António Cabrita Diários de Próspero VozesBeat: mais do que um dizer Há uma passagem em “Pela Estrada Fora”, do Kerouac, em que os dois compinchas que estão à boleia, O Dean e o Sal, decidem que a partir desse troço mudarão não só de tópico como de estilo de conversa de cada vez que cruzarem um candeeiro, deixando «a mente saltar ao acaso do galho ao pássaro» (Kerouac). Este método de exercitar a imaginação sempre me fascinou e vim reencontrá-lo aqui, nestes escritos poéticos cheios de surpresas e de curto-circuitos; este testemunho/testamento em forma de cântico devolve-nos essa “indeterminação quântica”, que julgávamos dissipada no horizonte da poesia. Aliás, espanta no livro a energia que sustenta um fôlego pouco habitual e se aguenta na maior parte destas trezentas e sessenta páginas. Entretanto, uma das razões porque sempre nos demos bem, às tantas o Luís Filipe Sarmento, motivado pela alegria que lhe é inerente, vaticina: «Deixo os Apocalipses para os apóstolos da Derrota», o que é corroborado na página 251, onde se grafa: «A alegria é um repelente contra as ditaduras». Para quem julgue que isto não passa de uma boutade, de um slogan poético, refira-se, está documentado pela neuro-ciência como o sentimento da alegria abre o espaço. Falamos de uma mutação da percepção, evidentemente. E quando se abre o espaço as coisas que nele estão contidas não se organizam de uma maneira diferente, REORGANIMAM-SE, para usar um dito do pintor Roberto Matta, significando que a alteração que se introduziu aí na relação entre o espaço e as figuras não é apenas de nível sintáctico e antes supõe uma translacção simbiótica ou uma plasticidade metamórfica: «E ao espelho vi Kafka no berço de Dante». Daí que poucas páginas depois de nos ter falado da alegria, defenda o Sarmento: «O caos é a fonte poética da sublevação». Sim, o caos REORGANIMADO pela alegria que lhe dá a chave, uma pauta. Este livro, escrito aos 64, 65 anos, na leitura mais linear que dele se tenha, tece uma homenagem aos ícones literários de uma geração – o Ginsberg, o Kerouac, o Ferlinghetti, a Diana de Prima, o Gregory Corso, o William Carlos Williams e o Jack Hirschman (com quem o Luís Filipe privou), sendo cada um deles o motor dos diferentes capítulos – , os quais, mais do que remeterem para as descobertas da sua juvenília aparecem como expoentes de uma linhagem que, muito para além do seu modismo epocal, imprimiram certas práticas de escrita e de vida que continuam a ser pregnantes para tantos. Contudo, a densidade de “Beat”, com os vários estratos discursivos que se alternam e dialogam, polifonicamente, permite dilucidar outra leitura que é a do livro ser igualmente, como quem não quer a coisa, um ensaio sobre o tempo e a tensão que nasce das suas polarizações: «Tudo o que nos separa do dia seguinte é composto de ilusão e de desconfiança, de crença e luta infinita. Recuso as leis do manicómio. E o dia seguinte chega com diferentes repetições de expectativa» (pág.151) Neste livro celebra-se a escrita, precisamente como um acto de luta contra a matéria temporal, colocando-a em contramão e obrigando o Tempo a situar-se fora de si, em novas transparências que originam poros no seu tecido; a pulsão poética instaura no Tempo esse gesto detonador que traz «a surpresa do minuto seguinte». Levar o Tempo a surpreender-se a si mesmo é, em LFS, a luta contra o destino, o que gera inclusive o fantástico paradoxo descrito na pág. 198: «Escrever é ter o instinto do infinito, do inacabável (…) é o que nunca acaba (…) Quando se acaba continua-se a escrever na imaginação dos outros». Bela vingança ontológica que subtrai ao Tempo os seus trunfos. Creio surpreender outro motivo para que este “Beat” nos gratifique: tudo o que a geração beat nos ensinou – a imaginação que se gemina com a responsabilidade (numa perspectiva salvífica), os valores da dignidade do inaparente; a consonância entre a vida e a arte, num acordo entre a ética e a estética – isso que hoje se ensombra, em risco de dissipar-se, realça-se neste “Beat” com um inescapável furor político, o que o torna, além de contingente, necessário. É um livro híbrido, como diz o autor, e de tal modo que a sua prefaciadora, Graça Capinha, o lê como “uma autobiografia-poema-ensaio-testemunho-panfleto” e contém, nos seus cerca de 500 fragmentos de prosa poética, o pulsar de uma geração; a que apanhou de chofre o 25 de Abril à saída da adolescência ou nas primícias de ser adulto, e que mergulhou nessa latejante simbiose (a que conjugava os surrealistas, os poetas beats, a pop arte e o pensamento libertário). Uma geração de excessos, embora, uma das coisas que me agrada no livro, Sarmento não faça disso heroicidade, navegando pelo contrário numa margem ambivalente, que tanto sagra as euforias conquistadas (ao amorfo país que saía do fascismo) como critica algumas toxidades. Este livro alegra-nos, além disso, por motivos pessoais. Diz o Luís Filipe: «A chegar aos sessenta e cinco anos de idade e ainda estou convencido de que só agora percorri metade do meu caminho», o que é muito animador. Refira-se ainda um último aspecto do livro, as golfadas de humor que às vezes surpreendem o leitor e que o agarram. Demos dois exemplos: «Quando estou vestido questiono o espírito. Quando estou nu não há uma única oração que me eleve»; «O que resta é esse sentido abissal e cortante do humor, ferindo a paisagem repleta de homens de joelhos, em busca de uma eternidade ajardinada». O resto é o amor que também ganha cidadania no livro: «Ganhámos a pele e friccionámo-la até o labor do fogo».
Carlos Morais José Artes, Letras e IdeiasO huahuai A existência de seres problemáticos — cujas características os excluem das espécies registadas e que apresentam a aparência de uma mistura, uma intersecção, uma singular junção de atributos de várias espécies — tem desde sempre intrigado a humanidade e dado aso a inúmeras teorias sobre as possíveis origens destes seres, amiúde classificados como “monstros”. Poderá, por exemplo, a união entre espécies diferentes revelar-se, nalguma circunstância, frutífera? Eis uma pergunta que tem atormentado os sábios já que a experiência é frágil a responder, pois se dificilmente conseguiremos obter resultados do cruzamento de um cão com uma galinha; por outro lado, dificilmente se explica também a existência de criaturas híbridas: fenómenos amplamente registados, descritos por textos antigos ou modernos, e mesmo conservados em redomas de vidro, em laboratórios ou gabinetes de curiosidades. É prática generalizada, em quase todas as culturas, classificar o que não é símile, o inesperado, o inusitado, como aberração ou erro da Natureza, não perguntando se não será porventura o nosso olhar demasiado domesticado para aceitar o estranho como novidade ou progresso e ele em nós provocar, antes de mais, horror, medo e desejo de destruição. Na montanha Yaoguang, por exemplo, existe um ser chamado huahuai que se confundiria com um homem, não fossem as enormes cerdas de javali, abundantes no seu corpo. Dele se conta habitar em grutas, onde adquiriu o hábito de hibernar. Ninguém refere em que parte da montanha vive o huahuai: se ocupa as grutas da vertente sul, onde abunda o jade, ou se prefere a encosta norte, onde vulgarmente desponta o ouro. Nesta região é muito arreigada a crença segundo a qual quando um huahuai é avistado tal significa que em breve haverá um recrutamento dos homens e dos rapazes para servirem nas grandes obras do império ou participarem nalguma daquelas guerras que os senhores, de tempos a tempos, gostam de orquestrar. Não é, por isso, um animal muito querido dos camponeses. O huahuai parece ser o resultado do cruzamento de ser humano com porco selvagem, mas há muito se sabe que essa escabrosa união é, inevitavelmente, infértil. Persiste assim o mistério. Poderá o huahuai ser um descendente daquela tribo de homens transformados em porcos pelo Deus do Corão? Ou poderemos admitir, noutro registo menos mítico, a existência de várias linhas na evolução das espécies, não limitando ao símio a origem do homem, mas alargando a possibilidade de evolução a outras espécies e admitir que, tal como o símio, também se poderão um dia tornar humanas? Curiosamente, é o que parece propor Mao Zedong, também ele leitor do Clássico das Montanhas e dos Mares: “Não poderão os cavalos, as vacas e as ovelhas evoluir? Só os macacos poderão evoluir? E poderá ser, além disso, que de todos os macacos só uma espécie possa evoluir e todas as outras sejam incapazes de o fazer? Daqui a um milhão de anos, dez milhões de anos, cavalos, vacas e ovelhas continuarão a ser os mesmos que os de hoje? Penso que eles continuarão a mudar.” (Sobre questões da filosofia) Será então o huahuai um elo, um ente de transição, entre um javali e um outro tipo de homem a haver? E não vemos nos nossos campos, ruas e praças, por vezes, homens e mulheres cujas feições imediatamente lembram as de um suíno? Doutras vezes, (oh quantas vezes, demasiadas, tal não já aconteceu…) quando olhamos as feições de um grupo de humanos de forma mais atenta, damos por nós num zoológico diversificado, onde parecem proliferar descendentes de diferentes espécies, semiocultas nas faces mas, ainda assim, claramente distinguíveis se alvos de um olhar sofisticado. Apesar da nossa contemporânea vaidade, o actual estado do saber ainda denota uma regular impotência, mesmo quando procura responder a questões que ao longo de milénios ribombam nas mentes mais atrevidas. Na montanha Yaoguang, o huahuai, aparentemente indiferente a problematizações científicas e filosóficas, sem se exprimir em qualquer linguagem conhecida, prossegue calmamente a sua vida, emitindo de quando em vez uns sons, uns estalos, similares aos da madeira partida. Alguns crêem neles pressentir uma profunda tendência para a melancolia.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasA invenção dos números Há uma dimensão que não sei dizer se filosófica ou poética, na Matemática. A realidade dos números, que é diferente, em Matemática, da dos números reais. E a realidade de cada um dos conjuntos de números, a lembrar como sempre e em tudo essa sobreposição de camada sobre camada, de registos, mais ou menos inalcançáveis de que se recobre a abordagem, a compreensão ou a interpretação do real. As folhas de papel quadriculado são uma malha útil ao projecto de um bordado em ponto cruz. Às contas da aritmética e à organização dos números. Em colunas e linhas, arrumados e disciplinados. Em linhas com o rigor e a infinitude do alinhamento dos números naturais ou dos números reais. Qualquer destes conjuntos, composto de corpúsculos situados à mesma distância nessa linha. Quando se diz uma parte de mim quer partir e uma parte de mim fica, penso como podemos exprimir por um número real aquilo que não é fragmentável. Não somos metade de pessoa. Seremos metade de vontade? No entanto podemos dizer, a despeito de que as pessoas de um país se contam em números inteiros e naturais, que um quarto da população é jovem. Uma fracção composta de dois números, dita um número complexo. E tão real como uma pessoa ou duas o são. Podemos dizer que 0,2 pessoas de uma determinada população, ou 20 por cento, um número que espelha a relação entre o número total e a parte designada, apresentam uma determinada característica. Ou que para cada pessoa com determinada característica, existe 0,2 com uma outra característica. Mas isso não existe, esse pedaço de pessoa. Esse 0,2 estatístico. Não existindo como pessoa, é um número que exprime uma realidade percentual. Que não tem relevância física, num universo em que as pessoas se contam pelos números naturais, mas habilita-nos, eventualmente para entender uma realidade particular no mundo do real. Números complexos esses. Constituídos por pares de números, ou números que não são inteiros, fazem parte de um sistema diferente do que estamos acostumados a encarar como real e com relevância no real. São os números racionais. Porque a razão admite essa fragmentação. A fracção 3/1 é diferente do número três. Associa três qualquer coisa, a uma coisa. Uma espécie de posse. Donde talvez o sentimento de posse, humano, seja um mero mecanismo racional e não uma realidade indesmentível e natural. Que constituem o conjunto imaginário e que não podendo medir directamente a realidade, medem factos e ideias com tanta realidade. Essa, em que pessoas reais se apresentam fragmentadas. Incompletas face a uma unidade. Quando alguém parte de nós para sempre, a incompletude que nos reduz a uma indefinível fracção de nós próprios, é o reentrar no reino da complexidade de ser. Aquela que pode ser descrita pelos números complexos. E, mais complexos do que os números complexos, são seguramente os imaginários. Aqueles que se referem a razões, potências e números negativos É uma curiosa poética a da Matemática que remete para a afirmação de realidade o conjunto dos números que inclui todos os que são inteiros mas também os negativos e o zero. Porque a realidade é assim. A ausência de algo ou de alguém, construída no tempo a partir de uma presença prévia ou de uma expectativa ou sonho, pode figurar-se no zero como entidade absolutamente credível. Ou como fronteira do abismo para lá do qual é a inexistência positiva, afirmativa, do negativo. O zero pode ser mais do que o nada ou o não existente. Pode ser a referência a essa ausência com forma própria ou quantificada a rigor por um número negativo. Menos uma pessoa, das que fizeram parte da minha vida. Menos um. O reflexo ao espelho de uma realidade anterior. Um. Ser que existiu numa dimensão em que deixou de existir. E por isso continuamos a perguntar-nos se os números imaginários existem verdadeiramente. Como espelho de coisas palpáveis e mensuráveis. Mas aparentemente em equações complicadas em áreas como a engenharia, só eles permitem soluções. Número imaginário é um múltiplo de uma quantidade designada por “ i “ que elevada à potência de dois, ao quadrado, portanto, é igual a menos um. Será i uma ficção matemática conveniente? Um sistema numérico que contém raízes quadradas de números negativos. Como pensar que cada ser humano que desexistiu na nossa vida, pudesse ter tido a possibilidade de três percursos diferentes de vida que nos teriam afectado cada um deles de três maneiras diferentes Diz-se da Matemática, abstracção máxima. Uma meditação com transporte directo e sem paragens, para o éter do sereno e seráfico Zen. Senão, nela, a metáfora mais hermética. Mas como chegou a ela a mente humana senão por reflexo da sua própria subjectividade e como expressão rigorosa por oposição a elaborações de raiz verbal, na filosofia ou na arte poética. O ser humano é um ser natural, pertencente ao conjunto dos números naturais. A produzir por inerência, apesar de tudo, realidades mentais e artificiais. A realidade positiva do corpo no espaço, não é suficiente. Comer, dormir e habitar. Considerando-nos um. Ou supondo-nos numa âncora ou anseio de transcendência de um um, com imanência em si e uno, mas como dois. Ou insinceramente plurais. Ou zero. Ou, menos ainda. (B. E. Ellis, estava perdoado, com o seu irreprimível conjunto vazio, nos anos oitenta e Elvis Costello tinha ido talvez mais longe no mesmo lugar). Mais. Enumerar acontecimentos marcantes numa ordem impossível. E numa hierarquia tornada falsa. Esta ligação entre o dado e o tempo como nos pares de números que formam os números complexos… Paixão pela ordem dos números naturais “N”, contaminada pela da ordem mais subjectiva dos números reais “R” e ainda mais pela daqueles que embarcam convictamente nos números imaginários. Estes, com uma grafia a bold. Que existem. Tanto quanto a imaginação não consegue abdicar deles. Fugir a eles. Mas a questão é querermos quedar-nos nos naturais a começar do um. Esquecendo o zero. Esse número tão importante. Quantas vezes o revi como na enumeração dos números imaginários, na vida. Ombros a voltar costas mesmo antes de o fazer, como se numa fazenda de lã. Ou esse território etéreo, como espaço a refazer de imediato, a numerar parâmetros. Distância, anulação, ausência. Quantas vezes somos um número imaginário. Ser. Parte da razão de um olhar, fracção numa interpretação de traços de carácter, percentagem no retorno à memória, no querer. Imagem ao espelho manipulada pelos números de outrem.
Carlos Morais José Antropofobias Artes, Letras e IdeiasO lei Por razões muito difíceis de explicar, existem montanhas onde, apesar de percorridas por numerosos cursos de água, não nascem plantas ou árvores. Torna-se então difícil compreender como podem nessas regiões inóspitas sobreviver animais de grande porte. Contudo, contra as mais lúcidas expectativas, tal não deixa de acontecer. Os antigos são muito claros: ninguém se deve atrever a frequentar tais arrabaldes, pois a sua vida ver-se-ia exposta a tremendos riscos e perigos inusitados. É o caso da montanha Chanyuan, onde habita o lei, um enorme gato selvagem, cuja dimensão e forma evocam o leopardo, mas que se caracteriza por exibir uma fartíssima cabeleira. A sua existência é referida por numerosos autores, dos quais destacamos Mestre Zhuang (Zhuangzi) e, curiosamente, o pai da moderna literatura chinesa, Lu Xun. A característica mais interessante do lei, fascinante sobretudo para Zhuangzi, é o facto de ser hermafrodita e depender unicamente de si mesmo para se reproduzir. Neste particular, encarnaria o ideal taoista de auto-suficiência, pois de nada precisaria para assegurar a continuidade da sua espécie. Os antigos chineses apreciavam sobremaneira esta capacidade de possuir num só corpo o Yin e o Yang, porque tal era não somente um sinal de independência e autonomia, mas sobretudo de uma feérica fertilidade. Já Lu Xun entabulou com o lei um outro tipo de relação. Conta o escritor que o conheceu através de uma inesperada prenda. Tendo, em criança, ouvido falar de animais fantásticos, que desafiavam a mais ousada imaginação humana, isso nele despertou uma invulgar e imensa curiosidade. No entanto, não conseguia arranjar maneira de obter o Clássico das Montanhas e dos Mares, o livro ilustrado que regista a existência de todos estes estranhos seres, talvez porque os seus pais não desejassem povoar a sua mente de estranhas fantasias. Até que um dia a sua ama, com quem ele detinha uma conflituosa relação desde que ela assassinara o seu rato de estimação, lhe apareceu com um embrulho de papelão, dentro do qual se encontrava o tão almejado livro. E, logo no primeiro capítulo, eis que sobressaía o lei e a sua longa cabeleira, facto que viria, por razões na verdade mal explicadas, a marcar a sua futura carreira, segundo ele confessa num breve artigo de 1926. Segundo as antigas crenças, devido ao seu hermafroditismo, quem comesse da carne do lei, nunca mais sentiria ciúmes. Esta propriedade extraordinária era muito apreciada por causa da difundida estrutura familiar poligâmica, na qual existia uma forte concorrência e ciumeira entre as várias esposas de um homem, o que amiúde tornava amargo o ambiente no interior de um lar onde deveria prevalecer a harmonia. Daí que muitos se arriscavam a organizar caçadas ao lei, ainda que com a clara consciência de correrem perigo de vida, algo menorizado quando em jogo estava a manutenção da paz quotidiana. Diz-se que muitos maridos deprimidos acabaram por ser vítimas das garras afiadas e dos dentes pontiagudos desta tão preciosa besta. Mas outros, capazes de regressar a casa na posse daquela preciosa carne, conseguiam então assegurar um lar mais harmonioso em que as esposas, ao invés de se digladiarem, contribuíam em conjunto para a sua felicidade.
João Paulo Cotrim Artes, Letras e Ideias h | Artes, Letras e IdeiasFios invisíveis Biblioteca, Grândola, sexta, 16 Julho O Luís [Cardoso] lá foi contar ainda uma vez das mulheres da sua vida – a mãe que se desdobrou em mais mãe de onze além dos onze iniciais, a namorada que foi ao encontro das balas assassinas – afirmando assim e sem quebrar o mistério a força das vozes femininas no seu romance-poema, romance-rio. Omnipresentes, quase invisíveis, comme d’habitude. Acabo de saber que quem lhe lança a pergunta, em acto de apresentação, e há muito o lê daquele modo íntimo como só a tradução, a Catherine Dumas assinará recensão para a Colóquio Letras. Dá-se a reunião bem acompanhada em dia quente, neste espaço novo, que contém rios no coração dos muros, por haver ali uma belamente desarrumada exposição da Ana [Jacinto Nunes], na qual se incluem as ilustrações que abrem aquela «sonata para uma neblina». Esquecendo as salas, exemplo de uma arquitectura fechada sobre si, ignorante de funções e destinos, ali se encontram dezenas de rostos em pose. Gosto do jornal que diz ao que se pode ir, sujando as mãos, com singeleza, sem contar em demasia. A pintura da Ana, para captar a vida, surge sempre irrequieta, como que inacabada, a caminho de outra coisa, o gesto do pincel em busca da forma exacta das suas personagens, esculpidas na cor e respectivos movimento e temperatura, mulheres e animais, abraçando-se, quebrando fronteiras, celebrando nevoeiros. Um jazz no qual o tecido pode ser instrumento. Invariavelmente, os rostos olham-nos, desafiam-nos para diálogo em fluxo, fonte brotando da fronte. Oiço dos vários quadrantes que só somos na mistura com o natural. Nasceste da cor e a ela voltarás. Aqui e ali, as peças de cerâmica sublinham isso mesmo pois abrigam raízes, fazendo nascer do barro cortinas de verde, bambus onde se escondem os ventos, outros verdes esguios que podem bem dar pássaros. «Entre nuvens e papiros», assim se chama a mostra e no nome se (des)arruma o assunto. Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 17 Julho A propósito: a SOS Racismo lançou um «Dicionário da Invisibilidade» contendo, além de belos retratos do André [Carrilho], uns bons milhares de entradas, com proveniências e autorias diversas, para «abrir uma brecha para a discussão e alargamento de horizontes sobre a questão da invisibilidade». Podem discutir-se os critérios, talvez demasiado abrangentes, e em qualquer lista sobra (não digo) ou falta sempre alguém (aqui sim, Natália Correia, exemplo exemplar). De qualquer modo, fica apresentada uma multidão de ladrões de fogo, que nas várias áreas e geografias, se entregaram, se entregam a uma causa, alargando horizontes. Seiscentas e tal páginas que dão bom princípio de conversa. Gosto de encontrar, logo abaixo de Tina Modotti, uma entrada para o Maçarico (1960-2014), nome que vestia o Vitor Ribeiro de nascimento. Era, fica escrito, traficante de sonhos. Paço da Rainha, Lisboa, terça, 27 Julho No diário fingido, que o são todos, esfregam-se mãos cuspidas para decidir caminhos nesta «rua da estrada»: enfrentar os mortos que nos interrompem os dias ou fugir pelo não. Folgo em ter amigos entre os que escavam obituários nos jornais e entre os que possuem as chaves dos portões de cemitério. Acabaremos todos por sair impressos naquelas páginas, em certo sentido, uma folha vibrante do quotidiano, a outra lençol de amargura na bainha da cidade. Assim de atraso levo meses, mas que fique escrito que não pode passar sem lágrima o Vasco, o Otelo [Saraiva de Carvalho], o [Roberto] Calasso e o Pedro Tamen, assim por junto e sem sentido. Começando pelo fim, o poeta que foi, sem deixar de o ser, tradutor, editor e até administrador, vai faltar-me como orquídea cuja morte não apagará a culpa. Deixar de regar, de puxar o sol, talvez de soletrar em direcção da suprema elegância merece castigo. Falhei por não o ler mais, apesar do inevitável. Ergo mão que nem pelo gesto atingirá o leitor dos mitos e assim. Calasso contém o movimento das rochas, também no lugar de boas vistas do editor. Celebrando sem parar o movimento líquido do pensamento que se ergue das linhas correndo para o mar. Levantar a mão não arranca raiz. E nisto me encontro no dizer em desenho do Vasco, que compunha corpos explodindo. Dizer pelo nariz é bufar e por aí vai o comentador de ideias despenteadas, a quererem deixar a invisibilidade. Vai onde? Vai de encontro. Lá longe, pá, ergue-se o Otelo. Eu que sou das margens, apesar dos geómetras-vigilantes de algibeira se enganarem nas medições míopes, vou directamente ancorar no destruidor das âncoras. O que nos aproxima de casa não impede o voo. Ele foi quem apontou, por momentos, maneira de fazer do cais uma nuvem. Ou melhor, disse apenas que, para lá do aparente, o impossível estava ali: tomai e comei. Os quatro que partiram agora ajudariam a explicar. Ou a perguntar, que não há melhor maneira. Apontador de mitos, um, a desfazer a lápis no minuto pelo outro, se fosse caso disso, enquanto aquele gizava a logística do golpe e o poeta consertava sapatos e a luz. «Por cave deserta/ entram hábitos e ruídos/ verdes montanhosos, cascata/ um rio de água de Verão.// Estou só eu e o martelo/ e a minha mão opressa/ ou estará não sei que mundo/ com a palavra ou sem ela?// E eis-me então adivinho/ dos mistérios que atravessam/ a janela onde perpassa/ a luz que mal me ilumina/ e é o sal do meu pão.» Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 31 Agosto A Patrícia Mamona voando fecha de boa maneira este dia pontado de intensidades. Resolvi entrar em «Pústula», outro perturbador filme de filmes da Bárbara [Fonte], exposto na Galeria da Casa Molder. Pendurado na parede velha, que a Bárbara pinta com a câmara, dando a ver sucessivos nascimentos, na ligação com a figuração clássica, a da dor sobretudo e à volta do religioso, essa encenação do essencial. A artista desenvolve uma liturgia em torno da natureza, da natureza das coisas. Nos interstícios do que passa e do que fica, do que se fixa e do que mexe, no corpo, na paisagem, na mescla líquida de um e outra. Vem depois o peso e as maneiras de o vencer. O vento que contém os fios que erguem o volúvel, o insustentável. A mulher voa («paralítico» do filme, algures na página e a sair dela). Vai acontecendo o arfar denso da lentidão ao limite, que cose os fragmentos da quase narrativa. Cada livro contendo pinturas faz-se espaço do sagrado. São momentos duros, rasgados e agrestes, beleza em carne viva, imagens fortes que ecoam em nós, por muito tempo e nos vários tempos do desperto e do sonhado. A cada um importa voltar e revoltar, como missal para nos explicar as cicatrizes de cada dia, o tule que se faz fumo, um fio de sangue branco leitoso que se puxa das chagas, dos mamilos antes de correr pelo negro, desperdiçando alimento, talvez vida. A casa é ruína, lugar de repouso das próteses, arrumo das naturezas mortas, o deitado que pode ser morte, raiz, mas também antena procurando céus. As lágrimas que foram areia, são agora fitas, fitas que não escorrem, para sempre brilhando esvoaçantes. E depois, ainda prolongamento de si, um enxoval de vestidos-prisão, a banheira e a água feita roupagem. A vida é crosta na nossa pele. A terra, lá fora, enxovalha. Há que a sentir com o corpo todo. Só com o corpo todo se penetra neste fascinante trabalho de inquietações. Daqui ninguém sai vivo. Da mesma maneira.
Anabela Canas Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasDa desinquietação. Pág. 3 Erro de cálculo é calcular. De que se faz a vida se tudo se imaginar calculável, é uma pergunta a que não gosto de tentar responder. Nem num sussurro por medo de errar, também aí, o cálculo. Antes desdizer todas as previsões e assestar os olhos num pequeno momento de cada vez, de esperar que se somem momentos aos momentos e lançar todas as teias delicadas e sinceras de objectividade, de todas as fibras que constituem – sei lá – o sistema nervoso, o aparelho óptico, os volumes musculares que nos apetecem movimento, as tonalidades de voz, para além do olhar ou das cores. No fundo, bem no fundo nuclear e tectónico, de onde explodem rios de lava e de lágrimas – conforme – centrar. Aí, de onde tudo se retira e escolhe. Não que o tempo se fragmente em tempos precisos de agora antes e depois. Pelo contrário, no seu contínuo, plástico e permanente ser e devir, contém em cada ínfima parte, o de todo inalcançável infinito. É estranho. Num mergulho abrupto em profundidade de possibilidades. A passagem em velocidade da luz por um todo, pelo caminho mais longo. Ou, também como um intangível sulco que podemos saltar quase sem pensar ou deter o olhar. Uma simples ruga na pele do tempo. E atingir permanentemente de chofre o minuto seguinte, sempre em perda por essa é a inconsciência que escolhemos. Ou não. Parar sobre o abismo e nele mergulhar como se um pequeno desvio na naturalidade da perda, é talvez viver a lúcida e inundada possibilidade de, sem cálculos prévios, nos deixarmos surpreender entregando tudo. Estará escrito no lugar que sempre erra. Que é da natureza e do erro errar o ver e ver o erro à distância do tempo. Estará escrito no passado. Estará escrito no tempo que foi verbo e ficou. Estará. Escrito que o amor é insolvente. Inóspito na forma. A nu. Em que estará onde pode estar. Quem escreveu a salvação diluiu em mágoa. Estará escrito. Mesmo assim. Onde estará escrito que o que quer que seja existe ou morre. E o tempo, o tempo dirá. Do verbo. Se me sinto, como flor, como apetência de estação, de cerejeira, para quê roubar-me o resto dos dias da semana. Antes do vento. Flores e a efemeridade de tudo. Aprender a dar valor aos momentos de passagem. Porque tudo o é. Mar e mar. Mentindo, estar ali em espuma, frescor e sentir. Ou não. Estar mesmo em espuma e ondulante espraiar. Estar ali e não estar. Crescer em ínfimo estarrecer de não ser, ou de entender não estar. Ou de crescer sentir. E explodir. Ficar. Quantos pedaços fazem sentir e ver e percorrer. Mas não colam ao que de flor florescer. Quantos e como definir, contar, apanhar e envolver. Quanto, esquecer. Quando amanhecer, anoitecer e fenecer. Quando acontecer. Quando. Quanto falta concluir desfrutar, acabar. Esquecer. E, todos os dias, voltar. A estar a concluir a enfrentar a estar. A ir, a voltar. A amar. Marés de mar. Estrondo invernoso na maré viva. A vida é um desafio formidável. O apelo a um sentido lúdico ou lírico, dramático, sobretudo em tempos de guerra, quando, pequenos, em risco de apagamento. E só por dentro encontro paisagens aprazíveis. E aí estaciono em perspectiva. O plano que se estende do olhar é vasto e a calma que daí se evola, invade como uma sensação cálida em dias frios. Ou outros dias. Aquela imagem desenhada à pressa no terraço de um bar de Marraquexe em fim de tarde. Por acaso não é Casablanca mas “play it again Sam”.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoFarewell, My Dear 18/04/21 Completei hoje o segundo livro de poemas depois de Tristia. É curioso pensar que, antes do Valter o ter levado para a Porto editora este livro esteve em duas editoras renomadas, que não me deram sequer sinal de o terem lido. Eu sentia, há anos, que depois deste volume pouco tinha a acrescentar na poesia. Não foi assim e fixei dois livros novos nestes últimos três meses, nos quais mudei absolutamente de processos e cheguei a uma simplicidade discursiva surpreendente em relação aos meus livros anteriores, como será patente na antologia Uma Ostra Questão, que sairá daqui a uns meses. Estes dois livros abrem um novo veio, depurado (com alguns curto-circuitos), mas escorreram-me com uma facilidade que se por um lado me agrada por outro me parece maculada pela competência. Creio que a competência é inimiga da poesia e que a técnica não é suficiente. Há um episódio curioso de Mallarmé. Um dia foi-lhe pedido um poema para ser recitado no casamento da filha de um amigo. Mallarmé cumpriu a encomenda. E felicita-o o amigo: “O poema é muito bonito e não é hermético, como te é habitual”. E responde o poeta: “Não tive tempo para o obscurecer”. Sinto o mesmo: o desafio da poesia exige tempo, e não que cedamos “ao natural”. É preciso ser desconfiado, que lhe digamos que não. Só assim nos salvaguarda do aviso do René Char: pobre do poeta a quem a poesia não ensina o que ele não sabia de antemão. “Como um esquife, morto de cansaço,/ o verso que me habilita à proporção.”, leio em Tristia, e fico espantado, só agora descubro a força da tensão que aqui se declara, é um dístico que como um pé-de-cabra abre uma poética, mas a proporção que nele se mete em movimento já está para além do apego aos géneros. Imaginar é-me preciso, mais do que a poesia. Agora que tecnicamente faço o que quero, chegou como o Miró a hora de mudar de mão, de retomar a boa via de conduzir contra o trânsito. Continua a haver em mim uma criança que prefere assustar-se a confirmar-se. Gosto dos dois livros que acabei, não é essa a questão. Mas depois deles já não me surpreenderia o que pudesse escrever, estaria a imitar-me, em modo de ronron. Eles estão no limite e funcionam muito bem; não lhes falta ritmo, sangue, humor, algum atrevimento, boas soluções, e mantêm uma vibrátil plasticidade verbal, mas detesto conhecer o terreno que piso. Caos precisa-se, que as palavras cheguem ventiladas da esfera do indescernível, de lugares sem raízes, desorbitados, insusceptíveis de serem plintos para exercícios onde a medula estará para além de mudar-se o lugar das mobílias. Cheguei ao brando conforto da “forma”, há agora que readquirir a potência do desequilíbrio. Já estive quase dez anos sem escrever poesia, o jejum não me fez mal. 20/04/21 Reler Bandeira faz-nos sempre descobrir alguma coisa que nunca tínhamos visto antes, tão certo como os versos de Hafiz que o poeta recupera: “Amarei constante/ Aquela que não me quis”. Desta vez, entrevi a poética, patente em Saudação a Murilo Mendes e em Nova Poética, a que o poeta foi fiel. O primeiro destes dois poemas fecha assim: «Saudemos o grande poeta/ Permanentemente em pânico/ E em flor.» ( – que aliás é uma variante dos versos de Dante: “o artista/ a quem, no hábito d’arte/treme a mão”). O oximoro não só é exacto em relação ao Murilo como me parece definir o estro da poesia: dar flor no manto sacudido por um sismo de grau oito. No mesmo impulso bolçavam os samurais um haiku celebratório da vida durante o seu harakiri. Essa suspensão face ao desequilíbrio, seja o do interior, seja o do meio ambiente, resume o único tipo de “sageza” (intransmissível, que tem de se experimentar) a que o poeta pode aspirar. Paralelamente, em Nova Poética, dum modo divertido, Bandeira prevê três géneros para a poesia: a do “poeta sórdido” (“Aquele em cujo poesia há a marca da vida”), a da “nódoa no brim” (um tecido forte de linho) – “O poema deve ser como a nódoa no brim:/ Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero” -, e o da “poesia é também orvalho” – com a ressalva que se segue: «Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem piedade.» Paródia à parte, estes três géneros correspondem ao lírico (o orvalho), ao trágico (o brim), e ao dramático/realista (o poeta sórdido). Porém, a lição que se tira do exercício da poesia em Bandeira é que não nos devemos ater a um género ou tema em exclusividade e antes planar no reconhecimento da topografia vária de todos os continentes. Por isso ele escreve em Arte de Amar: «(…) As almas são incomunicáveis/ Deixa o teu corpo estender-se com outro corpo./Porque os corpos se estendem mas as almas não.» sem temer contradizer-se depois, no poema Seio: «O teu seio que em minha mão/ Tive uma vez, que vez aquela!/ Sinto-o ainda, e ele é dentro dela/ O seio-idéia de Platão.» E assina rondós, ou redondilhas, ao mesmo tempo em que fazia poemas concretistas. Esta liberdade, aliada à sua plena consciência da transitoriedade de tudo, levava-o a não se levar demasiado a sério (ainda que seja um poeta eminentemente sério) nem a deixar-se aprisionar por uma imagem, refém de si mesmo – capaz em páginas contíguas de ser cruel, amargo, cínico, terno, romântico, ou subversivo, e de de transmitir a lucidez da cal. Tão diferente de alguns poetas que só querem ser um, o mesmo, de risca ao meio, mesmo que com vento. Daí que o velhinho e modernista Manuel Bandeira me seja dilecto e que a sua lição me faça abraçar um interregno.
Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasO design é uma poética do corpo Olhavas para o piso de baixo e vias as cadeiras brancas, branquíssimas, com aquele rasgo iluminado que a penumbra empresta à semi-escuridão. Haveria, a par da certeza íntima de partilha, a distância como modo de conformação. O fascínio nasceu-te, a pouco e pouco, a teia levitou nos alicerces do estético e muito mais perto da aventura literária do que se possa pensar. Percebeste que a poética em estado de bruto – mesmo se criada pelos jogos do design – é sempre um movimento em que as conotações bloqueiam outras conotações. A certa altura já não há denotação: apenas conotações que não conseguem multiplicar-se de modo a expressarem uma mensagem que fosse final. O que a conotação propõe, nestes casos, é simplesmente o adiar de todas as conotações. Uma poética em estado bruto, portanto. Os objectos de design dispõem-se, nesta óptica de simplicidade, a tentar atingir o que eles mesmo são. Um desejo que visa tão-só um desejo. E foi esta adulação criativa que te inundou paixões várias. Algumas verdadeiramente inesperadas. Por exemplo, o candeeiro Sputnik de Marco Macura que, com a leveza da sua haste tripla, evoca os sonhos de superação da era moderna. Uma peça nada orgânica, embora sugira a ideia de corpo. Mas um corpo em plena evasão, como se desejasse escapar-se à matéria que a originou. Algumas peças dos ‘fifties’, de que a Sputnik é pura paródia, já haviam mostrado empatia com as morfologias do foguetão soviético. Foi o caso dos candeeiros Luminator de Pier Giacomo e Lívio Castiglioni de 1955. De qualquer modo, na tensão entre ‘pertença’ e ‘não pertença’ a um tempo, Sputnik joga toda a sua atracção na intemporalidade. Entre outros exemplos poéticos, lembras-te da poltrona Showtime do catalão Jaime Hayón, uma peça com cordas vocais e de concepção maleável (alimentada pelo teor almofadado e pelo ritmo das pregas a partir de uma pele em polietileno rotomoldado) ou do Antibodi de Patrícia Orquila que recusava ser chaise longue ou divã para se afirmar como um esteio de lazer à base de alegorias florais (a lã e o cabedal davam corpo às pétalas que dominavam o assento reversível). O Antibodi foi e é um objecto de que Freud teria fugido a sete pés. Para lucubrar sobre a psicanálise, bastaria a sua presença deslumbrante. Também não resististe ao banco Spun de Thomas Heatherwick, uma recriação da espiral da vida que acumulava a função de um inesperado cadeirão (dirias tratar-se de uma metáfora das utopias que ainda hoje subsistem, muitíssimo discretas, nas letras pequenas do dia-a-dia). Por fim, as laranjas que se querem tocadas como as estrelas. Corpo de casca e magma suave, as laranjas são personagens doces, lânguidas por natureza e foram baptizadas para fazer parte de uma gramática do júbilo. Tudo isto se respirava no candeeiro Flower-Pot-Orange de Verner Panton. A peça sugeria uma esfera, um aflorado de gomos e uma pressentida liquidez. Adivinhaste neste candeeiro um ponto de encontro e uma grelha de partida para poder pensar sem metas, sem objectivos, sem pressas. Uma laranja é um projecto de vida realmente. Tal como escreveu Ibn Sâra de Santarém (1043-1123), um poeta que traduziste do Árabe: “Com a sua beleza/ não permite aos olhos que vejam outra coisa:/ parece-me, às vezes, uma chama ardente/ e, outras vezes, o crepúsculo dourado”. Sabias perfeitamente que o design somos nós próprios, revisitados. Percebeste a tempo que certas formas e acenos estéticos acasalam, na casa do design, com uma democracia quase intuitiva que todos partilhamos. É por isso que o design não é apenas uma espécie de revestimento dos objectos culturais. Ele é sobretudo a dança que percorre o modo com que nos olhamos ao espelho, numa sociedade em que o corpo já não é apenas um organismo. O corpo passou a projectar-se para muito longe de si mesmo. Dizes uma palavra em Singapura ao mesmo tempo que o ipad te dá ao dedo a simulação de uma viagem celeste. E, no entanto, continuas serenamente em Portugal sentado numa cadeira que não é apenas uma cadeira. O som da palavra, o dedo, a viagem e o objecto ambíguo onde te sentas são partes de um polvo lúdico que nada tem de orgânico. Trata-se antes de uma construção bem mais vasta de que fazes parte e em que interferes. O design cresce nesse tipo de territórios férteis onde nos revisitamos sempre que agimos. O design quase não necessita de reflexão, por isso mesmo: ele impõe-se ao declarar-se. É por isso que escolhes este site e não aquele, é por isso que escolhes esta camisola e não aquela, é por isso que escolhes esta palavra ou esta metáfora e não aquela (o design também se gera por dentro da literatura, é verdade). E o mais curioso é que a repetição criada pelo design não parece cansar, nem perturbar. Por vezes, cativa, hipnotiza e toca liturgicamente no fundo da alma. E porquê? Justamente, porque o design possibilita a repetição sem niilismo, ou seja: sem negatividade, sem fardo, sem peso. É essa a sua função primordial: permitir incessantemente, e sem limites, o fluxo do desejo.
Sara F. Costa Artes, Letras e IdeiasGinásio Mental Li num artigo que a geração Z vai mais ao ginásio. Alcançar uma aparência física desejável beneficia a auto-estima e outra coisa que faz muito bem também é produzir mais likes no Instagram. Conseguir bons ângulos para posar em frente a um telemóvel. Possuir determinados objetos que fazem de nós seres civilizados. Alcançar objetivos que nos atribuam valor, mas, acima de tudo, que sejam visíveis. Passamos de um período a que Walter Benjamin definia como “o culto da arte” para “a arte exibicionista”. Em “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica” ele vai mais longe, chegando mesmo a concluir que qualquer forma de exibição é necessariamente ideológica. Distraidamente ideológica. Afinal, que tipo de pensamento político se consegue expor num post do twitter para além de ideologia pura e dura sem qualquer nuance? E esta personagem que criamos de nós mesmos, o que é que estamos exatamente a vender ao reproduzir mensagens simplificadas até ao tutano? É este o nosso novo produto artístico, nós mesmos, num post? Porque eu quando penso em arte penso no “Quadrado Negro” de Kazimir Malevich. É uma obra que é uma provocação. É pensar a arte enquanto ausência. Ponderar sobre esta nossa existência tão livre que pode até ser tanto que não é nada. Um quadrado negro. É este nível de reflexão que exige algo que está a cair em desuso – a concentração e a deliberação . Num sistema onde um artista tem que se adaptar à forma mais eficaz de produção massiva, perde uma grande parte da sua autoridade enquanto criador. Já não é a arte que nos absorve, nós absorvemos a arte. O artista já não se consegue impor com autoridade porque esse esforço de ir ter com a arte torna-se impraticável. A nossa condição num sistema sócio-político obcecado com a produção material não nos permite parar. Ler ou ir a uma galeria de arte é um ato isolado que requer concentração e disponibilidade mental para que as formulações de ideias tenham densidade. Contudo, se essas várias facetas da vida produtiva nos deixam demasiado ocupados para deixarmos de percepcionar a arte a um nível individual (a arte visual, o livro) e a consumimos passivamente a um nível colectivo como o é o cinema Blockbuster, mas também o é o Instagram e o YouTube, onde vamos enfiar esta coisa massiva que é a subjetividade da experiência humana? Sentir a chuva a cair na pele não é a mesma coisa que ver uma foto da chuva a cair e também não é o mesmo que ver um vídeo da chuva a cair. A chuva a cair na pele só se pode viver, não se pode exibir. Todo este bem-estar físico e bem-estar mental não passa exclusivamente por uma cultura do exibicionismo. Não encontro a autenticidade de alguém numa selfie. Não compreendo em que altura deixamos de ser capazes de expressar a nossa mais profunda individualidade e começámos a criar, não como quem desafia, mas como quem devolve a todos a sua própria imagem. Ir ao ginásio faz bem mas não nos esqueçamos de treinar também os músculos da mente porque enquanto nos tornamos espectadores passivos de ideias, alguém está, certamente, muito ativo a criar todo o nosso pensamento por nós.
