Está quase, já passou

Daqui a pouco, a Primavera. Que faremos então com tanto sol?
É mais fácil confinar no Inverno; mais intuitivo. É mais fácil respeitar as regras de distanciamento social, as recomendações de que se evitem contactos desnecessários, as proibições das festas. A Primavera – onde ela existe – foi sempre uma época de renovação e de festejo; está ligada a bonança das colheitas, à fertilidade, ao engordar do dia. Os animais reaparecerem na Primavera e pontuam a paisagem onde tudo quanto é verde se estende em direcção ao sol e ao céu. Tudo é mais suportável na Primavera.

Esta poderá ser a segunda Primavera de que seremos subtraídos. Pouco me importa que me levem o Inverno e boa parte do Outono; está frio, chove. Podem ficar com os poucos dias de clemência meteorológica. Já a Primavera é outra coisa. É como acordar de um longo sono salpicado de sonhos oblíquos e estranhos estados de vigília e não poder sair da cama para celebrar a vida na igreja das coisas.

Quando vivia em França, com os meus pais, uma boa parte da infância, numa cidade do interior ladeando uma cordilheira de vulcões dormentes – Clermont-Ferrand – onde o clima era particularmente inclemente – Invernos nevosos e Verões infernais, a Primavera, muitas vezes tardando em aparecer até despontar, tímida, nos últimos dias de Março, como se tivesse prurido em chegar, era a única altura da vida da cidade em que o corpo parecia estar em sintonia com o ambiente.

Eu estava sempre doente no Inverno, amiúde no Outono, e calhavam-me sempre pelo menos duas sessões de amigdalite no Verão. Na Primavera descobria o que era ser como os outros miúdos – sempre muito mais robustos do que eu. Na Primavera éramos todos imortais. Na Primavera o meu pai atrevia-se a tirar-me da segurança de casa aos fins-de-semana para fazermos piqueniques à beira-rio com a trupe de emigrantes com que partilhávamos pão e histórias da terrinha. Íamos pescar trutas – de que eu fingia gostar à mesa mais do que na verdade gostava –, ver a procissão dos bichos a caminho das múltiplas peripécias da vida (isto é um gaio, filho, isto é uma lebre, vês como têm as pernas muito mais longas do que as dos coelhos, isto é…), e no caminho de regresso, o meu pai ia apontando – para desespero da minha mãe, que insistia em que ele olhasse antes para a estrada – onde tinha trabalhado, onde tinha comido a melhor perdiz estufada, onde tinha bebido uns copos a mais. Era a topografia do adulto de meia-idade antes da chegada da mulher e filho, a segunda adolescência numa terra em que uma estranha liberdade eclode do anonimato.

Tenho poucas lembranças da minha infância – felizmente. Essas poucas lembranças são bastante desproporcionais em relação aos sítios de onde elas vêm e ao tempo que neles passei. Estava quase sempre na cidade, enfiado em casa ou na sala de aula. Lembro-me vagamente da casa em França, uns pormenores difusos, o sítio do fogão, o padrão do papel de parede, a cor com que pintaram as janelas. Da escola lembro-me ainda menos; umas rampas que tínhamos de descer ou subir para entrar nas salas de aulas, um pátio enorme onde as crianças mais façanhudas se entretinham a humilhar as crianças mais reservadas, duas freiras extremamente meigas que eram o meu porto de abrigo quando as coisas não faziam sentido ou o almoço era fígado guisado.

Do que me lembro bem era do cheiro acre da terra na Primavera, do meu pai procurando os meus dedos magros e frágeis para me ajudar a passar por um curso de água, dos gaios para que apontava com minúcia de coleccionador. Da Primavera que tudo renova.

26 Fev 2021

O Tango, Camus e as Gnossiennes 

Nos cinco anos que antecederam a Expo-98 fui hóspede assíduo do Hotel Americano. Não foi propriamente o espaço que escolhi para me alojar naqueles três dias por semana em que dava aulas em Lisboa. A escolha antecedera há muito a minha aparente decisão.

Em criança, os meus pais levaram-me uma vez a esse hotel e, na sala do pequeno-almoço, havia na altura uma pianista. Às torradas, às compotas e ao leite somavam-se as Gnossiennes de Eric Satie. Uma coisa tão rara pelo repertório e pela circunstância acabou por criar em mim uma espécie de cofre do tempo, razão por que me senti obrigado, mais tarde, a reentrar no hotel. Já estava bastante degradado, mas mantinha, na rua 1º de Dezembro, nº 73 (a dois passos do Rossio), a mesma secreta chama. Todos os dias de manhã percorria os velhos corredores à procura da pianista e das Gnossiennes. Só a tinha visto aquela única vez e de costas, a pele branca por cima do decote cavado, as madeixas escuras, um sinal no ombro direito, os braços e os dedos a brilharem.

Alguns anos passaram e houve uma noite em que sonhei que estava perdido nos corredores desse hotel, subitamente transformados num labirinto sem fim. Até que num desvão dei com uma enorme sala de arrumos. A um canto o velho piano ressurgiu aos meus olhos rodeado de teias de aranha, embora fosse clara a presença de um exemplar de ‘O Mito de Sísifo’ de Camus em cima do teclado. Aproximei-me e, por trás de uma espécie de biombo desdobrável, apareceu a mulher. O longo vestido azul escuro cintilou como se tudo se passasse no fundo do mar.

Ficámos frente a frente a retocar enigmas. Quando os primeiros acordes se ouviram vindos de muito longe, ela limitou-se a anunciar: “Sou eu que te vou, também a ti, ensinar a dançar o tango”.

Na primavera de 1999, passeava com o Urbano em Paris pelas bandas da Rive Gauche e contei-lhe este sonho e esta história. Estávamos a peregrinar pelos locais onde antes ele costumava deambular na companhia de Camus.

Falavam os dois muito de futebol. “A bola muda sempre de direcção”, bela metáfora para compreender que o pensamento se inicia num arrebatamento, ou numa compulsão que se divide, que inflama, que quase se perde. Camus falava depressa e a sua paixão pelo futebol alimentava-lhe a certeza de que pensar não é uma coisa inata; é antes um engendramento ou uma jogada que começa na lateral do relvado. E a sua missão é ampliar a dimensão do jogo, driblar e agarrar o fio do raciocínio apesar dos obstáculos (oferecidos pela outra equipa, pela vida). Por baixo da gramática e da lógica, esses tapetes pouco lascivos, existe um jogador elástico que explode e que não se submete a imagens, cria-as. O pensamento fulmina no golo, mas não sucumbe nessa metonímia (que arrasta consigo quer o gáudio de uns, quer a tristeza de outros, quer a diferença que afinal lhes alimenta o ser).

Antes da tuberculose, Camus tinha sido guarda-redes na Argélia. Falava menos na doença e mais nas grandes avançadas. “A bola muda sempre de direcção”, repetia o Urbano a sorrir e a lembrar-se da frase. Tal como aquele advogado, em A Queda, que não foi capaz de salvar a mulher de se afogar. E foi aí, devido à coincidência, que lhe li um poema, cuja versão inicial escrevera em Amesterdão uns anos antes: “Nunca soube por que cheguei tarde/ mas sei/ (na mesma prumada/ quase no mesmo catavento tornado em pedra)/ que assim foi./ Também apurei que Camus escreveu a queda/ no México City/ ficava ali no bairro vermelho/ nas ins-suspensas esplanadas cheias de neve / entre dois a sete parágrafos/ nesses fins de tarde passava por lá todos os dias/ e não havia tricot para distribuir/ aos amigos./ Porque os amigos são faunos.”.

