Ai Love Venezia  

No Outono de 1987 regressas a Veneza e, depois da leitura matinal do Il Gazzettino, fechas-te num pequeno hotel a escrever o teu terceiro romance. Dez anos depois, no prefácio à segunda edição, Luciana Stegagno Picchio escreveu: “É uma meta-Veneza apenas fruível de olhos fechados, tal como uma música que nos envolva e que nos absorva pelas suas volutas em espiral, ora esfumadas no enleio do sentido ora solidamente apegadas à realidade dos nossos dias, através da reprodução de factos e ambientes da actualidade”. 
 
É a mais pura verdade que um romance apenas cabe no (limite) que escapa à experiência, depois de se ter subido as escadas a correr. O esforço é essencial. O que nele se representa foge às referências que seriam óbvias, mesmo se a cidade e as suas águas e canais forem vistas de cima, a partir das águas-furtadas, em noite de trovoada. O que se passa num romance são as latas de conserva de Warhol. Elas existem para que se possa amar aquilo que passaria despercebido. Elas, as personagens, não quantificam objectos. Antes duvidam, quando não existem sequer questões para pôr em causa. Antes questionam, sem que haja sequer respostas possíveis à vista. Antes se dispõem a responder, ainda que não existam perguntas que atravessem a encenação criada. Sim: um romance tem a sua música própria ambulante que voa sobre o mundo e o captura como uma tautologia (por vezes torna-se numa máquina surda que sabe serrar todas as dunas e que adora falar de lenha como se fosse um navio a aprender o futuro).
 
Estás agora na esplanada do Carrossel e o Almeida Faria pergunta-te: “como estava este ano a nossa Veneza?”. Tinhas acabado de regressar, duas décadas depois da tua reclusão romanesca a poucos metros do Rialto, num pequeno hotel feito para transformar os ossos daquela cidade irreal numa cartografia de palavras e elipses com marés, maleitas e escolhos à flor da água. 
 
A literatura não representa nada que não a si mesma, nem conta histórias que ameacem ser fidedignas. Num romance, como o que escreveste em 1987, apenas interessa que na colheita haja aquilo que o olhar de qualquer mortal capta quando chega aos limites do Veneto: um batimento que se perca entre o sublime e a pulsão de morte. Um sentimento de perdição que saiba acender ou alcançar o íntimo de uma existência realizada. A Veneza literária é um intertexto vasto e cheio de história. Na língua portuguesa, Almeida Faria é certamente o criador mais apurado desse percurso. Sabendo isso, reagiste com algum alarido. 
 
Respondes, certamente com razão, que nas últimas décadas, Veneza se transformou em Venezilândia, isto é, numa espécie de nova Marbella onde os turistas (doze milhões por ano) – fardados para resistirem ao peso da viagem e do património – fazem a vez do peregrino sem missão nem destino. Já lá ia o tempo em que Veneza respirava com limpidez as heranças de Dante, Ruskin, Tiepolo, Goethe, Byron, Casanova, Henry James ou Marino Contarini. Hoje, os fantasmas digitais e as pizzas liofilizadas tornaram-se em anfitriões dos novos bárbaros que, há muitos séculos, tinham sido a causa da fundação da cidade em plena Laguna. Paradoxos.
 
Respondes que a farda vale pela missão e pela nova santidade: calções de fibra colorida enxameados de bolsos, ténis com sabor a marca, t-shirt´s com mensagens estilo Twitter (concebidas para a rapidez indiferente do olhar – Ay love you, Fuck yourself, Try just Once) e a invariável mochila que militariza o nomadismo de galgo insaciado; sem esquecer ainda o manancial de sacos, guias, telemóveis e garrafas de água que substituem o velho cantil; fitas no cabelo, pulseiras e lenços de pirata para absorver o suor da caminhada sem paragens, pois a finalidade do novo caminhante é transformar cada passo numa meta, esgotando aí o sentido e o maior desejo do século: o stress. Por fim, lucubraste sobre o ombro. Sim: um ombro sempre queimado pelo sol. O bronze em estado puro. 
 
Respondes que o ombro é o princípio e o fim de tudo, embora não passe de um pequeno dorso musculado, flácido, ossudo ou elegante. Tanto faz. O que fará do ombro uma âncora dos deuses é a fina correia de couro, ou de plástico, que nele se suspende. O ombro é assim o porto de abrigo de uma máquina que diz ao viajante que tudo o que está à sua volta pode ser reduplicado. Parado ou em corridinho, em fotografia ou em filme. Cada ombro seria, nesta óptica de realidade aumentada, o porta-estandarte de uma euforia mágica que faz do turista um ser com quatro braços, quatro pernas, quatro olhos, duas cabeças, dois pescoços e duas bocas. Tudo a dobrar. Ou duas S. Marcos com oito e não com quatro cavalinhos de ouro oferecidos por Bizâncio à Sereníssima. Ou sessenta e oito e não trinta e quatro arcos da Loggia do Palazzo Ducale virados para o Canale. Ou quatro e não dois mouros de pátina escura a baterem as horas na Torre dell´Orologio. Tudo a dobrar. Mas uma dobra que se multiplicará até ao infinito como Deleuze e sobretudo Leibniz adorariam. 
 
Almeida Faria bebe o café compassadamente e conhece há muito este divórcio. Como escreverias mais tarde, em ‘Anatomia’, já o ombro onde se suspendia o mundo fora substituído pelos dois polegares a alardear telemóveis: “A finitude ata-nos a pequenas coisas” (…) “compraz-se com os balidos longínquos/ e sabe coar como ninguém os degelos/ imprevistos” (talvez por fugir ao lugar desses balidos para nele afinal permanecer, tal como acontece aos viajantes que vivem apenas do fluxo das suas inúmeras e protegidas viagens). Somos todos peregrinos, afinal, e Veneza, essa beleza imaculada, creio que nunca realmente existiu à superfície da terra.
 
(texto – apenas parcialmente – extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’, título de obra de longo curso em trânsito)
 

9 Abr 2021

Crer ou não crer

O grande Samuel Beckett sempre fez questão de anunciar que teria nascido numa Sexta-Feira Santa, dia 13 de Abril de 1906. Como os registos oficiais do seu nascimento aparecem com a data de 16 de Junho, durante muito tempo houve quem pensasse que o dramaturgo, fértil criador de mitos sobre si próprio, teria escolhido a data que mais lhe convinha, sobretudo por coincidir com uma Sexta Feira Santa. Mas não: Beckett terá mesmo nascido na data que sempre proclamou e se a coincidência não foi criada pelo escritor ele aproveitou-a como uma espécie de sinal para a visão que atravessa toda a sua obra: o nascimento associado a sofrimento e a vida um longo caminho doloroso, para acabar numa morte absurda, o estado puro do silêncio.

Beckett, embora não sendo crente (pelo menos nunca o assumiu), gostava muito da história da Paixão de Cristo, em que via inúmeras semelhanças com a nossa sofrida passagem terrena. Mas suspeito que por estes dias teria dificuldade em se fazer entender. Pior: seria votado ao ostracismo ou ao olhar de soslaio de quem acha que crer num Mistério está nos antípodas da inteligência ou pertencente ao reino da superstição.

Nada de novo, dirá o leitor. O leitor diz bem: o fenómeno não é de agora e o advento do Iluminismo e do desmedido endeusamento da Razão humana ajudou – por vezes com trágicas consequências – a relegar aqueles que têm Fé para um mundo de obscurantismo terrível de onde devem ser retirados ou, no pior dos casos, eliminados.

Mas estamos em 2021, amigos, e a coisa persiste. Eu sei que ao professar-me cristão e católico – coisa que na verdade só a mim me importa – vou suscitar caricaturas e análises históricas sobre a instituição da Igreja e dos seus terríveis erros. Pouco interessa a liberdade do individuo escolher ou sequer a possibilidade de que essa escolha seja sincera e sustentada até – surpresa! – pela razão. Milénios de teologia são descartados como uma brisa em favor do imediato. E tudo se torna estranho quando o imediato prefere alinhar chakras, fazer trânsitos astrológicos ou analisar “auras”. Como escreveu Marcelo Franco, num texto notável numa rede social – uma raridade , ainda por cima -, «Crer tornou-se coisa de supostos idiotas. O cidadão tira o sapato para entrar numa mesquita, mas acha que jejuar seja coisa de retardado. Segura na mão de amigos e diz, numa roda espírita, “Tem alguém aí?”, mas ainda assim se ofende quando ouve “Creio em Deus Pai”. Lê sobre Buda sem pensar em Santo Agostinho. Veste uma cuequinha branca no Réveillon e, absoluto, do alto de suas certezas, acredita que dois mil anos de teologia existam somente para o diminuir e para tolher sua liberdade, logo ele, tão próprio, tão assertivo.»

Percebam, amigos. Não se trata apenas da defesa da minha confissão – trata-se de defender a própria ideia de Fé, venha em que fórmula vier. Sim, até os que acham que a Mãe Terra irá resolver a pandemia. O Mistério tem de ser preservado para se entender as evidências. Somos demasiado imperfeitos e essa noção – essa teologia da falibilidade – deve ser aceite para que nos entendamos uns aos outros. Ou se calhar como Beckett poderia dizer, para que nos possamos salvar uns dos outros.

8 Abr 2021

Legente de sombras

Lê-se numa carta de Benjamin para Scholem: «(…) como afirma Kafka, existe uma esperança infinita, simplesmente ela não é para nós. Esta frase contém realmente a esperança de Kafka. É a fonte da sua irradiante serenidade».

Essa pacificação chegará a Kafka, com certeza, da consciência de não haver traído o vector ético, pois a convicção de que viver a esperança não lhe tocará em sorte não o fez generalizar a sua “despossessão” para os demais. É um sinal de uma rara grandeza não querer contaminar com a sua descrença ou malapata o destino dos demais – o que inclusive talvez relativize a negatividade que o próprio Benjamin associava ao autor de METAMORFOSE.

Cada poeta deveria adoptar esta lição ética e forjar um saudável distanciamento em relação à lucidez que calcina, pois se é necessária para revolver a terra também a semente o é, e quando há negrume identifica-o afinal um halo.

Por esfiapada que esteja a esperança, em termos pessoais, há ainda um princípio de fidelidade que deve assegurar o elo, a transmissão.

Sim, é uma bela coisa “deixar falar a linguagem” (Novalis) e isentarmo-nos de interferir com a palavra, mas isto deve ser matizado por momentos em que um carácter de urgência impõe que a palavra signifique e não seja apenas um estado de suspensão da vida ou um resíduo cantável de “deus ausente”, e antes materialize um grito que – esquecida a vidência -, quer apenas lembrar o horror da fragilidade humana e o modo como a descuidamos.

Comecei por apreciar o Pedro Teixeira Neves pintor. O que vai sendo raro, ele deixa-se levar pela “inteligência da mão” e deixa que os materiais e a energia cromática validem as suas composições, sem lhes impôr uma ideia. Aqui, é ainda o romântico que pulsa.

Depois, achei graça à leveza de poemas que vi citados do seu último livro OS TRABALHOS MAIS LEVES (Húmus, 2021), onde as palavras conversam e brincam entre si, numa linhagem que nos recupera O’Neill e Henrique Leiria (A vulnerabilidade toca a todos: «nos bicos dos pés/ alçou-se/ nos bicos dos seios/ calou-se») , e onde o humor e a desconstrução cultural caminham paralelamente (Yazujirô: «gostava/ de a ter/ ao nível/ do plano de câmara ozu.»), às vezes com efeitos de grande subtileza que revelam inteligência do ofício (o que está muito para lá de ter graça), como nestes dois versos que aludem a um orgasmo: «exsudação de figos/ no prumo de agosto». E, lido o livro, vi que estes pormenores se repetiam.

Tomei-te então de lata e, como estou em terras longínquas onde não chegam os livros portugueses, pedi-lhe outros livros. E o Pedro mandou-me dois. Pude então ler A PARTE QUE NOS TOCA, o seu livro anterior (Labirinto, 2020).

É um livro nos antípodas de OS TRABALHOS MAIS LEVES, em termos estilísticos e temáticos, como se fora outro autor a escrevê-lo, e isso não apenas lhe acrescentou ecletismo como seriedade, ficando nítido que não se atém a fórmulas ou a uma “voz” imperturbavelmente mineral. A PARTE QUE NOS TOCA é de uma densidade que contrasta com a airosa fluência de OS TRABALHOS MAIS LEVES (dedicado aos hílares trabalhos do amor) e mostra um poeta que sabe “o seu a seu tempo”, alternando o lúdico e o combate contra a trivialização que hoje importa travar. E fez-me descobrir um poeta confiável, no sentido em que, dominando os seus materiais, não perdeu nem o sentido da “gravitas” nem essa reversibilidade entre a vida e a literatura, tão necessária para romper a vazia tentação dos literatos.

A PARTE QUE NOS TOCA é um longo poema, de fôlego narrativo e verso largo, dividido em três partes (Exílio, Travessia, O Princípio da Imortalidade), onde se mostra a anti-epopeia dos refugiados que nos chegam de África e do médio oriente para se finarem em balsas de morte no Mediterrâneo. Os primeiros três versos soam assim: «prende-se ao coração/como animal de trela/ a terra a que chamamos mãe» e não deixam de martelar-nos espírito dentro os seus mais de mil versos, que correspondem ao lento escalpe da peregrinação para a morte.

Não há neste “cântico” maiúsculas porque face a este horror são ignóbeis as hierarquias e é-nos pequenino o coração que observa.

Tenho mais a sentir do que a dizer sobre este grito-que-nos-toca, a não ser que me espanta realmente que o oportuno carácter de urgência deste poema, de excelente factura técnica, tenha encontrado um caviloso silêncio (ressalvo a revista Caliban, que o entrevistou); sinal de que já não se acredita que a poesia possa ter um papel social ou qualquer dimensão que a torne relevante e necessária. Quando um bom poema como este, que não se faz só das incandescências oraculares e ousa declarar-se como respiração de um testemunho, numa boa bofetada na bochecha da indiferença política, cobardemente, não logra qualquer eco é porque a sociedade está doente e todas as tripas encortiçados.

Cito, do fragmento em prosa (poética) deste “cântico” (Travessia) – em prosa porque estamos então na “aventura” de Job, no momento em que atravessa o mar intérmino – selvagem, sem descanso ou cesura – da sua provação:
«e foi de noite, noite mais noite, que job e três amigos, encharcados de escuridão, se fizeram fantasmas fortuitos ondulando os sonos dos algozes e como coágulo romperam as primeiras e precárias ondas da incerteza e do desconhecido (…) deixando que a sorte rolasse os seus dados. (…) conheceram a negridão das águas paradas, vidro transparente como a espuma dos ossos, amarga e sideral se eternizando, a boca salgada como se picada por escorpiões, a pele queimada, chamamento de chaga, as cabeças a ferver de tanta bebedeira de luz, o frio à noite rasgando o pensamento, mandíbula.»

Obrigado Pedro por nos lembrares que não basta a empatia-diferida, falta a dignidade de dar viva voz à indignação.

8 Abr 2021

Vil e apagada tristeza

Santa Bárbara, Lisboa, segunda, 6 Abril

Lisboa – que nunca foi de se esplanar ou jardinar e perdeu aquela maneira de se viver cidade nas praças-catedrais que são os grandes cafés – está sentada no meio da rua a celebrar a Primavera do seu descontentamento. Os indicadores postos em gráficos e nas opiniões médicas que governam as nossas vidas de doentes por acontecer mandaram entreabrir. A impaciência empurrou portas, janelas e postigos, afinal forma de abrir no fechado. Dizem que seremos salvos pelo tamanho do intervalo, da interrupção do toque e da conspiração. O mundo parece disco riscado e o mais provável será o regresso à casa de partida que arrisca coincidir com a prisão. Exagero, claro, excepto para os mais velhos, que perderam as migalhas de autonomia e estão arrumadinhos em casas-forte de acrílico. E a da Gadanha anda em azáfama tamanha que arrisca esquecer-se de um ou outro que a chama em tonitruante silêncio deixando de comer. Queima esta coisificação dos nossos queridos velhos.

«Atentava naquele turvamento de palha-de-aço pousado em mãos ambas: curiosas formas têm as nuvens de arder. Tivera sucedido em papel desenhado e o aludido ganharia o desconchavo que as partículas em suspensão assumem quando se dá a ver o pensado. Naqueles espelhos enxertados em céu são sempre múltiplos os estratos, o roçagar das quase esferas expandindo-se em inquieta imperfeição, com rugas e refêgos a cambiarem de lugar, o ténue brincando com o sombrio. Atravessam as configurações das coisas como se fossem atalho. Brotam das paredes e acorrem a colhê-las com a palavra salitre. Se o azul perdura no lápis-lazúli, as nuvens reencarnam nas trufas: assim se deixam alcançar. Está em vias de extinção a arte que reivindicava a sua captura e domesticação, que parece sobreviver tão só na prerrogativa dos zangados. Vil e apagada tristeza, esta do bom tempo estar condenado a ser sem nuvens.»

