrogue sobre como poderiam sobrevir soluções ou respostas para o mundo de alguém mais senão dele. Aí faz o pacto. Para se situar acima da média humana. Uma proposição nos antípodas de um lema de Zambrano que devíamos adoptar como antídoto para tanta sandice a que assistimos: “nada real deve ser humilhado”. O que nos convida a uma descentralização do nosso lugar de sujeitos e a trocarmos uma antropologia assimétrica por um imaginário que seja rizomático. E como no fundo não era melhor que os demais, rapidamente, dos pedidos de Fausto a Mefistófeles, ressuma a falência das suas ideias mais nobres: sobressaem as questões acessórias, egoístas, subjectivas, os pequenos inhos, a fatalidade de quase condenar Margarida, por afinal ser tudo igual nos “céus” a que o transporta Mefistófeles ao que na terra se desenhava. É-me difícil por conseguinte ler o Fausto a não ser como farsa. Contudo, às duas por três no Sabbath final há uma bruxa que se propõe vender pechinchas de toda a espécie e que entretanto avisa: «(…) nada vendo que não haja igual na terra, ou que um dia não tivesse feito mal aos homens e ao mundo. Não há aqui punhal que não tenha derramado sangue; nem taça que não tenha vertido num corpo são o seu veneno activo (…) nem enfeite que não tenha seduzido mulheres virtuosas; nem espada que não tenha quebrado uma aliança (…)» etc. O que leva Mefistófeles a ripostar: «Longe estais de entender os novos tempos, boa amiga; o que lá vai, lá vai. Mostrai-nos coisas novas, só nos atrai o que for novidade.» Como antídoto ao seu próprio “métier”, Mefistófeles lembra que é necessário romper com a tradição para surgir a novidade. Uma das mensagens mais inesperadas de Fausto e uma das mais actuais. Talvez, contra esta tradição obsessiva do mal que em termos políticos e militares já ressuscitou modelos arcaicos como a Lei de Talião, tenha chegado o momento de, como ateus (é o meu caso), não nos envergonhar romper e aceitar os gestos de beleza ou de bondade, e que à competitividade doentia possamos preferir a emulação do jogo; recuperando algo desse espírito trágico que nos advertia: existe o mal… e também há as alegrias incuráveis, como na vida – e não como nos regimes dominantes da ficção actual.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasOs cometas da amizade [dropcap]A[/dropcap]té ao momento em que escrevo estas linhas não existe, ao que eu saiba, uma bolsa financeira das palavras. Nenhuma delas, numa lógica meramente materialista, estará mais bem cotada do que outra qualquer. E bem, até porque mesmo para isso seria difícil encontrar um critério objectivo que ajudasse a valorizar cada vocábulo. Por exemplo, para mim um belíssimo palavrão dito na ocasião certa vale um milhão de vezes mais do que a palavra “implementar”. Ou de outra forma, pagaria muito mais por ver escrita a palavra “dependência” em vez do que agora passa pelo seu sinónimo – “adição” -, que para mim se resume a uma operação aritmética. Mas enfim, é por esta e por outras que não tenho um gabinete em Wall Street. O que é verdade é que na nossa língua existe uma expressão idiomática, em regra aplicada em tom depreciativo, e que é “palavras caras”. Significa, como todos sabemos e mesmo assim aqui estou a explicá-la, um conjunto de vocábulos utlizados de forma rebuscada, eruditos ou não, mas que normalmente não ajudam à compreensão da mensagem. A expressão foi muito popular aquando dos discursos do antigo Presidente Jorge Sampaio ou, para quem gosta e se interessa pelo futebol português, sempre que o treinador Manuel Machado resolve dizer seja o que for. É de facto um mal menor, trivial, assunto evanescente. Mas, e agora se me permitem, abandono por um momento a leviandade para tentar dizer ao que venho. Se de facto não vejo uma hierarquia das palavras percebo nesta expressão