A meados da década de noventa, eu passava todas as terças e quintas pela casa do Urbano na Tomás Ribeiro e dava-lhe boleia até à universidade onde ele acabaria por me apresentar o romance As Saudades do Mundo. Depois desse lançamento, durante o jantar, eu disse que existia uma “aragem saudosa no mundo que subtrai ao corpo a sua própria leveza” (foram mais ou menos estas as palavras). “É o que se sente, quando se sabe dançar bem o tango”, respondeu o Urbano a imaginar os deleites da pianista, de decote aberto, debruçada sobre Camus e a lucubrar acerca da magia das Gnossiennes que ainda hoje se continuam a ouvir nos passeios que envolvem o antigo Hotel Americano. Não apenas o imaginou como de tudo isto tomou nota para um livro que nunca viria a ser escrito, seguindo o que Marguerite Duras deixou dito numa entrevista a Benoît Jacquot em 1993: “Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos, se escrevêssemos”.

(texto transformado da segunda para a primeira pessoa e extraído de ‘Órbita-I/ Singular’ – título provisório de obra de longo curso ainda em trânsito)

26 Fev 2021

Cá dentro do lá fora (bis)

Santa Âncora, Lisboa, um outro dia qualquer de Fevereiro

Continuamos a andar aos papéis, mas façamo-lo com galhardia, o mais longe possível da idiotia, também ela contagiosa, que usa os hinos da resistência para cuspir na cara do próximo. A liberdade, para o ser cabalmente, contém a possibilidade de maus usos. Logo na primeira vaga, a Sara [Baliza] soprou bons ventos com «a rapariga que salta à corda» (que recolhemos aqui: https://torpor.abysmo.pt/video/a-rapariga-que-salta-a-corda/ e continua agora em https://www.facebook.com/hashtag/araparigaquesaltaacordaii). Teria gosto em ver a Ana nesta sua celebração à banal esperança no canto dos telejornais, ao lado dos manipuladores da língua gestual. O minimal repetitivo canta a resistência e afasta o tédio. As vozes mínimas de uma cidade (quase) em silêncio, a variante límpida dos lugares, a cadência da corda a chicotear do chão, o sorriso da miúda que pula, nesta simplicidade pulsa uma força inesgotável. Confesso que acredito.

Dom Nuno Viegas, que se pinta com gosto, entendeu por bem fotografar-se «dia sim dia sim», quase sempre a sós, quase sempre sentado, portanto com banco, vasos, tocos, duas manchas no tablado, ferramentas, uma porta, portanto em recanto exterior da sua casa-atelier (https://www.facebook.com/media/set/?set=a.4061386283902092&type=3). São mais de 300 momentos em que a luz dança com as cores das fatiotas, as expressões interpelam a nossa maneira de ver, o rosto fala com as mãos, o conjunto, enfim, desenhando filme sobre o tempo que faz. Em nós. No exacto oposto da grandiloquência, um pequeno nada, saudação aos mortais que desajusta perspectivas, que interpela com sorriso-lâmina. Sem sair da dele, fez-se quotidiana visita cá de casa.

Detecto e saúdo a luxúria da descrição, seja do que existe como do imaginado. Para quem passa a vida lendo, como os portugueses, parece difícil de acreditar, mas o real suscita muito. Quieto, tenho-me alimentado com o andamento de cosmovisões como a do António José Caló (os filmes e as sequências fazem mais sentido no instagram: https://www.instagram.com/antoniojosecalo/, e além desta dupla que roubei pode ver-se aqui pequena antologia: https://torpor.abysmo.pt/fotografia/um-passeante/). De telemóvel em punho, não converte a cidade em ruína arqueológica, mas tornou-se caçador-recolector da devastação da travagem brusca da paisagem: as composições do inesperado, a profusão de traços, o recorte do confuso, a loquacidade do chão, a suprema atenção ao pormenor. Não me canso de flanar com ele nestas passagens.

Falta aqui uma musiquinha, como falta ao Joaquim Rodrigues (https://www.facebook.com/profile.php?id=100008812306711) um canal, youtube ou quejando, que facilitasse o acompanhamento deste seu imparável e esclarecido programa de rádio, obediente apenas ao seu gosto. Talvez deva ser tal e qual, gotas salgadas do grande oceano música. Por estes dias virou atenções para a chason française, ou mais ou menos (exemplo exemplar para desmemoriados como este que se subscreve: Albert Marcoeur, Se souvenir, verbe pronominal (https://youtu.be/eihzC893iYk). Uma fonte inesgotável, com comentários irónicos, ideias fortes, e, de novo, uma lúbrica atenção ao detalhe. Noto agora que ando sempre à procura de velhos meios, jornal, televisão, rádio, para chegar a estes fins.

(continua)

44, Rua do Alecrim, Lisboa, 18 Fevereiro

Ainda é cedo para alinhar perdas e ganhos, se os houve, no livro-desrazão desta pandemia. Na roubalheira generalizada de vidas e do viver roubou-me a possibilidade de acompanhar em documentário o fechar das portas da Campos Trindade. Conservarei muitas imagens em lugares e modos que ainda desconheço, no velho sentido de “nascer com”, o que ali se deu vezes sem conta no acanhado dos últimos anos. Ia chamar-se «44, Rua do Alecrim», celebrando a redondez dos quarenta e quatros anos de porta aberta. Apesar de ter sido por um triz, o filme não acontecerá, mas ninguém nos tira, a mim, ao Nuno [Miguel Guedes] e ao protagonista, Bernardo [Trindade], as longuíssimas conversas de namoro em torno do amor, que é como quem diz amizade. E dos fios ténues e consistentes com que se entretecem as famílias. Na apresentação que fizemos para convocar parcerias e boas-vontades, escrevíamos: «a pergunta que nos interessa, entre tantas possíveis, é esta: os livros são seres vivos? Existe quem ache que sim e faça disso prática e louvor. A história que se quer contar é um desses exemplos, onde o valor é mais importante do que o custo; onde o destino é de facto determinado mas por uma única lógica, avessa a mercantilismo ou ignorância. E essa lógica é a do coração misturado com o saber, combinação única e rara. Mas praticada. E com provas em papel e palavra.» Estou certo que arranjaremos maneira mais portátil de voltar ao assunto. É que «a história que queremos contar fala de vida. Do que fomos, do que somos e com sorte do que poderemos ser. E é por isso que a resposta à pergunta colocada é fácil: sim, os livros são seres vivos.»

Voltámos pela última vez às salas vazias, agora enormes. Um destes dias a fachada completa ̶ nome, porta, montra, painel de azulejos ̶ será abrigada, com ironia, por mãos amantes de coleccionadores. Voltámos e forçámos a alegria de mudar de pele, que «o lugar dos livros não se esvai enquanto tiver por mapa um livreiro»:

uma livraria tem por objecto o roubo dos raios e relâmpagos
a sala nua que nos despia não alcança nem sombra nem brilho

as palavras ecoaram dessabendo onde pousar no que iam dizendo
saudades de quando no desarrumo os sentidos se desmultiplicavam
os amadores que costumavam reconhecer páginas e lugares
como em casa ou no corpo
desconheciam agora onde pôr as mãos
sem arriscar largar os olhares uns dos outros
derivavam à tona das areias movediças
a tornar quadrados os metros
medos

daqui só se sai vivo reaprendendo a deslizar sobre as páginas
lágrimas.