Gonçalo Waddington Artes, Letras e IdeiasSegundo acto – Cena 4 Os dois militares ficam em silêncio, nada mais há para dizer a propósito do assunto Os Panteras vs Os Pantufas. O Major volta a cruzar os pés em cima do tampo da secretária e reacende o seu canhão Cubano. O Capitão acende um cigarro. Os dois fumam em silêncio. Gonçalo continua a articular o seu discurso, inaudível, mexendo a boca, e só a boca, incessantemente. O Major olha-o, intrigado. Major [indicando Gonçalo] E agora temos ali aquele peixe fora d’água… raios m’ partam! De onde é que ele apareceu? Capitão [suspira] Está cá desde ontem… ninguém o viu entrar. Não se sabe como é que ele entrou. Major Mas ele… surgiu… apenas? Isto é uma base militar altamente secreta… Ou pensávamos nós que era! Está a dizer-me que aquele indivíduo, com roupas estranhas – será uma farda militar desconhecida? – passou despercebido por todos os portões e todas as portas, sem dar cavaco a ninguém e deitou-se aqui para dar à guelra? Capitão Meu Major, parece-me impossível que alguém possa chegar aqui sem ser identificado, pelo menos, em três pontos: o portão principal, o portão intermédio – antes de começarmos a descer aos pisos subterrâneos – e a porta azul, antes desta sala onde nos encontramos agora. E isto é num dia calmo… eu já cheguei a ser identificado sete vezes antes de aqui chegar. Major [interrompendo] E muito bem! Capitão E muito bem, sim, meu Major! Major [rindo] Ó homem, relaxe. Capitão [sorrindo, atrapalhado] Sim, meu Major… Major O som do coro bem melado nada tinha de meloso… Capitão [confuso] Perdão? Major [rindo] O som do coro bem melado nada tinha de meloso. Capitão [a medo] Não percebo. Major Pois não… Mas a culpa não é sua. [pausa] Nem minha…! O som do coro bem melado nada tinha de meloso… [pausa] Coisas minhas… Gosto de poesia, sabe. [pausa] Significa que o som do coro, o que quer que cantavam, fosse a letra ou a melodia, era doce, mas não era piegas… que era suave, mas não era insípido. Capitão Compreendo… Major [indica Gonçalo] Bem pode ser isto o que aquele pobre peixe está para ali a borbulhar. O som do coro bem melado nada tinha de meloso… Capitão Já sabemos o que ele está a dizer, meu Major. Major [surpreendido] Desde quando? Capitão [hesitante] Desde hoje de manhã? Major E falava de quê? Capitão Balbuciava… sobre vícios. Fumar, roer as unhas… vícios de boca, dizia ele. Major [olha desconfiado para Gonçalo] Vícios de boca… será algum código? Capitão [baralhado] Código, meu Major…? Major [humilhado] Sim, código, porra… sabe o que é um código?! A águia aterrou!? [pausa] A marreta está no ar?! Dêem-lhes música?! Capitão Sim, meu Major! Major E ENTÃO?! Capitão Não nos parece ser um código… Major [desconfiado] E como é que souberam o que ele estava a dizer? Capitão Um dos oficiais tem um filho surdo-mudo e aprendeu leitura labial e língua gestual portuguesa… Major Língua quê!? Capitão Língua gestual portuguesa, meu Major. Major Certo… e sabe ler lábios? Capitão Sei, meu Ma… SABE, MEU MAJOR! Major Não grite! Capitão Perdão, meu Major! Major Mas, afinal, quem é que sabe ler os lábios e falar não-sei-quê Portuguesa… é você?! Capitão [inseguro] Eh… O Major levanta-se, pousa os punhos no tampo da secretária e continua a falar com o canhão Cubano entredentes. Major Sabe quem é que lê muito bem lábios? Capitão [apanicando] Não, meu Major… Major [sorrindo, malicioso] SÃO AS PUTAS E OS PANELEIROS! O Major desata a rir alarvemente até se engasgar num pedacito de tabaco mais maroto que saiu do charuto em direcção ao seu goto. Tosse tanto que às tantas começa a ficar muito vermelho e a bater com os punhos no tampo da mesa. O Capitão aproxima-se para o auxiliar, preocupado, e dá-lhe uma pancada nas costas para o desengasgar. O Major responde com um socão no queixo do pobre coitado que veio em seu auxilio, deixando-o estendido no chão. O Major recompõe-se, bebendo água do seu cantil. Depois, despeja o resto da água na cara do Capitão. Este acorda em pânico, como se tivesse sido arrancado das portas do inferno. Levanta-se a custo e recompõe a farda. Major Mas o que é que ele estará a dizer agora? Capitão [assustado] Ele fala… [pausa] É muito lento, demora duas a três horas para completar uma frase. É quase como se estivesse… [hesita]… como se estivesse… Major Desembuche! Capitão Como se estivesse desfasado… Major Desfasado?! Capitão Sim, meu Major? Major De quê? Capitão Dele mesmo, meu Major. [pausa] Tudo nele indica estar numa normalidade, perdoe-me a expressão. O discurso é lógico, embora irrelevante. Não há razão para acreditar que se trate de um código… os peritos assim o disseram. Não encontram um padrão reconhecível ou disfarçado, nada… Além de que não há ninguém para o ouvir, ou ler, neste caso, apenas o meu Major e eu. Major Certo… [pausa] Mas, afinal, quem é o oficial que sabe ler os lábios e a gestual-não sei-quê? Capitão [a medo] Sou eu, meu Major. Major Já desconfiava! [pausa] Perdoe-me a insensibilidade de há pouco… das putas e não sei que mais… às vezes sou um porco.
Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasO tempo do desejo que também somos Fora do crucial domínio da necessidade e da dupla obrigação-dever, esta última uma área de grande elasticidade e aberta à transgressão, o tempo que cada pessoa é ocupa-se de formas diversas que se entrelaçam (e que, na maior parte das vezes, se confundem como uma máscara em tudo igual a um rosto). Em primeiro lugar, através da chamada reprodução social (também conhecida por “habitus” ou “fluxos”); em segundo lugar, através de preenchimentos vários e, em terceiro lugar, através de desejos que, de modo auto-suficiente, têm o condão de se poder projectar e expandir na vida. No primeiro caso, uma pessoa inclui-se em práticas de conjunto com a ilusão de que se trata de uma decisão apenas sua (fluxos de consumo, fluxos de turismo, fluxos televisivos, fluxos da net, fluxos do corpo, fluxos de linguagens simplificadas, etc. etc.). Estas participações tornam uma pessoa operacional e com o ser aparentemente preenchido (no que poderia caracterizar-se por felicidade descentrada). O segundo caso decorre de situações em que a pessoa se debate consigo mesma (ou com uma forte disrupção de sentido do que é estar no mundo) e esse embate, por diversas razões, acaba por ser substituído por actividades que preenchem a disforia e a angústia. A pessoa passa a viver por dentro dessas actividades (que podem, ou não, coincidir com as dos fluxos), mesmo sem constatar que elas estão vez de outras, de cariz interior e adiadas sine die. O terceiro caso é o de uma pessoa que consegue, em consciência e em certas circunstâncias (trata-se de algo que é acatado, de início, como um regime provisório), demarcar-se dos estados de fluxos e também dos estados de preenchimentos. Nessa suspensão poderá então emergir a projecção autónoma de desejos que se podem virar para o outro (paixão, amor, etc.) como para um grande leque de ocupações e de tarefas específicas do mundo. Perguntar o que é o desejo é quase o mesmo que perguntar o que pode uma pessoa ser. Avancemos devagar: o desejo não se coíbe ao corpo. O desejo precede e sucede o corpo, mas não o consuma. Pode saciá-lo e regressar logo ao que não o revela, pois o desejo jamais dá a perceber as figurações que o traduzem. O desejo é o móbil do gesto, mas não o gesto. O desejo passa entre as fissuras e as nódoas de todas as linguagens e só se pressente, tal como se prediz a atmosfera de um tornado. O desejo é uma segunda sombra que o corpo projecta no indefinido e, de modo nem sempre claro, em coisas e em seres particularmente definidos. Entender estes locais de definição é tentar conquistá-los. Conquistar aqui implica entrar na gravitação, por vezes hesitante, com que o desejo se dirige aos projectos e às metas em que se instalou. A hesitação é o posto de comando onde geralmente se cruzam desejos. Os espaços onde os humanos hesitam são vizinhos ou estão próximos das regiões onde o desejo incide em coisas e em seres definidos. O desejo estará sobretudo no volume da seta que perpassa os ares. Compreender a intensidade de uma vida é saber escutar o ar atravessado pelos muitos atritos do desejo que, no fundo, a elucidam.
Nuno Miguel Guedes Artes, Letras e IdeiasUm recomeço Seria um dia como os outros neste pequeno café de bairro. Como muitos estabelecimentos semelhantes nesta cidade, é a sua decoração anónima o seu traço mais ostensivo, feita para deixar à superfície os rostos, benefícios e tarefas de quem o frequenta ou lá trabalha. As paredes estão preenchidas por avisos regulamentares ou proclamações de certezas gastronómicas encimadas pela frase “Hoje há”. O balcão é de alumínio com uma parte envidraçada, onde se encontram expostos os possíveis objectos de desejo de quem ali entre. Seria um dia como os outros, então. Mas não é. Sentado num canto estratégico, lugar ideal para o caçador do quotidiano, observo. E o que vejo é o que faz a diferença: há movimento, sorrisos debaixo das máscaras, olhos ardentes. Há conversas sobrepostas que chegam a sufocar a vozearia do mundo que é debitada pela televisão. Olhando esta gente, olhando-me a mim, lembro de forma pouco modesta um verso que escrevi e que tive a sorte de o ouvir cantado: “Cada fim é um recomeço”. Porque é de recomeço que se estão a construir estas primeiras horas de liberdade relativa. É um dia de regresso e Deus sabe como eu gosto de regressos. Cada cliente deste pequeno café de bairro é um Ulisses do dia a dia, cansado de uma longa viagem por mapas desconhecidos e territórios inseguros. Aportam a este lugar com histórias fantásticas para contar e preparados para outras que ainda nem começaram. Percebo. Sou um deles, quero ser um deles. O meu telefone volta à vida com planos de trabalho, convites vários para toda a espécie de reencontros. O pastel de nata que devoro tem o sabor da madalena de Proust. E depois há outra coisa, um aroma doce e colectivo, ao mesmo tempo estranho e familiar: é o aroma da esperança. Instalado no meu discreto cantinho, reconheço essa sensação agridoce e, alimentado que fui a doses generosas de Séneca, recordo de imediato que é da esperança que nasce o medo. Só que hoje não, hoje não. Por um dia que seja esconder as nuvens. Por um dia que seja fingir que acredito na esperança. Por um dia que seja, gritar mais alto do que o mundo me grita, do que a vida me berra. Por um dia que seja, poder ser Ulisses e, saindo para a luz, repetir baixinho e quase confiante o mantra possível: “Cada fim é um recomeço”.