outro sentido e provavelmente mais próximo da origem: aquele em que o adjectivo “caras” não se refere a um valor material mas sim àquilo que ao início queria dizer: algo querido, estimado, único. Algo que ainda sobrevive, apesar de tudo, nas formas epistolares de cortesia: “caro senhor, caro senhora”. Já dizê-la em conversação hoje em dia pode denotar arrogância: “Meu caro, não é bem assim” não demonstra a estima pelo interlocutor mas geralmente um prelúdio de massacre. Fiquemos então pelas palavras queridas. E uma há, que aqui utilizo como artificio de escrita e convite para o leitor se sentar à mesa que é “amigo”. Como “amizade”, é-me de facto uma palavra cara e que utilizo com parcimónia nos meus dias. Nem sempre terá sido assim e ainda bem: a idade é um filtro. Isto para dizer que já não me é fácil chamar “amigo” a um mero conhecido: a palavra ganhou gravitas, sentido e raridade. Necessita de tempo e constante cultivo para que se substantive em alguém. O que não precisa é de assiduidade. Existem amigos que infelizmente só os notamos quando desaparecem, deixando uma espécie de rasto luminoso. Nessa altura, quando a perda nos abre os olhos e o coração, percebemos o cometa que passou pelas nossas vidas, tantas vezes de forma discreta e quase sempre nunca devidamente apreciada. Uma conversa breve, uma palavra no tempo certo, uma disponibilidade imediata aquando de uma crise qualquer: isso, parece-me, cabe na amizade. E depois, quando enfim e de repente a noite os leva para sempre, fica-se apenas com uma mão-cheia de palavras por dizer e quase todas soam a obrigado. Eu sei: passou-se comigo há pouco tempo. A única redenção e gratidão possível é fazer que isso nunca mais aconteça e apanhemos estes cometas ainda em pleno voo, a tempo de os abraçar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCarta a um refém [dropcap]N[/dropcap]o ano de todas as clausuras é normal que nos recordemos de certas leituras que o tempo foi deixando para trás e que são quase sempre aqueles pequenos grandes livros que não raro ocupam a obra invencível de um autor. Dividido em momentos, confidencialmente narrativo, esta Carta para todos, tem um remetente único, Saint- Exupéry. Nós que passamos a vida a receber missivas, lixo de todo o lado, imagens, exasperações, teorias, sentimos uma pena profunda de não podermos nunca mais receber cartas, e mais pena nos invade quando sabemos que nunca iremos receber uma como esta. E estas coisas quase esquecidas que emergem servem sobretudo para nos advertirem do essencial e mudar o conceito do que é o não imprescindível. Tal como os comportamentos perante o limite das coisas e o cada um representa diante dos perigos comuns. 1940 e Exupéry chega a Lisboa em trânsito para os Estados Unidos, fica um tempo, tempo para ainda ver a Exposição do Mundo Português. Não tem lugar na cidade e vai hospedar-se no Estoril, e vamos em busca do que sentiu e presenciou: “… Lisboa surgiu-me como uma espécie de paraíso claro e triste…” Sim, Lisboa no seu discurso era a imagem da negação de tudo o que se passava na Europa onde achava as cidades bombardeadas e a noite sem luz de uma beleza mais real que esta, e de acordo com a maré negra do instante político onde não faltava a coragem dos que davam as mãos e lutavam nas trevas das cidades desfeitas, Lisboa, pareceu-lhe assim um artifício, um postal que branqueava de uma alegria vazia este momento em que todos tinham de tomar posições, parecia-lhe uma forma alienada de perfeccionista (a descrição da Exposição: não temos nada, haja o passado, e enganar e entreter o instante) e remeti-a então para aquelas famílias excêntricas que guardam à mesa o lugar do morto em casas sem remissão onde as dores são mais prolongadas que o desgosto. Os refugiados, esses, eram aqui os que se expatriavam virando costas aos seus e pondo em segurança aparente os bens de que usufruíam, mudos à sorte das coisas e mudanças do momento. É com profunda lucidez que tece um discurso curto e que vai dar aos longos caminhos de um grave adormecimento colectivo. A Europa sofria, o Estoril para onde se dirigia para dormir, estava cheio de “cadillacs” vestidos para o jantar, jogos, numa tentativa de fazer parar o tempo ou mesmo não o estar a sentir, e creio que aqui nos dá a tónica do seu discurso formidável daquilo que pode realmente ser uma estranha desgraça no contexto destas circunstâncias; enjoado provavelmente desta bizarra atitude, passeava-se à beira mar onde por desprazer já tomado achava também as ondas moles. Este aprendizado pelo olhar de um homem absolutamente poético e sem cargas de viciação, devia ter-nos merecido alguma sincera atenção de grupo, mas creio que não foi nem lida, mencionada, muito menos proposta. Estamos à distância de quase um século, é certo, mas, a visão de um bem-estar forçado não é compatível com a infelicidade que hoje se lhe vê, nem se lhe reserva um escudo protector que mitigue um continente inteiro que pesa outra vez sobre o país: «achava Lisboa, sob o seu sorriso, mais triste que as minhas cidades apagadas». Depois deste preambular pelo país, Exupéry parte para o Sahara, ele que era um homem do deserto pois que o amava, e este seu amor pelas areias reporta-o ele para domínios essenciais que estão paradoxalmente, e aí sim, cheios de vida, e porque tem as estrelas e as tribos calmas pelas noites, vai convocar amorosamente o amigo numa comunhão telepática. – Tem cinquenta anos. Está doente. E é judeu.- Tudo isto ao invés de nos entristecer enche-nos de uma súbita alegria, uma comunhão tamanha…« só então, deambulando ao longo do império da sua amizade… Pois o deserto não está onde cremos. O Sahara tem mais vida que uma capital e a cidade mais efervescente esvazia-se, se os pólos essenciais da vida forem desmagnetizados». Percorre talvez o limite da sua resistência sempre de olhos postos naqueles que lhe são queridos, percorre as estradas dos Magos, e a rede de apoio que disponibiliza é a sua vida atenta e as missões aéreas que desempenha, descreve-nos episódios da guerra civil de Espanha e a emboscada anarquista numa deliciosa visão daquilo que constitui o equívoco das inimizades dos homens, e no seu cárcere, vê então que o milagre e a salvação são afinal gestos tão simples como pedir um cigarro, e em todas as paragens que a sua valentia não menos grandiosa que a sua ternura se apresentaram, manteve-se de pé como um ilustre soldado. Ninguém aqui deve estar por isso confinado a si mesmo ou a laboral maquinalmente para uma vida extemporânea, e nos momentos excepcionais teremos ainda de responder à altura dos acontecimentos e não ter medo do que possa advir de imprevisto. Não consentir que nos “queiram bem” subtraindo a vida a um estar. Creio que neste caso é evidente que devemos ser comprometidos e que nada é mais desolador que manter modelos alienados no tempo em que soam as Trombetas. Aprendemos assim que o Fado é bonito, sim, mas amaldiçoado. E foi preciso o improvável para sabê-lo explicá-lo tão bem. «Não há termo de comparação entre o combate livre e o esmagamento na noite. Não há termo de comparação entre o ofício de soldado e o ofício de refém».