24 Fev 2021

A nova síndrome de Estocolmo

Tudo começou com boas notícias: o veículo-sonda da NASA a que chamaram Perseverance tinha aterrado são e salvo no solo do planeta vermelho. A sua missão: recolher indícios de vida microscópica, tirar e enviar fotografias dos lugares por onde passa. No fundo, perceber as condições para uma eventual futura exploração humana de Marte.

Este tipo de acontecimentos agrada-me porque inevitavelmente me oferecem a minha insignificante dimensão no universo – algo que considero muito saudável sobretudo quando por um motivo qualquer me encontro mais ufano. Mas para além disso há a alegria de ver que a humanidade, quando quer, consegue feitos extraordinários que quase a redimem de si própria.

Em resumo, amigos: estava feliz. Para variar, durou pouco. Tive de regressar ao planeta onde vivo e deparar-me com o que por aqui anda. E o que aqui anda tende a tornar profética a célebre frase de Nelson Rodrigues: «O grande acontecimento do século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota». São coisas como esta que provam a verdade cirúrgica daquele grande cronista: um grupo de professores e académicos americanos quer retirar o ensino de Shakespeare dos currículos por considerarem que a sua obra não é compatível com a visão actual de raça, género, classe e sexualidade. Esta guerra contra o bardo inglês já é antiga, diga-se em abono da verdade. O crítico Harold Bloom esteve sozinho e de forma quase quixotesca a combater estes soldados das causas justas desde a década de 90 do século passado. Agora a investida regressou sob o pretexto de que o que Shakespeare escreveu é sobre “supremacia branca e colonização”. Este bando de iluminados agregados sob o nome #DisruptTexts exige que o conjunto da obra literária do poeta e dramaturgo – uma das mais espantosas e perenes conquistas da espécie humana – seja totalmente retirada ou, no melhor dos cenários, ensinada com textos amputados e acrescentados de notas críticas criadas para salvaguardar o contexto destes dias. O que já está a ser feito: o jornal Washington Times cita uma professora de Inglês que ensina a tragédia Coriolanus acompanhada de uma análise marxista; e uma outra docente que alerta os alunos para a “masculinidade tóxica” de Romeu e Julieta.

Entretanto, aqui na minha aldeia, um representante eleito do povo português reclamou a destruição de um monumento construído durante o Estado Novo com o espantoso, mas nem por isso raro, argumento de que é preciso “limpar a memória”. Só o facto de ter escrito a expressão entre aspas me arrepia porque imediatamente remete para outras limpezas de memória e sobretudo o que isso significou. Mais uma vez o facto não é novo e mesmo se nos limitarmos a Portugal há muito por onde escolher. Desde as intervenções de António Ferro nos monumentos históricos – o castelo de S. Jorge, por exemplo – , a revolução toponímica que aconteceu durante a I Republica com as artérias e vias públicas rebaptizadas com acontecimentos e heróis republicanos (movimento de “limpeza de memória” que alcançou a esfera do humor involuntário na patética tentativa de renomear o bolo-rei de “bolo nacional”) ou a substituição de nomes ou remoção de estatuária que consagrava figuras do antigo regime (a ponte Salazar, a estátua do Marechal Carmona, por exemplo) que o fenómeno se repete sob variadas formas.

Que ninguém se iluda: a fúria proibicionista dos professores americanos e a demolição de tudo o que evoque um passado indesejado tem uma raiz comum: a emergência de uma nova ortodoxia que, como todas as ortodoxias, é intolerante com tudo o que a contradiga ou incomode. Esta vontade de criar um presente asséptico apagando as pegadas do que aconteceu enquanto se aponta para uma sociedade perfeita e sem pecado é, no mínimo preocupante. E sim, leva ao triunfo dos idiotas.

No espantoso e nada ortodoxo filme dos Monty Python, A Vida de Brian – cuja acção decorre nos primeiros anos da nossa era – existe a célebre cena de uma reunião de uma frente de libertação palestina que luta contra a ocupação romana. A dada altura o líder pergunta, para avivar o espírito de luta: “O que é que os romanos fizeram por nós?”. A resposta é dada de forma hilariante. Devagar e quase a medo a assembleia reunida vai fazendo uma lista extensa do legado romano – educação, esgotos, economia, etc. – perante o desespero do líder.

Os novos idiotas e a sua relação com o passado é semelhante à do líder representado no filme por John Cleese. Com uma única mas perigosa diferença: não ouvem as respostas nem querem saber. O pior, amigos, é que nos vejo reféns voluntários dessa idiotice e, como se não bastasse, sofrendo da Síndrome de Estocolmo. Algo tem de ser feito. Se nada resultar serei o primeiro a tirar uma selfie com a Perseverance, definitivamente o veículo com mais sorte dos últimos tempos.

24 Fev 2021

Novas dos icebergs – 1

Ou não. Aquele momento insinuou-se numa poética em cinzas. A poesia que surge em claros cinzentos não é nova e se bem que luminosa, melancólica. Por outro lado, há as pequenas coisas e em cada uma, uma ligação a algo maior. Links. Azuis acinzentados. Uma cor variável muito pouco saturada. O gelo marinho ou as neves, em camadas com uma subtil química diferente. O momento começou assim, mas terminou na densa complementar laranja. Os cinzentos de um drama frio, longe da ribalta, num planeta a aquecer e depois os tons potencialmente quentes do planeta vermelho, frio, frio. A ver o futuro.

Em cinzentos. Uma falha enorme, uma linha cortante e progressiva a desenhar a cartografia da desolação na plataforma de gelo de Brunt. Um lugar paradigmático de vazio na Antártida. No silêncio dos brancos nas imagens adivinha-se o som de um estalar quase tectónico e igualmente brutal. Uma rotura que se vai delineando em quilómetros de um desenho imparável, que por estes dias, não se sabe quando, deixa de ser apenas uma linha de fissura irreversível no mapa gelado. E desprende-se do colo gelado materno um novo iceberg, ou talvez dois.

Irmãos. Órfãos que iniciam, então, a deriva. Ou a rota previsível do suicídio. Do tamanho de duas cidades de Nova Iorque. Ainda mais do que o necessário para os Martinis gigantes dos deuses que nos contemplam, irónicos. São fotografias da NASA. Mas não as dos deuses.

Todos os dias a subliminar apetência à elaboração de mapas, á revisão de planos cartesianos a dimensionar a distância, referências ou camadas de verdade espacial nas coisas sólidas e por inerência nas que são impalpáveis.
– Encontramo-nos em Marte.