Por causa do «Diário das Nuvens», tenho tido os dias contados. Com este acabado de passar pelos seus olhos, leitor, faz oitenta que começámos a brincadeira do toma lá nuvem, mete-lhe partículas dentro e vai estendê-las na rede a corar. Tal o cão com o seu invejável afinco atrás da causa, pus-me atrás das palavras. As leves soltam-se, as pesadas estrumam. Muitos destes poemas em prosa brotaram, pétala e espinho, copa e raiz, das tonalidades que cada palavrinha de nada pode conter. Atentemos na palavra coisa: parece nuvem de tanto lhe caber. O desgaste da oralidade, mas também as fendas que suscita, deram uma ajuda neste trabalho oficinal. Ficam por arrumar várias ferramentas como a repetição ou o neologismo metido a martelo. Tenho que lhes pintar a sombra na parede para que conheçam o sítio de repouso. Por falar em genética, a cidade e a casa cruzaram-se nas atenções. Certa canção diz que a casa é onde dói mais. Esta cidade dói-me no peito. Devia dizer como alguém próximo nos diz: não te metas na minha vida, não entres em mim. Já vai tarde. Outras criaturas suscitadas ficam por ora em sossego, por junto com mais obsessões de trazer por casa. A proximidade forçada não significará ossatura de domésticos frankensteins, colagem de avulsos. Valeu pontos também o ensaio, aquilo que se dá quando alguém pega no objecto procurado com energia e inteligência repetidamente treinadas, evita as investidas de cada um para lho roubar ou impedir progressão, e passa o risco. Em outra disciplina cumpre-se na tentativa de atirar projéctil de peso bem medido além da linha, o conjunto circunscrito à secção de uma circunferência por completar. Jamais pensei que a geometria, mais ou menos descritiva, se tornaria companheira. Passei a vida a traçar linhas de terra invariavelmente sujas, portanto dignas de punição.

Falando sério, devo obrigadar o João [Francisco Vilhena], por me ter oferecido este esbelto álibi para o torpor em que me fui deixando cair. Leituras prementes, projectos exaltantes, afazeres solenes, nada brilha no nevoeiro. Para cumprir a regra do jogo, ele mais comprido, que eu cumpridor, interrompemos hoje a cadência jornaleira.

Continuaremos ao sabor de apetites e com mais uns quantos filmes (os quatro já atirados ao ar pulsam em https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/) e manda o inevitável que, além de prolongamento expositivo, pensemos em livro. Para variar, o chão está cheio de ideias, mas na neblina anda-se meneando as mil cautelas como a centopeia. É enorme a tentação, aliás costumeira, de erguer castelos nas nuvens.

Não foi desta que escrevi sobre as perspectivas, os enquadramentos, as sequências significativas e os acentuados agravamentos que o João foi fazendo, mas troquem, na penúltima, escultor por fotógrafo e temos um dia feito.

«Houve tempo. Houve tempo em que os escultures eram errabundos, passageiros até da passagem. A vida por inteiro em estaleiro, palácio agora, catedral na passada, palheiro e serrania, aqui como ali. Pegavam no barro, davam rosto ao medo e partiam. Assim com o mármore e o prazer, o lioz e a alegria, o bronze e a fúria, o ouro e o amor, a água e o espírito. Enfim, a matéria e a mão, puxada da mente. Esculpiam em movimento o que fica, mas sem reduzir fatalmente essas formas à estatuária. Ou desconsiderando os fins últimos: as altitudes se certas na determinação fazem-se portáteis e os bolsos armam-se casa. O atrito estica os homens que andam com as suas dedadas até se tornarem coordenadas condenadas ao enleio. De compridos, cumpriram o seu tempo. Cumpre agora o teu. Perplexo.”

7 Abr 2021

Segundo Acto – Cena 1

Estamos agora numa estufa com paredes de plástico bastante espessas. A luz branca e fria que inunda o espaço vem das lâmpadas fluorescentes no tecto. Gonçalo está deitado no chão, encostado a uma das paredes de plástico. Uma porta, também plastificada, abre-se e entram dois cientistas com fatos de protecção integral, máscaras, toucas, viseiras, luvas e óculos. Uma tem aparelhómetros de medição e a outra vai tomado notas num bloco de folhas bastante usado. Gonçalo abre os olhos e fixa-os nos três investigadores. Faz menção de se levantar, mas o corpo não corresponde. Os olhos mexem-se nas órbitas e os dedos das mãos dão sinal de querer reagir, nada mais. Elas não dão pela sua presença na estufa.

Gonçalo
Podem ajudar-me? [pausa] Olá…! Aqui…

Uma das cientistas vai indicando o valor das suas medições, mas o volume da sua voz, bem como a articulação, parecem vindos de outro tempo. Tudo lhe sai arrastado, entrecortado e com eco.

Cientista Medidora
[mexendo no aparelhómetro]
Es… tá… á… á… á… á a… a… gra… var… ar… ar… ar…?

A cientista do bloco de notas e uma caneta fala também do mesmo modo, com voz arrastada e ecoante, como se chegasse ali vinda de outro tempo. Tira um pequeno gravador do seu bolso, pendura-o ao pescoço e carrega no botão vermelho.

Cientista Anotadora
Sim… im… im… im… im… im.

Cientista Medidora
Pronto… onto… onto. [pausa] Então… ão… ão… ão… a temperatura… ura… ura… ura… vinte e três graus… ês graus… ês graus… ês graus. [pausa] Humidade… ade… ade… ade… normal… al… al… al. [desiludida] Tudo normal… al… al… al.

Cientista Anotadora
[escrevinhando no bloco]
Ao vigésimo… ésimo… ésimo… terceiro dia… eiro dia… eiro dia… eiro dia, tudo igual… gual… gual… gual. [pausa] Não há alterações… ções… ções… significativas… ivas… ivas…

Cientista Medidora
O cheiro… eiro… eiro… é igual… al… al… al.

Gonçalo já nem os dedos das mãos consegue mexer. Mas os olhos continuam nas cientistas que ainda não deram por ele ali deitado.

Gonçalo
Os meus amigos não são meus amigos… eles não sabem que não são meus amigos, acham até que são excelentes amigos. Acham que é um privilégio eu poder ser amigo deles… têm-se muito em conta. Têm em conta o dinheiro que têm… o poder que têm… mas não têm noção da vontade que têm de ver os outros subjugados à sua influência…

Cientista Anotadora
Paro de gravar… ar… ar.. ar?

Gonçalo
De gravar o quê?

Cientista Medidora
Podes parar… arar… arar.

Gonçalo
O que é que está a gravar? Estás a gravar a nossa conversa? [pausa] Estava a falar dos meus amigos… dos que se acham meus amigos, aliás… queres que eu me cale.

As duas cientistas sentam-se no chão, no meio da estufa. A anotadora continua preparada para escrever, seja o que for. A medidora pousa os aparelhómetros no chão e suspira profundamente.

Cientista Medidora
Quando é que se assume o falhanço… sume o falhanço… sume o falhanço?

Gonçalo
Na amizade? [pausa] Nunca…

Cientista Anotadora
[encolhe os ombros]
Quem é que o tem de assumir… de assumir… de assumir?

Gonçalo
Na amizade? [pausa] Quem se sente mal…

Cientista Medidora
Quem?!

Gonçalo
Neste caso, eu… Eu é que me estou a queixar.

Cientista Anotadora
Sim… im… im. Quem… em… em?! Quem lidera… era… era… era? A equipa… ipa… ipa? Todos… odos… odos?

Gonçalo
Quem lidera a amizade? [sorri] Sim, é uma boa pergunta… já me ocorreu.

Cientista Medidora
Todos… odos… odos… odos. [pausa] Convém que todos admitam… mitam… mitam… Mas quem lidera, era… era… tem de ter colhões para verbalizar o falhanço… balizar o falhanço… balizar o falhanço… balizar o falhanço.

Gonçalo
Balizar o falhanço… [ri-se] Sinto-me mal no meu grupo de conhecidos – já não posso dizer que sejam amigos – assumo-o sem vergonha. Mas não sinto vontade de verbalizar nada… não vale a pena, nada irá mudar. Afasto-me… é mais fácil.

Cientista Anotadora
Eu não vejo falhanço… falhanço… falhanço, para já… ara já… ara já.

Cientista Medidora
Não?

A anotadora abana a cabeça negativamente. Os seus olhos rasgados e cada vez mais fechados dão a entender que deve estar a sorrir por trás da máscara.

Cientista Anotadora
É pouco tempo, ainda… inda… inda.

Cientista Anotadora
[pouco convencida]
Talvez… ez… ez… ez.

Gonçalo
Não é nada pouco tempo. [pausa] Há muito tempo que é óbvio… para mim. Quando os vejo competir pela atenção… como se ainda houvesse atenção possível para dar… pelo menos da minha parte… já chega. É o que eu penso, já chega. Não quero mais… vou-me afastar…

As duas cientistas levantam-se e deixam-se ficar caladas, olhando para todos os lados da estufa. Menos para Gonçalo, que continua deitado no chão.

Gonçalo
[continuando]
Desisto…

Elas retomam as medições, desta vez sem falar. A medidora anda dois passos, carrega no botão de um dos aparelhómetros e mostra o resultado à colega que imediatamente o anota no seu precioso bloco.

Gonçalo
Desisto?!

As duas terminam as suas medições e saem da estufa. Fecham a porta de plástico e desligam as fluorescentes, ficando apenas uma luz de presença alaranjada.

Gonçalo
Olá…! [pausa] NÃO ME CONSIGO MEXER!

1 Abr 2021

Bouquet

Vou ao hipermercado e perco o norte ao tempo certo da fruta. Qual é a época das cerejas? E dos pêssegos? Haverá mangas nas árvores todo o ano? E de morangos, que profusão é esta?

Eu ainda me recordo, mas nenhuma filha minha conseguirá entender a propriedade dos haikus em relação às estações do ano, que evidentemente nesse género poético se confundem com as maturações da vida.

Sempre me atraíram os haikus, mas raras vezes fui capaz de os cometer, acho que por falta de humildade. Escrevo um haiku e não deixo que a redoma do silêncio poise sobre ele, penso de imediato que lhe falta algo, que lhe posso acrescentar xis. Em dias de menor orgulho páro num soneto, mais vulgar é estragar um haiku (enfim!) com uma baba desmedida.
Angustia-me que me tomem por Satie, que não me acreditem como Rachmaninoff.
Uma das lições mais difíceis da vida é a que se estampa no haiku de Buson: «Para cantar/
o rouxinol/ só entreabre o bico.»

Talvez aos oitenta consiga dizer com o Hokusai, mais dez anos e conseguirei desenhar com vida o voo de um moscardo. Até aí, cagança e manha.

Capturei dois haikus numa Canção do Mário Quintana. Ei-los, em CANÇÃO MEIO ACORDADA: (…) Lua de ouro entre o nevoeiro/ Do sono que se esgarçou./ Laranja! Grita o pregoeiro.(…) Sob os arcos da manhã./ (Os gatos moles do sono/ Rolam laranjas de lã.)
Se eu fosse o Mário Quintana, acabaria por transformar o poema em dois haikus, mas ainda bem que ele nos deu a alegria de me contrariar.
Noutro poema, também só ficaria com o que aqui cito, CANÇÃO DE OUTONO PARA SALIM DAVI: O outono toca realejo/ No pátio da minha vida.
Mas isto sou eu a ler dois poemas de 1940.
E o Quintana acabou por fazer, na generalidade, uma obra magicamente enxuta, cristalina, e bem-humorada como em poucos. Não sei porquê, cheira-me que a feliz “leveza” do Jorge de Sousa Braga, teve aqui um mestre.

Em frente à paragem do chapa há uma tasca atamancada – cimento cru e grades sobre bandas de vermelho pintadas para anunciar uma marca de cerveja – como são quase todas na periferia de Maputo, ladeada por duas garagens, uma que parece o Museu do Escape, a outra especializada na recauchutagem de pneus.

Engraçado é os nomes escolhidos para as garagens: a Auto-Motora Passarinho e a Auto-Motora Passarão.
Explicam-me na tasca que ambas pertencem a dois cunhados desavindos, e que a primeira, a dos escapes, é de alguém de apelido Passarinho, o que determinou o nome da outra garagem, escolhida por pirraça e sarcasmo.

Mas a graça completa-se porque redescubro este mimo – e isto configura aquilo a que o Jung chamava uma “sincronicidade” – no dia em que releio a obra completa de Mário Quintana, vejam a delícia:
POEMINHO DO CONTRA, «Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho,/ Eles passarão…/ Eu passarinho!»

Os haikus, que são de uma concretude ímpar, não hesitam em restituir-nos o sentimento do mistério ou do inefável, e transportam-me para uma certa ambiência que estampa esta ideia de Montale: «Toda a arte que não renuncia à razão, mas que nasce do choque da razão com algo que não é razão, pode também chamar-se metafísica». Esta tensão sempre existiu, e acho piada que no horizonte da aporia ou do cinismo instalado no seio das sociedades servo-materialistas, se abeire, como se do magno regresso das andorinhos se tratasse, a metafísica. Pois como escapar à natureza, que julgavámos dominada – agora que o Covid nos
demonstrou a vanidade da nossa arrogância?

Daí que, de vez em quando, voltar ao haiku, nos habilite a uma primeira terapia, a um banho de modéstia.
À sua maneira, noutros domínios, e até no domínio das ideias, podem aflorar sínteses admiráveis. Do arguto Valéry: “Todos os políticos leram a História, mas fico com a impressão de que só a leram para daí retirar a arte de reconstituir as catástrofes” – condensando este nosso tempo, pasme-se, num poema inacabado.

Mas falta ainda aqui um bom ingrediente, que encontramos nos melhores haikus e nas melhores ideias, o qual talvez traduzisse assim: só quando uma ideia faz despontar uma sensibilidade, um novo discernimento, é que deixamos de ser apenas intérpretes de projecções passadas e reféns da sedução da inteligência que naquelas se arma.

Um bom haiku rompe, impõe um novo olhar.

Daí que considere que só uma destas aproximações que intentei em baixo cumpre o desiderato (- e já nem falo da métrica). E deixo ao leitor, como se fosse um teste americano, a apalpação duma (sua) hipótese:

1 O girassol não delata./ Não há peças sobressalentes/ para a polinização. 2 Amarelece a sede na carne/ das begónias. Deus/ já seria um excesso. 3 Tempestade,/ encavalitam-se as cerejas/ nas orelhas do vento!
4 Honra ao atavio/ à gordura na picanha:/ a tua carícia fora de horas. 5 Retirada a onda/ dormimos à beira mar sob/ a custódia dos despojos. 6 O meu corpo é o corrimão/ em que se coça/ a puída criança do tempo. 7 De galochas não és um camponês/ o haiku não te dá a santidade/ – que desejo é esse, se a beijas?, 8 Terrível mas verdadeiro,/ o dizer do Buson: canta o cuco,/ sem parentes nem fedelhos. 9 Queres ouvir as estrelas?/ Ouve o chamado/ de bronze dos grilos. 10 Crisântemos à altura da cintura/ e diante dos olhos a escarpa/ dos teus olhos que se afastam. 11. Vejo os cães a polir o teu afecto/ pela alba, na praia/ que me interditaste. 12 Duas mil insónias sem abrigo/ esmaltaram na lua/ a luz dos olhos dela. 13 Desejo inédito inunda a pélvis/ da minha namorada:/ comer ostras na lua. 14 Não subestimes o tigre/ que bafeja esta página/ rasgada pelos olhos do leitor.

1 Abr 2021

Delirium tremens

Horta Seca, Lisboa, sexta, 26 Março

Diz a velha sentada na borda na cama do hospital sem chegar com os pés ao chão, antena sem ligação à terra: são muitas as frases por que passa um homem. No exacto instante – eu morra já aqui na medicina legal fazendo haiku se não foi assim, pelas alminhas da minha mãe, que tinha pelo menos duas além da da mulher a dias de quem ela gostava bué, pela saúde dos meus filhos que nunca tive e por isso morreram saudáveis – passajou uma mudança de sexo que mal a ouviu logo se engasgou. Não havia intensivista nos arredores pelo que teve de ser o quebra-gelo a descalçar a bota. O voluntarismo não resolveu o problema dado a dita ser alta e de atacadores, ou seja, o tempo passou naquele fascinante manuseio entre cirurgia, fala de surdos e truques com cartas. Anunciava-se a desdita, alguém afina a navalha, ninguém afia a voz. O fado é um drone com baterias de longo alcance. Posto isto, que não nas redes, o sexo em vias de sintonizar identidades ia ficando roxo pascal, tipo vindo de sangue de boi a caminho do amarelo de nódoa negra pisada, não tenho presente o pantone. Era grave. Uma gravidade agravada pelo peso dos protagonistas e por não estar pronto o directo para o programa da tarde, perdeu-se a oportunidade, que rolou redonda em câmara lenta para sarjeta. Em câmara lenta era mais emocionante, em câmara lenta tudo se faz, em mais e melhor.

A velha pigarreava para aclarar a deixa, velha queixa, querida gueixa. Não te esqueças onde vais, um perigo em contexto hospitalar, onde se perde gente à toa. Alguém lhe daria a atenção devida, mas era de morte: os sucedidos não paravam de se suceder com sucessível sucesso. Fugiram protocolos de psiquiatria em debandada psiquiátrica.

Quem o diz em voz alta ou alta voz? No segundo piso, afirmou o tarado dos diálogos de séries de horário nobre e grande público, ou grande pobre em erário púbico. Não me fodas, a plateia não cresce por mais que a regues, respondeu o marado da ontologia. Isso é noutro serviço, insistiu o primeiro, o do segundo piso, em cena típica de parada e resposta, que, cá está, convém dar-se no rés-do-chão das novelas de cordel. Neste entretém, sem contar com os que arrefeciam já o mármore frio, faleceram para lá de muitos. O esquecido sexo que queria apenas meter a mudança de genitais deixava-se ir abaixo.

