Primeiro acto – Cena 6

Gonçalo vai até ao fogão. Abre a tampa da cafeteira e e espreita o conteúdo. Valério termina o seu vinho e pousa o copo no chão. Depois acende um cigarro.

Gonçalo
O melhor é dormires aqui.

Valério
Também acho.

Gonçalo
Porque é que ela terá apagado o número?

Valério
Pois… [pausa] Tu não deverias estar a escrever?

Gonçalo
Agora estou a fazer café.

Valério
E vais escrever depois?

Gonçalo
Do café?

Valério
Depois de eu me ir embora.

Gonçalo
Se não for muito tarde…

Valério
E se eu fosse agora embora?

A cafeteira começa a fumegar e a borbulhar. Gonçalo desliga o lume e tira duas canecas de um dos armários por cima do lava-loiças.

Valério
Por isso é que queres que eu fique?

Gonçalo traz o café consigo, senta-se na sua cadeira e passa uma das canecas a Valério.

Valério
Foi por isso que começaste a falar da história do “Neo-Nazi”? [pausa] Há quanto tempo estás sem conseguir escrever?

Gonçalo
[pausa]
Duas semanas.

Valério
E vieste para aqui há quanto tempo?

Gonçalo
Semana e meia…

Valério
Está a correr muito bem, então!

Gonçalo acende mais um cigarro. Valério prova o café e queima os lábios. Gonçalo pousa a sua caneca no chão e sorri.

Valério
[sorri]
É castigo. [pausa] Classifica o que estás a escrever… numa escala de um a dez.

Gonçalo
Numa escala de um a dez… mas com base no que eu tenho escrito ou no que eu acho que a obra será quando a acabar?

Valério
[trocista]
Mas achas que vais acabá-la? [pausa] Com base nas duas coisas. De zero a dez… vá!

Gonçalo
[pausa]
Não sei.

Valério
A tua cabeça foi aos números todos antes de responder esse não sei!

Valério pega na caneca e aproxima-a com cuidado dos lábios. Prova o café. Desta vez não se queima.

Valério
A ideia, dez! As primeiras vinte páginas, seis… as vinte seguintes, três… não, dois! [pausa] Não escrevas mais.

Gonçalo
Não?

Valério
Não. [pausa] Eu vou dormir aqui… vamos acordar tarde, comemos qualquer coisa… e vamos embora. Eu levo-te.

Gonçalo
Hmm…

Valério
Jantamos pelo caminho… Chegas a casa, arrumas a mala e pões a roupa a lavar… àquela hora já não vai dar para escrever. Mas podes ir para a secretária… ou para a mesa de jantar… onde quer que seja. Abres o computador e apagas o projecto, apagas a cópia e a cópia da cópia… tudo. Tens notas? Em cadernos?

Gonçalo
Tenho.

Valério
Pronto! Rasgas o caderno aos bocadinhos e sais de casa… dás um passeio… aproveitas para apanhar ar… vais até ao rio e deitas os bocadinhos à água… ficas a ver e choras um bocadinho. Arrependes-te, vês que os bocadinhos já desapareceram… corres de volta a casa, ligas o computador, tentas recuperar o que apagaste… nada. Desapareceu tudo. Gritas… “Meu Deus, sou tão estúpido!”… e pronto, está feito o luto.

Gonçalo
[rindo]
Que parvo!

Valério
Calma, ainda não acabei! [pausa] Depois, ligas para o teu editor, ou para a tua namorada, ou para quem quer que seja que te faça tremer… ou para mim, por exemplo. O que é que vais dizer?

Gonçalo
Nada.

Valério
Nada, não! “Não dá, não consigo mais… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente… desisto.” E a pessoa do outro lado vai dizer o quê, se já sabe que não gostas de ouvir nada?

Gonçalo
Nunca faria esse telefonema?

Valério
Não?

Gonçalo
A parte do “… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente…” é verdade. Para muitos que escrevem, não só para mim. [pausa] Mas, se eu fizesse isso tudo… esse enterro que descreveste… se eu tomasse essa decisão… ficava calado. [pausa] Não dizia nada a ninguém… continuava como se nada fosse.

Valério
Impossível!

Gonçalo
O quê?

Valério
Isso de passares incólume… como se nada fosse.

Gonçalo
Eu não disse isso! Continuava como se nada fosse… mas para os outros… “como vai a escrita?”… “bem”… “quando é que posso ler?”… “estou um bocado atrasado… ainda não sei.” [pausa] Hão de perguntar cada vez menos, até que, a dada altura… vão deixar de perguntar… ainda estou rodeado de pessoas que respeitam o silêncio… acho eu… “pronto, ele não quer falar do assunto… é lá com ele… deixemo-lo estar…” E acho que toda a gente vai saber… nessa altura… toda a gente vai compreender… ninguém me vai fazer passar pela humilhação de ter de reviver o episódio… “mas explica lá porque é que desististe…” [pausa] Não há nada para explicar… restará o consolo de ter tomado a decisão mais difícil… reconhecer que não escrevia suficientemente bem para continuar a escrever…

Valério
[trocista]
Mas ficará sempre uma pulguinha atrás da orelha…

Gonçalo
Isso é para evitar o suicídio… é um “eu até tinha jeito, mas a vida trocou-me as voltas”… Há gente a mais a escrever, a pintar, a filmar… há gente a mais em tudo. Qual é a probabilidade de eu ser medíocre naquilo que faço? É muito alta… Qual é a probabilidade de eu não ter noção da minha falta de talento… de zero a dez? É baixa… não sou estúpido. Qual é a probabilidade de o que quer que eu esteja a escrever agora ser melhor do que a maioria das coisas que estão no prelo? É altíssima…! [pausa] E eis a questão: Qual é a probabilidade de ser muito bom… o que quer que eu esteja a escrever agora?

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários