Artes, Letras e IdeiasPrimeiro acto – Cena 6 Gonçalo Waddington - 18 Mar 2021 Gonçalo vai até ao fogão. Abre a tampa da cafeteira e e espreita o conteúdo. Valério termina o seu vinho e pousa o copo no chão. Depois acende um cigarro. Gonçalo O melhor é dormires aqui. Valério Também acho. Gonçalo Porque é que ela terá apagado o número? Valério Pois… [pausa] Tu não deverias estar a escrever? Gonçalo Agora estou a fazer café. Valério E vais escrever depois? Gonçalo Do café? Valério Depois de eu me ir embora. Gonçalo Se não for muito tarde… Valério E se eu fosse agora embora? A cafeteira começa a fumegar e a borbulhar. Gonçalo desliga o lume e tira duas canecas de um dos armários por cima do lava-loiças. Valério Por isso é que queres que eu fique? Gonçalo traz o café consigo, senta-se na sua cadeira e passa uma das canecas a Valério. Valério Foi por isso que começaste a falar da história do “Neo-Nazi”? [pausa] Há quanto tempo estás sem conseguir escrever? Gonçalo [pausa] Duas semanas. Valério E vieste para aqui há quanto tempo? Gonçalo Semana e meia… Valério Está a correr muito bem, então! Gonçalo acende mais um cigarro. Valério prova o café e queima os lábios. Gonçalo pousa a sua caneca no chão e sorri. Valério [sorri] É castigo. [pausa] Classifica o que estás a escrever… numa escala de um a dez. Gonçalo Numa escala de um a dez… mas com base no que eu tenho escrito ou no que eu acho que a obra será quando a acabar? Valério [trocista] Mas achas que vais acabá-la? [pausa] Com base nas duas coisas. De zero a dez… vá! Gonçalo [pausa] Não sei. Valério A tua cabeça foi aos números todos antes de responder esse não sei! Valério pega na caneca e aproxima-a com cuidado dos lábios. Prova o café. Desta vez não se queima. Valério A ideia, dez! As primeiras vinte páginas, seis… as vinte seguintes, três… não, dois! [pausa] Não escrevas mais. Gonçalo Não? Valério Não. [pausa] Eu vou dormir aqui… vamos acordar tarde, comemos qualquer coisa… e vamos embora. Eu levo-te. Gonçalo Hmm… Valério Jantamos pelo caminho… Chegas a casa, arrumas a mala e pões a roupa a lavar… àquela hora já não vai dar para escrever. Mas podes ir para a secretária… ou para a mesa de jantar… onde quer que seja. Abres o computador e apagas o projecto, apagas a cópia e a cópia da cópia… tudo. Tens notas? Em cadernos? Gonçalo Tenho. Valério Pronto! Rasgas o caderno aos bocadinhos e sais de casa… dás um passeio… aproveitas para apanhar ar… vais até ao rio e deitas os bocadinhos à água… ficas a ver e choras um bocadinho. Arrependes-te, vês que os bocadinhos já desapareceram… corres de volta a casa, ligas o computador, tentas recuperar o que apagaste… nada. Desapareceu tudo. Gritas… “Meu Deus, sou tão estúpido!”… e pronto, está feito o luto. Gonçalo [rindo] Que parvo! Valério Calma, ainda não acabei! [pausa] Depois, ligas para o teu editor, ou para a tua namorada, ou para quem quer que seja que te faça tremer… ou para mim, por exemplo. O que é que vais dizer? Gonçalo Nada. Valério Nada, não! “Não dá, não consigo mais… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente… desisto.” E a pessoa do outro lado vai dizer o quê, se já sabe que não gostas de ouvir nada? Gonçalo Nunca faria esse telefonema? Valério Não? Gonçalo A parte do “… isto não é bom, sinto que estou a aldrabar toda a gente…” é verdade. Para muitos que escrevem, não só para mim. [pausa] Mas, se eu fizesse isso tudo… esse enterro que descreveste… se eu tomasse essa decisão… ficava calado. [pausa] Não dizia nada a ninguém… continuava como se nada fosse. Valério Impossível! Gonçalo O quê? Valério Isso de passares incólume… como se nada fosse. Gonçalo Eu não disse isso! Continuava como se nada fosse… mas para os outros… “como vai a escrita?”… “bem”… “quando é que posso ler?”… “estou um bocado atrasado… ainda não sei.” [pausa] Hão de perguntar cada vez menos, até que, a dada altura… vão deixar de perguntar… ainda estou rodeado de pessoas que respeitam o silêncio… acho eu… “pronto, ele não quer falar do assunto… é lá com ele… deixemo-lo estar…” E acho que toda a gente vai saber… nessa altura… toda a gente vai compreender… ninguém me vai fazer passar pela humilhação de ter de reviver o episódio… “mas explica lá porque é que desististe…” [pausa] Não há nada para explicar… restará o consolo de ter tomado a decisão mais difícil… reconhecer que não escrevia suficientemente bem para continuar a escrever… Valério [trocista] Mas ficará sempre uma pulguinha atrás da orelha… Gonçalo Isso é para evitar o suicídio… é um “eu até tinha jeito, mas a vida trocou-me as voltas”… Há gente a mais a escrever, a pintar, a filmar… há gente a mais em tudo. Qual é a probabilidade de eu ser medíocre naquilo que faço? É muito alta… Qual é a probabilidade de eu não ter noção da minha falta de talento… de zero a dez? É baixa… não sou estúpido. Qual é a probabilidade de o que quer que eu esteja a escrever agora ser melhor do que a maioria das coisas que estão no prelo? É altíssima…! [pausa] E eis a questão: Qual é a probabilidade de ser muito bom… o que quer que eu esteja a escrever agora?