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasFee Waibill esteve aqui [dropcap]P[/dropcap]orque no próximo dia 17, Fee Waybill – «frontman» dos The Tubes – comemora os seus 70 anos, vamos hoje espreitar o livro de Howard C. Jones – não tem nenhuma ligação ao músico britânico – que escreveu um romance muito estranho no início deste século, 2001, com o título da canção mais emblemática daquela a que ele chama «a mais icónica banda de São Francisco», The Tubes: «White Punks On Dope». A música é de 1975 e desde essa altura que era fundamental ser tocada em todos os concertos da banda. Em 1977, Nina Hagen fez uma versão dessa música, com outra letra e em alemão, com o título «TV-Glotzer», que também se tornou um sucesso na Alemanha e em alguns países da Europa. Ainda que a letra seja em alemão, Nina Hagen canta nota por nota a melodia dos The Tubes, apesar de alguns trejeitos vocais, típicos de Nina Hagen. A sua banda também toca tal e qual como a banda de São Francisco. Assim, tirando a letra diferente, a canção alemã é uma autêntica cover da banda americana. Fee Waybill e Nina Hagen chegaram a cantar juntos em palco essa música, com a banda The Tubes. O livro de Jones é simultaneamente um livro sobre a solidão e uma espécie de tributo à banda e ao seu «frontman», Fee Waybill. Começa com um excerto do refrão da canção que dá título ao livro «White punks on dope, thank you, Jesus», numa versão ao vivo, para logo depois atirar-nos com esta frase e fazer com que nos demos conta de que se trata de literatura: «O romance de Bret Easton Ellis, “Menos Que Zero” é a versão comercial dessa canção dos The Tubes. Valem mais os sete minutos da actuação ao vivo da banda do que todo o romance do BEE.» Evidentemente, Jones refere-se às actuações da década de 70 – que ainda cheguei a ver, em 1979, no Dramático de Cascais – e não as posteriores actuações da década de 80, claramente inferiores. Na digressão europeia de 79, em Itália foram proibidos de actuar e em vários países da europa não puderam fazer a cena de sexo entre Fee Waybill e Re Styles, na música «Don’t touch me there». Em Cascais, pelo contrário, fizeram o espectáculo como nem sequer em São Francisco e agradeceram repetidamente ao público por isso. Fee Waybill gritava no final dos encores: «Estão todos convidados para a minha casa em São Francisco. Só precisam de mostrar o bilhete do concerto desta noite.» No ano seguinte regressaram a Portugal, mas essa noite no Pavilhão de Alvalade já era outro o som da banda e outro o concerto. Febril, intenso, claro, mas muitos pontos abaixo da loucura dos The Tubes da década passada, embora Howard C. Jones se refira no livro sempre aos últimos cinco anos da década de 70, os primeiros da banda. O romance é relatado através de um narrador, Frank Fischback, que fizera uma tatuagem na nádega direita onde se lia «Fee Waybill esteve aqui». Independentemente de Waybill ter tido milhares de namoradas, podemos pôr como possível que ele tenha estado mesmo ali. Os anos 70 não moralizaram, especialmente no mundo da música rock. São poucas as bandas que conseguiram produzir um desprezo completo pelo modo de vida americano como o fizeram esta banda de São Francisco na década de 70. Pelo país e pelos valores sociais que ainda hoje, mesmo neste “nosso” país à beira-mar plantado, também ainda mantemos. Em comparação com um espectáculo dos The Tubes na década de 70, um dos Xutos & Pontapés parece um dueto entre Ágata e Toy num programa da manhã na TV. O narrador do romance de Howard C. Jones, Frank, era um autêntico «white punk on dope», apesar de ter sido um grande leitor na adolescência e ter tido o sonho de ser escritor. Filho de um rico produtor de cinema e de uma actriz – cujo nome nunca chega a pronunciar –, com quem nunca chegou a viver. A mãe suicidara-se quando ele tinha dois anos. Literalmente, a vida de Frank aos 23 anos acontece de noite nos clubes mais caros de São Francisco, entre drogas, rock’n’roll e sexo, quer com homens – a sua preferência – quer com mulheres. Como ele mesmo escreve: «O dinheiro só serve para colmatar o enorme tédio que é a vida. Preciso gastá-lo do mesmo modo que preciso de oxigénio. Quem não entenda isso aborrece-me. Há um fosso que separa as pessoas: o modo como lidam com o tédio. O tédio combate-se