Acedi como sempre ao tom incontornavelmente definitivo e misterioso, do enigma em que não se conhece cota ou afastamento e portanto de geometria impossível. E à recusa subjacente em definir pistas ou desenhar linhas no mapa imaginário. O único à mão. E que, como todos, é formado por camadas de diferentes estratos. Não geológicos, mas de verdades sobrepostas e com uma desfocagem inerente àquilo em que umas, como camadas de transparência, diferem das outras, na multiplicidade de contornos e na variação das linhas que demarcam fronteiras. A história, a política, as religiões e as lutas territoriais, a flutuação dos povos, a sucessão de camadas no tempo, a desfocar a leitura de um mapa. Das fronteiras que variam em função de guerras e também de sentidos. E as histórias que se contam, olhares, contos e pontos que se acrescentam. Ou a terra ela própria a criar uma narrativa de registos visuais. Ler as camadas, Também. Como épocas na história da estética.

Um planeta no céu é sempre o ponto de encontro do olhar. Cruzado em cima e lá longe. Não sei se dizia isso quando o disse. A ideia era descobrir no enigma dos dias, a viagem a fazer. E o mapa, de momento, caído como sem vida nas mãos, desdobrado, a desvanecer-se em silêncio e a diluir-se em tonalidades difusas, de pouco mais que invisibilidade.

Vejo o seu olhar atento à espera do meu caminho imprevisto. Dos erros. E sinto-me espiada enquanto enceto caminho. Procuro. Talvez guiada pelo óxido de ferro. Aquela cor quente seca e em corrosão como as palavras que não se entendem, as dúvidas.

Viajo à beira dos desertos. Do Arizona. A vastidão a secura e o desabitado que é. O vento. A cor. A terra. Um canal de irrigação serpenteia e desenho uma linha de viabilidade na terra desértica do estado. Quando o homem quer, tudo. Lembro de novo a fractura crescente no mapa do gelo. Olho pela janela e no cinzento quase total do dia, a custo algumas cores tímidas e persistentes se afirmam em voz baixa.

Aquela terra árida e seca, mas fértil. Somente a precisar de ser regada, acalentada. E os monumentos que a erosão esculpe e que inspiram uma sensação de irmandade que nos repreende de tanto reagirmos ao desgaste da memória. Da dor. Ali, o desgaste construiu. Chamar-lhe nação Navajo, ainda, é uma triste demagogia. Mas ninguém.

A paisagem é deslumbrante, desértica e esculpida com minúcia arquitectónica. Monument Valley. Formações rochosas como grandes catedrais, erguidas pela própria terra em homenagem a si. Arenitos. Camadas que são registo da sedimentação, que ecoa a depósitos em rios e mares. Conchas e fósseis e areias de quartzo e feldspato e micas de reflexo luminoso vítreo, aglutinadas por um cimento natural que preserva a memória das eras. A dizer tempos sobrepostos. Perfis. História. No planalto do Colorado, na linha de fronteira entre Utah, Arizona e Novo México. Os quatro cantos. Com os grandes montes rochosos de uma coloração rosada. Dos óxidos de ferro. Os mesmos que em Marte. Daí que possa ter-me perdido no caminho, atraída ilusoriamente pelo mapa de cor. Mas óxido de ferro parece ser a mesma coisa em qualquer ponto do universo. Hematite. Ou, às vezes ferrugem. Uma coisa bonita mas que estraga, voraz.

E dali, daquelas sílabas, como voltando de uma viagem, fomos sentar-nos no sofá da sala, como duas páginas de insónia, cúmplices. Encostámos a cabeça, a ver. Num monitor Marte e no outro os desertos do Arizona. Num filme de John Ford. Os mesmos laivos rosados e ferrosos de terras diferentes e sonhos parcialmente idênticos. A verdade é o que vive no interior da nossa cabeça. Mesmo encostada a outra. E no fundo é indiferente se contemplamos a abóbada esférica e estrelada do planetário, nos confins da infância, a paisagem desértica que nos seca os lábios, ou um paradigma além nuvens, porvir para sempre. Separado por duas atmosferas e gravidades e muito espaço-tempo sideral. No meio de uma tempestade global de areia que envolve o planeta numa nuvem perene e avermelhada, ocultando crateras, cavidades abissais e outros registos cartográficos. É indiferente tudo, menos estar. No veludo puído e alaranjado rosa, do sofá, com todas as descolorações e colorações de muito viver o peso dos corpos sentados ao fim do dia. Encostados. Nas suas verdades estrangeiras. Penso: de todas as ficções, qual é a verdade viva. Dentro.

Em que o espaço se abre, de uma forma ou de outra ao olhar e nas suas múltiplas imagens desertas.
Marte e essa solidão concreta. Que cenário fabuloso, silencioso, estranhamente familiar, e que solidão verdadeira. Como somente aquela em que se acredita. O paradigma da ausência total. Do humano, dos objectos, da memória, dos vestígios. Marte, os desertos do Arizona e outros desertos.

Depois penso nos nomes dos brinquedos a percorrerem Marte. O rover Perceverance e o helicóptero Ingenuity. Olho para o lado e pergunto-lhe se não é lindo…

23 Fev 2021

Rock Reflection 1

Nesta rubrica «Uma Asa no Além» já escrevi dois ou três textos acerca de livros norte-americanos que fazem parte de uma nova corrente literária chamada «rock reflection». Esta nova corrente, surgida em São Francisco, mas que se espalhou ainda com mais expressividade na costa leste – vimos aqui recentemente um pequeno ensaio de James Goodman «O Futuro Eterno Agora» – são compostos maioritariamente por ensaios acerca da música ou das bandas rock. O universo onde a reflexão se centra, nestes textos, é o rock. Embora de modo geral, os textos tenham uma carácter ensaístico-poético, também há também textos que dividem a reflexão com a ficção, como foi o caso do livro que vimos aqui de um autor de São Francisco, Howard C. Jones, «White Punks On Dope».

O livro que nos traz hoje aqui vem da costa leste, mais propriamente de Nova Iorque, e chama-se «O Futuro de Ontem», escrito por Louise Stanley, que nos leva por um dos discos mais importantes na minha juventude: «Remain in Light», da mítica banda nova-iorquina Talking Heads. Mas o livro é também um livro charneira para a linha mais radical da «rock reflection», que pensa o movimento como essencialmente musical e cultural, contrariamente ao ponto de vista defendido por James Goodman. Mas a isto voltaremos na segunda parte desta nossa incursão ao mundo de «O Futuro de Ontem».