João Paulo Cotrim Artes, Letras e IdeiasMão Dita e por dizer Horta Seca, Lisboa, quarta, 14 Abril Abrimos as janelas de cada dia para nos queixarmos do tempo, assim ele nos fosse exterior. Portanto, tenho as minhas razões de queixa. Cada passo dado, cada gesto emitido, cada esforço, as ideias arrancadas pétala por pétala de uma flor por existir, tudo participa no coro de tragicomédia que traz à cena A Grande Avaliação. Sempre detestei exames, antes de perceber que passamos a vida na navalha da examinação. Talvez o momento e o movimento que atravessamos seja agravadamente mais de balanço por tanto conter de desequilíbrio. Uma vez mais a pretexto de festival, no caso o 5L que se anuncia para Lisboa nos primeiros dias de Maio, depois da falsa partida de 2020, preparamos outros dois volumes da colecção Mão Dita. Nascida por lembrança e insistência do Luís [Carmelo], que acabou por criar a Nova Mimosa para dar resposta cabal às suas ânsias, pretendia ser versão portátil e laboratorial, ensaio súbito, recolha do volátil da voz alta, chamada para tema e trepidação. O grafismo, muito discutido com a Luísa Barreto sublinharia isso mesmo, com os dois pontos de arame e uma capa de intervenção plástica sem mancha de tipografia, sem guilhotinar as sobras que resultam da dobra dos cadernos. Testámos logo limites com as 82 páginas do «Tratado», do Luís, que chegou a ser finalista do Prêmio Oceanos, com a erudita abordagem corsária dos grandes textos. «Nunca houve inveja do futuro/ na linguagem das aves […] Nunca houve passado/ na linguagem dos homens». O grande leitor enfrenta espelhos e fantasmas, desdobra paisagens e alinha as invenções. Fôlego assim talvez desminta as premissas, mas um laboratório pode ter correntes de ar… Mais alinhado com as intenções, Felipe Benítez Reyes fez pequena antologia dos seus poemas que tinham partido ao encontro da sombra de Pessoa. A ela voltamos com a tradução para cabo-verdiano da Ode Marítima, pelo José Luiz Tavares – quem mais teria o atrevimento? –, ele que exilou o mar dos seus versos de ilhéu. «A, tudu kais é un sodadi di pedra!/ I óra ki naviu ta sai di kais/ I dirapenti ta odjadu ma abri un spasu/ Entri kais ku naviu/ Un angústia risenti, n ka sabe pamodi, ta toma na mi,/ Un nébua di sintimentu di tristeza». («Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/ E quando o navio larga do cais/ E se repara de repente que se abriu um espaço/ Entre o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,/ Uma névoa de sentimentos de tristeza».) A dita colecção quis-se ainda hall de entrada. Faça favor, Liliana S. Ribeiro, com as perversas arrumações, da infância, da paixão, das varandas, dos objectos. Entre, Ana Freitas Reis, trazendo forte «Cordão» ligando a universo no qual as palavras possuem carne e portanto física, peso e alcance. Avance sem medos, João Rios, aquele que usa o sarcasmo para descascar os verdetes da História, sem deixar por isso de recolher das marés restos e sujidades do quotidiano. Foi o único a assinar dois títulos e em pleno lançamento do segundo apercebeu-se que havia datas redondas por celebrar. Apesar de faltar mesa às preparações onde nos temos encontrado permitiu com mais facilidade aquilatar da pujança do sopro. Está para mesmo depois do intervalo, esta singela celebração de mais um quarto de século a respigar. «nenhuma idade / é mais sólida/ que as ruínas da casa». A esta listagem dos novos soma-se agora os velhos, amigo e poema, resgate também de edição perdida há décadas nos dentes da engrenagem. «As Portas de Santo Antão», do mano Luis [Manuel Gaspar], atira-nos para pedaço perdido da alma da minha cidade, bastando para tanto que nos atravessemos neste delírio de atenções, ao lugar, à palavra, às sobras, às ruínas. Seremos bailarinos, acrobatas, nadadores, trolhas, esfaimados e clientes mas sobretudo observadores. Seremos rima e cartaz e tudo e mais alguma coisa. Até Lisboa, a que nunca existiu a não ser entre nós. «Há milhões de criaturas,/ Homens, mulheres e petizes,/ Que dão saltos e pinotes/ E arrebitam os narizes// Numa algazarra medonha, / Procurando a direcção/ Que os leve sem demora/ Às Portas de Santo Antão.» O Nuno Viegas [algures na página, uma hipótese de capa não escolhida, para não retirar surpresa e para acrescentar valor a este cantinho de licores], que põe humor nas cores, interpretou bem o caos criador. Junta-se a uma galeria que inclui as cores e interpretações de Pedro Proença, José Barrias, Pedro Pousada, Eugénia Mussa e Francisco Vidal. Em 2018, no voluminho #01, guilhotinado por engano consuetudinário, a Inês [Fonseca Santos], senhora de várias madrugadas – que, aliás, foi assinalando durante o confinamento com leitura diária do céu que lhe assiste –, não se atreveu a vaticinar que acabaríamos todos em uma «Suite sem vista». Bom, suites para os mais bafejados, assoalhadas interiores para a maior parte. A rapariga aguarda que nem cerejeira o desabrochar violento da esperança. Anseia pela colheita, outra além da da solidão, da do tédio. Ia tocando o sangue e Deus, assim como teclas de instrumento. No corpo, como na cama, de olhos abertos. «A rapariga possuía metade da vida./ Estava demasiado velha para a fuga:// regulava a temperatura das palavras/ como quem copia com os dedos// o tom do coro da missa, em si menor.// A rapariga respirava fundo na suite sem vista, recordava:/ a vida inteira, cronométrica, a vida inteira //como quem copia com os dedos o ritmo / da pessoa errada.» A rapariga e nós com ela.
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias CartografiasDa desinquietação. Pág. 2 Levanto-me sempre com uma certa sensação de estranheza numa alvorada que raramente me vê. Mas que sempre se apresenta apaziguadora, quase como um parente compreensivo a quem inesperadamente se pode fazer uma visita sem aviso porque a recebe como a quem é sempre bem-vindo e da casa. E estranhamente grata por iniciar o dia mais cedo. A lisura da madrugada ainda silenciosa, quase a saber a eternidade como a da noite alta sem freio nem sono. Sobretudo se o dia vem luminoso e primaveril, parece prometer todas as possibilidades e instalar por dentro uma espécie de harmonia com as condições atmosféricas e o estado do tempo. Por contraste insinua-se na memória como fotograma perdido ou fora do lugar, uma manhã escura e chorosa qualquer, da infância. Os passos encharcados de uma chuva fria no interior das botas já gastas, e um desconforto que iria persistir por horas, no comboio, na escola, no intervalo e à volta. Como de uma pequena Winnie, sem alguém que diga um bom dia ventoso. Todos os dias arrancada à cama como se para nascer de novo e sem querer. Ainda me acontece muitas vezes. Mesmo porque a escola nunca me deixou. Páginas aleatórias do caderno. Não porque o dia de hoje é o de hoje. Tão diferentes do que se é. Abrindo uma página solta no tempo, num lugar qualquer da vida ou do planisfério, todo o arquivo da memória se dispõe a preencher um gesto mesmo se súbito. Mesmo se retirado de um impulso imprevisto e mesmo se, até, desconhecido do corpo que lhe deu forma e movimento. É nisso que cada momento de vida faz diferir um ser de uma página aleatória de um livro. Sem espaço virtual ou físico suficiente para que nela se registe toda a ausência e tudo o que é alheio ao momento que começa num ponto exacto do texto e termina deixando se necessário uma frase em suspenso para se desenvolver até ao seu fim na página seguinte. Muito numa página se tem implícito e remete para anteriores factos ou dúvidas. Mas nada se compara ao preenchimento permanente de uma memória que tudo reelabora e filtra e pesa em cada relance de olhar, em cada decisão ínfima que tomamos ou estamos prestes a tomar, em cada indecisão. Por isso somos contentores carregados e de uma forma de que dificilmente nos libertamos. De uma consistência que pode fazer-nos esquecer onde guardamos um objecto, mas nos leva em qualquer momento a encontrá-lo, porque sabemos onde o guardaríamos se fosse a primeira vez. Há uma estrutura de arrumação que nos faz gostar do que gostamos ou duvidar do que duvidamos. Conviver com um número determinado de paradoxos. Transportar como nossos, sempre os mesmos abismos. No entanto, como uma roseira madura e enraizada, nem sempre damos o mesmo número de botões, ameaçamos amarelecer precocemente, por vezes, renascemos em folhas tenras inesperadamente e pode mesmo acontecer a secura definitiva. Sabe-se lá porque determinação genética ou exaustão climática. Ou ainda, depois desta, a surpresa de um rebento nascido a renovar o que parecia acabado, como em certas árvores abatidas. Determinações ambientais surgem como ventanias agrestes a que nem sempre se resiste da mesma maneira. Nesses dias, como barcos. A que se deveria estar atento à orientação das velas para rumar persistentemente, mesmo à bolina, essa forma de aproveitar ventos contrários. E a relação entre forças, dita a capacidade de superação. A qualidade da pintura do casco, a frescura ou desgaste do pano, a conservação dos instrumentos ou a corrosão de ferragens com manchas de ferrugens estéticas mas imparáveis e destrutivas. A decisão certa a cada revés, a atenção que não descura um sinal. Um olhar atento aos pássaros ao colorido opaco e súbito das águas. No mar, as cores dizem tudo. O navegante olha ao longe. E em cada dia sabe que não há descanso. Mas nem todos os dias o encontram com a mesma força, a mesma coragem o mesmo olhar, ou mesmo, por estranho que pareça, com o mesmo saber. Há sempre uma margem de desconhecido em si e de si próprio. Ocorre-me pensar que, por mais que se seja caracterizado por um clima temperado marítimo ou intensamente tropical, somos países de imprevisíveis momentos que até a nós nos espantam. Abril ao olhar, já quase Abril. Mas qual, nesta incerteza?
Paulo José Miranda Artes, Letras e IdeiasA personagem (continuação) Começámos na semana passada a ver o livro de Victor Tafner, «A Máquina de Criar Horizontes», em que nos mostra uma personagem, Abib Justus, que é o próprio livro. Personagem que identifica a existência humana com o homem de negócios, e o próprio sentido da vida com a frase «O lucro é a realidade.» Ao ter conhecimento de uma invenção de um amigo, o «descelular», conseguiu fazer com a mesma fosse aprovada em todo o estado do Paraná. Nesse estado, passou a ser obrigatório o uso do «descelular» em todos os veículos, e que a instalação dos mesmos – a não ser os veículos novos – fosse feita na sua rede de oficinas, espalhadas pelo estado. Mas isso não chegava para criar uma nova economia, que era o sonho de Abib Justus, levando-o então a convencer o amigo a criar um dipositivo que bloqueava o «descelular», sem que fosse perceptível pela polícia de trânsito. Assim, as mesmas oficinas que instalavam o «descelular», instalavam depois o seu antídoto, à revelia da lei, de modo a que as pessoas continuassem a conduzir os seus veículos e a falar ao celular. Mas foi a invenção e implementação da sua obrigatoriedade que deu visibilidade pública a Abib Justus, fazendo que aparecesse em todos os meios de comunicação social. E é precisamente em um dos programas televisivos mais vistos em todo o Brasil, e não apenas no estado do Paraná, que o nosso herói prepara o novo movimento: o de implementar a obrigatoriedade do «descelular» em todo o Brasil. Leia-se essa passagem do livro: «Abib Justus responde assim a uma pergunta do apresentador acerca de uma possível interpretação ditatorial desta lei: // – Não podemos ser hipócritas! Ou bem que queremos que não se use o celular quando dirigimos, ou bem que não queremos mas fingimos querer, que é o que a lei nacional propõe, pois todos aqui sabem que ninguém cumpre a lei. Com o «descelular» torna-se impossível desrespeitar a lei… Olhe, vou dar-lhe mais um exemplo que deveríamos adotar: hoje a lei não permite que se ultrapasse uma velocidade máxima de 120 km/h, certo? Então porque permite que sejam vendidos carros que atingem 200 e 300 km/h? Deveríamos exigir que todos os carros não ultrapassassem os 120 km/h! Ou então jogue-se a lei no lixo. Carros com mais cilindrada deveriam ser vendidos para uso exclusivo em pistas de corrida, mais nada. // Como grande retórico que era, Abib Justus sabia que toda e qualquer polémica traria dividendos ao seu império, como ele próprio gostava de chamar em privado a este grupo financeiro. A questão de os carros serem vendidos como motores que não permitissem uma velocidade superior a 120 km/h fez furor por todo o Brasil. É impressionante ver como facilmente as pessoas se dividem acerca de coisas que desconhecem e das quais nunca sequer ouviram falar. Um pouco por todos os jornais e redes sociais a discussão rebentou. Dos carros com controlo de cilindrada até à proibição de venda de refrigerantes, que se sabe serem prejudiciais à saúde, ou de alimentos chamados de junk food, foi um salto. A esquerda, a direita, os ecologistas, os vegetarianos e os defensores dos direitos dos animais enchiam páginas e páginas online exigindo que o governo federal tomasse a posição do estado do Paraná, com a diferença de radicalizar a posição de controlo sobre o que nos faz bem, e cada qual com sua razão e interpretação, como é comum por aqui em matéria de política. Não demorou mais de um mês para haver manifestações em Brasília pressionando o governo a proibir a venda de refrigerantes, de bebidas alcoólicas, de “junk food” e até de carne animal. Havia já quem exigisse que Abib Justus tinha o dever de se candidatar à presidência do Brasil, em nome dos brasileiros que estão fartos de hipocrisia. É sabido que os tempos de crise são pródigos em forjar heróis e posturas radicais.» Esta extensa passagem do livro parece-me necessária para mostrar claramente a dimensão da personagem Abib Justus e como ela acaba por ser a encarnação da própria retórica e corrupção do Brasil. Mas Abib não tinha ambições políticas. Tinha, isso sim, ambições de controlar a política do Brasil. E o passo estava dado. Como continua o narrador, Abib sabia que perante a pressão do povo, o governo iria ceder na obrigatoriedade nacional do uso do «descelular» em todos os veículos. Pois, como se pode ler à página 134: «Era impensável exigir que as fábricas de carros colocassem no mercado brasileiro veículos com limite de velocidade! Mas exigir que esses mesmos carros viessem todos instalados com descelular era bem mais fácil de concretizar. Este era pelo menos o raciocínio de Abib Justus, que não estava longe da verdade. Veja-se o que ele mesmo pensava, nesta fala que tem com o amigo: as pessoas estão aí, diante de nós esperando apenas para serem usadas! Elas são como cachorros, precisam de um chefe de matilha, que se imponha a eles e os conduza. O povo precisa de mão forte! Mas a mão forte, hoje, não é a mão que segura a arma contra o povo, é a mão que segura a ingenuidade e ignorância do povo, despejando nas TV e jornais uma ilusão de bem-estar, possível a todos, bastando para isso vontade e honestidade. Esta é a arma! E é aqui que os políticos falham, mas eu não. Porque o povo desconfia de quem os quer governar, mesmo votando neles. Aquilo que estou fazendo não vai a votos, é conquistado na raça, no cabresto. Impomos a lei que nos convém, mostrando que, mais do que para nós, é para o bem do povo.» Leia-se, quase cinquenta páginas adiante: «Em São Paulo criou-se a Associação “Descelularizar As Estradas”, que em menos de um ano tinha já uma representação significativa de apoiantes. E o grande orador na reunião em que comemoraram o primeiro ano de existência foi Abib Justus. Recebido em apoteose. E começou o seu discurso com: // – O mundo pertence-nos! O mundo é dos cidadãos e não de quem eles elegem. […] Primeiro descelularizamos o Brasil, depois desmotorizamos o país e por fim descorrupcionamos o território todo delimitado pelas fronteiras!» Esta personagem, Abib Justus, criada em 2012, acaba por ser uma antecipação do Brasil actual. Não encarna o presidente em exercício, Abib Justus representa aquele ou aqueles que controlam o chefe de estado e a maioria dos políticos em Brasília. Leia-se mais uma passagem do que Abib Justus pensa: «Ganhar dinheiro é beleza pura. Mas inventar um mundo para tirar dinheiro do mundo existente é místico, aproxima-nos de Deus como mais nenhuma experiência humana. Estou a alargar o espírito.» Abib Justus é a personagem mais perversa e, simultaneamente, a mais banal da literatura brasileira, porque encarna a triste história do seu país.