com alienação e diversão. Nada mais. Quem diz que consegue lidar com o tédio com outras armas é porque nunca o sentiu de verdade. O tédio rasga-nos a vontade de viver como quem rasga uma folha de papel. Macera-nos mais do que a solidão. No tédio, sentimo-nos tão sós que até nós mesmos não nos acompanhamos, não nos fazemos companhia. Pior do que isso: sentimo-nos a pior companhia que podíamos ter na vida. O tédio não é um sentimento, é como ter um rim e senti-lo diariamente a doer.» Além de estarmos no mesmo mundo do livro supracitado de Bret Easton Ellis e da canção dos The Tubes, estamos também no centro de uma solidão profunda, que vem de um desajuste radical com a vida. Escreve à página 32: «A vida, assim como o dinheiro, é para gastar, ao máximo, como se fosse um lápis a que damos bom uso.» Contrariamente ao romance de Ellis, Frank interrompe a ligação ser rico e gostar de viver. Mais: ele interrompe a ligação entre estar vivo e gostar de viver. Ele não gosta de viver, ele gasta-se. E o dinheiro é apenas um instrumento para não sentir o tédio que a vida é. Há prazer, claro, mas este nasce sempre e só do descontrolo, quer seja das drogas, quer seja do sexo, quer seja da música. A diferença para o universo de Ellis, em «Menos que zero», é que Frank tem a consciência plena de se estar a gastar, de ter de se gastar de não ter outra alternativa senão gastar-se. E isto deriva de um profundo e consciente desencontro com a vida e não de não saber o que fazer ao muito dinheiro que tem, como no caso das personagens de Ellis. Frank descreve o seu desencontro profundo com a vida, desta forma: «Ninguém escolhe gostar ou desgostar da vida, mas quer sinta uma ou outra de modo geral adapta-se. Encolhe-se em casa com um cão ou um gato, uma televisão ou um livro, e esforça-se por pensar que o tédio desapareceu. Mas ele não desapareceu, quem desapareceu foi a pessoa. Eu não consigo desaparecer, não consigo fingir que a vida é uma coisa maravilhosa e que todos devíamos estar agradecidos de ter. Sem me gastar completamente, o tédio explode-me na cara a todo o instante. Quando olho alguém, pergunto-me se foi isso que ela pensou fazer quando era jovem, se foi para isso que os pais a fizeram. E, pergunto-me, foi para isto que os meus pais me fizeram, sejam lá eles quem forem?» Através de uma viagem à noite de São Francisco, a de final do século XX e a dos anos 70, e de uma antinomia entre uma canção de The Tubes e um livro de Bret Easton Ellis, Howard C. Jones traça um retrato negro da existência. Um retrato onde ninguém é quem quis um dia ser. Escreve: «Ninguém pode ser quem é. A vida não deixa. Ou nos gastamos continuamente até que nos acabemos rapidamente ou o tédio transformar-nos-á em guardadores de cães e gatos. Atravessando sozinhos corredores de casas, embalando livros e assistindo a séries na TV.» E és bem capaz de ter toda a razão, Jones… toda a razão. Tirando isso, parabéns ao Fee Waybill pelos seus 70 anos.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasUm passo a mais [dropcap]N[/dropcap]ome cor e perfume. Rosas. Inequívoco perfume quando o têm. Mesmo variando em tonalidades ácidas ou aquosas. E mesmo sem o ter, não são menos rosas. Porque delas têm – sem ter – o perfume, que quase sentimos. No poder do arquétipo, de uma imagem, em que cada uma surge ela e outra. “Sim! A minha ventura quer dar felicidade; Não é isso que deseja toda a ventura?”; dizia Nietzsche na “Gaia Ciência” e eu a pensar que é para isso que existem as rosas. Mesmo as de sonhos sem perfume. Rosas claras vistas de fora sem a perturbação de um interior. Claras como faces visíveis e únicas e às vezes perfumadas e intrigantes, apenas como faces. “Quereis colher as minhas rosas? Baixai-vos então, escondei-vos”, dizia N. depois, no apelo à subtileza ou à perfídia. Quem