Acerca de «Remain in Light», só recentemente tive conhecimento de que a minha experiência com o disco foi muito similar à de um importante músico pop-rock norte-americano, mais conhecido como vocalista e mentor dos Nine Inch Nails, Trent Raznor. Numa entrevista em 2020, Raznor disse que «Remain in Light» era o melhor disco de sempre. Não apenas o melhor da década de 80, como escreve Louise Stanley – «Estou convicta de que “Remain in Light” é o melhor disco da década de 80.”» –, mas o melhor de sempre. Leia-se o que Raznor disse na entrevista, acerca daquele que é para ele o melhor disco de sempre da história da pop-rock: «Trata-se de um dico que não entendo quando o ouvi pela primeira vez, no início dos anos 80. Nessa altura, vivia numa pequena cidade do interior, sem quaisquer actividades culturais. E, vindo do nada, chega este disco. Uma obra de arte estranha, sintética, polirrítmica, com influências africanas, que me baralharam todo. […] O que acontece com bons discos quando os ouvimos pela primeira vez, como neste caso, é que nunca sabemos bem com o que estamos a lidar. Não temos medida de comparação. Mas ficamos fascinados por eles, e depois de o ouvirmos seis vezes o disco começa a revelar-se. À décima audição estamos completamente apanhados. Mas mesmo quando o ouves pela trigésima vez, descobres coisas novas. Foi com “Remain in Light” que aprendi tudo isto e o vivi pela primeira vez.» A experiência que Trent Raznor descreve é muito similar à minha, embora nem por um momento duvide de que ele escute melhor esse disco do que eu, pois não duvido que tenha melhor ouvido e saiba mais de música pop-rock do que eu, além de ter sido considerado imortal por David Bowie, que tinha grande admiração por Trent. Bowie e Raznor fizeram uma tournée juntos em finais de 1995 início de 1996 e também uma música e vídeos, «I’m Affraid of Americans». É muito provável que a musicalidade de Trent Raznor, e o encontro entre ambos, tenha escurecido o coração de Bowie para sempre. Podem assistir aqui a uma das canções dessa tournée «Reptile», dos Nine Inch Nail, ao vivo com David Bowie: https://www.youtube.com/watch?v=wJIJzmcc4MY. Ou ao concerto inteiro, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=j4sP1CTuIjs. Curiosamente, ou talvez não, dez anos mais tarde Trent Raznor cantaria esta mesma canção, «Reptile» com Peter Murphy: https://www.youtube.com/watch?v=gvClJOA5lqA

Esta breve viagem aos Nine Inch Nails e a David Bowie teve apenas como objectivo sublinhar a importância da escolha do quarto álbum dos Talking Heads como o melhor disco de sempre. Trent Raznor poderia ter escolhido um dos discos Bowie do período de Berlim, que ele tanto gosta, poe exemplo, mas escolheu «Remain in Light». Poderia ter escolhido algo mais obscuro, como a sua música ou aquela que usualmente ouve mais, mas escolheu um disco que é o oposto disso. O que tem este disco de tão especial afinal?

Regressando ao livro de Louise Stanley, que foi publicado em 2018, a escritora não pôde ter tido acesso às declarações do vocalista dos Nine Inch Nails acerca do disco dos Talking Heads, embora muito do que Trent Raznor disse musicalmente acerca do disco, ela o tenha dito. Mas além de uma análise musical do disco em geral e das canções em particular, Louise Stanley explora aquilo que ela considera «a grande fenda nacional». Esta fenda nacional, explorada ao longo do livro, é retirada de uma entrevista dada pelo vocalista dos Talking Heads, David Byrne, quando se refere a «Remain in Light»: «Financeiramente, levámos uma grande tareia com esse disco. Na época, foi muito difícil vendê-lo. Aquilo que nos diziam é que o disco soava demasiado “negro” para as rádios “brancas” e demasiado “branco” para as rádios “negras”.» Aquilo que Louise Stanley nos quer mostrar, ao citar logo no início este excerto de uma entrevista de David Byrne acerca de «Remain in Light», é que «[…] no início dos anos 80, os Estados Unidos da América ainda não se tinham libertado do preconceito que atingira o seu confronto máximo nos anos 60. No início dos anos 89 continuava a haver um fosso a separar a sociedade negra da sociedade branca, assim como os apreciadores de música. “Remain in Light” era um disco revolucionário, não pelas letras, independentemente de serem boas, mas pela música, pelo som. “Remain in Light” desmascarava as divergências, sem palavras, fazia com a falsa divergência fosse ouvida. Os americanos não estavam preparados para um disco sem fronteiras de cor. Seria na Europa que o disco ganharia a reputação de obra prima. Musicalmente, o disco estava muito à frente do seu tempo, principalmente pelas guitarras de Belew, culturalmente expressava uma utopia: ouvidos que não escutassem a cor da música.»

Para além dos quatro membros dos Talking Heads – David Byrne na voz e guitarra, Tina Weymouth no baixo e nos teclados, Chris Franz na bateria e Jerry Harrison na guitarra e teclados (nas percussões, todos) –, a banda teve as preciosas colaborações de Brian Eno e do icónico guitarrista Adrian Belew, que tinha tocado com Frank Zappa e David Bowie (no período de Berlim). Além de vários trabalhos de guitarra ritmo, foi responsável pelos estranhos solos de guitarra sintetizadora. Mais do que com notas, Belew solava com sons. Brian Eno, que além de produtor foi também co-compositor de todas as músicas e co-letrista das duas primeiras canções do disco – «Born Under Punches (The Heat Goes On)» e «Crosseyed and Painless» –, tocou todos os instrumentos, excepto bateria, e foi responsável pelos arranjos vocais. Nas vozes secundárias aparecia a incontornável Nona Hendryx, o indiscutível lado negro da voz.

Tenho a noção de que não cheguei sequer a falar metade do que poderia, acerca do livro de Louise Stanley. Felizmente no «Hoje Macau» temos espaço e tempo. Continuarei na próxima semana, de modo a vermos melhor o livro que não é apenas acerca da importância musical e cultural de um disco, mas também tenta ser um divisor de águas no movimento «rock reflection». Asseguro-vos que vale a pena continuar a acompanhar este livro da escritora nova-iorquina. Este trabalho propedêutico que aqui foi feito hoje era fundamental. Para que tenham uma melhor noção deste disco e da importância de Adrian Belew, vejam os Talking Heads ao vivo na Alemanha, em 1980, a tocar «Crosseyed and Painless»: https://www.youtube.com/watch?v=ul7I3Z5LA5M. Dois baixos em palco; além de Tina, Busta Jones. A fazer o trabalho que Nona Hendryx fizera em estúdio está Dolette McDonald. Nos teclados, Bernie Worrel. Nas percussões, Steve Scale.

23 Fev 2021

O metro de Pequim

Entretinha-me a pensar se alguma vez iria deixar aquele local, se seria possível mudar complemente de circunstâncias. As metrópoles têm um poder atroz de nos sugarem para dentro e por dentro, parece impossível sair delas e parece impossível sair de nós próprios quando estamos nelas. As suas rotinas muito bem estabelecidas, o seu dia-a-dia optimizado com transportes públicos, salários, entretenimento, trabalho e lazer, boémia e cultura, soluções para todos os problemas. Uma cidade com vinte milhões de habitantes, altamente funcional. Gostava de caminhar na rua depois das minhas aulas com uma garrafa de baijiu e os phones nos ouvidos. Ouvia todo o tipo de porcaria de death metal a hip-hop caviar. Aquele cliché de querer sentir alguma coisa. Adorava a forma como olhavam para mim, como se olha para um carro a passar. Até pode ser um mazzerati novo – e havia vários por todo o lado – mas o interesse dura alguns segundos, fica-se a pensar naquilo, depois vê-se um monte de coisas completamente diferentes a seguir como scooters em contra-mão, dezenas de bicicletas acumuladas à entrada de um metro, uma senhora a vender batata doce assada. Uma estrangeira com baijiu na mão, a contemplar tudo, presente e simultaneamente alheada com a música nos ouvidos, a caminhar aleatoriamente. Gostava de caminhar sem saber para onde ia, nem norte nem sul, caminhar até não sentir as pernas, até suar debaixo do casaco de ski para as temperaturas inferiores a zero. Pergunto-me como me percepcionavam os transeuntes chineses, mas acredito que pensariam nesta imagem de mim durante dois ou três minutos, fariam um breve julgamento, voltavam aos seus problemas. Sim, a mega metrópole tem soluções para tudo menos para a indiferença abissal que é preciso cultivar para nela se sobreviver. Não se pode ter demasiada pena, não se pode ter demasiada inveja. É necessário um estoicismo de néon em edifícios gigantes prolongados no horizonte, infindáveis à vista. Os edifícios e depois o céu. Arranha-céus que são muralhas, não sei se estas também defendem o país das invasões estrangeiras, parece-me que fazem o oposto: convidam os foragidos a explorar a imensidão de possibilidades que ela apresenta. A reencontrarem-se ou a reconstruirem-se.