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasDa infância Bukowski escreve algures, num poema dedicado ao pai: «mas sobrevive-se: o suicídio antes dos dez anos / é raro.» De facto, a infância e adolescência do velho tarado não foram propriamente fáceis: a um pai autoritário e austero que lhe aviava copiosamente a malinha quando para aí virado juntava-se uma mãe absolutamente conivente com o programa pedagógico do marido. Como uma desgraça nunca vem só, na puberdade aparece-lhe um camadão de acne tão grande que tem de ficar em casa quase um ano para não ser diariamente humilhado na escola. A minha infância está longe de comportar tamanha quantidade de desastres. E, ainda assim, foi tudo menos feliz. Nasci em França em 1974, em Clermont-Ferrand, a cidade-sede da Michelin, para onde acorriam imigrantes pobres à procura de trabalho. Escusado dizer que a vida de imigrante não é fácil. O meu pai aprendeu francês já adulto e tinha um sotaque característico ao falá-lo. A minha mãe, como esteve menos tempo em França do que ele, nunca chegou a saber mais do que umas frases balbuciadas a custo. Eu aprendi francês na escola, pelo que o meu vocabulário e sotaque eram os de um nativo (muita coisa, no entanto, se foi perdendo com o tempo). Mas, mesmo assim, os meus coleguinhas trataram de nunca me fazer esquecer de onde vinha. Eu era imigrante. Estava lá como convidado. Tinha de me portar bem, deixá-los passar à frente e corresponder aos estereótipos. Ser-se muito bom aluno não ajuda a fazer amigos. Ser-se muito bom aluno e imigrante é a garantia de que nunca se será convidado para uma festa de aniversário, que nunca se entrará na casa de um dos colegas de turma, que nunca se será seleccionado para um jogo qualquer no intervalo das aulas. A infância, despida ainda do verniz civilizacional que nos torna relativamente toleráveis e tolerantes, é a altura da vida em que um sujeito arranja cicatrizes que se entretém a lamber até ao fim dos dias. Os putos, capazes do melhor e do pior, conseguem ser extremamente cruéis de modo absolutamente gratuito. O meu pai matriculou-me num colégio de freiras. Como já estava em Clermont-Ferrand há alguns anos e tivera contacto privilegiado com os resultados do ensino público, decidiu esticar tanto quanto possível os cordões à bolsa e proporcionar-me uma educação privilegiada. Eram poucos os filhos de imigrantes na minha escola. Os nativos – os legítimos – já achavam a minha presença pouco condizente com aquilo que era esperado de mim, enquanto filho de imigrantes pobres, em França. Ser bom aluno era apenas acrescentar insulto à injúria. Os filhos dos emigrantes portugueses eram conhecidos em França – com mais ou menos justiça na composição do retrato – por serem uns rufias semi-abrutalhados com apetite precoce por vinho tinto. Os seus pais eram homens e mulheres atarracados, com modos campestres, que resolviam desavenças de vizinhança de machado em punho. Nem eu nem os meus pais correspondíamos ao retrato-robô. Não me foi difícil escolher entre ficar em França ou regressar a Portugal quando o meu pai me propôs, aos 10 anos, essa escolha (note-se que «regressar» nesse sentido era um conceito vagamente metafísico – como regressar quando nunca foi a casa o sítio para onde se «regressa»?). Nada tenho contra os franceses, muito menos contra os miúdos que, à altura, apenas estavam a ser o que são os miúdos um pouco por todo o lado. Mas eu era tremendamente infeliz em França. Tão infeliz que sair dali para Portugal e chamar-lhe regresso ou para qualquer outro sítio era irresistível. Que guardo de bom? O sabor das galettes na padaria perto de nós; alguns gestos esparsos mas importantes de amizade e de carinho; a forma como alguns professores olhavam para mim e que me enchia de orgulho e acendia alguma esperança. A minha sorte, em relação a quase tudo o resto, foi ter péssima memória a longo prazo. Quando olho para trás é como se aquela criança fosse outra pessoa e não eu. Acedo aos vestígios do seu passado com algum distanciamento saudável. E, ainda assim, não consigo evitar sentir pena dela.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoBaudelaire, uma efeméride Já topei que a Jeanne Duval – a eterna amante de Baudelaire e uma figura recorrente dos sonhos do protagonista do meu primeiro romance, A Maldição de Ondina – não era rapariga que me fizesse subir os Pirinéus de bicicleta mas, convenhamos, poucas há que me impelissem a semelhante sacrifício. E seria Baudelaire um rapaz de poucos atributos ou de pouca decisão nos atributos, a avaliar pela imperícia da noite de 30 de Agosto de 1857, que passou com Madame Sabatier depois de anos a rondá-la, visto que lhe escreve no dia seguinte queixando-se de que “faltou a convicção”. Repare-se, o amante lastima-se de a senhora não ter gozado. Uma das coisas desconcertantes, quando se aborda Baudelaire, é que a extrema segurança com que desbravou caminhos na literatura e na arte se recorte contra a extrema dependência que o manteve sob as saias da mãe. Há uma descoroçoadora simetria invertida: a alguns títulos Baudelaire não passa de um “paspalho” inspirado por um traumatismo maternal e chega a ser confrangedor o modo como o seu comportamento com as mulheres se ajusta à grelha psicanalítica. Ao Freud poderia ter sido da leitura de uma biografia de Baudelaire que lhe veio a faísca do Complexo de Édipo – é um supor. E o sintoma mais celerado da desproporção do seu edipianismo está no testemunho de Jules Buisson que o encontra nas barricadas da Comuna de Paris, em 1848, de fuzil nas mãos, excitado e aos gritos: «É preciso fuzilar o general Aupick!» (o padastro). Fiquei agora curioso de verificar se não há mais corpo nas Flores do Mal do que na soma da sua vida. Veja-se o que regista em O Meu Coração a Nu, depois de caracterizar uma cópula como “um esquecer o seu eu na carne externa” (insólita expressão) : «Quanto mais um homem cultiva as artes, menos fode (…) Só a besta fode bem e a fornicação é o lirismo do povo. Foder é aspirar a entrar noutro e o artista jamais sai de si». Que diferença brutal para Bataille, por exemplo, para quem o orgasmo era “a pequena morte”, pelo voluptuoso apagamento de si. Nisto, os homens serão todos diferentes. Lembro-me da perplexidade que se me seguiu à minha primeira vez: Afinal, é só isto! (Graças a Deus, que como eu é ateu, foi melhorando!). Contudo, em Baudelaire, essa distância da sua pele a si reflecte-se nas coisas imperdoáveis que escreve sobre as mulheres, fá-lo do ponto de vista de um réptil. Nestes tempos de leituras a preto e branco que as feministas desenfreadas não lhe coloquem a vista em cima (- ai, que já fiz de delator, auto-censura, acode-me!)! É difícil dizer de Baudelaire, como de Eliot, É o meu poeta preferido! Mas de quantos preferidos já despeguei? Pelo contrário, à medida que os anos passam só lhe descubro qualidades. Ainda esta noite andei às voltas com um poema das Flores do Mal, Le Cygne, e dei comigo a pensar, Meu Deus, estas rimas escorrem como seda! O Brecht odiaria e também eu… há uns anos atrás, agora assombram-me. É muito divertido o que Baudelaire escreve sobre o teatro, referindo que aquilo que mais o atrai nas casas de espectáculo é “o lustre”. E, apesar de ter gostado pelo menos das peças do Victor Hugo, condena o teatro em termos que sugerem outras propostas artísticas: os actores deviam andar de andas no palco e ter máscaras. Talvez perdêssemos a oportunidade ver Gata em Telhado de Zinco Quente e a senhorita Elizabeth Taylor a catrapiscar o miúdo Newman, porém confesso que a sugestão das andas me excita verdadeiramente as meninges. De uma mesma carta a Toussenel, retiro isto que me interessa muito: «a imaginação é a mais científica das faculdades, porque só ela entende a analogia universal, ou aquela que uma religião mística chama a correspondência…» (o que agora levaria meia-hora para explicar) e a azeda embirração com o pobre do Fourier (alergia cutânea inexplicável). Embora me agrade que ele nunca aplaine o que repele, ou tão só, e com incomodidade, os elogios que lhe dirigem (como o de Verlaine, acolhido com desconfiança). Num fim de tarde, no final de sua vida, quis o poeta calcular tudo o que havia ganho com a sua pena. Somou um total de quinze mil oitocentos e noventa dois francos e sessenta centavos; e o amigo que testemunhou esta contabilidade sinistra comentou: «Então, este grande poeta, este terrível e delicado pensador, este artista perfeito ganhou, em vinte e seis anos de trabalho, cerca de um franco e setenta centavos por dia». O que consternaria Baudelaire não seria a pobreza em si (a sua mãe nunca o desampararia), mas o que a pobreza realmente significava: a indiferença brutal do público educado. A auto-derrisão com que fechou o poema de abertura da sua obra magna (“Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”), tolamente, foi sempre tomada por insolência. A graxa que dá aos burgueses no prefácio ao seu Salão de 1846 não lhe serviu de nada e disso tirará as devidas consequências. Ao contrário de Rimbaud, Baudelaire foi poeta a que sempre resisti, mas com a idade bateu-me. Assim que me livrar de algumas tarefas pendentes escreverei um pequeno ensaio a demonstrar que, ao contrário do que tem sido escrito, o seu poema Correspondances rompe com a verticalidade que tem sido aduzida para a relação que o simbolismo estabelece entre a Terra e o Céu, «segundo uma direcção irreversível, ou seja, uma herarquia» (Ivan Junqueira). Pelo contrário, vejo antes embutido aí o mesmo jogo de proporcionalidades que o Heraclito defendeu para a relação entre os elementos, o que abre o campo para uma reversibilidade dos dons.
Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasAtoardas e velocidade Estavas a sair do estádio de futebol, o Campo Estrela, e a multidão avançava muito lentamente. Perguntaste ao teu pai por que razão era preciso andar tão devagar. E a resposta fez-te ver que, entre as pessoas, seguiam novos, velhos e coxos e, portanto, havia que ter paciência. E tu tiveste muita pena de que a velocidade final tivesse que ser o resultado médio de várias velocidades. O ideal, pensaste, era não existir essa dependência. Uma única velocidade seria qualquer coisa semelhante a um presente igualmente único que não fosse, também ele, escravo de vários passados e futuros. Um presente em que nada se alterasse, em que nada envelhecesse, em que aquilo a que não chamarias ainda felicidade fosse uma forma de limpidez. Décadas depois, havia confinamento por causa de uma pandemia, e tu circulavas à volta do pátio a fazer exercício. Lembras-te do momento em que olhaste para as plantas e voltaste a perceber que existe tanta coisa no mundo de que não sabes o nome. E interrogaste: se ficasse aqui a viver para sempre sozinho e não precisasse de comunicar com mais ninguém, será que inventaria nomes para todas estas coisas? Certamente que sim, respondeste, mas não sob a forma de palavras, pois esses nomes invertebrados não teriam que ser ouvidos por outrem. Sem o sabor das palavras, esses nomes teriam um outro sabor que as palavras jamais atingiriam. Seriam nomes puros, concebidos apenas para nomear e não para terem que ser articulados, ouvidos, adequados ou até pensados. Seriam talvez os nomes com que Crátilo sonhou. Uma vida com uma única velocidade, com um único presente e com uma gramática pura seria a vida ideal. Paul Virilio foi um dos autores que mais acentuou o papel da velocidade no modo como edifica o nosso tempo, fazendo dela um misto de milagre e de parábola. No capítulo final de A velocidade da libertação, escreveu a seguinte nota sobre os impactos da energia cinética: “Desde há um quarto de século que a trajectografia substituiu a geografia. Há, a partir de agora, um trajeto independente de toda a localidade, mas sobretudo de toda a localização. Um trajecto inscrito apenas no tempo, um tempo astronómico que contamina progressivamente a multiplicidade de tempos locais” (…) “Da exocentração de um corpo em voo acima do solo, passamos de imediato à egocentração: o centro já não está situado no exterior, é ele próprio a sua referência, o seu eixo-motor”. Kundera também glosou o tema da velocidade no romance A Lentidão, fazendo coexistir tempos e personagens muito diversos que contrastam, de modo paródico, com o ‘corre-corre’ ofegante dos nossos dias. Ao invés, Virilio tornou a velocidade na linha de força de todo o seu pensamento, recentrando-se nos mais diversos impactos suscitados pelas acelerações da “omniurbe” global. A deformação (efeito da velocidade), de que as fake news são hoje em dia uma ínfima parte, é uma das metáforas mais interessante para significar a ruptura no espaço que tende, hoje em dia, a ser a ilusão de um tempo irrevogavelmente constituído por sucessivas instantaneidades. Escrevi sobre o tema há um quarto de século, em Anjos e Meteoros, tentando provar que a instantaneidade não é, de modo nenhum, uma questão actual. Ela começou por ser, nas escatologias e nas ideologias, um campo reivindicativo que exigia o cumprimento imediato e sem esperas das grandes promessas (os fraticelli, no início do século XV, e os militantes soviéticos de Kronstadt, no início do século XX, exigiam, no fundo, precisamente o mesmo). Na actualidade tecnológica, esta aspiração de cumprimento instantâneo deixou de ser uma reivindicação dirigida a um além (teológico ou ideológico, tanto faz) para passar a ser, no essencial, uma forma de vida fria e afastada das grandes causas. Carregar no ‘on’ e ver realizado um desejo imediato sublima e ilude esse cumprimento associado a devires superiores. É a felicidade da redenção a descer do céu à terra de modo inapercebido e invisível. E tu, muito antes de pensares nestas atoardas de domingo à tarde, o que realmente querias… era voar por cima do Campo Estrela, levar o teu pai pela mão com asas de Chagall, transformares-te numa nuvem que destroçasse todas as explicações e, depois, inventariar apenas os pássaros e velejar nas grandes enchentes (havia ainda tantas palavras no ar para fixar nos teus grandes rolos). (texto – apenas parcialmente – extraído de ‘Órbita-I: ‘Visão Aproximada’ e ‘Respiração Pensada’, títulos de obra de longo curso em trânsito)