Entretanto e tão pouco, a velha, ainda e sempre ela, golfava ininterruptos ditados. Uma vida não vale nada, mas nada vale uma vida. Que pode uma mulher trespassada pelos balões de fala fazer? Que pode uma trespassada fazer com a mulher que fala pelos balões? Pode a haste do balão fazer de falo na fala? Quem tem balões para fazer a fala confessar uma mulher? Impasse. A imagem congelava sem apelo nem agravo, que os corredores são longos e o conselho de ética hesitante, em ética hesita-se mais e melhor: sacudida como a folha de cantos redondos do velho raio-xis a despir o esqueleto ou pendurada tal o ícone búlgaro da virgem tão mexicana que os chineses não conseguem refazer em plástico. Não me desminta, interveio logo o imagologista de seta de rato na mão, por causa dos pontos de interrogação no relatório.

O trabalho que dá encontrar umas boas setas de saltear – armou-se agora este que se assassina, perdão, assina, e se espelha, perdão, espalha estas linhas em bom. Tom de tonto. Trabalho obscuro e solitário, mas que alguém tem que fazer, o de montar serifas nas bordas derrapantes das letras para facilitar a literatura de viagens e, quando muito, a escala. De cerveja escaldada tem o gato medo.

Enfermeira ao piso, enfermeira a fazer-se ao piso. A voz off estava mais on que a governação. Voltava a haver razões para tanto. Na secção das partes, em concreto a das próstatas a prazo, havia alegria em demasia, não eram trocos, mas circunstância agravante. Depois das raspadinhas, naquela hora dava-se por iniciado o período fatal dos lançamentos de algálias presas. O vídeo-árbitro não se conseguia entender-se, nem em debate aceso com a escola de Frankfurt, acerca da dosagem certa de urina para se considerar grande penalidade.

O início é sempre a melhor maneira de começar, disse alguém ao expirar. Temos que promover a senhora a Velha e pôr-lhe fim. Vede bem, tanta palavra gasta para maiúscular um vê. Conspiração dos mais gastos pulmões haviam armadilhado a supracitada vítima com subterfúgios de alto gabarito, cultivados por junto nas caixas dos bichos de seda e nas gavetas de metal com gatilho das redacções esfumaçadas do final dos meados do século passado, mal passado, enfim, em sangue. As caveiras são agora ímans de cores folgazonas de pôr nas superfícies alisadas, as das geleiras como as dos gavetões da morgue. Um desrespeito. Diz o despacho que a despachou: a Velha sentada na borda na cama do hospital sem chegar com os pés ao chão, raiz a perder ligação ao céu, A-da-gadanha é morta de morte matada, embebedada, embebida, muito dada, contas feitas, tão só emprestada. Volta a ser grave demais para ser verdade. Portanto, passível de Inquérito, aguardente mais universal que o proverbial canivete, boa até para as varizes se esfregada. Ponto final apocalítico, que a mordedura da moral da história contém raiva: beija as mãos de que se alimenta.

31 Mar 2021

A Alegria Intacta

Coisa bizarra e única a vida, de que o cronista também felizmente vai padecendo. Ainda a semana passada andava às voltas com a tristeza e a sua subvalorização e eis que hoje é a alegria que me convida para dançar. Porquê? Não sei, francamente. Não terá sido, garanto, por alguma experiência súbita e impactante, uma espécie de meteorito feliz. Não, parece ser um sentimento mais sereno, algo que percebemos que tem secretas fundações e que conhece bem os cantos à casa que somos nós mesmos. O leitor sabe: de repente acordamos, numa manhã qualquer de um dia qualquer, e parece que estivemos a sorrir durante o sono. Sem razão, sem culpa, sem destino. Nem se perde tempo a perguntar se será isto a tal felicidade de que se ouve falar; arrumamos o nosso estado no “sinto-me bem” para não estragar e vamos à vida depressa antes que isto passe.

Assim estou, amigos, e faço o diagnóstico convosco ao mesmo tempo que as palavras me surgem. Ganho tempo a procurar as causas deste sentimento que me assola. É provável que a antecipação da Páscoa – momento que como crente muito me diz – tenha a ver com esta discreta euforia. Terá, não duvido. Mas suspeito que há mais e olho para o retrovisor para ainda ver os dias que passei a trabalhar com amigos – um deles meu companheiro de infância e de carteira. Poder trabalhar com quem se gosta a fazer o que se gosta é um privilégio que pude escolher há muito tempo. Nem sempre é fácil porque implica momentos em que pura e simplesmente não existe essa possibilidade e que naturalmente se vai reflectir nas condições de subsistência material. Mas, amigos, não há preço para poder exercer cumplicidades. Nenhum sacrifício irá fazer esquecer o prazer de dar e receber na companhia de quem estimamos. E aqui chegado descubro que muita desta alegria – os esotéricos de serviço dirão “energia” mas por favor fiquem calados – provém também desta gratidão imensa e sempre inesperada que advém de poder trabalhar com amigos e saber que irei continuar a fazê-lo.

Admito sem problemas a minha incapacidade de descrever o que estou a tentar partilhar. Felizmente sempre houve e haverá quem possua palavras-espelhos e é sem surpresa que o meu cérebro remissivo me entrega de imediato esta maravilha do grande cronista e meu mestre Antônio Maria, que antes do seu precoce desaparecimento aos 43 anos teve tempo ainda de dizer o que é esta “alegria intacta”. Fala, Antônio: «A alegria de que eu falo não deve ser confundida com o prazer formal, o prazer-palavra, com que se aceitam os convites. É alegria intata, de alma e corpo, dessa alegria que faz as pessoas se sentirem leves, intemeratas e bonitas. Uma alegria que substitui o almoço, o jantar e o banho. Que faz esquecer o Passado, todos os passados, a ponto do paciente se perguntar: “Quanto tempo faz que houve ontem?”». Coisa bonita, não disse?

E é isso, é isso mesmo. Como aquele enorme navio encalhado no Suez, por vezes a vida só precisa de um pequeno rebocador para que o mundo volte a ser, por um dia que seja, um oceano manso e de águas límpidas.

31 Mar 2021

Willy DeVille, o inquilino da sua própria vida

Quem vem acompanhando os textos que tenho publicado no último ano, já está familiarizado com uma corrente literária – tanto na ficção quanto no ensaio –, a «rock reflexion». Hoje gostava de apresentar-vos um outro livro da «rock reflexion», muito tocante, e que tanto pode ser considerado um ensaio, como uma biografia ou um romance.

O livro de Jacqueline D. Broussard, de New Orleans, é contruído sobre contínuas obsessões e tem o título de «O Inquilino». A primeira das obsessões, aliás o livro é à volta dele, é a do cantor Willy DeVille, que morreu em 2009, de cancro no pâncreas, com 58 anos. Mas o livro não conta apenas a história deste cantor, conta o desencontro entre ele e a vida. A história começa em finais dos anos 80, quando DeVille se muda para New Orleans e, como ele mesmo disse muitas vezes, foi como se estranhamente chegasse a casa. E, na verdade, não apenas a sua carreira, mas a sua vida tomam outro rumo. Não propriamente uma mudança radical, já que, como Broussard escreve, «Willy não deixou de consumir heroína, não deixou de cantar e nem deixou a sua segunda mulher, com quem era casado desde 1984. Mas passou a cantar blues como se não tivesse cantado mais nada na vida.» Depois de começar com os anos de Orleans, através de uma analepse, a narrativa recupera os anos do liceu, quando conhece a sua primeira mulher, a completamente louca Toots, que apagava cigarros nos olhos das mulheres que olhavam para Willy e encostava objectos cortantes às gargantas dos técnicos de som que não aumentavam o som do microfone dele. Essa analepse retorna também aos dias em que, já sem Toots, em Paris, conhece Lisa, a sua segunda mulher, na época namorada de Iggy Pop, e que será tão importante na sua vida. É um livro que parte da vida e da voz de Willy, para abordar um catálogo de obsessões, tanto do cantor quanto da escritora.

Para quem não conhece o cantor, e provavelmente são muitos, tem uma voz única «e uma tristeza exemplar», como escreve Broussard. Muitos são os músicos que lhe prestam homenagem, entre eles Bob Dylan, que várias vezes disse publicamente que deviam pôr o nome dele no Rock & Roll Hall of Fame.

Caso queiram ver um concerto na Alemanha, acústico, um ano depois da sua mulher, Lisa, se ter enforcado e de ele se ter tentado matar, jogando o carro por uma montanha abaixo e ter partido mais ossos do que os que tinha, eis aqui: https://www.youtube.com/watch?v=O4F-KpSWMBo. Para quem queira apenas ouvir uma pequena canção dele, a última que canta nesse concerto, já no «encore», cliquem aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ioxeqbQCvMo. Nesse concerto em Berlim, está sentado, porque não consegue estar muito tempo de pé. Também já não tomava heroína há dois anos, embora esteja muito bêbado. Apesar disso, a actuação não perde nenhuma qualidade. Curiosamente, só se percebe que ele está bêbado quando pára de cantar, entre canções. Se vos falo desse concerto é porque Jacqueline D. Broussard o menciona várias vezes no livro, embora não seja o concerto preferido dela. Da primeira vez que o faz, escreve: «Apesar de estar sentado e de ser caucasiano, ninguém nos lembra tanto o mestre Sonny Boy Williamson a cantar “Nine Bellow Zero” como Willy DeVille na primeira canção. Não pelo registo de voz, mas por tudo o resto. Ali, naquele palco, ladeado por um piano e um contrabaixo, não é um homem que canta, é uma dor que se expressa. Não era apenas a culpa pelo enforcamento de Lisa ou por uma vida jogada à heroína, era fundamentalmente a consciência de ser um inquilino da sua própria vida. A culpa era apenas a moldura desse quadro em cinzas frescas.» Em 1984, Lisa tinha deixado Iggy Pop para casar com Willy. Viveram juntos 17 anos, até ao suicídio de Lisa. Willy já estava apaixonado por Nina, que se tornaria a sua terceira mulher. «As mulheres nunca foram um entretenimento para Willy. Neste sentido, era o oposto da rock star. Fora do palco, a mulher com quem vivia era o seu mundo. No tempo de Toots, Willy tinha três obsessões: Toots, cantar e a heroína.

No tempo de Lisa, também três obsessões: Lisa, cantar e a heroína. E as obsessões não têm ordem de prioridade.»
Jacqueline D. Broussard, também continuamente presa nas suas obsessões, em sete páginas, desmonta uma canção de menos de quatro minutos, de outro dos concertos de Willy, após o suicídio de Lisa, o concerto que ela prefere de entre todos os concertos do cantor, Avo Session, na Suiça. De facto, é arrebatador. A canção acerca de que Jacqueline D. Broussard escreve várias páginas é «Let It Be Me», dos Everly Brothers: https://www.youtube.com/watch?v=5bC8iYBlZ7g. Leia-se: «A diferença entre a versão dos Brothers e a de Willy não é a diferença que há entre a vida de um homem feliz e a de um homem triste, mas a diferença que há entre um chefe de família conservador e uma alma penada. De modo literário: a diferença entre a revista Cosmopolitan e um poema de Bukowski. Meses depois do concerto de Berlim, Willy volta a consumir heroína e, naquela actuação, naquele palco da Suíça, com aquela canção, acertava contas com o diabo. Se parasse de cantar, escutava uma voz dentro de si a dizer-lhe que tinha uma vida a devolver. E em que estado!… Em estado de culpa, e em estado de quem desperdiçou um dom único que lhe concederam. Aquele rosto, no palco, não é o de um homem. Mas a voz também não. Não é apenas o grave impossível, o vibrato perfeito, a afinação indefectível… Acima de tudo é o além, seja ele qual for, que se apresenta em forma de voz e faz ressoar em nós todo o bem e todo o mal que fizemos e que sofremos, como se estivéssemos na presença da versão contemporânea do filho de deus, incompreendido e trazido à Terra para sofrer, não como todos nós, mas por todos nós. Aquele homem, no palco, quase não consegue andar, quase não consegue falar de tão pedrado que está, de tão arruinada que está a sua vida, mas canta como se fosse uma ave canora. No palco, Willy encarna a Xerazade do Rei Shariar que é quando não está a cantar. Se parar de cantar, mata-se. E, enquanto canta, faz parar a morte. Quase sempre enfrentando-a, enunciando-a.»

Acima de tudo, e muito mais do que uma biografia, um ensaio ou um romance, o livro de Jacqueline D. Broussard traça um mapa de obsessões, onde se cruzam as suas próprias com as de Willy DeVille. As da autora são claras: pela voz de Willy, pela sua história trágica, que denuncia uma obsessão pela tragédia – «a tragédia tem um doce encanto como tudo o que nos faz ou pode fazer mal», escreve –, obsessão pela relação de Willy com as suas mulheres (principalmente com as duas primeiras) e pela história do blues. Acerca do blues, escreve: «É lamentável que hoje os jovens afro-americanos vejam o blues apenas como um vestígio da escravatura e não como uma expressão da alma humana. Nesta vida somos todos escravos. Nesta vida, e não há outra, somos o que as paixões fazem de nós. E nenhuma expressão musical o mostra tão bem como o faz o blues. Por isso a letra não é tão importante quanto as notas que se dá, e as notas que se dá não são tão importante quanto o modo como são dadas. É uma expressão, não é uma técnica.»

Não sei se de todos os livros que li da «rock reflexion», «O Inquilino» é ou não aquele de que mais gosto, mas é seguramente o que mais me emociona, pelo modo como a autora nos mostra o abismo existente entre a vida de Willy DeVille e a sua voz. Como se ele tivesse sido criado apenas para cantar, apesar de o terem posto na vida. Termino convidando-vos a assistirem aos vídeos e a lerem o livro de Jacqueline D. Broussard.

30 Mar 2021

Ao de leve

Há dias em que. E há aqueles em que não só. Dias em que eu. E de todos os dias há ainda aqueles que nem se sabe se são ou são piores. Posso até ter a dúvida. Parecem ou são de facto maiores porque cheios ou porque vazios e indecisos. E ainda os outros. E nem sempre sei se. Ou de que lado me desfiar, como os dias

Qualquer coisa sobre reticências. Sobre brasas.

Esboçar o gesto de abrir o tal caderno. Inquietações pendentes. E as fora de prazo. Voltar ao verso interior como um confronto com o reverso escondido por trás da nuca como uma sombra atenta e inseparável. E aos olhos plenos de ilusórias imagens reflectidas mesmo se não estão em frente, resta esse caminho por dentro. Dizem ou voltam mais tarde, como se anuncia num letreiro pequeno escrito à mão e à pressa de tal modo que ninguém repara.

O caderno, repentinas exclamações. Pontos da memória que não se fazem adivinhar previamente. Não na veemência. Somente vêm com uma espécie de força gravítica e o caderno porta custosa que já não se fecha. Resquícios da Pandora diária – mau é saber-lhe o nome.

Ele dizia pára de cantar para dentro. Irritava-o mas não era eu. O siamês mais velho que me doía à mesa. Ele, que era de si tão reservado, cantar e ser calado. Pelos cantos a ler. Uma concentração feroz como um sono profundo.

Tinha que se dizer três vezes. Aprendi que era uma coisa boa. Mas nem era cantar, mais do que um gemido que se escapava sem querer do interior da cabeça. Nem da garganta onde retido tropeçava nas cordas vocais, lento e custoso, nem do estômago. Talvez do nariz, no intervalo entre garfadas. Uma mistura de respiração e uma ideia de música que nem chegava a modelar-se. Por fora. Mais tarde entendi que nem sequer seria música, sei lá. Era tensão, o que sustinha a respiração e porque tudo era difícil de antever e ela escapava-se mesmo assim da força que queria retê-la na barriga. Por debaixo da mesa para ninguém dar por existir, talvez. E eu a olhar por debaixo das sobrancelhas. O queixo um pouco descaído a apertar as palavras. Um pouco triste em cada um em que, também sem querer que se visse, apontava os olhos. Um porque calou e o outro porque mandou calar. A mesa quadrada de lados equidistantes que se ligavam por linhas esticadas como elásticos em risco. Mas o ruído do motor do aquário gigante podia ser. Pela noite adiante. Enfio o queixo na gola da blusa das riscas. Não a dele mas igual, quase. Feita com as mesmas lãs e as mesmas mãos. Tudo quente.

Vêm sem saber como, imagens que queria assim ao de leve. Mas poisam como mantas fortes e pesadas que paralisam tudo por minutos. Ondas. E como um relógio parado, ficam nesse tudo trazido de longe pungente e quase insuportável.

Nenhum tinha culpa daquele encontro à hora errada entre o som que nem era para sair e a irritação trazida de mais cedo. Coisas encobertas e que saíam como aquele som e as que eram desviadas de intenção no alvo errado que se colocava ante os olhos, num dos lados da mesa quadrada. Há uma cadeia alimentar, com a infância na base mais inadvertida, mas há acima dos que estão acima, algo que os consome também. Às vezes invisível.

Queria folhear ao de leve o caderno mas cada página é um poço a mergulhar a pique o instante para longe. Um poço estreito com atrito e dor na queda provocada. Impossível voltar atrás. Mas é antes um túnel de que com a mesma verdade com que se entrou, se sai para outra luz por mais que de melancólica tonalidade se tenha colorido. E cobre-se com a tampa pesada do que não se pode esquecer nem quer lembrar. Um ponto de água subterrânea no logradouro do prédio. A produzir luminescências, erupções e salitres nas paredes.

Pensar nesses que se somam como periferias, sem os saber diferentes de outros dias. Outros como vulcões, terraços em ruínas e balaustradas em risco e um chão que não se tem em si para passos indecisos á beira. E aqueles que não. Em que se flutua na superfície e tudo chega sem aprofundar. Ao de leve.

Era talvez uma araucária gigante que procurei até hoje reconhecer em cada beira de caminho. Uma forma, a densidade das ramagens quase rentes ao solo e uma sombra. Porque tudo se distingue pela sombra. Que produz nas superfícies numa relação privada com a luz. Um abrigo pouco acima da franja da criança solitária, que brinca não sei a quê em silêncio quando a outra criança surge do portão esquecido aberto. Uma extensão de relva impecável e numa extremidade somente a árvore imponente. Uma memória de ficção como o são todas, de um filme, e da infância. A doer de tripla fantasia. Uma criança, paradigma do estar em si solitário na alienação de um mundo repleto de outros e cercada por um muro alto.

Não sei porque isto venceu na memória tanto de esquecimento. A pior coisa que se pode deixar avançar na memória, é a memória de sentimentos. Da infância porque é difícil, sobram árvores de pé quando os adultos falham. E tudo o resto. O acaso de um portão esquecido. Talvez a árvore impressionante. Ou só aquela linha de sombra.

30 Mar 2021

Da Certeza

Não fomos programados para nos descobrirmos enganados acerca de qualquer coisa. Platão descreve a filosofia e o acto de filosofar como um «apego indespedível à verdade». Para o ponto de vista humano, a verdade é o oxigénio que permite toda a amplitude dos nossos registos, desde o mais quotidiano e aborrecido ao mais épico e inusitado. A verdade é o chão, a cor, o que sentimos e como o sentimos, a luz do amanhecer, as fórmulas matemáticas da infância tragadas à colherada, o preço das coisas, o princípio, o meio e o fim. Estar equivocado comporta graus de insuportabilidade distintos, dependendo do quão fulcral na constituição da identidade do sujeito – coisa que dificilmente sabemos e ainda mais dificilmente podemos prever – é aquilo sobre o qual nos encontramos «três pontos ao lado», para trazer novamente Platão à conversa.

Pelo que percebo perfeitamente as pessoas que se agarram às suas crenças como se elas constituíssem o chão sobre o qual caminham; na verdade, é isso mesmo que sucede com as «proposições empíricas fossilizadas» como lhes chamava Wittgenstein, naquele opúsculo tardio «Da Certeza», escrito sobretudo como resposta ao «A Defense of Common Sense», um ensaio assaz estúpido de Morre, publicado em 1925. As mais diversas crenças, a maior parte delas absolutamente inconspícuas – por fazerem parte do ponto de vista, tal como as lentes dos óculos «fazem parte» do olhar – são o fulcro do sentido que constituímos diacronicamente e o diapasão da certeza pela qual nos guiamos, das tarefas mais elementares às mais complexas.

A tensão indespedível que nos liga a essas crenças é fundamental para a sobrevivência. Imagine-se um tipo a duvidar da firmeza do chão, da salubridade da água da identidade diacrónica daqueles que ama? Não obstante, há que evitar confundir a necessidade absoluta dessa tensão para a verdade (pela certeza) com qualquer tipo de critério capaz de aferir a lógica do mundo. O facto de eu me sentir absolutamente convencido de que X é verdade ou certo não torna X um ou outro. Esta modalidade de certeza é, aliás, do domínio do operacional: constitui e mapeia o mundo sem se preocupar em inquiri-lo do ponto de vista filosófico (o que levantaria ao ponto de vista natural problemas capazes de entravar o quotidiano constituído que este tão arduamente defende). O senso comum, como bem aponta Wittgenstein, não precisa de defesa: ele é desde sempre o seu melhor e mais abrangente amparo. Tecer uma defesa do senso comum sem procurar determinar a sua constituição, âmbito e função dentro do ponto de vista é aportar uma solução para algo que, dentro do ponto de vista do senso comum, nunca foi um problema. É uma tolice. Moore 0 – Wittgenstein 1.

O que não se percebe de todo é a razão pela qual uma panóplia de criaturas descendentes do bas-fond das ideias dos anos setenta (os newagers encravados entre o regresso de uma Índia em regime de pousada na praia e a incapacidade de dissiparem os efeitos do excesso de drogaria psicadélica consumida) se convence de que o amor (em forma de apego indespedível, como enunciado) que sentem por determinada tolice converte automaticamente essa tolice em algo com valor epistemológico. Não, o tarô não tem qualquer valor de verdade; a homeopatia não é uma alternativa à medicina (o que esta pandemia demonstrou amplamente, para quem ainda tinha dúvidas); os cristais são apenas composições da natureza e não portais para qualquer tipo de realidade vibrando ao lado da nossa; o teu interesse por medicina tradicional chinesa não te converte em médico de porra nenhuma – quando estiveres doente a sério nada do que estudaste te ajudará; não há conspiração 5G para te infectar o cérebro com o que quer que seja – para além de já toda a gente que quer saber por onde e o que fazes o saber, por conta do telemóvel através do qual lutas todos os dias contra o capitalismo e a opressão – ninguém quer saber do teu cérebro ou de ti. És apenas um átomo na constelação de big data através da qual o marketing poderá caminhar uns degraus em direcção ao panteão das ciências exactas. Não és especial. Quase ninguém o é. Respira e abre mão das tolices em que encontraste refúgio ou, pelo menos, admite a sua natureza epistemológica: no melhor dos casos, são apenas um jogo onde te distrais e vais aliviando o peso dos dias. Não curam ninguém, nunca o fizeram. Deixa-te de merdas.

26 Mar 2021

Gatos e Cronistas

É sem dúvida um distintivo a que não podemos fugir este dom da representatividade felina nas mais altas instâncias da língua, e não há dúvida nenhuma que a nossa obra mais arranhada se intitula «Os Gatos» de um igualmente “assanhadíssimo” Fialho de Almeida. Ora a razão para tal título encontra-se nos fascículos editados entre 1889 e 1894, crónicas jornalísticas, que não pode ser mais fidedigna perante o seu anunciado. Obra fragmentada como veio a ser interpretada, parece-nos que o autor devido a um mau estar crónico lhe escapara a serenidade de espírito para a rotina, o conciso e continuado, mas aquilo que aos olhos de uns foi uma falha, analisando melhor, creio ter sido a sua força. Bastante além do criticismo mordaz ele encontra-se num delírio fascinante de intolerância social e ambiental com operativo desassombro e espírito sagaz.

E entremos pelos «Gatos»! Um verdadeiro saco de gatos nos espera nestas epístolas aos vindouros que parecem não desmerecerem os cento e vinte anos que as separa de hoje: conservar as feridas em chaga e atirá-las com a força do arremesso, assim se queria que fosse a composição estrita destas crónicas. Vem-nos à ideia o mais próximo da saga, Vasco Pulido Valente, mas em maior estado de desolação, o que para o autor aqui presente nem sempre acontecia, consumido por estranhos ardores de repelências várias, há um colorido que não escapa ao olho de lince que devemos adoptar para lhe captarmos tanto desaforo e assombro. Fialho, era paradoxalmente um esteta, franzino mais bonito homem, com certo olhar alucinado, não carregando tanto na lunática emanação do nosso querido e contemporâneo outro cronista, o seu ser, possuía ainda viva compaixão pelos desfavorecidos e por todas aquelas almas votadas ao abandono, por vezes exacerba-se tanto que nos inquieta com as ideias do porquê da fealdade pátria, falando, portanto, aquilo que muitos pensam mas não ousam dizer, quanto mais escrever. E é dele, nesta disposição, que nós gostamos.

É bastante claro que um homem assim, movido por um estado de enervamento sistémico não teria capacidade metódica para reunir os papéis ou novelar as lãs para os seus gatos que por ordem natural das coisas os amaria porventura mais se fossem famélicos, vira-latas, pondo-se aí perfeitamente ao lado do não menos brilhante e intragável Ezra Pound, que levava os bolsos cheios de comida para os alimentar nas noites frias. Nem o Escárnio e Maldizer todo orientado para as investidas criticistas mais intensas atinge esta soberba individualidade nascida de si como uma consciência de alarme e praguejar continuado. Nada do nativo canalha se lhe atravessa nas odes, nem recorre ao escatológico martírio da verve grosseira, é dele que emana o enxofre, e nem por isso deixa de ser um distintivo muito belo.

Atravessava o impacto dos Vencidos da Vida em rota de colisão para o Decadentismo, e interpreta com zelo o que é um homem com falta de paciência, e com desajustes constantes diante de tudo, não vendo nas mais altas patentes do génio pátrio mais que as inusitadas análises que fazia, que contrariavam qualquer ajuste com a paz no reconhecimento dos seus pares. Estou em crer que todos o abandonaram, excepto o António Sardinha, que desejando fazer-lhe um louvor lhe saiu também uma sibilina interpretação. Mau grado tudo isto, estamos em presença de raridade humana com grande empenho social e lisura que nos espanta e seduz.

Em 1880 tinha já fundado uma revista «A Crónica» e o nosso cronista vai então dizer de si o porquê das afiadas garras porque intitula «Os Gatos»; desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato- isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque, e o animal de humor e fantasia- porque não escolheremos nós o travesti do último? Aquele que nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro. Razão porque nos acharás aqui, leitor, miando pouco, arranhando sempre, e não temendo nunca». E nem Ramalho Ortigão levantou a sua farpa para tais gáudios na corrosiva acção, parecendo apenas concertada de trás, refinando na tendência, e exultando no desânimo.

Arrumados que andam no fundo das estantes estes autores, hoje existem os “trococriticos” de uma moleza que dá vontade de ouvir tangos, e ainda arranjaram formas opressivas de demolição sentada pondo-se ao nível das trituradoras de frutas. A urgência deste “encavalgamento estilístico” está-lhes presa aos cachaços no vitupério das suas urdiduras. E dizia ainda o inesquecível Jorge Brun do Canto: ” nariz de gato e rabo de mulher querem-se frios” única maneira de saber que estavam ambos de boa saúde. – Agora com seus cachorros fiéis e muitos “boys” os primeiros puxados por trelas para desconfinar, quem pode imaginar um critico apanhando as sobras do seu amigo pelo chão nas ruas desertas?! Ninguém. Que para Fialho “Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato… artista até ao requinte… sarcasta até à tortura….”.

Foram homens reunidos à volta da Imprensa e com ela forjaram os seus ideais numa época de viragem e grande vontade de mudança, exercendo este labor com afinco e prodigalidade, Fialho, não gostava ainda de Fradique Mendes, e entre jornais as suas questões eram o melhor testemunho da riqueza vibrante das ideias, fazendo da língua um legado tamanho que não há mais que ser lembrado.

26 Mar 2021

Da Ira Identitária II

Há livros clarividentes que constituem um antídoto contra esta maleita mas as hordas fazem alvorecer os equívocos. Devia ser obrigatório ler “As Identidades Assassinas”, do Amin Maalouf, ou o magnífico “A Identidade Cultural não Existe”, do François Jullien. Mas não foram escritos por africanos… e hoje a inteligência e a memória são rejeitadas como elementos espúrios, em não tendo um selo étnico.

Na semana passada evoquei a irreparável ofensa que constituiu a deficiência cognitiva programada pelo colonialismo, comentarei agora a abominável “perda de realidade” e a perversão dos valores que os regimes pós-coloniais imprimem na percepção das novas gerações, praticadas em nome da “identidade”.

Há uma jovem do Malawi, cujos livros estoiraram em todo o mundo. Chama-se Upile Chisala e foi publicada na Leya/Brasil. Li-lhe o primeiro livro, “Eu destilo melanina e mel”. Que tal é? Cite-se: «Eu gosto de pensar que Deus sorri/ quando uma mulher negra é corajosa o suficiente/ para amar a si mesma.»// «Diga a ela que há deusas nos seus ossos/ E histórias de triunfo na sua pele./ E que essa negritude não é um pecado».

Sobressaem no livro três temas: a cor da pele, a necessidade de auto-estima e o difícil respeito mútuo no amor. Upile cresceu no Malawi, entre negros, fez o curso universitário nos EUA, e depois voltou a casa e agora vive na África do Sul, maioritariamente negra, e, em entrevista, diz pretender ser a voz, não de todas as mulheres, mas, “das negras”, contra a discriminação que as vexa. Fico baralhado quanto aos alvos e em que “lugar” ela localiza o racismo e a discriminação: afinal, não vive em África? Talvez Upile sofra do mesmo problema que um jovem “filósofo” moçambicano que nas suas palestras excita a plateia com as mesmas histórias e argumentos histórico-filosóficos, que conduzem invariavelmente ao despertar para a consciência do homem negro, no bairro de Harlém, em 1920 – à terceira vez que ouvi o mesmo discurso, perguntei-lhe se ele já havia dado conta de que vivia em Maputo, terra libertada, em 2019. Até hoje não despertou para a sua realidade e papagueia o seu discurso anti-esclavagista, evitando pronunciar-se contra os erros grosseiros do poder actual que conduziram a Cabo Delgado e à decapitação de crianças.

Outros poemas do livro: «Você/ e eu/ e todos os nossos vícios.»//«Meu amor,/ você não acreditaria em todos os lugares/ em que achei que encontraria você.»// «Milhares de poemas vêm dançando no meu peito/ desde a primeira vez que você me beijou.»//«Tenha cuidado com a maneira como você ama as pessoas./ Não as destrua./ Não se destrua».

Isto tem consistência como poesia? Até como auto-ajuda é medíocre. Porquê o sucesso? É simples, é uma mulher negra num mundo polarizado, não importa a vulgaridade do que diga. Coitadas das poetas de outras latitutudes e raças: têm de estudar todos os poetas da sua tradição, dois mil anos de poesia, antes de se atreverem a escrever uma linha que seja consistente.

Esta crónica vai ser lida como racista quando é o contrário disso: apela a que os africanos readquiram a sua dignidade trabalhando mais e melhor e auto-guetizando-se menos.

Uma moçambicana passou-me o manuscrito de “uma novela”. Como novela era pífia; salvei umas frases no meio da hulha, que montei, o que resultou num poema unitário de 20 páginas. Ela publicou o poema. Vejo-a depois entrevistada pela RTP África onde, com desfrute e vaidade, se ufanava de ser estudada nas universidades do Brasil.

Em que farsa me meti eu, interroguei. De outra vez, deram-me um manuscrito de trezentas páginas para ler, sem estrutura, martelado na sintaxe com que se acomodarão os alimentos no bandulho de um pangolim. Estruturei-o e reduzi-o a cento e dez páginas. Pensei, isto, claramente, ainda precisa de ir às oitenta mas não quero assustá-lo de antemão. O tipo, radiante, meteu imediatamente o livro na tipografia antes de eu conseguir enxugá-lo devidamente.

Nunca mais privou comigo ou voltou a escrever outro livro. Ou antes, contactou-me dez anos depois para que eu exercesse de novo as minhas habilidades de alfaiate, mas disse-lhe que não.

Recebi agora um daqueles livros colectivos, emanados dos Departamentos de Estudos Africanos: lá vinha um aperaltado estudo académico sobre a famigerada “obra-prima”. Ao qual se segue outro artigo “científico” sobre uma poeta que não consegue, literalmente, no domínio da língua, fazer coincidir um botão com a sua casa. Assim se produzem teses, de fora, sobre “o cânone” literário, ancoradas num paternalismo estupidificante.

(Não distorçam, existem bons escritores, ainda esta semana escrevi o prefácio para um jovem novelista, falo antes dos “efeitos da mentira” alimentados pelo duplo critério da complacência, que impedem a autonomia e o crescimento).

O predomínio da cultura oral é patente, explicando a dificuldade de grande parte dos estudantes africanos que vão estudar para fora com bolsa. Não estão habituados a uma tal exigência de ritmo de leitura e de pressão. Em casa, os trabalhos nunca visavam a excelência e nas avaliações prevalece um critério de mitigação: “Dado o contexto, não é mau…”.

“Subtilezas” enquadradas num proselitismo auto-desculpabilizador e avesso à crítica. Neste contexto, a cultura instalada – de cultivar o discurso vitimista em detrimento do esforço e da produção, quer de conhecimento, quer de modos de vinculação ao presente -, é um erro programado que politicamente beneficia a alguns.

O que gera tensões e leva a que os comportamentos se polarizem entre a baixa estima e a auto-indulgência como desporto nacional, num desvanecimento colectivo que tem como mecanismos principais a busca de bodes expiatórios e a catarse hedonista. Por isso são sociedades essencialmente consumistas, destinadas a estar em pane: orgulhosamente, querem ter “a autoria” sem trabalhar o suficiente para aprender os processos. Eis a contradição, gritam por soberania ancorados em sistemas de vida que os engaja na dependência.

Houve um inquérito de uma rádio à boca da universidade sobre se era prioritário fazer o curso universitário ou pertencer ao Partido. Adivinhe-se.