Todos os poetas que ali conheci escreviam longos poemas sobre o metro. Como é possível descrever uma mega metrópole sem se romantizar o metro de 618 km, um tráfego de 2180 milhões ao ano? A Jennifer tinha um trabalho poético só com frases em inglês das t- shirts do metro “Kate Moss and Pizza Slices”; “My ex died”; “Never say die, believe in yourslef”; “hang some”, etc. O meu trabalho poético “linhas de metro” tinha sido composto para uma performance com música e utilizava o metro para descrever o grupo de artistas underground que faziam parte do meu ciclo de amigos. Descrevia uma história de sedução. Falava de alguém ambicioso, que não se importava de recorrer a qualquer método para extrair das pessoas aquilo que pretendia, mesmo que isso passasse por seduzi-las e abandoná-las aos seus sentimentos.

Artistas que passavam por ali sem ali pertencerem. Era impossível não falar do metro. Depois de caminhar com o baijiu na mão, se estivesse completamente perdida, não tinha qualquer problema. Pegava no telemóvel e apanhava um didi para casa. Uma das estações de metro que apanhava com frequência tinha uma entrada com duas escadas rolantes nos dois sentidos: subir e descer. Por cima de cada escada havia um painel que indicava um visto verde, significava que era a direcção para descer para o metro e outro que tinha uma cruz vermelha, para não se ir distraidamente pela escada rolante que sobe em vez de descer. Esta estação em específico tinha um dos sinais avariados. Ambos os painéis tinham o símbolo de “proibido”. Um deles não era proibido. Todos os dias me entretinha a tirar fotos às pessoas que iam pelo falso “sentido proibido” a apanhar o painel e as pessoas a seguirem o seu caminho, ignorando os sinais vermelhos ou todos os painéis, vermelhos ou verdes, em geral. Parecia-me uma metáfora perfeita para a vida na China.

Confuso é um país com metade da população daquela cidade todo à beira-mar. Confuso é apanhar um pássaro de metal gigante que nos transporta para o outro lado do mundo, duas ou três vezes por ano. Tudo isso parece fantasia.

A mente prega-nos tantas partidas, que não seria de espantar se toda a memória fosse também outro truque. Percebemos perfeitamente a existência dos aviões que fazem voos intercontinentais, mas não conseguimos perceber o porquê da nossa própria existência. Somos como as oito horas do fuso horário que se perdem entre Pequim e o Porto e que ninguém sabe para onde vão. Por vezes penso que vão para o céu. Por cima das nuvens, há uma realidade onde estas oito horas ainda existem. Há uma parte de mim que acredita que alguém vive naquela dimensão, em meu nome. Fomos programados para ser livres, não deixar que a nossa geografia nos condicione, as nossas relações humanas não nos condicionem, as nossas crenças e valores não nos condicionem. Fomos programados para não ter forma e esse é um privilégio tão grande quanto a responsabilidade de navegar num mundo infinito sem nunca nos perdermos – o que é impossível. O metro vai sempre a abarrotar em hora de ponta mas o silêncio impera. Todas as manhãs somos uma massa homogénea optimizada na selva urbana. Não temos forma. Mas temos todos que chegar a algum lado.

19 Fev 2021

Na Poesia de ser Macaense

Por Alfredo Gomes Dias

Dentro de cada um de nós, o conhecimento de si e do sentido que emprestamos à nossa vida é, talvez, o exercício mais exigente, porque mais doloroso, mesmo quando o revestimos sob a forma de poesia. E se esta ideia, assumida como verdade, é generalizável a qualquer ser humano, num qualquer ponto do globo, adquire um novo significado quando se refere a um macaense, aquele ser “entre dois polos / que se atraem / e repelem”, principalmente quando lhe acrescentamos a sensibilidade e a racionalidade de ser mulher.

Quando Cecília Jorge oferece a Macau um livro de poemas escritos ao longo de uma vida, devolve à cidade o sentir e o pensar que a acompanharam nas ruas construídas de vivências múltiplas, entre amores e desamores. Neste quotidiano, parte ao encontro das suas origens, ao subir aqueles cinco degraus que a “levam ao casarão / Onde crescem raízes / agarradas a velhas paredes / que arrostaram tufões”. Recordando o “bisavô Jorge”, reconhece a felicidade de “ainda ter conhecido o espírito / que pairava neste chão”, transportando sentimentos que criam raízes nas memórias e na terra onde se mistura “A humidade o cheiro os meandros / da alma indómita / que remonta ao passado”.

Contudo, não são as origens nem as memórias condições bastantes para que veja facilitada a tarefa do conhecimento de si, quer como pessoa, quer como parte de uma comunidade que mantém uma “Porta aberta para dois lados/ de entrada /sem saída”. Para Cecília Jorge, já vai longe o tempo em que sentia necessidade de se definir como macaense, assumindo finalmente que este ser macaense é, em si mesmo, uma indefinição, “que te (in)defines / pelo não ser bem / que também não és bem…”. Deste modo, o ser passa a reconhecer-se pelo não-ser, porque não é possível (re)conhecer-se. Nesta incógnita, que hoje paira sobre toda a comunidade, as suas palavras alargam aquela indefinição a Macau, que sempre a ajudou a identificar-se, consigo e com os outros. Por isso, “sei onde estava / não onde estou / Não sei por onde vou / por onde não vou”. Descentrando-se da terra, deixando secar as raízes que sempre deram sentido à sua vida, de dádiva e partilha, a macaense valoriza-se pelo que é, na sua individualidade, afirmando “Sou / apenas / mas sou / quanto baste”. E, num último esforço de encontrar-se, procura no Mundo aquilo que Macau já não oferece, questionando “Donde venho? De que lado / do Mundo?”. Uma questão que, no presente, só pode encontrar resposta num passado longínquo e num futuro por construir. Parar no presente, para “recarregar / energias para / retomar a rota do vento / e cumprir o destino”. Anuncia-se a esperança num futuro carregado de um presente de incertezas.