João Paulo Cotrim Artes, Letras e IdeiasCadáver esquisito Cândido dos Reis, Cacilhas, quinta, 8 Abril Do banal em estado puro. Desces a inclinação das Flores cruzando memórias que perpassam. Encolhes os ombros, ias trocar saudações, evocar brincadeira antiga, arrepio dolente, desejo celebrado, mas mandam as regras que não te interpeles a ti próprio nos cruzamentos. Dá-te por contente se continuares a ter tento nos desdobramentos de ti. Pessoa, que deu nome a pharmácia além do mais, não ficaria mal em medicamento. Não avie o genérico, tome de oito em oito horas 7 miligramas de Pessoa, em comprimido ou suspensão oral, vai sentir alívio imediato nas dores das várias cabeças, nas ânsias das mínimas metafísicas, na aspereza prática das articulações dos mega-processos dos quintos dos impérios. Mundos inteiros se erguem e despenham para um se tornar pessoa. Para os que atravessam o rio nas tormentas do habitual, não deve sobrar sentimento sobre sensação, ponte de romantismo, mas perguntas-te de cada vez por que não o fazes mais e a despropósito. Não custa nada, o bilhete que te muda este chão que pisas tardando em estender-se horizonte, granito polido a que se seguirão as ondas penteadinhas a beijar a quase escotilha antes dos múltiplos pavimentos da outra banda, tantas peles. Puta privilégio, adivinhares nas costas a cidade-fêmea dispersa, com os seios multiplicados a acolher as carícias do rio. E no cais movente onde atracas demoras a erguer o olhar para que o deslumbramento te tome com lentidão máxima. Sem parar, que não o permite a esparsa correnteza dos cruzadores. As calças sujas da frente contam histórias, a boazona espalha indiferenças com intenção, as rotinas do Gingal estão desde cedo dispostas, abertas à interpretação, a voz a vender ao saco, que fruta?, que vitualha? Abancas na borda acertada de afluente, perpendicular ao Tejo, ilha por entre subidas e descidas, que arrastam olhares e comerciam a matéria dos dias. Estranhas o xadrez posto nas mesas, singelos monumentos à inteligência e ao jogo . Estranhas o que parece sino descido da torre para badalar nas escadas da igreja que deve ser matriz desta aldeia. Baloiça o negro, mas os teus pesares são mais negros que o dito. Estás sentado à mesa para acertar detalhes últimos de projecto que tem tudo a ver com torres e cavalos e bispos e peões em movimento desconcertante. Alguém que sabe abrir os segredos de certas substâncias, combinar levezas e amargores, o líquido e a luz, ou seja, um aprendiz de feiticeiro que também sacrifica à leitura resolve fazer a mais perigosa das jogadas: e se? O João [Brazão], sabendo do interesse de alguns autores pelas inesgotáveis matizes da cerveja e do que se esconde no gesto de beber em comunidade, desafia-os para um cruzamento. «Cadáver esquisito», receita surrealista para a criação ilimitada, será doravante também nome de bebida com muito para contar. Cada um dos seis rótulos do volume primeiro terá um conto, iluminado com a ironia do Nuno [Saraiva] e com design abrangente e delirante do Marko [Rosalline], que vai ao ponto de querer documentar o processo completo em busca essência da criação. Foi dos primeiros a surpreender-te com o lume da paixão e logo grande cicerone das tradições e dos sabores. Muito antes dos ventos da moda, o mano Luís [Afonso] fez da saudosa «Vemos, Ouvimos e Lemos» lugar de peregrinação, tal a diversidade de experiências que oferecia, rimando com os livros e o mais. Pertence-lhe a descrição do néctar, a servir em garrafa de 0,75 litros e logo adoptada pelo mestre cervejeiro: «um pouco turva, com tons de âmbar claro e uma espuma cremosa e persistente. Além de um sabor de estilo belga, com notas de especiarias e banana, aroma e amargor do lúpulo, num final seco». O embaixador Afonso [Cruz] transformou a artesanal beberagem em causa, literária e filosófica, dando-lhe mais sabor e profundidade. O explorador das estepes do pensamento, que palmilha por todos os meios existentes e por ele criados, Luís [Carmelo] usa a pequena garrafa como bordão e báculo. Outro que a manobra que nem bússola, também no afã de descobrir continentes, reacender vulcões ou matar a sede é o Valério [Romão]. Quando foste a Curitiba ao encontro do Paulo [José Miranda], entre o aeroporto e a sua casa tiveste curso acelerado com degustação e versos. Aliás, a estada tornou-se afinal viagem ao coração do universo, a que só se acede por estes degraus. O amargor nunca mais se reduziu a amarguras ou amargos de boca. O sexto conto coube-te a ti, que pouco mais sabes que beber. Cada um na sua garrafa e todos em livro, não podia ser outro o modo. A força da coincidência por a morte rainha desta partida, antes ainda de encontrado o nome. Pormenor para futuras conversas. Vai aqui na página um retrato à la minute do caos de onde surgirá o apuro e a vertigem. Diz o João ao Marko, parece que chocaste de frente contra uma parede e entornaste todas as garrafas. Um almoço é orquestra sentada. Puxa aí o embondeiro aqui para a cantina. Umas horitas para ajustar o pretexto do afazer, a ele voltaremos que nem refrão que se enxota e não pára de picar. Não deixam de desfilar mais uns quantos, desaguando-te no peito profundezas e desabafos: és antena desatinada tendo por base um convés. A terra será morena, a pescaria infrutífera, o amor dorido, o desafinanço irritante e Deus que se atrasa. Atenta no lábio antes do sopro, dos dedos na corda, no que locomove a peça no tabuleiro. Sim, a cadência é de onda. Já a pisar a volta, no quiosque de afogados e de marinheiros ainda encontras velho conhecido desaparecido em combate com quem riscas mais outro projecto no cabo do revólver, talvez bisnaga vira-bicos. Depois o sol põe-se a desenhar âncoras nas palavras e nos gestos dos que por ali cirandam como piões de destinos desatinados. Trata-se agora de lavrar as pequenas ondas. E subir a rua de regresso. Que «amargosto» trazes da outra banda.
Nuno Miguel Guedes Artes, Letras e IdeiasA bula, essa arte esquecida Pode ser dos dias, pode ser de mim, pode ser de ambos. A verdade é que, sem aviso nem remédio (e não uso esta palavra de forma casual, como ireis perceber) houve uma estranha actividade, praticada com gosto em tempos longínquos, que voltou a fazer sentido. Nada de extraordinário ou de extravagante e nem sequer ilegal. Trata-se apenas de uma daquelas pequenas excentricidades pessoais e inofensivas que todos carregamos na esperança de aligeirar o peso dos dias. No meu caso, eis a confissão: eu era um ávido leitor de bulas. Não de bulas papais (que de resto também leio aqui e ali) mas a sua extensão semântica: a bula medicinal (e extensão porque como a sua homónima religiosa contém ordens, indicações e benefícios). A bula dos remédios é mais do que um simples manual de instruções para o utilizador. Pode ser um verdadeiro momento de literatura esquecida, que surpreende pela elaboração e muitas vezes pelo humor involuntário. Para que o leitor amigo não julgue que o cronista é um pobre chalupa que caminha sozinho pela rua enquanto recita baixinho as contraindicações da Aspirina digo em minha defesa que foram vários os humoristas que criaram números de stand up baseados na leitura destas pérolas; e assim de repente lembro-me pelo menos de uma crónica de Miguel Esteves Cardoso sobre o assunto. Logo, e utilizando o jargão científico, “eles andam aí”. Com o decorrer dos anos este passatempo da minha juvenília foi sendo relegado à sua dimensão puramente utilitária e informativa. Mas eis que o destino ou o que quiserem fez questão de me devolver o prazer que pensava já haver perdido. Explico: por questões pessoais tive de me informar sobre um medicamento nesta altura bastante comum no tratamento de crianças e adultos com Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção. Sabia, através de conversas com médicos e amigos, que era um medicamento com muitas contraindicações, pelo que deveria estar atento. Fui ler. De facto, a bula oferece várias páginas de perturbações associadas à má posologia ou a uma série de condições patológicas crónicas que são adversas a quem é receitado. Li então com a atenção necessária, mas, amigos, entre todos os conselhos e indicações havia um para o qual não estava preparado. Cito, no capítulo dedicado à sobredosagem: “Os sinais de sobredosagem podem incluir sentir-se doente, agitado, tremores (…) sensação de extrema felicidade (…)” Como? Desculpe? A “sensação de extrema felicidade” é prejudicial à saúde? Quem escreveu esta bula, o doutor Schopenhauer? Eu próprio? Que maravilha, amigos. Apetecia-me falar com o espírito de Cioran, o Pirro dos pessimistas, só para ouvi-lo dizer que não pode haver excesso de uma coisa que nunca existirá. Percebeis agora esta bulofilia? Eu também. Estas pepitas resgatam o minuto triste e funcionário da minha vida. Continuo a acreditar na bula mais importante alguma vez proclamada, da autoria do meu médico pessoal, o dr. Frank Sinatra: “Basically, I’m for anything that gets you through the night – be it prayer, tranquilizers or a bottle of Jack Daniels”. Mas irei continuar a procurar tesouros escondidos neste maravilhoso subgénero literário, tão incompreendido e que literalmente tão bem nos faz.
Paulo José Miranda Artes, Letras e IdeiasA personagem Há livros que são as personagens ou a personagem que o autor criou. É o caso de Lolita, de Nabokov, K. ou Gregor Samsa de Kafka ou ainda de Raskalnikov de Dostoiévski. Victor Tafner ao escrever «A Máquina de Criar Horizontes», criou uma personagem destas, que se tornam no próprio livro: Abib Justus. Trata-se de alguém que começa o livro como dono e gerente de um restaurante de luxo no bairro dos Jardins em São Paulo, mas que tem como sonho a reinvenção do lucro. O livro começa assim: «Deus não fez o mundo em dois dias, mas também não levou uma vida toda, costumava dizer Abib Justus, agora preso no trânsito, precisamente na esquina da Augusta com a Paulista, na direcção dos Jardins. Fala através do celular, quase aos gritos “O vinho ainda não chegou? E estão esperando o quê, que eu chegue aí para tratar disso? Vamos começar a servir o jantar em uma hora e você me telefona agora para dizer que estamos sem vinho, que ainda não foi entregue? Tenho de ser eu a fazer tudo? Vá na Domus e pegue os vinhos, que eu mesmo vou ligar para lá agora e digo ao Rodrigo quais são… Sim, depois pago… Eu digo isso a ele quando ligar, sim. E vá depressa! Ah, e vá a pé até lá… Depois apanhe um táxi pró restaurante, para evitar o trânsito da Itu… Não posso deixar o restaurante, ninguém faz nada do que deve ser feito!” A última frase já não foi para o empregado, mas para si mesmo. Abriu o Baobá há pouco mais de um ano e tem sido muito mais trabalho do que lucro. Mas está tudo caminhando dentro do previsto, menos as dores de cabeça pela gritante incompetência da mão de obra deste país. Há dois anos ainda estava em Londres, terminando a faculdade de gestão. Se preparou para tudo menos para suportar a incompetência da mão de obra brasileira. Saiu do país muito novo e, embora tenha feito um minucioso trabalho de pesquisa antes de abrir o restaurante, não estava preparado para interpretar o que se queria dizer quando se falava da mão de obra brasileira pouco especializada. Até ao “Sommelier” tem de estar continuamente a pedir para, depois de abrir a garrafa de vinho e dar a provar ao cliente, não pôr de novo a rolha na garrafa. A capacidade que os empregados aqui têm de fazer as coisas como sempre fizeram antes de aprender, excede tudo o que possa ser imaginado!» O leitor vai conhecendo a personagem através de um narrador heterodiegético, que nunca sabemos quem seja. E percebemos que Abib vive a sua vida para ganhar dinheiro. Lê-se: «Não importa aquilo que se serve, se é num botequim ou num restaurante de luxo, pois o que importa é o lucro, o que importa é ganhar o máximo de dinheiro com um mínimo de investimento.» A vida de Abib é uma vida vivida dia a dia, hora a hora para ganhar dinheiro através do lucro. Mesmo quando descansa, a vida dele está sustentada por dinheiro e lucro. A fórmula que define o homem de negócios, segundo Abib, diz: «O lucro é a realidade.» Identificando lucro com realidade, o sonho de Abib Justus não podia ser o lucro, mas a criação de uma nova economia, de um novo modo de lucrar, no fundo, o sonho dele era reinventar o lucro. Por isso, lê-se, à página 67: «Abib Justus vendeu o restaurante e mudou-se para Curitiba, para desenvolver o maior sonho de toda a sua vida: a construção de uma economia, de um mundo novo.» E que sonho é esse? A comercialização de um invento de um amigo, de quem ele seria o sócio maioritário: o descelular, isto é, «um dispositivo electrónico capaz de desligar o motor dos carros, quando um celular dentro do mesmo ligava.» E seria em Curitiba, porque Abib entendeu rapidamente não ser em São Paulo que poderiam ter sucesso. Por várias razões: muita gente para subornar, muita gente com muito poder, e a cidade não se preocupa com questões ambientais. Curitiba tinha tudo para dar certo: cidade pequena (para o Brasil), cidade modelo, cidade que tem a fama de ser uma das mais sustentáveis do mundo. «Depois de acender o charuto, virou-se para o amigo e disse [acerca da cidade de Curitiba] “Esta fama e este marketing exige da cidade um contínuo investimento em energias e soluções alternativas, que em outras cidades nem sequer se cogita, que joga a favor da implementação do nosso invento”.» A partir daqui, viajamos pelos meandros da política brasileira, pelo interior de um homem para quem nada mais existe a não ser a transformação do mundo em dinheiro. Leia-se à página 54: «Havia contudo várias etapas e seria necessário respeitar os tempos necessários para a implementação de cada uma delas. Antes de mais, obviamente, a criação da lei do descelular, no âmbito do OCR, fazendo com que todos os veículos no Paraná fossem obrigados a instalar esse dispositivo que bloquearia os seus motores, de modo a que não fosse possível dirigir e falar ao celular. Com esta lei os novos carros seriam equipados em fábrica com esse dispositivo e os antigos teriam de instalá-lo em oficinas especializadas para isso. A fabricação do dispositivo ficaria a cargo de uma empresa criada por Abib e pelo seu amigo engenheiro, e o controlo das garagens especializadas a cargo de um testa de ferro. Mas não bastava somente criar a lei, ela tinha de ser aprovada pelo governador do Paraná. E é aqui que entra mais uma personagem nesta história: Rebecca Müller, que além de deputada estadual, era amante do governador e frequentadora do antigo restaurante de Abib, quando viajava a São Paulo. Uma coisa leva a outra e a lei foi aprovada em todo o estado do Paraná: a proibição de circularem viaturas sem a instalação do dispositivo que desligava o motor do carro, sempre que este estivesse ligado.» A aprovação da lei e a consequente venda massiva de dispositivos, não apenas para os carros novos, que saíam de fábrica, mas a obrigatoriedade de os carros velhos irem instalar o dispositivo nas oficinas aprovadas pelo Estado para proceder à instalação do dispositivo, que pertenciam também a Abib Justis, trouxe um imenso lucro, mas que não era suficiente para a concretização do seu sonho. Ainda não estava criada uma nova economia. Estava apenas no início. O passo seguinte, foi criar um dispositivo que anulava o oficial, de modo a que as pessoas pudessem adquiri-lo ilegalmente nas oficinas de Abib Justus. Assim, começava-se a construir uma pequena economia, ainda que limitada ao estado do Paraná. Na próxima semana ver-se-á como Abib Justus leva a sua «pequena economia» a todo o Brasil.
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias Cartografias h | Artes, Letras e IdeiasDa desinquietação. Pág. 1 Abro e folheio aleatoriamente e chamo ao lugar onde parei: página um. Qualquer das outras poderá ser a seguinte desde que deixei que ter a obsessão da cronologia por impotência de a arrumar. Não a si própria, mas aos vestígios que proliferam a requerer quase uma outra vida para arrumação. Trouxe aqueles pequenos livros empoeirados e com um persistente odor a mofo e capa em papel ágata, da casa de Z. Fazem lembrar alguns cadernos em que escrevia diário antigamente. Sempre diferentes, sempre inacabados, mas a esta distância venho a descobrir-lhes um certo anacronismo em que sempre acabaram por espelhar a mesma inquietude. Nunca soube como chamar a cada um: caderno das ou de inquietações, da inquietação ou inquietude. Ou livro, palavra mais curta. Ali tão quieto cada um deles, como pessoa em secreta ebulição. E fico num swing entre hesitações antes de o abrir. E cortar a direito nas coisas que conseguiu abrandar. Fechadas nas páginas com objectos em cima como pedras sobre o assunto. São muitos. Esse caderno. Como um ser de muitas cabeças. Uno e divergente. Da desinquietação. Espantosa inversão de sentido. Coisas da minha avó Maria Antónia – achava. Não me venhas desinquietar. A dizer deixa-me sossegada. Ou a dizer mais profunda ânsia de se ser deixado na inquietação própria. Irredutível ou necessária. Ser inquieto é estar na negação da quietude. Desinquietação é a dupla negação que deveria na lógica matemática afirmar essa quietude. Mas não. Cresci com essa inversão de sentido, uma espécie de semente adormecida a germinar lentamente num quase paradoxo que talvez tenha contribuído para esta necessidade das palavras que encontraram refúgio em cadernos. Quando se enceta a lenta tarefa de desfazer uma casa que pertenceu, encontramos todos os registos de uma vida. Agora, em casa de Z, encontro mais coisas da avó. Ela, que era pouco tolerante em certas coisas, sempre as manteve dentro de modelos próprios e inalterados. Uma métrica que pouco deve ter reajustado no curso imprevisto da vida. Mas continha as suas impressões inabaláveis numa certa cerimónia, em que defendia os seus de um olhar que parecia imaginar mais intolerante do que o que lhe era próprio. Nessa cerimónia, dizia sempre aquela frase de delicadeza que se esperava de cada situação. Um elogio. Ou uma pergunta discreta que desvendava uma opinião crítica sem o querer. Aos noventa, de figura cada vez mais pequenina, um pouco mais mal disposta com a vida, talvez por o tempo ter determinado que as suas preocupações maiores não teriam resolução. Mas sempre atenta, sempre disposta a arranjar-se para sair. Ela que me perguntava sem perguntar, quando às vezes mergulhava o seu olhar naturalmente dirigido para fora, num abismo de perplexidade, o que é que eu sou. E eu nunca lhe soube responder, mas acompanhava-a momentaneamente na solidão daquela pergunta, num abismo estanque de vizinha do lado. Tão perto e tão distante. Volto sempre a este pensamento quando me lembro dela. Mas também são assim os cadernos da desinquietação. Que falam sempre do mesmo. Como pessoas próximas que nunca se fartam, ou aprendem a tolerar. Curiosamente, como eu sabia, ao percorrer-lhe o capítulo que faltava folhear, nada se lhe encontra que deixe margem a uma indiscrição. Somente roupas, e essas tão pessoais na sua memória do corpo e nos olhos de quem lembra, as suas roupas do luto e outras e coisas de antiga casa sua. Nada que espelhe uma alma que não tinha necessidade de se exprimir. Dele, ao contrário, tudo em todos os objectos conta uma história. Do desassossego congénito que se escoava na apropriação de objectos, de gostos, de curiosidades divergentes ou cumulativas, pela excessiva organização que se vê ter um dia perdido o rumo e se dispersou pelo insignificante esquecendo o resto. Numa ausência de critério ou numa dramática insuficiência do tempo que nunca lhe permitiu chegar ao essencial. Tudo isso desvendado da sua clausura. Pelas escolhas, pela confusão e pela eterna incapacidade de arrumar ou viver as coisas. Mas isso sou eu a pensar vendo de fora como um filme cheio de avanços e recuos no tempo e a procurar ir entendendo nele uma história confusa. Nesta incontornável indiscrição com que lhe revolvemos cada centímetro impregnado na casa. Mas não consigo deixar de pensar que também é esse o respeito que quem já não está, merece. Este desfiar de coisas, quase nunca partilhadas, como última homenagem, antes de se esfumarem, muitas delas, num sopro de dispersão para sempre. Que tem que ser. Não há como querer fugir. Estendo a mão finalmente para um dos cadernos. E depois lembro-me que Z, a quem não faltavam cadernos novos, nos deixou os desabafos mais compulsivos numa série de talões de supermercado. Há o que se escreve por necessidade. Procura-se o que estiver na urgência à mão. Coisas que fluem livres e delicadas ou tumultuosas a desfazer-se no ar imediato se não agarradas a um suporte qualquer. Acerco-me sempre de uma certa melancolia quando penso neles e vou desfiando objecto atrás de objecto. Deixa-se para trás o tempo. Deixa-se um lastro em que mesmo as pegadas se podem desvanecer até à invisibilidade. Ou deixam-se marcas indeléveis. Mas em tudo se depende sempre da qualidade do registo e da qualidade do impresso e da qualidade do suporte. Do olhar da memória do outro. Sempre a existência depende do outro. Também. Deixa-se um rasto feito de desperdícios ou de fragmentos preciosos. Se houver para quem. Deixa-se parte de nós, do tempo e do que fomos, mas o que se pode não o que se quer. Ou deixa-se o que os outros deixam deixar. Há olhares como o estado do tempo. Secam e pulverizam ou apagam. Outros regam, generosos. A razão é fria. Mas pode servir-se da linguagem do afecto nos gestos, nas palavras e quando necessário suave nos cortes. O sentir é complexo de ingredientes. Uma massa quente ou uma nuvem evaporada de turbilhões que queimam como lava. Sais de fruto, paracetamol ou cecrisina. Em efervescência em água num copo de salto alto. Receitas ilusórias para a indisposição. Que se instala em dados momentos do dia. Sem razão aparente, consciente, ou com todas as razões. Ou então, champanhe.
Sara F. Costa Artes, Letras e IdeiasHackear e Meditar Quando a mãe olhou para o computador todo desfeito, pegou numa pá para bater no filho de oito anos. O computador tinha sido comprado a muito custo. Uma mãe solteira da classe baixa inglesa não ganhava para aquilo. Dylan tinha chorado baba e ranho para que a mãe lhe comprasse aquele computador. Vê-lo despedaçado em várias partes foi para ela um grande choque que resultou num enxerto de porrada. Mesmo cheio de nódoas negras, Dylan passou a noite a pé. O computador estava de volta à sua forma original no dia seguinte. A partir daquele dia, a mãe nunca mais lhe bateu. Conheci Dylan já com 35 anos. Comprara uma casa perto de Coimbra e sediara a sua empresa de segurança digital em Portugal. Estava a vir de uma temporada na Suécia que se sucedeu depois uma temporada em Tóquio, mas o lugar que melhor conhecia era a baía de São Francisco. Foi ali que a sua empresa cresceu, no epicentro da fecundidade digital. Quis pôr-me a aprender programação em troca de aulas de português, mas já tenho muito em mãos a aprofundar o conhecimento das programações linguísticas às quais já me dedico. Então, decidiu ensinar-me a meditar. Se nunca viram o Zuckerberg em retiros espirituais no Hawaii, é porque não andam atentos. De facto, nada como estar profundamente submerso no tecido tecnológico para reconhecer a importância de se ausentar dele. “É preciso manter sempre um sentimento de fundamentação (groundedness)”, dizia-me. Essa necessidade de sentir a materialidade do corpo como um alicerce que se equilibra com o campo da existência mental subjectiva, acabava por ser essencial. Meditar é um processo auto-regulatório da atenção. Executar funções cognitivas complexas corre melhor com menos cortisol no sangue. Não é por acaso que a grande indústria digital está de mão dadas com a neurociência – com nootrópicos a substiuirem os nossos psiquiatrizados receptadores de serotonina cuja fórmula não muda há muitas décadas. Optimização tecnológica é também optimização humana. É apenas natural que as mentes mais curiosas tentem compreender vias alternativas para problemas antigos e essa descoberta possa passar pela medicina preventiva de origem chinesa e indiana que tantas empresas em Silicon Valley estão agora a explorar. Sobretudo, quando os fundos de investimento cientifico de grandes farmacêuticas ocidentais preferem perpetuar fórmulas ultrapassadas, por exemplo, de antidepressivos (tradozona?). Não é necessário ser-se apelidado de estúpido quando decidimos educar-nos sobre meditações oriundas do yoga, como a meditação transcendental e a meditação budista samatha. A relação entre a meditação e a diminuição de cortisol está comprovada em centenas de estudos fidedignos. Dylan não é um new age de rastas cheio de ametista ao peito. É CEO de uma empresa de segurança digital e hackeava computadores quando era pequeno. Agora, hackeia também a vida. Coloca em causa a nossa arrogância etnocêntrica em relação à supremacia da ciência ocidental e esse questionamento é uma tendência que veio para ficar. Todos devem ter acesso àquilo que a tecnologia de ponta produz em termos de saúde. E essa tecnologia passa tanto por vacinas anti-covid como pode perfeitamente passar pela revisitação dos benefícios da ashwagandha. Só se chega à verdade quando esta é permanentemente questionada. Continuemos a fazê-lo sem pudor e, acima de tudo, sem preconceitos.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasDepois de grande No dia 2 de Abril assinalou-se o dia mundial da consciencialização do autismo. Já escrevi um par de crónicas aqui para o Hoje Macau sobre o assunto; nem sempre o faço, nem sempre tenho a energia para voltar a dizer mais ou menos as mesmas coisas a pretexto de divulgação pedagógica ou de página de diário. Há imensa gente a trabalhar todos os dias para desfazer os mitos acerca do autismo e das suas consequências, para quê acrescentar ao ruído? Na verdade nada tenho a dizer sobre o autismo, essa constelação tão vasta e desconexa de características. Nunca conheci dois autistas iguais. Mas reconheço um autista ao longe. É como se o autismo fosse uma nacionalidade e não uma condição: a gente percebe que todas aquelas pessoas, muito diferentes umas das outras, vêm do mesmo sítio. Sabemos muito pouco acerca dos factores que espoletam o seu aparecimento (daí proliferarem tantos charlatães a fazer dinheiro à conta do desespero dos pais). Não há medicamentos, as terapias que existem são extremamente caras e apresentam resultados muito díspares e mesmo os melhores profissionais e as melhores práticas não garantem qualquer melhoria significativa. O meu Guilherme vai fazer dezoito anos em Setembro. Não fala. Não consegue abrir a porta de um armário para roubar um pacote de bolachas. Não sabe limpar o rabo depois de ir à casa de banho. Não consegue dizer se lhe dói alguma coisa ou onde lhe dói. Tende a meter tudo quanto é migalhinha à boca (uma condição chamada «pica»). Nunca beijou uma rapariga (ou um rapaz). Não gosta de desenhar, de colorir, de fazer puzzles ou legos, de brincar com outras crianças (ou não sabe). Tudo quanto gosta de fazer é de ver desenhos animados na televisão ou no telemóvel. É surpreendentemente ágil a deambular nos seus vídeos preferidos do Youtube e nesse aspecto maneja um telemóvel com a desenvoltura expectável para um adolescente da sua idade. No próximo ano ou no seguinte deixa de ir para a escola (que funciona, para um autista com as suas limitações, mais como um centro de terapia ocupacional do que qualquer outra coisa). Não sabemos bem o que fazer com ele depois disso. Ninguém sabe. Os apoios aos autistas vão sobretudo no sentido de recuperá-los para uma vida tão normal quanto possível na maioridade. O investimento social e público pára por aí. Percebe-se. Há umas décadas, nem isso acontecia. Nem os autistas nem as suas famílias sabiam com o que lidavam. Eram simplesmente «atrasados», crianças atoleimadas incapazes de aprenderem a ler ou a escrever, excêntricos míopes para os códigos sociais, os tontos da aldeia. Quando os pais morriam ou se fartavam deles, eram entregues a uma instituição qualquer (quando esta existia) ou viviam da caridade alheia. Apesar da manifesta insuficiência dos apoios estatais e/ou sociais, demos uns passinhos desde então. Já existem algumas associações cuja vocação é acomodar a vida pós-escolar dos autistas. Mas são ou insuficientes e com longas listas de espera (vaga um lugar quando morre um dos seus usufrutuários) ou extremamente dispendiosas. Mas de que estávamos à espera num país que enfia os seus velhos em sítios onde não conceberia deixar o cão nas férias? A massificação do trabalho teve a consequência positiva de permitir a todas e todos prosseguirem uma carreira e serem independentes, mas acabou por desfazer a rede familiar e social que sustentava a possibilidade de uma vida condigna para os mais velhos e os mais frágeis. Vou saboreando este fim de festa enquanto a realidade não vem – mais uma vez – arrancar-me bruscamente ao meu torpor. Todos os dias me repito a mim mesmo que tenho de começar a pensar agora. Todos os dias adio. Chegará um dia em que não poderei adiar mais.