26 Mar 2021

A minha poética de Aristóteles

O quebra-gelo foi o primeiro oásis que a vida te concedeu. Desçamos então do passado ao presente: na tua frente flui o rio Amstel e as casas flutuantes onde habitam pessoas feitas de água, tranquilas como o gelo que emagrece o olhar. Na outra margem os edifícios marcam a paridade de uma grande sala vazia. As bicicletas têm galochas que raspam o grão de brita, completamente alheias à acção da gravidade e aos remansos da esplanada. Sobre o estrado, as torres de aquecimento permitem unir os joelhos, fechar o sobretudo e ter a mão e o cachecol amarelo sobre as folhas de papel. 
 
As vidraças do café percorrem toda a longitude que sopra de lés a lés nos acordes do violoncelo. Atrás do balcão, onde a islandesa (que é uma nuvem de beleza) apoia toda a brancura do corpo, encontra-se a galeria de arte e a sala de concertos. De lá chegam as grandes colheitas que fazem circular a manhã. O quebra-gelo, “Ijsbreker” no original, é um tiro com silenciador e sem necessidade de pistola. Por vezes nem o violoncelo se escuta, nem os pneus das bicicletas, nem o suspiro da islandesa que serve cappuccinos com a palidez dos lustres reflectidos no rio. 
 
Ao fim da manhã, o teu amigo José M. Rodrigues chega da academia de arquitectura e senta-se ao teu lado para temperar as névoas que cobrem a ponte levadiça de madeiras claras. Ele é fotógrafo de arte e nas câmaras escuras que lhe conheceste compõem-se anos de luz avermelhada e indagam-se os melhores reveladores. Nesse dia exacto do fim de Fevereiro, corria o ano de 1983, tinhas acabo de imprimir o que viria a ser o teu primeiro romance, um momento histórico, sussurraste. 
 
A passagem do cargueiro que tinha escrito “echo” junto à proa suspendeu a conversa por instantes. Segundos depois, parece que foi agora, levantas os braços no ar como fazem certos pássaros omnívoros que consomem vermes, bagas e frutos de pele lisa. E a resma de folhas dactilografadas, levada por um súbito golpe de vento, sobrevoou toda a esplanada, a estrada, os tampos das mesas e as amarras das casas flutuantes. Uma chuva de letras a pairar sobre todo o quebra-gelo que logo precedeu a feliz etapa de recolecção. 
 
Ninguém na esplanada se furtou à tarefa: um verdadeiro polvo de garimpeiros à cata da pepita de ouro. Voltaste assim a reunir as sílabas, as linhas, as páginas. Terá falado uma única, é verdade. A tua poética de Aristóteles, disseste tu à islandesa, mas ela não compreendeu a graça, nem te ligou patavina (foi de pasmar a brancura da moça que parecia afinal inabitada).
 
Passado um trimestre sobre esse acontecimento, vendeste a aliança do teu primeiro casamento na loja de penhores para ir à ópera, de novo com o teu melhor amigo. Foi Lohengrin em três actos e, no último, o cisne desapareceu nas águas para logo reaparecer sob a forma de Gottfried, antes transformado em animal por obra de feitiço. Identificaste-te imediatamente com o jovem duque do Brabante (representado por um actor que nunca chegaria a cantar) por mudar de corpo para melhor manter a sua alma. 
 
Depois foste a uma festa, era perto. A anfitriã, uma pintora e vídeo-artista, tinha o costume de colocar uma mangueira muito esticada por baixo do tecto sempre que as visitas lhe enchiam a sala. Quando as hostes aqueciam, toda a gente levantava os braços no ar com as mãos agarradas ao tubo, dando a sensação de que toda a humanidade viajava de metro. “Um metro que tem deus como última estação”, repetia ela num inglês que tinha as vogais assarapantadas por consoantes de faca cortante, coisa comum nas línguas semíticas.
 
A linguagem do metro infinito surgia como uma espécie de resolução desse problema que éramos nós. Nós, os humanos. Um problema que discorria em voz alta. Todas as pessoas riam furiosamente nessas noites, mesmo quando contavam histórias do holocausto envolvendo os pais, os tios ou os avós. Nessa altura, aprendeste a deixar de estranhar aquilo que cada um de nós não é. Tornaste-te, a pouco e pouco, no cisne que desaparecia e que reaparecia para desse modo receberes o sabor (e o saber) de seres sempre outro. A folha a menos do teu primeiro romance era afinal uma graça: uma estação de metro a menos no metro infinito desse luminoso e invulgar oásis que é a vida.
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

25 Mar 2021

As toxinas do crocodilo e o Marcial Desassobio

Meu caro Marcial, quem escreve expõe-se. Triste é quando se é intencionalmente mal interpretado, numa teima de moscardo zangado porque picou a sombra do burro e esta não lhe aceita a dança.
Neste mundo fragmentado e de novo tribal, o ser humano converte-se num animal agressivo, quando encarniçado pelas hordas. Foi infelizmente o teu caso.
Vamos só discutir dois ou três pontos do teu imenso disparate.
Primeiro, esclareçamos a questão do conceito de “lugar de fala”, como locus social. Lastimo ter de lembrar-te, este conceito não nasceu com a Djamila Ribeiro, de quem tenho o livrinho. É uma coisa remota, e o conceito foi manejado por Pierre Bourdieu, Foucault, Butler e Orlandi, por exemplo; simplesmente houve agora uma patética “apropriação” exclusivista para as questões rácicas.
Eu ESTAVA A ESCREVER UMA CRÓNICA E NÃO UM ARTIGO CIENTÍFICO sobre a genealogia do conceito, e numa crónica atalhamos. Ademais, o meu foco não era exactamente o conceito mas O SEU RETORNO EM FARSA E CARICATURA e a sua triste aplicação no caso Janice Deul-Marieke Lucas Rijneveld. Porque nem tudo tem a ver com a raça; lembro-me de como ficavas inflamado como jovem simpatizante da Renamo em relação ao que se passava no teu país e como te sentias oprimido e condicionado pelo partido no poder, e aí punhas a coisa, certeiramente, no campo da política.
Bom, avisava o Marx: aquilo que é trágico volta depois adulterado como farsa. O que o meu texto visava era esta leitura com que a horda deturpa o conceito (escrevi logo ao princípio da crónica: «Essa falácia que se chama “lugar de fala”, TAL COMO ESTÁ A SER ENTENDIDA, significa, de modo caricato…»), e não a sua justeza no lugar apropriado.
De resto, quem de bom senso pode ser contra o “lugar de fala” quando se trata de dar a voz ao que estava subalternizado, silenciado? Ninguém. Creres que eu pensaria de outra forma, choca-me. Afinal, o que ouvias tu nas/das minhas aulas?
Explica-me a lógica tinhosa disto: A AMANDA GORMAN ACEITOU A HONRA QUE SER CONVIDADA POR UM PRESIDENTE BRANCO PARA ESCREVER UM POEMA PARA A OCASIÃO INSTITUCIONAL MAS DEPOIS SÓ PODE SER TRADUZIDA POR UM BRADA? Escapa-me alguma coisa, ou estão a chamar parvo ao Biden? Afinal ela estava apenas a PROCURAR A VANTAGEM e não a ter a partilha sincera de uma cidadã republicana e democrática?
E sim, a noção de “lugar de fala” (ainda não tinha esse nome, evidentemente), é muito mais antiga. Está logo no Homero, que construiu os elementos da verosimilhança que o Aristóteles cristalizaria em conceito. Quando alguém fala no Homero começa por dizer “o lugar de onde vem” e “o que faz”, e as epopeias dele eram considerados verdadeiras enciclopédias sobre os vários místeres, a pesca, a caça, a estratégia da guerra, e até a medicina, como explica Ezra Pound: «As qualidades literárias em Homero são de tal ordem que um médico já escreveu um livro para provar que Homero havia sido um físico no exército. (As suas descrições de certos ferimentos e dos seus efeitos, têm sempre tamanha precisão que dir-se-iam extraídas do relatório de um médico legista.)
Um outro universitário, um Francês, demonstrou aproximadamente que a geografia da Odisseia estava completamente correta; não a geografia dos livros e das cartas, mas a que poderia descrever um marinheiro que faz cabotagem, quando faz um “périplo” por exemplo.
» Cada um emitia o seu saber, a partir do seu “lugar de fala”. Vês?
E de vez em quando, na Ilíada ou na Odisseia, lá aparece alguém a reivindicar o direito e a atenção para o seu “lugar de fala”, porque só ele pode falar do seu lugar e da sua origem. Aqui colheu Aristóteles as regras para a construção de personagens e a verosimilhança. Um mecânico de automóveis não fala como um psiquiatra, a personalidade de um tipo que cresceu numa cubata acusa (até na linguagem) mais traços duma fomeca secular que a de quem cresceu em Sommershield. Se não percebeste isto então é porque não soube, na disciplina de Dramaturgia, ensinar-te cabalmente a fazer as “relações”. Erro meu. Embora amortecido pela resistência de quem sempre se precipita a falar muito antes de pensar, projectando em vez de escutar (característica que pelos vistos manténs), e insiste em não entender que APRENDER É COMEÇAR A FAZER RELAÇÕES ENTRE COISAS QUE ANTES PARECIAM DESLIGADAS.
Entretanto, as coisas mudaram muito desde o Homero para cá e a nossa auto-percepção ou a dimensão do que seja o outro na pluralidade que nos constitui e mesmo na nossa cultura política também. Ademais, há dois mil e quinhentos anos de literatura que nos ajudaram a pensar e a vivenciar uma horizontalidade nas práticas de relação, que vão da desconstrução das anacronizantes hierarquias políticas, até à emergência de novos instrumentos de vinculação ao outro, como a educação para a empatia, etc., etc. Portanto, hoje já somos capazes de normalmente nos metermos no lugar do outro, a polpa do que seja a humanidade cresceu muito em fruta & género, e a literatura mais não é que isso. EU POSSO, SIM, SENTIR A INJUSTIÇA QUE RECAI SOBRE OS OUTROS e falar dela, adoptar como minha a dor do outro.
Tu é que, com pézinhos de lã, fugiste ao que era relevante sabermos e que se relaciona com o foco do que denunciei. TU ÉS A FAVOR DE QUE A AMANDA SÓ POSSA TER UM TRADUTOR NEGRO? Assume.
Olha o que disse esta semana uma escritora negra sobre a matéria:
«A ideia de que autores negros não devem ser traduzidos por brancos implica uma posição recíproca inaceitável: a de que, como mulher negra, não me é reconhecida a capacidade (mais ainda, o direito) de traduzir, por exemplo, Rousseau ou Flaubert. Essa é uma capacidade literária. O género, a cor, o meu contexto familiar não são o que me qualifica para traduzir Toni Morrison, nem o que me desqualifica para traduzir Pushkin. Não me sinto numa posição intrinsecamente privilegiada para traduzir livros de autoras negras e, quando se trata de escolher tradutores para os meus livros, basear-me nesse critério seria uma ingenuidade sem cabimento e um paradoxo. Imaginar que só uma mulher negra pode traduzir o que escrevo sugere que só uma mulher negra poderá compreender essa tradução e, portanto, que só posso ser entendida por leitoras negras. Considero tão difícil fazer-me entender a uma tradutora negra como a um tradutor branco. A tradução representa uma esperança na possibilidade de ser compreendida por aqueles que não se assemelham comigo. A tradução constitui a semelhança. Aproxima-nos. Sou feita do que li, graças a muitos tradutores: o seu género e cor de pele são indiferentes. O pronunciamento em questão preconiza na verdade uma hostilidade à literatura: é contra a possibilidade de a imaginação criativa romper as inibições, o ponto de vista e a sensibilidade limitada do ‘eu’.»
Quem é a autora? Djaimilia Pereira de Almeida – autora de “Esse Cabelo” (um livro extraordinário, que aconselho), de “Luanda, Lisboa Paraíso” e de “As Telefones” – citada no artigo de Isabel Lucas que saiu no Ipsilon, abordando este mesmo estúpido debate.
A Djaimilia tem toda a razão. Os que acham que o Mia Couto não pode escrever um romance sobre o Gungunhana não.
Não me digas que a Djaimilia é uma traidora!? Ai Jesu!
O QUE É ACONSELHÁVEL PARA UMA BOA DIGESTÃO DO MIA E DA DJAIMILIA É UMA DOSE DE PÓ DE MÚMIA MISTURADO COM RUIBARBO SECO, TODOS OS DIAS, ISTO EM NÃO CONSEGUINDO O ÚNICO REMÉDIO IDEAL QUE É O DE TER UM IDÊNTICO RITMO DE TRABALHO AO DO AUTOR DE AS MULHERES DE CINZA.
Porque o que se passa na realidade é isso: uns trabalham os outros poupam-se. E o que é que esta singela questão tem isto a ver com pretos e brancos, meu Deus? Trata-se de disciplina.
E tu, estarás à altura de compreender cabalmente a voltagem e as vertigens de Heidegger, ou Sloterdjik, sendo negro? Se tu achares que não, estás simplesmente a amputares-te, e lamento por ti. E como raio interpretar o Gregor Samsa, da Metamorfose, do Kafka, se nenhum de nós é insecto? Foi um dos maiores espectáculos de teatro que vi na vida. Suponho que tu com as tuas novas ideias não enfrentarias o desafio. Que pena!
Vamos ao segundo ponto, ESTE GRAVE, para te dizer francamente, foste “foleiro”, uma maneira simpática de chamar-te desonesto. E o segundo ponto é o fulcro do que se pretende com a “tua” resposta: difamar-me e sujar o meu nome.
Albert Manguel, a propósito do Holocausto discute uma injunção que devemos extrapolar para o Racismo. Pergunta ele: aquele horror então fazia parte da minha história pessoal, mais do que a minha história como ser humano?
Nunca aceitei esta chantagem. Honrar as vítimas deve fazer parte da nossa memória, mas não colonizar a minha identidade. Porque, PESSOALMENTE, NÃO TENHO CULPAS NO CARTÓRIO. Eu não me confundo com os horrores praticados no passado por gente a quem eu não deleguei nada, nem tem qualquer carta minha a assegurar-lhe o direito de me representar – compreendes, ou é demasiado subtil?. A minha identidade, construi-a sempre ao arrepio da memória do horror: por acaso, o melhor amigo da minha vida era negro (morreu), casei com uma sobrinha da poeta Noémia de Sousa (terei de explicar que não era branca?), vivo com uma indiana e tenho filhos mestiços, tive sempre escolhas que me dificultaram a vida porque nunca escolhi o conforto e preferi ser útil, em terras que pouca gratificação tinham para me oferecer.
Sou o único inquilino do meu prédio que não foi assaltado. Sabes porquê? Porque os guardas sabem que em minha casa só há livros e vêem que em minha casa entram pretos, que a minha porta se abre sem barreiras nem discriminações. Publiquei livros e centenas de artigos a corroborar esta minha atitude. E agora, do nada, porque não me leu devidamente nem me leu no fluxo mas apenas mal e fragmentariamente, aparece um ex-aluno a chamar-me LEVIANAMENTE negacionista? Devias ter vergonha, Marcial.
E para que quiseste tu, meu querido (tu sabes que sou um tipo de afectos) ter o gesto suicida de descer a escada pelo corrimão (é bom sentir a velocidade no cabelo, não é?) não prevenindo o risco de encontrares a cabeça de um prego levantada?
Na semana passada escrevi uma crónica (estiveste tão ocupado a ouvir e a colheres contributos à esquerda e à direita, que não tiveste tempo para a ler) onde se dizia, preto no branco, isto: «(…) a Lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem. É pior: Portugal deixou em Moçambique para cima de 90% de analfabetos. Foram os moçambicanos quem, na ânsia de dar um cimento comum a um mosaico com mais de duas dezenas de línguas, ensinou 50 % dos seus concidadãos a ler e a falarem português. NÃO SEI SE HÁ UM MODO SUAVE, DELICADO, PARA EXPLICAR QUE UMA HERANÇA DE 90% DE ANALFABETOS POSSA CONSTITUIR UMA OFENSA IRREPARÁVEL COMETIDA PELO COLONIALISMO PORTUGUÊS.»
O azar que tu tiveste! Isto é a atitude de um negacionista? Como é que mesmo antes de te ter lido te desminto? Será mau olhado? Medita se não foste completamente ridículo ao chamares-me negacionista?
(Engraçado, alguns portugueses que leram a minha crónica também me devem ter chamado uns nomes feios!)
Pior, comparas-me ao Gobineau, em trazendo-o completamente a despropósito à liça! Que delírio é esse? EU NÃO SOU UMA TELA ONDE SE PROJECTA O PASSADO DA MINHA RAÇA. EU NÃO TE CONFUNDO COM O SHAKA. Onde é que eu, meu estupor (chamo-te o que chamo aos filhos, quando me zango com eles) defendi alguma vez a superioridade da raça branca? Vejo que interiorizaste que “os brancos são todos iguais”; na sanha de tudo generalizares revelaste-te um belo racista.
Em múltiplas crónicas minhas no Savana, durante anos, eu zurzi forte e feio nas ilusões da “cultura ocidental”, no “neo-colonialismo”, e nos tristes equívocos dos países ex-colonizadores com as colónias. O que é que tu não leste aí? Como é que de repente, num truque de magia, sou negacionista? Esta acusação, magoa-me, avilta-te, e foi-te soprada.
Foi como negacionista que me dispus sempre a ajudar os alunos e a fornecer-lhe os livros de que precisavam para qualquer disciplina? Foi isso que apanhaste nas conversas que tinhas comigo? Ou eras uma coisa pela frente e outra nas minhas costas?
Passa-se que não se tolera em Moçambique posicionamentos que não sejam a “preto e branco”. Quem mostra que existem nuances está lixado. Aí, o estômago de alguns mostra-se sensível como o estômago do Estaline que se engasgava quando encontrava o cabelo de um careca no seu leite. Será que ofendia por ser branco, português? Mas apresentar livros, fazer prefácios, escrever catálogos para artistas moçambicanos já me era autorizado e solicitado – não é contraditório? Ou aí só se aproveitavam, “tiravam vantagem”? SOU EU E O BIDEN: DOIS PARVOS.
Eu unicamente procurei EXERCER O MEU “LUGAR DE FALA” (deste conta que em Moçambique sou minoria?), procurando o debate, a conversa, às vezes risonhamente, outras vezes mais ironicamente, o intento foi sempre participar na cidade e suscitar uma discussão crítica, saudável. Tu, não sei porquê, nunca aproveitaste essas janelas que eu abria, e agora de repente, falas de “gota de água” e chamas-me “negacionista”. Simplesmente porque NÃO ENTENDESTE uma ironia?
Repito a primeira frase da crónica: «Essa falácia que se chama “lugar de fala”, tal como está a ser entendida, significa, de modo caricato, que eu como branco não posso falar da injustiça cometida sobre um negro (pois sei lá eu do que falo), que a galinha não pode falar da terrível cárie do lobo, que só a mulher pode falar autenticamente do seu castigo em engomar a roupa da família e que só o monge trapista poderá falar do silêncio.»
Como se pode inferir daqui que eu sou negacionista? Com que abstruso raciocínio? É de facto descomunal o peso dos fantasmas na vossa cabeça, capazes de verem placas tectónicas a dançar o tango debaixo da cama onde repousam os chinelos da empregada doméstica.
Hás-de um dia contar-me QUEM TE INSTRUMENTALIZOU NESTA TAREFA (de te expores ao ridículo), ó meu escritor sem livros.
Vamos à última questão controversa (a de saber se existem ou não culturas superiores a outras) porque auxiliar da difamação – dirigida a mim, que nunca fui sobranceiro e sempre tratei as pessoas e os alunos de igual para igual e que na verdade sou um pachola, o contrário de um tipo arrogante.
O teu intuito era fomentares o ódio em relação a mim? Foi nisso que te tornaste?
Contudo, nesta matéria tão inflamável em tempos de um relativismo cobarde, digo-te que subscrevo esta “fala” do Sponville, que se me afigura de uma meridiana clareza:
«O que então explicámos aos nossos alunos da Alliance Francaise é o seguinte: Não acreditem que dizer que “todas as civilizações se equivalem” seja defender os direitos humanos. É exatamente o inverso. Por uma razão simples e forte: se todas as culturas se equivalessem, já não podíamos dizer que uma cultura respeitadora dos direitos humanos é superior a uma cultura que não os respeita.
É aqui que as duas proposições que eu evoquei, a verdadeira, “todos os homens são iguais em direitos e dignidade”, e a falsa, “todas as civilizações são iguais em facto e em valor”, são, não apenas logicamente independentes, mas logicamente incompatíveis: porque se a primeira é verdadeira, se todos os homens são iguais em direitos e em dignidade, então, uma civilização que respeita a igualdade de direitos e a dignidade de todos os seres humanos é superior a uma civilização que as viole.
Por exemplo, uma civilização que pensa que os homens e as mulheres são iguais em direitos e dignidade está acima de uma civilização que pretende fechar as mulheres em situações de opressão e de inferioridade. Por exemplo, uma civilização democrática é superior a uma civilização tirânica ou totalitária. Por exemplo, uma civilização que respeite as liberdades individuais é superior a uma civilização que não as respeita. Por exemplo, uma civilização secular, onde todos têm o direito de escolher a religião ou a falta de religião, é superior a uma civilização integrista ou fundamentalista, que pretenda impor a mesma religião a todos.
»
É ou não claro, o que ele diz? É aquilo em que acredito. E tu, em que é que acreditas?
Mais importante do que esta polémica idiota, idiota, idiota, e mais triste, Marcial, é a morte de um grande poeta, o polaco Adam Zagajewski, no dia em que te leio a atacares-me. Há um poema vital dele que diz tudo o que eu gostaria de ter-te ensinado:
NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS: Só na beleza criada pelos outros/ existe consolação, na música/ e nos poemas dos outros./ Só os outros nos podem salvar, /mesmo que a solidão tenha o sabor/ do ópio. Não são o inferno, os outros,/ se os espreitarmos de manhã, quando/ têm a testa limpa, lavada pelos sonhos./ Por isso cismo muito sobre a palavra/ que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»/ é uma traição a qualquer «tu», mas,/ em troca, um poema de alguém fielmente/ oferece uma fresca, moderada conversa.»
É isto? Só a beleza criada pelos outros, pelos outros culturais, pelos outros civilizacionais, pelos outros que nos evadem da paranóia com que invariavelmente a nossa cultura nos sitia, é que nos salva e inscreve no nosso âmago a necessidade da conversa. E isto está muito para além das raças.
Quando nós não queremos sair do nosso quintal, do nosso charquinho, ficamos sem dar conta atoleimados por causa das toxinas que se exalam do cérebro do crocodilo. Ai, o crocodilo, Marcial, que grande dádiva da Mãe Natureza para a humanidade! Até dá sapatos, já viste? Que se metem debaixo da cama e parecem terramotos de grau 9, se olhados depois de uma carraspana!
E deixa lá a Europa apodrecer na sua decadência, África apodrecer nas suas guerras, deixa lá as hordas – tudo o que interessa está nas pessoas, embora não tanto no seu lugar identitário mas no COMO introduzem algum senso comum no lugar da fala.