Sempre fez parte do ser macaense a procura, numa “Miragem / de olhos postos no Ocidente”, das suas raízes mais profundas, que Cecília Jorge reconhece como “berço secular / da eterna presença”, embora longínqua, mas que emerge na “confluência de civilizações” que transformaram Macau no “patamar” de dois mundos “harmonizados / num só”. Talvez resida aqui o sinal de esperança antes enunciado, embora assente nos “Pés de barro da lusitanidade”. Fragilidades de uma origem que se prolonga no acto do regresso, anunciadas nas “caravelas de vela solta / que se vão rasgando / no retorno à Pátria”. Desta síntese imperfeita e, mais uma vez, indefinida, fica como garante a “Língua materna Mãe”, aquela língua que nos embala “num fado de Amália / até ao finar da vida”. Nesta língua, que na casa e nas ruas se fez arma, apresentada como um “Lago fecundo sem margens / Como o mar que banha o teu berço”, encontramos uma das razões de querer partir, uma vontade representada num relógio que teima em impor uma lenta marcha do tempo, demasiado lenta para quem deseja bater “as asas / no devaneio / que me leva para / longe / daqui”.

Já não é suficiente o ser que se confunde com a terra, o “reinol aventureiro” que se cruzou com a “mãe asiática”, num caldo de cultura com cheiro a canela, criando “ternura e sensualidade / no recato de uma alcova” e lutando “contra as monções”. Já não é suficiente acreditar que se vive numa cidade “maior que o mundo”, onde era possível uma “existência singela / humana partilha / solidariedade / e amizade”. Já não é suficiente sentir Macau “na curva do Chunambeiro / que já nem curva é”, obrigando a macaense, mulher e poetisa, a sentir “a alma da urbe / viva”, a transformar-se num espírito solitário que vagueia e pisa um “chão inexistente”. Junta-se, então, a angústia e a desmotivação – “Nem chorar / consigo” –, que se vivem e sentem numa profunda “dor indizível dor abstracta fugidia / dor infinita” que, sem matar, “despedaça e / chaga sem sangrar”. Macau vai-se esmaecendo nesta dor de quem, como muitos, como Cecília Jorge, desconhece a terra que sempre chamou de sua, como se, na velha Baía da Praia Grande, ainda fosse possível sentir uma “aragem / que nos embalava” ou ver “Raios de sol em despedida”.

É na rua que persistem as memórias de uma Macau que se perde nos dias que passam, nos “jasmins / que espalhados ao sabor do vento / nos perfumavam as madrugadas / e os crepúsculos”; no “sabor dos fritos / comidos na rua”; nos macaenses “em volta de / uma só / taça de chá”. Estas são algumas das memórias que persistem numa cidade em mudança permanente, abandonando o nome de porto de abrigo. Como a rua da “Felicidade sequestrada / num nome”, também Macau se entregou a um futuro sem passado e, por isso, com um presente comprometido na auto-negação de si própria, comprimida “em caixotes / a tanto-por-metro-quadrado”, impedindo a mulher da cidade de desfrutar da “grandeza / de um céu distante”.

Ao ser macaense, agora sentindo-se em terra alheia, sobra apenas a solidão, mesmo quando se mistura “num mar de gente / tão transparente / e frágil / que se esquece”. Uma solidão que se dilui na cidade, na “Ficção criada pelos portugueses”, que “nem os próprios dela / se apercebem”. Fica apenas a solidão e a memória.

A memória
esmorece
e se apaga
no vazio.

19 Fev 2021

Um sol inesperado

Há praticamente um ano que andamos nisto. Aprendemos entretanto palavras novas (aprendemos a repetir palavras que não esperávamos um dia dizer). Deixamos a vida à porta quando entramos ou saímos de casa como um guarda-chuva encharcado. Na verdade, não sabemos bem o que fazer com ela enquanto ela não volta. É o mais longo intervalo de que tenho memória nesta relação que já dura há uns bons anos.

Felizmente, temos conseguido controlar (com muitos sacrifícios a vários níveis) a taxa de mortalidade – com algumas excepções muito pouco felizes, como foi o caso deste Janeiro. Mas subsiste a sensação de que a morte – apesar de todas as medidas, apesar das benfazejas vacinas – está à espreita, à espera de um descuido, de uma distracção de principiante, do momento em que ousamos vir à tona reclamar o quinhão de oxigénio a que estávamos habituados. De um ponto de vista objectivo – eu de fora, com os óculos da ciência disponível postos, a olhar para mim próprio – sei que não faço parte de um grupo de risco acrescido. Em princípio, se o bicho resolver fazer de mim turismo, sobreviverei. Mas se em Março do ano passado, quando o confinamento era sinónimo de incerteza e de pavor, eu conhecia apenas duas pessoas que tinham adoecido com o vírus – e que nem sequer moravam em Portugal (olá Ana, olá Carlos, sintam-se bem-vindos a este texto) – e que dele recuperam sem qualquer mazela subsequente, neste momento conheço muito mais gente que adoeceu – e recuperou – e também gente que morreu.

A morte em jeito de estatística no telejornal da noite, vociferada pelo apresentador de serviço como se de um anúncio bíblico se tratasse, não me tira propriamente o sono; há muito tempo que a minha relação com a televisão e os seus mecanismos de predação afectiva é praticamente inexistente. Evito-a como quem se escusa à companhia de uma pessoa desonesta. Mas não há como evitar o pesar por aqueles de quem sabíamos os nomes, ou aqueles que são os pais, os tios ou os avós das pessoas da nossa congregação de vivências. São esses que dão à cara à estatística anónima que alimenta os noticiários. Lá fora cheira à morte.

E, de repente, e por mais que se insista em abandonar a vida à soleira da porta enquanto ela não resolver se portar bem, a vida, como as ervas que rebentam na fenda de uma rocha num assomo de tenacidade, a vida acontece. Sem avisos, sem reservas, sem máscaras: ela segue-nos para onde quer que vamos.

Uma muito querida amiga minha engravidou. Talvez esta seja a pior altura para se engravidar (ou para qualquer tipo de acontecimento que celebre a vida em geral). Mas a vida não alimenta a metafísica com que lhes revestimos os ossos. Ela acontece. E acontece no momento em que alguém expira pela última vez e volta a acontecer – sempre cegamente, sempre sem tomar qualquer partido – quando alguém inspira pela primeira vez. É maravilhosamente caótica, é tenaz e salpica irrestritamente os sítios por onde passa com a bonança da sua criação.

O Francisco nascerá este ano. Ouvirá muitas histórias a respeito do ano da sua vinda. Talvez acabemos por falar desta pandemia como os antigos falaram da pneumónica (a gripe espanhola de 1918), sem as terríveis consequências a nível de mortalidade – esperemos – que esta última acarretou. Se tudo correr excepcionalmente bem, talvez acabemos por somente com algum esforço de rememoração nos lembrar deste intervalo. O Francisco, para mim, carregará o augúrio do símbolo deste ciclo de renovação e continuidade, os dedos que se tocam no princípio e no fim de tudo, a história que se faz entregando corpos ao berço e à cova. O Francisco é um sol inesperado desfazendo uma neblina de gesso.

19 Fev 2021

A última refeição

Tencionava escrever outra crónica onde queria demonstrar como o comportamento dos canais televisivos, na dramatização do covid e na expulsão dos índices culturais da pólis mediática, corresponde ao fosso que se cavou e que separou definitivamente a Comunicação do Conhecimento, divórcio que se afigura trágico para a sustentação dos valores da dignidade humana e cujo discernimento hoje se revela fulcral. Ficará para a semana. Duas coisas impuseram uma mudança de rumos, uma pessoal e outra do orbe político mundial.

