Prova de vida (bis)

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 13 Março

 

É raro ver a mão por si só. Dançarina, agita-se à frente do peito, prolongamento dos olhos, alargando a área de influência da voz. Ferramenta, fecha-se em força, desmultiplica-se em função, alicate, bisturi, seringa, chave, bandeira. Instrumento, vai a cada canto do palco e do sopro e das cordas. E assim com os corpos, aquele de que faz parte ou alheios, para tocar e, portanto, aumentar. Ou repousa por sobre partes outras, recolhida às axilas, à timidez e conforto dos bolsos. Tem que se apanhar distraída, cansada, como que desarticulada, de um lado veias, do outro linhas. Vejo-as a sacudir o pó do álbum e deixo-me vaguear até ao tédio fatal.

«O meu pecado era não ter dezoito anos. A norma não permitia o desejo. E o senhor de azul não parava de o repetir. Que não, imensas eram as desculpas e os lamentos para tudo ser resumido e concluído num «não». Redondo. Não podia entrar no bloco de granito branco. Que não e pronto. Na Biblioteca Nacional só podia entrar depois de ter aqueles anos cumpridos. Foram tiros na minha curiosidade. Recolhi à timidez e desci os degraus, entre anjos de saber. Há-de haver algures um nome para os «guarda-lombadas». Guarda-livros é para quem neles guarda números. Anjo-da-guarda também não se aplica, que esses evitam acidentes. Tendo os livros alma, serão as bibliotecas céu ou inferno? No Campo Grande há um enorme purgatório cheio de almas penadas.

Durante oito ou nove séculos, artistas e santos, campónios e burgueses comeram a poeira daqueles caminhos, pintaram aqueles ícones, construíram e reconstruiram aquelas paredes, fecharam-se sob a ocupação otomana, abriram-se aos ventos da Renascença Nacional Búlgara, padeceram as proibições comunistas, acolheram o seu fim.

Durante oito ou nove séculos, ressoaram os sinos pela floresta que esconde o Mosteiro de Rila, e sem por isso afectarem o silêncio prenhe dos santuários. Cerrada a porta principal, o mosteiro torna-se castelo inexpugnável. Mas a entrada fundamental não se fecha. Os peregrinos acedem aos manuscritos e anotam-nos. É cedida passagem ao povo que aí se perde nas hagiografias pintadas do fundador, o eremita S. João. Anjos, somos todos anjos.

Qualquer um pode tocar as iluminuras. Qualquer um pode trazer pó das lombadas nos dedos. Qualquer um pode abastecer-se de metáforas para o caminho. Ou ler, livros d’alma que por lá não vi outros.»

Alma minha, revista Ler

«Falta, portanto, uma etiqueta para o bom encontro dos seres amantes. Nada de transcendente, uma conversa tu-cá-tu-lá sobre as geografias respectivas do corpo e prazer. Fora da cama, enfrentando a ignorância sem temores nem culpa. Lá dizia um doutor norte-americano que a libertação sexual significa o direito a saborear todas as partes do corpo, o direito de fazer carícias proibidas civil ou religiosamente, o direito a ser sensual e exuberante em vez de mecânico e solene. (…)

A intimidade exigida para o sexo oral é tal que raramente se encontra fora de uma relação amorosa. Por isso, dizem alguns, quando a aceitação do outro é alcançada torna-se subitamente a expressão última do amor. Pouco importa se o figo é comido da maneira correcta ou vulgar, descritas na versão de Herberto Helder do poema de D. H. Lawrence, «Figos» (ed. Assírio & Alvim): “A maneira correcta de comer um figo à mesa/ É parti-lo em quatro, pegando no pedúnculo,/ E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante rósea, húmida, desabrochada em quatro espessas pétulas./ Depois põe-se de lado a casca/ Que é como um cálice quadrissépalo,/ E colhe-se a flor com os lábios./ Mas a maneira vulgar/ É pôr a boca na fenda, e de um sorvo aspirar toda a carne.”»

Sexo oral: A maneira correcta de comer um figo, revista Cosmo

«Para que serve o sono senão para dar à alma uma oportunidade de preguiça? O descanso é a miséria do futuro, mas o trabalho é a ocupação dos tristes. O sono é uma derrota. De olhos abertos, quando os outros dormem é a máxima para os que, mesmo quando os candeeiros se apagam, lhes basta os mínimos para se conduzirem pelas ruelas obscuras. (…)

A vida sabe ser um enjoo e daí que os vómitos mais fundos, mas também os mais fecundos, sobre a humana condição surjam nas navegações noctívagas. A sensação amarga de nos cuspirmos é uma metáfora do desejo. É tanta a vontade de abandonarmos o navio-corpo ou a viagem-vida que nos surpreendemos com a energia do rasgo, com a força que parece vir do nosso centro mais profundo, mas que é só estômago. A digestão dos dias também parece arrotar nos sonhos, mal a luz se ausenta para parte certa.

Por tudo isto, e mais alguma coisa, a noite é, como só no feminino, a suprema surpresa do amor, o sopro perfumado da inspiração, a mais fina concentração, a mais impossível das possibilidades. Por tudo isto vos digo que a noite está em vias de extinção.»

Crónica, revista Tango

«Os marinheiros, a base da pirâmide hierárquica, caçam a ferrugem por todo o lado e, viagem após viagem, pintam cada centímetro quadrado, ocupam-se com milhentos serviços de manutenção numa luta inglória contra os elementos. Não se consegue, todavia, evitar tédio. Nem para os que procuram aprender as subtilezas da língua das correntes (que vão sempre para algures) ou do sentido dos ventos (que obrigatoriamente vêm de algures).

O mar é nisso traiçoeiro. Atrai porque dono de belezas mil, senhor de encantos misteriosos, para , tendo-nos à mercê, nos castigar com o tempo, uma paisagem de aparência sempre igual, um ritmo sincopado, hipnótico, que nos maça o corpo e adormece a alma.»

Sem destino, revista Grande Reportagem

«Se soubesse desenhava um mapa. Mas esse é o meu segundo desgosto, não ter ainda aprendido a desenhar. E muito menos mapas, que pedem rigor na concepção, firmeza no traço, poesia na maneira de passar ao papel os caminhos e as montanhas. Se soubesse compunha assim uma viagem. Só que esse é o meu primeiro desgosto: não aprendi ainda música. Estive já em África, o que pode ser considerado um princípio, mas não consegui mais do tamborilar, sem nunca desenhar mapas nem compor viagens. É por isso que, nos momentos fáceis, mas sobretudo naqueles em que viver pesa e cansa, a música desenha horizontes e das montanhas pouco mais que pó nos passos de quem anda.

Carnet de routes, revista Ícon

«Flop Traz consigo, do inglês, o som de sólido mergulhando em líquido, ainda que sem estardalhaço. De tanta queda ter dito, flop tornou-se, também na nossa língua cheia de trapos alheios, fracasso ou insucesso. Quanto maior for a subida, mais brutal a queda. A gravidade da observação aplica-se a certa operação policial que, com estardalhaço e brutalidade, caiu pesadamente no abuso e na ineficácia. Flop possui a suavidade da brincadeira com pedras saltitantes à beira-mar. Fracasso contém a culpa do vidro partido ameaçando cortes e sangue. Prefiro fracasso.

Boca de incêndio [dicionário minúsculo para perceber o que dizem por aí as palavras], jornal Expresso

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