manda ceder à perplexidade que me manda o universo do sentir, por este mistério que acorrenta planetas, partículas ínfimas no universo em geral, uns aos outros. Uns a girar em torno de outros e de si. Que grandioso desígnio, ou simplesmente estranho mistério de conduta planetária. Se pensar nas estrelas, essas realmente luminosas de luz própria, então, somente me sobra a descoberta de toda uma estrutura mental que forma o desenho e de que não consigo fugir. Mas é tão grande esse mapa. Há um tempo em que tudo surgia em frente, ainda sem aquela sensação de déjà vu e exaustão. Em que algumas coisas aconteciam com aquele impacto primordial que nos acometia como a uma tabua rasa. Antes. E também da proliferação virtual, em que tudo se gasta e nos gasta o olhar, a capacidade de sentir. Cada coisa impressionante surgia com a veemência de quem encontra um espaço amplo e lavrado. Uma imagem, um livro, um plano, um ponto de vista. Tudo novo. E as coisas que eram únicas, impressas profundamente. Mesmo quando parecia um reencontro único, com algo que tinha que ser e se reconhecia destinado, apetecido e confirmado. Foi assim com aquela pintura de Magritte. Estranho pensar quando a vejo, que nunca, mas nunca mesmo, verei o lado de lá. Um homem de costas, uma rosa exorbitante, como um sorriso crepuscular. Talvez irónico ou terno nesse seu modo de não dar a ver. Nunca o outro lado. Como das pessoas, nunca, quase nunca o lado de lá. Somente o que transportamos portas adentro do rosto e dos olhos, dos olhos dos outros e do rosto. Das pessoas e no nosso escondido segredo espacial. Como as rosas. Redondas e centrais, místicas, dores, golpes de vida – os espinhos, talvez – o coração, a alma, o amor. Símbolos que partem dali como sementes e germinam ao simples contemplar. E o perfume. Ácido e doce e pungente. E invisível, como a outra face. Da Lua. E do homem de costas voltadas. Sondo-lhe a caligrafia da fronte, do rosto, da vida, como se numa página, todo o corpo inscrito. Aquela rosa como prémio encantatório de todas as escuridões da noite. A luz é de uma madrugada ou um crepúsculo ou uma noite branca em vermelho. Lunar ou lúcida, como um sorriso bom. Aberta mas cerrada como rosto e sem tocar. É isso o que vejo. O observador escondido atrás do homem, à sua frente e uma rosa. Pura e sem cor. Que cor têm as rosas? A cor clara de uma única face e para além dela, folhas ásperas e espinhos. O que me faz gostar de rosas é o mesmo que me magoa. E inebria. Assim é o amor. A nossa grande imperfeição ou o que nos salva, é sermos finitos nas fases do tempo. Mas as rosas são infinitas. Todas as rosas se equivalem na sua finitude perpetuamente renovável. Só porque não têm nome. Cada uma, na sua espécie, como todas as outras. Como uma, única e eterna. Perscruto aquela face lunar. E sei que não é de rosa. Mas um rosto não gosta de ser pasto, sob pena de murchar em máscaras. Por isso Nietzsche dizia “esconder”? Perscruto no quadro o mistério dos rostos. A face da rosa e a do homem nos sentidos contrários. Desencontrados. Tanto nela se expõe, clara e afirmativa, quanto nele se esconde de negro. Mas o que sinto e sempre ao mergulhar na imagem, é o observador a passar, sem o querer, à frente do homem e a desconhecer a rosa e o homem – tornado invisível – como a si próprio de costas. Tornando-se a si próprio a personagem e o verdadeiro desconhecido de si, em que todos os imprevistos se podem encerrar. A verdadeira caixa de Pandora. Não a rosa como eterno feminino. Cândida, tornada contudo misteriosa e plana, iluminada de luz crua que anula a realidade do interior. É o rosto do homem, obscuro, nunca visto, a cobrir a frente dos olhos e lugar que estes não alcançam. Sabemos-lhe o rosto como sabemos o nosso atrás do qual se situa o olhar como por detrás de uma máscara. Mas, não mais. De costas voltadas para ele como ele, num primeiro olhar, para nós. E talvez por isso, a rosa sorri no seu sorriso misterioso de Gioconda. Pela ilusão do ver e do não ver. Por esse meio metro de desencontro. Um passo a mais.