24 Mar 2021

Prova de vida (bis)

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 13 Março

 

É raro ver a mão por si só. Dançarina, agita-se à frente do peito, prolongamento dos olhos, alargando a área de influência da voz. Ferramenta, fecha-se em força, desmultiplica-se em função, alicate, bisturi, seringa, chave, bandeira. Instrumento, vai a cada canto do palco e do sopro e das cordas. E assim com os corpos, aquele de que faz parte ou alheios, para tocar e, portanto, aumentar. Ou repousa por sobre partes outras, recolhida às axilas, à timidez e conforto dos bolsos. Tem que se apanhar distraída, cansada, como que desarticulada, de um lado veias, do outro linhas. Vejo-as a sacudir o pó do álbum e deixo-me vaguear até ao tédio fatal.

«O meu pecado era não ter dezoito anos. A norma não permitia o desejo. E o senhor de azul não parava de o repetir. Que não, imensas eram as desculpas e os lamentos para tudo ser resumido e concluído num «não». Redondo. Não podia entrar no bloco de granito branco. Que não e pronto. Na Biblioteca Nacional só podia entrar depois de ter aqueles anos cumpridos. Foram tiros na minha curiosidade. Recolhi à timidez e desci os degraus, entre anjos de saber. Há-de haver algures um nome para os «guarda-lombadas». Guarda-livros é para quem neles guarda números. Anjo-da-guarda também não se aplica, que esses evitam acidentes. Tendo os livros alma, serão as bibliotecas céu ou inferno? No Campo Grande há um enorme purgatório cheio de almas penadas.

Durante oito ou nove séculos, artistas e santos, campónios e burgueses comeram a poeira daqueles caminhos, pintaram aqueles ícones, construíram e reconstruiram aquelas paredes, fecharam-se sob a ocupação otomana, abriram-se aos ventos da Renascença Nacional Búlgara, padeceram as proibições comunistas, acolheram o seu fim.

Durante oito ou nove séculos, ressoaram os sinos pela floresta que esconde o Mosteiro de Rila, e sem por isso afectarem o silêncio prenhe dos santuários. Cerrada a porta principal, o mosteiro torna-se castelo inexpugnável. Mas a entrada fundamental não se fecha. Os peregrinos acedem aos manuscritos e anotam-nos. É cedida passagem ao povo que aí se perde nas hagiografias pintadas do fundador, o eremita S. João. Anjos, somos todos anjos.

Qualquer um pode tocar as iluminuras. Qualquer um pode trazer pó das lombadas nos dedos. Qualquer um pode abastecer-se de metáforas para o caminho. Ou ler, livros d’alma que por lá não vi outros.»

Alma minha, revista Ler

«Falta, portanto, uma etiqueta para o bom encontro dos seres amantes. Nada de transcendente, uma conversa tu-cá-tu-lá sobre as geografias respectivas do corpo e prazer. Fora da cama, enfrentando a ignorância sem temores nem culpa. Lá dizia um doutor norte-americano que a libertação sexual significa o direito a saborear todas as partes do corpo, o direito de fazer carícias proibidas civil ou religiosamente, o direito a ser sensual e exuberante em vez de mecânico e solene. (…)

A intimidade exigida para o sexo oral é tal que raramente se encontra fora de uma relação amorosa. Por isso, dizem alguns, quando a aceitação do outro é alcançada torna-se subitamente a expressão última do amor. Pouco importa se o figo é comido da maneira correcta ou vulgar, descritas na versão de Herberto Helder do poema de D. H. Lawrence, «Figos» (ed. Assírio & Alvim): “A maneira correcta de comer um figo à mesa/ É parti-lo em quatro, pegando no pedúnculo,/ E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante rósea, húmida, desabrochada em quatro espessas pétulas./ Depois põe-se de lado a casca/ Que é como um cálice quadrissépalo,/ E colhe-se a flor com os lábios./ Mas a maneira vulgar/ É pôr a boca na fenda, e de um sorvo aspirar toda a carne.”»

Sexo oral: A maneira correcta de comer um figo, revista Cosmo

«Para que serve o sono senão para dar à alma uma oportunidade de preguiça? O descanso é a miséria do futuro, mas o trabalho é a ocupação dos tristes. O sono é uma derrota. De olhos abertos, quando os outros dormem é a máxima para os que, mesmo quando os candeeiros se apagam, lhes basta os mínimos para se conduzirem pelas ruelas obscuras. (…)

A vida sabe ser um enjoo e daí que os vómitos mais fundos, mas também os mais fecundos, sobre a humana condição surjam nas navegações noctívagas. A sensação amarga de nos cuspirmos é uma metáfora do desejo. É tanta a vontade de abandonarmos o navio-corpo ou a viagem-vida que nos surpreendemos com a energia do rasgo, com a força que parece vir do nosso centro mais profundo, mas que é só estômago. A digestão dos dias também parece arrotar nos sonhos, mal a luz se ausenta para parte certa.

Por tudo isto, e mais alguma coisa, a noite é, como só no feminino, a suprema surpresa do amor, o sopro perfumado da inspiração, a mais fina concentração, a mais impossível das possibilidades. Por tudo isto vos digo que a noite está em vias de extinção.»

Crónica, revista Tango

«Os marinheiros, a base da pirâmide hierárquica, caçam a ferrugem por todo o lado e, viagem após viagem, pintam cada centímetro quadrado, ocupam-se com milhentos serviços de manutenção numa luta inglória contra os elementos. Não se consegue, todavia, evitar tédio. Nem para os que procuram aprender as subtilezas da língua das correntes (que vão sempre para algures) ou do sentido dos ventos (que obrigatoriamente vêm de algures).

O mar é nisso traiçoeiro. Atrai porque dono de belezas mil, senhor de encantos misteriosos, para , tendo-nos à mercê, nos castigar com o tempo, uma paisagem de aparência sempre igual, um ritmo sincopado, hipnótico, que nos maça o corpo e adormece a alma.»

Sem destino, revista Grande Reportagem

«Se soubesse desenhava um mapa. Mas esse é o meu segundo desgosto, não ter ainda aprendido a desenhar. E muito menos mapas, que pedem rigor na concepção, firmeza no traço, poesia na maneira de passar ao papel os caminhos e as montanhas. Se soubesse compunha assim uma viagem. Só que esse é o meu primeiro desgosto: não aprendi ainda música. Estive já em África, o que pode ser considerado um princípio, mas não consegui mais do tamborilar, sem nunca desenhar mapas nem compor viagens. É por isso que, nos momentos fáceis, mas sobretudo naqueles em que viver pesa e cansa, a música desenha horizontes e das montanhas pouco mais que pó nos passos de quem anda.

Carnet de routes, revista Ícon

«Flop Traz consigo, do inglês, o som de sólido mergulhando em líquido, ainda que sem estardalhaço. De tanta queda ter dito, flop tornou-se, também na nossa língua cheia de trapos alheios, fracasso ou insucesso. Quanto maior for a subida, mais brutal a queda. A gravidade da observação aplica-se a certa operação policial que, com estardalhaço e brutalidade, caiu pesadamente no abuso e na ineficácia. Flop possui a suavidade da brincadeira com pedras saltitantes à beira-mar. Fracasso contém a culpa do vidro partido ameaçando cortes e sangue. Prefiro fracasso.

Boca de incêndio [dicionário minúsculo para perceber o que dizem por aí as palavras], jornal Expresso

24 Mar 2021

O canto que se perde

Vivo numa cidade que não me deixa estar triste à vontade. É impossível, garanto. Estes dias de azul-ferrete (quando se alude a Eça de Queiroz há sempre a esperança de redimir um texto, amigos) decretam uma obrigação de bem-estar eufórico ou pior, felicidade. Nada contra, é certo. Nem eu tenho prazer na tristeza nem felizmente nada na minha vida desta altura me carrega para rios mais profundos e negros. Até ver, claro.

Mas a tristeza é um direito inalienável e um estado de espírito tão valioso de viver e sentir como o da alegria. E no entanto o mais contrariado, o mais oprimido. Estes dias de implacável azul assim o parecem provar. E obviamente que podemos sempre contar com a proverbial estupidez humana que se lembrou de consagrar um dia do calendário à “felicidade”. Dia Internacional da Felicidade, dizem eles. Celebra-se, ao que parece, todos os 20 de Março por sugestão do simpático reino budista do Butão – que entre outras características nacionais converte o Produto Interno Bruto em “Felicidade Nacional Bruta” – e a sua instituição foi aprovada em 2012 por unanimidade (!) pelos 193 estados membros das Nações Unidas. Tenho a certeza de que em certas regiões do globo assoladas por todos os flagelos possíveis e imaginários esta patusca proposta de um reino distante deve ser amplamente ansiada e festejada todos os anos.

Enfim, amigos, estou a deixar que o azedume me possua outra vez. Regresso ao azul do céu para ver se equilibro o mel e o vinagre da alma. Não consigo: a realidade insiste em perseguir-me e em saber quem sou. Deparo com esta história, metáfora e literalidade em simultâneo. Conto: numa região australiana uma espécie nativa de ave – o australian regent honeyeater, assim mesmo sem tradução depois de ter ouvido quem sabe destas coisas -, dizia, este pássaro está em vias de extinção devido a intervenção humana negligente que destruiu quase por completo o seu ecossistema. Isto, infelizmente, não é raro; deparamos com este tipo de desastre ecológico quase quotidianamente. Mas o mais triste está para vir: devido à escassez dos seus membros, os pássaros não conseguem aprender o seu canto, essencial para o acasalamento.

Ou seja: os mais novos, que aprendem o seu cantar por imitação dos mais velhos, já não o podem fazer. Assim, replicam o cantar de outras espécies – o que naturalmente não convence as fêmeas e assim torna impossível a sua reprodução. A extinção parece inevitável, ainda para mais sabendo que o estado natural destes jovens pássaros é o silêncio, para evitarem serem notados por predadores.

Não saber o seu próprio canto, esquecer a sua própria voz por ausência de interlocutor. Não consigo evitar a analogia com a actual condição humana, cada vez mais sentenciada por vontade própria a falar sozinha, esquecendo-se aos poucos daquilo que foi o canto da sua humanidade apenas porque ouvir o outro parece estar também próximo da extinção. E isto, amigos, nem este céu azul pode salvar.

24 Mar 2021

Concentração

Vagueio pela casa de mim orvalhada não sei se eu se esta vida aqui disposta.

De um certo poema de vazio. E é como se por muitos dos momentos em que me contento em enfrentar-me tudo reparando finalmente que em mim existo me diga que é pouco quando queria de mim fazer a suficiência que não vem de outras paragens. Onde andam os outros que tanto se ausentam onde andam os espelhos cobertos de invisibilidade eu neles eles de mim e assim mais sós esvaziados de imagens que dizem como estou a gastar-me.

Nada é monótono nem contínuo desfiar de dias sempre encontrar as mesmas páginas irresolutas e sempre este grito que não sai por civismo e hábito. As palavras custam a encontrar o timbre prolongado de socorro e acusação. Ao que de outro não chega ao que de outro se alimenta da minha respiração. Em que me concentro devagar.

Mas nem sei se de mim há ar puro que sirva a alguém quando assim me vejo com as palavras diárias sem novidade sem extensão que as liberte daquilo que disparam.

Deviam liberdade a esta boca cheia do que desce de uma mente em círculos. Maldigo-as porque são pobres que sempre voltam sem os ter ensinado a ser independentes. Na mesma pobreza insuficiente. O que se quer das palavras senão que resolvam se revolvem devem alivia se descrevem devem entender e se compreendem devem sair para viver. E não voltar.

Ideias amantes têm connosco uma relação de hábito. Dão-se ares de que nos pertencem à casa, reclamam dos vinhos e reparam numa ruga nova mas recusam um novo recanto. Um parágrafo, um itálico. Do corpo.
Penso-as hipócritas a maquilhar rostos degradados repetidos e vãos. Espreitam em vão de escada por isso a passagem e voltam a enrolar-me os braços em volta e voltam a repetir-me falsas cumplicidades aos ouvidos cansados. Mas eu não as queria mais e por vergonha por não querer ferir-me na sua hipotética lealdade duvidosa mas possível tenho no fundo um medo de que se forem não voltem nunca mas mesmo nunca mais e delas venha a precisar. Que há tantas outras mas algumas me são amantes do costume e não sei se sei passar a outros braços e a outros fluidos de aroma diferente. É um vício o conforto de uma intimidade. Um abismo tudo o que se avizinha em volta uma temida dificuldade em descobrir o desconhecimento e uma apavorada dúvida de poder ser aceite amada e desvendada. Por outras palavras feitas. Ideias que cheguem desconhecidas e bravas em estado bruto. Mesmo se de desvendar já não se faz o gesto de anteriores palavras. Amantes.

Não as deveria deixar andar com a chave de casa para entrarem e saírem a seu capricho e gosto. Há dias em que não as quero. Há dias em que não quero outras. Há aqueles dias em que me são indiferentes e precipita-se a vertigem de um certo não sei o quê de afecto pela superfície das coisas. Não quero as profundidades sempre presentes e não quero os rostos maquilhados delas a encobrir a idade. Tão velhas a ficar como tudo ou mesmo eu. Repetidas e gastas e de dentro algo tende a rebelar-se das novas gerações de mim como em juvenil revolta de afirmação. De retrocesso de não querer o gato irisado na pele nem o tédio de tanto sentir sem saída. Em que eu preciso de revirar todo o eu sacudir de pernas para o ar como roupa despida para extrair dos bolsos toda a carga meio esquecida a fermentar poeiras e a dar de um certo eu esta ideia vencida.

Depois eu penso qualquer outra coisa como ou naquela expressão da Pina Bausch: “Dance, otherwise you’re lost.”. E danço.

23 Mar 2021

Fernão de Magalhães no Índico

Este artigo complementa o publicado a 25 de Janeiro cujo título era ‘Fernão de Magalhães com Francisco de Almeida’, tendo então Afonso de Albuquerque conquistado em 1507 Ormuz.

O Vice-Rei D. Francisco de Almeida, “embora fosse sua intenção desde o início submeter o rei de Ormuz à suserania portuguesa, pretendia fazê-lo por meios diplomáticos, sem violência nem conquistas, pelo menos enquanto não tivesse garantido o do Malabar”, segundo Joaquim Candeias Silva, que refere, “demonstra aqui o seu grande pragmatismo de administrador, mais do que de político, defendendo um Estado economicamente sólido, mercantilista, com a balança comercial favorável.” Já sobre Afonso de Albuquerque diz, “manifestara grandes dificuldades para se impor, quer aos seus subordinados [três dos cinco capitães em Ormuz abandonaram-no em Fevereiro de 1508 por discordarem dos seus métodos] quer aos chefes locais”, que o achavam pessoa de má-fé e sem palavra pois, mesmo negociada a paz com Cogeatar, vizir e capitão de Ormuz, continuava a mover-lhe guerra.

Ocupado a construir o forte em Ormuz, Albuquerque descurara o serviço que lhe competia, tanto no policiamento marítimo da entrada do Mar Vermelho, como encontrar lugares onde fosse proveitoso o assentamento comercial, preferindo a guerra às pacíficas conversações para o trato. Assim, por seu desleixo, a armada do Sultão do Egipto entrou no Mar Arábico sem ter sido detectada e em Março de 1508 apanhou de surpresa Lourenço de Almeida em Chaul, matando-o, após derrotar a frota dentro do porto.

“Em finais de Outubro de 1508 chegaram a Cochim algumas naus do Reino e por elas soube o vice-rei que D. Manuel o mandava regressar a Portugal na nau S. João, que para o efeito fora expedida de Lisboa a 9 de Abril, sob o comando geral de Jorge de Aguiar. Nesta nau iam também os pormenores acerca da transmissão de poderes ao novo governador <& o mais que avia de fazer>”, refere Joaquim Candeias Silva, que adita, “Jorge de Aguiar ia nomeado para andar de armada no cabo Guardafui [entrada do Mar Roxo], em substituição de Afonso de Albuquerque, e para lhe suceder quando este completasse o seu triénio de governador.”

Na Índia, os servidores do Vice-Rei viram como divina providência a nau S. João ter-se perdido, pois viviam já numa intranquilidade e medo perante o que lhes reservava o futuro com o próximo governador, de temperamento irascível e vingativo, e por isso pediam ao ainda chefe para ficar e não entregar o comando a Afonso de Albuquerque, por ser inábil para a governança.

Estava-se na segunda semana de Dezembro de 1508 e como Albuquerque ainda não chegara a Cochim, o Vice-Rei, por ser já tarde para apanhar a monção favorável e fazer em segurança a viagem de regresso ao reino, decidiu ir ao território de Cambaia vingar a morte do filho Lourenço. Magalhães acompanhou-o no ataque a Dabul e a 2 de Fevereiro de 1509 a Diu.

D. Francisco de Almeida a 8 de Março regressou em glória a Cochim, onde já Albuquerque o esperava e logo lhe exigiu, antes de passar por a porta da fortaleza, a entrega do governo. Como era ainda Vice-Rei, mandou ficar para depois essa conversa, pois precisava de descansar e dar de jantar aos que com ele vinham. Os dias seguintes foram de festa e celebração, recebendo congratulações do Rei de Cochim. Entretanto, deixou bem claro só ali ainda estar pois o barco para o levar de volta não aparecera, determinando partir no início do Verão, quando chegassem as naus do reino, mas só ao embarcar entregaria o governo a quem o Rei D. Manuel mandasse.

No preparo da carga para levar, o Vice-Rei teve bastante dificuldade em conseguir pimenta, pois esta não aparecia devido à sabotagem dos subordinados de Albuquerque. Estes induziram também o Rei de Cochim a deixar de reconhecer D. Francisco de Almeida como legítimo governador, mostrando-lhe a carta-patente que D. Manuel mandara a dar-lhe conta da ordem de substituição.

Mar de Bengala

Fernão de Magalhães estava em Cochim desde que viera de Diu, assistindo a toda esta agitação política e diplomática, quando a 20 de Abril de 1509 chegou a expedição de Diogo Lopes de Sequeira com quatro navios a caminho de Malaca, onde ia estabelecer um tratado comercial, por ser o mais importante dos portos na ligação entre o Índico e o Pacífico. Até então, a acção dos portugueses quedara-se no Mar Arábico e só por uma vez se fizera a tentativa de explorar o resto do Oceano Índico, quando Lourenço de Almeida procurou navegar no Mar de Bengala.

Refere Damião Peres, em História dos Descobrimentos Portugueses, “O Cabo Comorim, extremidade austral da península indiana, foi atingido nos fins de 1505, por uma frota em cujo comando o Vice-Rei da Índia investira seu filho, D. Lourenço de Almeida, incumbindo-o de fiscalizar nas Maldivas o comércio naval que dos portos do Índico Oriental e das ilhas da Indonésia por ali se fazia. Errando caminho, a frota foi arrastada por correntes marítimas àquele Cabo, mandando então o capitão-mor velejar para a ilha de Ceilão, atingido no seu setentrional porto de Gale.” Foram estes os primeiros portugueses no Índico oriental, mas a exploração do Golfo de Bengala só ocorrerá em 1516 por João Coelho, quando atingiu o delta do Rio Ganges.

Magalhães embarcou em Cochim com o amigo Francisco Serrão na expedição de Lopes de Sequeira, a qual foi reforçada com alguns navios e partindo em Agosto de 1509, passaram pelas ilhas de Nicobar, por os portos de Pacém e de Pedir na grande ilha de Samatra, arquipélago da Indonésia, antes de chegarem a 11 de Setembro a Malaca. Aí, os locais prepararam uma cilada aos portugueses que, avisados por os chineses do plano para destruir a frota, conseguiram os dois amigos, Sequeira e outros, fugir em dois barcos para a Índia, deixando dezoito portugueses prisioneiros em Malaca.

De novo em Cochim, ainda o Vice-Rei não entregara o governo a Afonso de Albuquerque, que só tomaria posse a 29 de Outubro de 1509, ou a 4 de Novembro, segundo Joaquim Candeias Silva, em O Fundador do Estado Português da Índia D. Francisco de Almeida 1457(?)-1510, de onde provem muitas das informações deste artigo.

O 1.º Vice-Rei da Índia Francisco de Almeida (1/11/1505-29/10/1509) partia de Cochim a 19 de Novembro de 1509 e dirigindo-se “a Cananor, onde acabou de abarrotar, dali desaferrou no primeiro dia de Dezembro desse ano de 1509.” Após dobrar o Cabo da Boa Esperança, foi à Aguada do Saldanha onde a 1 de Março de 1510, devido ao roubo de gado por uns marinheiros, os habitantes mataram 65 portugueses, entre eles D. Francisco de Almeida e mais dez capitães.

Afonso de Albuquerque tornou-se Governador do Estado da Índia portuguesa e como prioridade estabeleceu conquistar Ormuz, Goa e Malaca, para erguer o grande império no Oriente. Em Ormuz deixara em 1508 o forte meio feito; Goa era um importante porto a meio da costa ocidental da Índia com fortes ligações à Arábia; e Malaca, onde estavam 18 portugueses presos, dava acesso ao Oceano Pacífico.

23 Mar 2021

Kafka e o medo do anonimato

Alfred Perkins Jr. (1923-2001) foi professor de literatura comparada na universidade de Stanford durante décadas, publicando vários livros e textos em revistas da especialidade, até ao aclamado «Medo do Anonimato», em 1996.

Neste livro, na primeira parte, Perkins Jr. traça uma evolução do romance ao longo dos séculos e, na segunda, mostra-nos como a ideia de anonimato sempre foi o grande propulsor do romance. Perkins Jr. conduz-nos através de uma dialéctica subterrânea que se estabelece entre o medo do anonimato e as personagens que o escritor cria.

Antes de mais, temos de ver aquilo que o autor define como anonimato: «No escritor, o medo do anonimato não é o medo de não se tornar conhecido, mas antes o medo de não se conhecer a si mesmo, de não encontrar a “sua voz” como escritor. Assim, anonimato é ser igual aos outros, mesmo que se seja muito conhecido. No fundo, aquilo que acontece a tantos escritores de sucesso. O caso mais paradigmático é o de Kafka. Mais do que querer ser conhecido, ele queria conhecer-se, não no sentido do filósofo, mas no sentido de encontrar a sua expressão autêntica, a sua identidade. Porque a identidade do escritor firma-se na página escrita.»

Alfred Perkins Jr. estabelece então, ao longo de toda a segunda parte de «Medo do Anonimato», uma dialéctica entre as personagens dos romances de Kafka e o medo do anonimato. «No escritor, o medo do anonimato transforma-se na vontade de superação de si mesmo ou, de um modo que assenta melhor no que aqui está em causa, o medo do anonimato leva o escritor a “tornar-se aquilo que se é”, como escreve Nietzsche em “Ecce Homo”.

O medo do anonimato é, assim, não apenas o propulsor do escritor, mas fundamentalmente o propulsor do romance. É no exercício da escrita que o escritor deixa o anonimato.»

Este medo espoleta uma dialéctica entre escrita e escritor ao ponto de as personagens se tornarem, elas mesmas, campo de batalha entre o «anonimato» e o «tornar-se quem se é», como nos casos exemplares – segundo o autor – de K. em «O Castelo» e «O Processo» ou Gregor Samsa em «Metamorfose». Leia-se esta passagem acerca deste último livro: «Desde o início, Gregor Samsa é a expressão máxima do medo de não vir a ser quem é, não apenas pela família que carrega às costas, pelo trabalho que lhe ocupa todo o tempo ou pelo mau patrão que tem, acima de tudo o medo do anonimato advém de desperdiçar a vida que tem por pôr a responsabilidade pelos outros acima da responsabilidade pela vida que lhe deram. Saber quem é é a tarefa a que não pode furtar-se, mas à qual se tem furtado continuamente. Por isso, e como uma espécie de maldição, não apenas acorda transformado num insecto desconhecido, mas tem de viver até à morte a tentar compreender não apenas o que é, mas como lhe aconteceu vir a ser o que é. No fundo, aquilo que deveria ter feito antes da transformação.»

As análises de Alfred Perkins Jr. surpreendem-nos continuamente ao longo do livro, principalmente na segunda parte, onde pairam as sombras de Platão, de Kierkegaard, de Nietzsche e de Heidegger, ainda que o autor só faça menção a esses pensadores e não reflexões acuradas. Veja-se, como exemplo, esta passagem sobre K. de «O Processo»: «Contrariamente a Gregor Samsa, K. não acorda transformado num insecto, mas num anónimo infinito. Gregor, desde o início, que é instigado a descobrir quem é, K. acorda tendo a noção clara de não saber nem quem é nem o que está a fazer e o que estão a fazer com ele. K. é a expressão acabada do “das mann” de Heidegger em “Ser e Tempo”. [Podemos traduzir “das mann” por “o impessoal” ou até por “os muitos”, para ligarmos à expressão de Platão “oi polloi”, mas “das mann” é traduzido literalmente pelo “on” francês. Como escreve, Alfred Perkins Jr.: «No fundo, trata-se de não ter voz»]

Se não fosse o romance de Kafka, K. nunca chegaria a descobrir que não é ninguém. K. não é instigado a tornar-se ele mesmo ou a descobrir quem é, é notificado de que não é ninguém, de que não tem voz. É como se K. recebesse uma notificação do estado a dizer-lhe: “Você não tem voz. É um dos muitos, indistinto, impessoal. Você não chega a ser pessoa.” Ou melhor, ele é uma pessoa que não chega a ser pessoa, como a esmagadora maioria de nós todos.»

Curiosamente, na primeira parte do livro, o autor identifica os textos da Bíblia como os primeiros textos em que se expressa o medo do anonimato. Leia-se: «O anonimato é definido apenas em relação a si mesmo, ao identificar Deus como a origem de si mesmo, o escritor está a lembrar ou a sublinhar a importância de descobrir a sua própria voz. Só ao encontrarmos a nossa própria voz, podemos ser ouvidos por Deus. Desde a Bíblia, o medo do anonimato não se define pelo medo de não ser ouvido pelos outros, mas por Deus.» Ao longo do tempo, Deus muda de face, de identidade, até deixar de existir, mas nunca se transforma nos outros. Um exemplo que Perkins Jr. dá, ainda na primeira parte do livro, é o das personagens de «À Espera de Godot», de Samuel Beckett. Escreve: «Aqui, Deus é o Absurdo. O escritor sabe que chegar até a si, até à sua voz, é chegar ao “absurdo”. “Absurdum” não é apenas aquilo que é contrário à razão, mas aquilo que não se consegue ouvir (ab-surdum). Assim, o escritor tem a noção clara de que se encontra num tremendo paradoxo: a voz própria que procura, ele mesmo, não se pode fazer ouvir. O escritor suspeita que não está mais só com Deus e nem sequer só com ele mesmo, está só com nada. Ele mesmo não pode ser ouvido. E este não poder ser ouvido não é apenas pelos outros, é por ele mesmo. O absurdo é ele mesmo, que não se pode fazer ouvir e nem sequer ouvir-se a si mesmo».

No momento em que se celebram os 20 anos da morte de Alfred Perkins Jr. e os 25 anos de publicação de «O Medo do Anonimato», sugiro que se volte a ler esta preciosidade.

23 Mar 2021

Daqui para ali

Mudei recentemente de casa. O registo relativamente inusual da pandemia e a queda a pique do turismo de curta duração fez com que um ror de casas very cozy and typical in downtown Lisbon ficassem vazias, tendo os seus donos sentido a necessidade – tudo menos altruísta – de as devolverem ao mercado de arrendamento de longa duração. Neste contexto de incerteza, e com o meu contrato a terminar em Setembro do ano passado, pensei que o meu senhorio – cuja filosofia não passa pelo alojamento local a suecos – ia ver com bons olhos uma renovação de contrato, pelo menos por um ano, até as águas clarearem e se perceber melhor a margem de extorsão passível de ser aplicada aos arrendatários à luz do olhar imparcial do mercado. Para minha surpresa, o senhor tinha planos inadiáveis para a modesta habitação que eu partilhei durante largos anos com o Rim e o Croquete, os meus dois gatos: queria fazer obras de fundo e colocá-la num segmento superior do mercado de arrendamento. E não ia ser uma pandemia a demovê-lo.

A ideia de mudar de casa, em Lisboa, sempre se me afigurou como um pesadelo. Além das complicações normais decorrentes de uma mudança – o transporte, o reequacionar de mobiliário e pertences, os livros que NUNCA cabem em lugar nenhum – há a questão não despicienda da inflação galopante no mercado de arrendamento. Uma pessoa faz um contrato e passados três meses apenas já se sente afortunada por estar a pagar um valor que no momento da assinatura contratual lhe parecia abusivo. A pandemia, se alguma coisa de bom teve, foi a devolver alguma sensatez – ainda que parcelar e naturalmente transitória – a um mercado cujo fervilhar hormonal prometia enviar todos os remediados para a orla mais distante da subúrbia.

Como se costuma dizer, há males que vêm para bem. Consegui encontrar uma casa – que uma amiga minha arrendava até no final do ano passado comprar uma casa bem longe de Lisboa, visto que não lhe apetecia continuar a pagar para estar num parque de diversões de usufruto alheio – muito perto daquela onde estava, a preços razoavelmente humanos e, para meu grande contentamento inesperado, com um pequeno mas glorioso terraço por onde o sol vagueia à tarde e de onde se vê Lisboa a namorar com o tejo. Uma casa em Lisboa a preços comportáveis é um achado; uma casa com terraço e vista devia ser passível de entrar no registo testamentário de bens legáveis a família ou amigos em registo de direito preferencial de opção.

Claro que nem tudo é maravilhoso. A casa é último andar, os tectos são baixos e há zonas esconsas onde já deixei algum escalpe. Termicamente, é muito mais agreste do que o meu primeiro andar antigo generosamente ensanduichado entre dois pisos. O problema maior, no entanto, é o facto de as divisórias entre andares serem tão finas que consigo ouvir tudo quanto a minha vizinha de baixo faz em casa. É uma espécie de janela indiscreta sobre a vida alheia na modalidade auditiva.

A minha vizinha é uma senhora idosa e bastante surda. Há decerto muito tempo que o controlo do volume de voz encravou nos nove. Não deve – como muitos idosos – ter dinheiro para comprar um aparelho auditivo (que são estupidamente caros), pelo que fala alto, atende o telefone como se tivesse a anunciar um incêndio e quando liga a televisão é como se vivesse comigo. Há muito tempo que optei por não ter antena ou serviço de subscrição televisão. A maior parte das coisas que estes oferecem não me interessam; as poucas que me interessam vejo-as alhures. Infelizmente, neste momento estou exposto das dez da manhã às dez da noite à procissão de conteúdos inenarráveis que os nossos três canais generalistas oferecem à população idosa. Qualquer dia ainda mando vir uma caixa de calcitrim.

A verdade é que o aspecto mais dramático desta situação é pensar que dezenas de milhares de velhotes cuja idade acaba por incapacitar para as actividades que os afastavam do ecrã em tempos acabam por ter como única companhia a televisão e o seu chorrilho de disparates. São pessoas que cresceram em condições difíceis, sem acesso à educação e sem hábitos de leitura. A minha vizinha, acaso tivesse adquirido o gosto pelos livros, em vez de partilhar acriticamente uma realidade absolutamente desinteressante com todos aqueles que assistem aos mesmos programas ao mesmo tempo, podia escapulir-se através da janela sempre receptiva das páginas de um livro e alimentar paisagens interiores capazes de se bastarem a si mesmas e de frutificarem nas conversas com os outros. E isso tudo, muito convenientemente para mim, em silêncio.

19 Mar 2021

Quando eu queria ser um senhor

Quando tinha 15 anos queria intimamente ser um homem de setenta anos. Todas as pessoas que me eram apresentadas como sábias tinham essa característica. Eram sempre homens e, geralmente, idosos. A esta distância consigo ainda recordar o que era acordar todos os dias com vontade de ser um homem idoso. Não estava minimamente conectada à minha feminidade. Ser uma jovem mulher era o oposto daquilo que eu queria alcançar. Eu queria ser mais ou menos, o meu professor de sociologia, homem sábio com as suas grandes barbas como um Lao Zi ou um Aristóteles. Eu queria contribuir para o campo da psicologia como Freud, escrever como Eça, ter ideias como Sócrates. Era também uma altura em que não queria pertencer à minha linha cronológica. Nada que fosse contemporâneo me parecia inspirador. Tinha de voltar ao tempo de Salieri e ser um Mozart, voltar ao tempo de Verlaine e ser um rapaz homossexual que despertou algo de inexistente na poesia. Lembro-me de receber como elogio um comentário de um amigo poeta “tu escreves como um homem”. Eu, enquanto mulher, enquanto jovem, não tinha representatividade na ideia que me era passada de pessoa sábia e intelectual. Tive uma professora de português exímia que nos falava de Natália Correia mas foi só num programa de doutoramento que estudei Hanna Arendt. Antes disso, tinha amigos poetas que me chamavam Sylvia Plath ou na versão nacional Florbela Espanca. Ainda assim, todos os jovens aspirantes a poetas eram Rimbauds, podia ser um Rimbaud feminino ou masculino mas eram Rimbauds. Hoje em dia, dou por mim rodeada de um grande número de mulheres intelectuais. Há mais professoras no ensino superior do que professores e há um número impressionante de poetas portuguesas que atraem diversidade. Recentemente fui publicada numa revista grega acompanhada por poetas como Miguel Manso, Nuno Brito, Tiago Patricio, Luis Felicio. Mas também estou acompanhada por Beatriz Hierro Lopez, Andreia Faria, Tatiana Faia, Raquel Nobre Guerra e Filipa Leal. Para aumentar a diversidade e pluralidade poderíamos integrar autoras como Gisela Casimiro, Raquel Lima, Golgona Anghel, Luiza Nilo Nunes ou Lígia Reyes. A lista seria enorme de jovens poetas provenientes de diferentes contextos e o que importa realçar é a inspiração que essas mulheres são, não só para outras mulheres jovens ou menos jovens – porque não nos interessa o panegírico da juventude, tão embutido nesta realidade mercantilista – mas para a sociedade em geral. Um amigo em Pequim perguntava-me, no seu podcast, que conselhos poderia dar como escritora a um jovem homem neste momento. Segundo ele, muitos homens também se sentem desvalorizados em relação à sua representação entre meios essencialmente mais feministas. Falava-me de problemas como o sentimento de “invisibilidade” numa sociedade que prefere uma figura feminino como adorno. “Um homem nunca é motivo de atenção.” ou o facto do homem ser representado frequentemente como “perigoso” neste discurso. “Quando caminho na rua à noite, vejo mulheres que atravessam a rua, só pelo facto de eu ser homem”. Obviamente, não posso deixar de concordar com aquilo que ele reportava. Também nós já nos sentimos invisíveis quando queríamos ser algo que era, geralmente, um homem. Também nós éramos perigosas e por isso não podíamos votar. Nunca é demais exercitarmos a alteridade. Sem dúvida que uma educação para o humanismo e contra o medo deve sempre estar a par de lutas perfeitamente legitimas. Enquanto as mulheres oprimidas têm uma causa que lhes dá propósito, o homem contemporâneo sente um vazio existencial, tão sintomático do privilégio. Como sempre, disse-lhe, “o mais difícil é ser-se moderado(a)”.

19 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 6

Gonçalo vai até ao fogão. Abre a tampa da cafeteira e e espreita o conteúdo. Valério termina o seu vinho e pousa o copo no chão. Depois acende um cigarro.

Gonçalo
O melhor é dormires aqui.

Valério
Também acho.

Gonçalo
Porque é que ela terá apagado o número?

Valério
Pois… [pausa] Tu não deverias estar a escrever?

Gonçalo
Agora estou a fazer café.

Valério
E vais escrever depois?

Gonçalo
Do café?

Valério
Depois de eu me ir embora.

Gonçalo
Se não for muito tarde…

Valério
E se eu fosse agora embora?

A cafeteira começa a fumegar e a borbulhar. Gonçalo desliga o lume e tira duas canecas de um dos armários por cima do lava-loiças.

Valério
Por isso é que queres que eu fique?

Gonçalo traz o café consigo, senta-se na sua cadeira e passa uma das canecas a Valério.

Valério
Foi por isso que começaste a falar da história do “Neo-Nazi”? [pausa] Há quanto tempo estás sem conseguir escrever?

Gonçalo
[pausa]
Duas semanas.

Valério
E vieste para aqui há quanto tempo?

Gonçalo
Semana e meia…

Valério
Está a correr muito bem, então!

Gonçalo acende mais um cigarro. Valério prova o café e queima os lábios. Gonçalo pousa a sua caneca no chão e sorri.

Valério
[sorri]
É castigo. [pausa] Classifica o que estás a escrever… numa escala de um a dez.

Gonçalo
Numa escala de um a dez… mas com base no que eu tenho escrito ou no que eu acho que a obra será quando a acabar?

Valério
[trocista]
Mas achas que vais acabá-la? [pausa] Com base nas duas coisas. De zero a dez… vá!

Gonçalo
[pausa]
Não sei.

Valério
A tua cabeça foi aos números todos antes de responder esse não sei!

Valério pega na caneca e aproxima-a com cuidado dos lábios. Prova o café. Desta vez não se queima.

Valério
A ideia, dez! As primeiras vinte páginas, seis… as vinte seguintes, três… não, dois! [pausa] Não escrevas mais.

Gonçalo
Não?

Valério
Não. [pausa] Eu vou dormir aqui… vamos acordar tarde, comemos qualquer coisa… e vamos embora. Eu levo-te.

Gonçalo
Hmm…

Valério
Jantamos pelo caminho… Chegas a casa, arrumas a mala e pões a roupa a lavar… àquela hora já não vai dar para escrever. Mas podes ir para a secretária… ou para a mesa de jantar… onde quer que seja. Abres o computador e apagas o projecto, apagas a cópia e a cópia da cópia… tudo. Tens notas? Em cadernos?

Gonçalo
Tenho.

Valério
Pronto! Rasgas o caderno aos bocadinhos e sais de casa… dás um passeio… aproveitas para apanhar ar… vais até ao rio e deitas os bocadinhos à água… ficas a ver e choras um bocadinho. Arrependes-te, vês que os bocadinhos já desapareceram… corres de volta a casa, ligas o computador, tentas recuperar o que apagaste… nada. Desapareceu tudo. Gritas… “Meu Deus, sou tão estúpido!”… e pronto, está feito o luto.

Gonçalo
[rindo]
Que parvo!

Valério
Calma, ainda não acabei! [pausa] Depois, ligas para o teu editor, ou para a tua namorada, ou para quem quer que seja que te faça tremer… ou para mim, por exemplo. O que é que vais dizer?

Gonçalo
Nada.

Valério
Nada, não! “Não dá, não consigo mais… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente… desisto.” E a pessoa do outro lado vai dizer o quê, se já sabe que não gostas de ouvir nada?

Gonçalo
Nunca faria esse telefonema?

Valério
Não?

Gonçalo
A parte do “… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente…” é verdade. Para muitos que escrevem, não só para mim. [pausa] Mas, se eu fizesse isso tudo… esse enterro que descreveste… se eu tomasse essa decisão… ficava calado. [pausa] Não dizia nada a ninguém… continuava como se nada fosse.

Valério
Impossível!

Gonçalo
O quê?

Valério
Isso de passares incólume… como se nada fosse.

Gonçalo
Eu não disse isso! Continuava como se nada fosse… mas para os outros… “como vai a escrita?”… “bem”… “quando é que posso ler?”… “estou um bocado atrasado… ainda não sei.” [pausa] Hão de perguntar cada vez menos, até que, a dada altura… vão deixar de perguntar… ainda estou rodeado de pessoas que respeitam o silêncio… acho eu… “pronto, ele não quer falar do assunto… é lá com ele… deixemo-lo estar…” E acho que toda a gente vai saber… nessa altura… toda a gente vai compreender… ninguém me vai fazer passar pela humilhação de ter de reviver o episódio… “mas explica lá porque é que desististe…” [pausa] Não há nada para explicar… restará o consolo de ter tomado a decisão mais difícil… reconhecer que não escrevia suficientemente bem para continuar a escrever…

Valério
[trocista]
Mas ficará sempre uma pulguinha atrás da orelha…

Gonçalo
Isso é para evitar o suicídio… é um “eu até tinha jeito, mas a vida trocou-me as voltas”… Há gente a mais a escrever, a pintar, a filmar… há gente a mais em tudo. Qual é a probabilidade de eu ser medíocre naquilo que faço? É muito alta… Qual é a probabilidade de eu não ter noção da minha falta de talento… de zero a dez? É baixa… não sou estúpido. Qual é a probabilidade de o que quer que eu esteja a escrever agora ser melhor do que a maioria das coisas que estão no prelo? É altíssima…! [pausa] E eis a questão: Qual é a probabilidade de ser muito bom… o que quer que eu esteja a escrever agora?

18 Mar 2021

Da ira identitária I

“Canta, ó musa, a cólera funesta do pélida Aquiles!”: o primeiro verso da Ilíada. O primeiro verso da nossa matriz tece uma consideração sobre a ira. É surpreendente, não?

E pode a ira converter-se em vingança? Em Moby Dick, a dor e o eco da cólera no capitão Ahab desbordam numa ira obessiva contra a ofensa irreparável (no caso, a amputação da perna).

Muita da violência cega que reveste o furor identitário que hoje nos invade, à boleia do “politicamente correcto”, camufla dois factores: uma propensão para o vitimismo (acompanhada do complementar “remorso do homem branco”), e a auto-flageladora percepção emocional (nem sempre consciente) com que essas comunidades minoritárias (na Europa) sentem haver sido historicamente submetidas a uma ofensa irreparável.

Elucidemos com o equívoco da Lusofonia. Escrevi em Para que servem os elevadores e outras indagações literárias (o título chegou-me de nessa altura viver num 9º andar e do elevador estar o mais das vezes avariado):

«Em Portugal fala-se em Lusofonia como um efeito hipnótico que levaria logo a uma bacalhauzada entre os falantes de português. Para Moçambique é um termo controverso, associado ao neo-colonialismo. E de facto é preciso perguntar que sentido faz falar em Lusofonia num país em que só dez por cento dos seus habitantes é que tem o português como língua mãe. Mesmo que o português seja a língua oficial, os códigos e as performances da língua aqui são distintas, verificando-se um crescendo de contaminações das línguas nativas e do inglês na textura do português, assim como a presença de deslizes semânticos que introduzem variações quer de significado, quer sintácticas, que tornam a sua tradução uma história de diferimento e não um rastro contínuo.

A Lusofonia é uma cortina de fumo para que as embaixadas possam desligar-se da realidade e não falar entre si de coisas concretas, urgentes e necessárias. Com o álibi dessa suposta base identitária faz-se de conta que está tudo bem para não se investir em nenhum tipo de comprometimento sério (…) a Lusofonia lembra-me a deselegância de martirizar uma noiva, na véspera do casamento, falando-lhe obsessivamente do antigo namorado que ela faz tudo para esquecer.

O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar.

Enquanto não se entender esta coisa primária, a Lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho.

Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem»

É pior: Portugal deixou em Moçambique para cima de 90% de analfabetos. Foram os moçambicanos quem, na ânsia de dar um cimento comum a um mosaico com mais de duas dezenas de línguas, ensinou 50 % dos seus concidadãos a ler e a falarem português.

Não sei se há um modo suave, delicado, para explicar que uma herança de 90% de analfabetos possa constituir uma ofensa irreparável cometida pelo colonialismo português.

Esta situação provocou dois efeitos simétricos: um orgulho moçambicano que roça o patetismo e se mescla numa enviesada fobia ao outro (sobretudo o português) e uma vontade regressiva de voltar às origens, às “tradições”, patentes na ilusão identitária.

Por outro lado, em termos globais, não se pesou este aspecto, que frisei noutro livro: «Para Baudrillard, que era um espírito apocalíptico, “vivemos num período pós‑orgiaco” e numa evidente saturação de todas as nossas categorias e signos culturais. Julgo que ele terá confundido os sintomas com os efeitos. No fundo, sintetiza numa fórmula de aparato o que antes dele escrevera Cioran: “Um povo está prestes a morrer quando já não tem força para inventar outros deuses, outros mitos, outros absurdos; os seus ídolos empalidecem e desaparecem e busca outros, noutra parte, sentindo‑se só diante de monstros desconhecidos. Também isto é a decadência.” A gravidade acentua-se com as representações que se projectam globalmente desta ideia, que os media e as redes sociais espalham como metástases.

Não se tem presente como para os países novos, saídos há décadas do jugo colonial, talvez seja deprimente viver um reapossar da terra e dos seus direitos sobre a modelização do futuro num estado do mundo que se define como pós‑orgíaca.

Então o que lhes coube da festa? E como lidar com uma necessidade vital de desenvolvimento num momento em que a ideia de progresso é encarada como um mito nefasto? Que ironia violenta. a de aceder à soberania quando este estatuto começa a fantasmar‑se?

Não se medem bem a angústia e o cinismo que dimanam dessas ideias politicamente correctas, que se globalizaram, e que os media e as redes sociais difundem. Não creio que este clima esteja alheado da incubação da violência, pois, para nos servirmos da descrição que Kafka fez de Odradek, os cidadãos destes países sentem‑se “uma existência sem proveniência, uma destinação ignorada, uma vida sem sentido”. A fuga para a frente a este sentimento oscila entre o retorno a um patológico “integrismo” étnico – de que o afrocentrismo é uma face – e a tradução em violência de uma angústia impactante».

Daí a vontade de reparação, a incompreensão de que o presente não traduza um afã reparador. À legibilidade ou não de um sentido histórico para tais acções, ponderado e discutido, sobrepõe-se nessas comunidades o sentimento da urgência no resgate, duma redistribuição do saque – faça-se a cobrança!

E o cobrador pode ser aquele personagem de um conto do Rubem Fonseca, que apanhou à má fila uma metralhadora na favela e desce do morro aos bairros dos grã-finos, “cobrando” à esquerda e à direita.

18 Mar 2021