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasO Concerto dodecafónico [dropcap]O[/dropcap] compositor grego Yorgo Sicilianos (1920-2005), cujo centenário do nascimento se assinalou no passado dia 29 de Agosto, foi uma das figuras mais importantes do modernismo musical na Grécia. Nascido em Atenas, Sicilianos estudou teoria e composição com Kostas Sfakianakis, Marios Varvoglis e George Sklavos; de 1951 a 1953 prosseguiu os estudos na Academia de Santa Cecília, em Roma, com Ildebrando Pizzetti, recebendo um diploma em Composição em 1953. Enquanto viveu na Itália conheceu a música de Béla Bartók, que desempenhou um papel decisivo na sua decisão de se voltar para os idiomas musicais contemporâneos, e dos compositores da Segunda Escola Vienense, que influenciaram o seu desenvolvimento posterior. Depois de deixar a Itália, frequentou o curso de composição de Tony Aubin no Conservatoire National em Paris (1953-54) e as aulas de Walter Piston na Universidade de Harvard, Boris Blacher no Tanglewood Institute e Vincent Perischetti na Juilliard School de Nova Iorque (1955–56). Em Nova Iorque, Sicilianos conheceu o colega grego, o famoso maestro, pianista e compositor Dimitri Mitropoulos, que mais tarde viria a estrear, em Março de 1958, a sua Primeira Sinfonia, Op. 14, composta em 1956, com a Filarmónica de Nova Iorque. Em 1956, Sicilianos regressou definitivamente à Grécia. Naquela época, foi um dos primeiros compositores gregos a seguir as tendências modernistas na música. Iniciou uma produção que no total consiste em 63 obras e abrange todos os géneros: música sinfónica, música de câmara, música de piano, ciclos de canções, ópera, ballet, música incidental e muito mais. Paralelamente ao seu trabalho como compositor, Sicilianos foi um participante activo na vida musical grega, desempenhando numerosos cargos em instituições gregas ligadas à música, públicas e privadas, como a Associação Grega de Música Contemporânea, a Ópera Nacional da Grécia, a Rádio Televisão Grega, entre outras. O trabalho de Sicilianos pode ser dividido em três períodos. O primeiro período, durante o qual seguiu as expressões tonais e modais, inclui obras que escreveu até 1953, ano em que terminou os estudos na Itália, quando ainda acreditava que o futuro da música grega residia “no ponto onde o canto bizantino se cruza com a Canção Folclórica Grega”. O segundo período, caracterizado pela busca e experimentação das tendências musicais contemporâneas (técnica dodecafónica, serialismo, técnicas pós-serialistas, música electrónica), e que durou cerca de 25 anos, começou com o Concerto para Orquestra, Op. 12, composto em 1954, no qual Sicilianos utilizou pela primeira vez a técnica dodecafónica. Em termos de técnica a obra mostra a influência da Segunda Escola Vienense e de Béla Bartók através do uso da variação em desenvolvimento (principalmente no 1o andamento), do método dos 12 tons (principalmente no 3o andamento) e da “música nocturna” Bartokiana (3o andamento). Os quatro andamentos da obra são escritos nas formas sonata, scherzo, ABA e rondo, respectivamente. Em resultado, em grande parte, o Concerto permanece num contexto tradicional, embora tenha sido a obra através da qual Sicilianos tenha quebrado os laços com a Escola Nacional Grega e adoptado idiomas modernistas. O Concerto para Orquestra foi estreado em Novembro de 1954 pela Orquestra Estatal de Atenas, liderada por Andreas Paridis. Sugestão de audição: Yorgo Sicilianos: Concerto for Orchestra, Op. 12 Symphony Orchestra of Bulgaria, Alkis Panayotopoulos – NAR Classical, 1998