A pessoal é que acabei a peça de teatro que a Maria João Luís me encomendou para o Teatro da Terra. A peça já tem datas de estreia, em dezembro, no Seixal e em Lisboa, no S. Luís. Tenho agora a obrigação de me manter vivo até lá.
Aí vai a sinopse para A Última Refeição:

«Helene Weigel dispõe os ingredientes sobre a banca e deita mãos à obra: confeccionar uma última refeição para o Bert (Brecht). Frango na púcara com temperos à Mãe Coragem.
A estranha banca da cozinha, com gavetas de diversos tamanhos de um lado e de outro, está suspensa, presa ao tecto por cabos.

Na primeira parte da peça, Helene, enquanto cozinha, vai discorrendo sobre a sua vida com Bert: as grandes alegrias por partilharem de um transcendente sonho teatral e se confiarem incondicionalmente no palco, numa sintonia que os levou ao êxito, e, por outro lado o sofrimento com as traições conjugais e o carácter de pinga-amor do Brecht e a sua noção muito alargada de “família”; a dureza da vida no exílio; o difícil regresso a Berlim e o seu papel como “dama de ferro” para manter a administração de um teatro com 260 funcionários; o seu papel de “mãe” para manter Bert no equilíbrio propício às suas necessidades criativas.

À medida que se vai emocionando com os episódios que relata, vai mudando o seu modo de picar os legumes e de tratar os outros ingredientes, alterando o ritmo da confecção e oscilando entre e a delicadeza ou a rudeza na relação com os ingredientes, os temperos, etc. Por fim mete a púcara no forno, outra das gavetas embutidas na “banca”.

Há que “aguardar” que o fogo actue e o frango saia à altura da sua fama como cozinheira: algo que “ressuscite um morto”.

(para o começo da segunda parte:) Helene começa por mostrar-se arrependida por ter escolhido um prato feito no forno, e pede desculpa a Bert, por de repente lhe parecer que as chamas do forno se assemelham às do Inferno, que o recém-falecido pode pode estar prestes a enfrentar. Tem um momento de desvario, onde “ressuscita” o medo que agonizou Galileu quando se sentiu acossado pelo risco da fogueira da Inquisição, antes de se acalmar.
Bebe um chá e então Helene, gaguejando primeiro, relata o seu encontro com o agente do STASI que lhe anunciou com antecedência a morte de Bert, porque afinal era a Morte disfarçada.

E como esta lhe lançou o mais terrível dos desafios: já que ela foi a Mãe Coragem porque não encarnar outra grande figura da tragédia clássica, a Alceste, cuja qualidade humana assombrou os deuses, ao aceitar que a Morte a levasse no lugar do seu marido? A morte diz-lhe que sempre admirou o amor incondicional dela por ele e que a sente à altura do desafio.

Helene vacila. Bert já está no caixão, mas ela ficou de responder à morte na manhã seguinte, para o substituir ou não, e no primeiro caso a Morte ressuscitá-lo-ia. O dilema desespera-a e resolveu fazer o prato que Bert mais gostava e que considerava digno de “ressuscitar um morto” (- talvez assim ela não precise de sacrificar-se”, pensa.)

Quando o frango fica no ponto, Helene tira-o do forno e antes de o destapar limpa o tampo da banca (mete tudo o que lá estava noutra gaveta), e depois abre o tampo da mesa de cozinha, pois afinal era a urna onde está o corpo de Bert.

Então destapa a púcara para que ele sinta o cheiro inebriador do prato, e tem uma última conversa com Bert.
Em primeiro lugar quer discutir com ele uma determinada passagem de “A alma boa de Setsuan”. Quer discutir com ele, um certo matiz da Bondade, que ainda lhe faz espécie. Depois, então falarão sobre a Alceste. O que Helene decidir será de consenso entre os dois.
O intenso aroma do cozinhado invade a sala.»

Esta foi a primeira sinopse. No fim a peça ficou ligeiramente diferente, mas não revelo mais nada para que haja surpresas em cena, e serão bastantes. Foi uma peça de confecção demorada, tive de ler e reler quase tudo do Brecht, mais uns quantos livros sobre ele, para que não houvessem dedos apontados por parte dos “donos” do Brecht e porque, afinal, a complexidade da criatura pedia.

O segundo motivo prende-se com a perplexidade face ao resultado do Impeachment do Trump. Fica em risco a democracia em todo o mundo, com este mau exemplo, pois um dos mais convincentes argumentos dos acusadores Democratas, consistiu em lembrar como a absolvição do político criaria antecendentes para uma nova norma de actuação política que deitaria por terra todos os princípios. E acho que eles tinham razão. E o mistério impõe-se: que raio há de fascinante no grotesco solipsismo de Trump?

Só me resta fazer um comentário em modo teatral:
«A alma de Trump chega à Barca do Paraíso. Depois de ouvidos e discutidos os seus pecados, Trump é recambiado para a Barca do Inferno e o Anjo do Inferno manda-o embarcar com verdadeiro júbilo. O drama é que assim que o Trump entra na Barca do Inferno esta afunda com o peso das suas faltas. Há que encomendar outra Barca a um célebre armador grego, de quem o Trump se diz amigo, e de quem pode obter um abatimento nos custos finais…». O resto, imaginem vocês.

18 Fev 2021

Primeiro acto Cena 2

Valério dá mais uma longa baforada no seu cigarro. Gonçalo bebe o vinho todo que tem no copo e pousa-o no chão, ao lado da cadeira. Não se levanta.
Valério
Não ias mijar?
Gonçalo
Depois mudo a fralda.
Valério pega no copo de Gonçalo e serve-lhe mais vinho. Levanta-se e vai até à mesa para escolher outra garrafa. Só passados alguns segundos é que percebe que as garrafas são todas iguais. Tinto, mesma casta e mesmo ano.
Valério
Então e o conto?
Gonçalo
Sim… [pausa] Era uma história de ficção-científica. Valério
Hmmm…
Gonçalo
Era sobre um neo-nazi português que encontra uma máquina do tempo…
Valério interrompe abruptamente o desarrolhamento e desata a rir. Quase que deixa cair a garrafa.
Gonçalo
[rindo]
Pois…
Valério
Continua!
Termina de abrir a garrafa, pousa o saca-rolhas na mesa e regressa ao seu lugar. Enche o seu copo e pousa a garrafa no chão.
Gonçalo
[suspirando]
Encontra uma máquina do tempo… e como sempre sonhou com…
Valério
[interrompendo]
Onde é que ele encontra a máquina?
1
Gonçalo
Onde…? [pausa] Era um estudante, físico teórico… estava envolvido num projecto qualquer como consultor… num laboratório de física experimental.
Valério
Certo!
Gonçalo
E não era uma máquina tipo cabine telefónica…! Não era uma máquina, ponto! Era uma espécie de estufa… criada para reverter a entropia…
Valério
A entropia de quê?
Gonçalo
De quê, o quê?!
Valério
De um objecto, de um corpo celeste…?
Gonçalo
Não, não, de nada… [pausa] … do pó! Se um quarto estiver fechado durante uns anos… sem ninguém lá entrar… quando alguém o abrir, não estará exactamente na mesma.
Valério
Terá pó!
Gonçalo
Que é desorganização, a segunda lei da termodinâmica e tal…
Valério
Certo, continua!
Gonçalo
Ele fica fechado na estufa… não me perguntes porquê, não me lembro!… [pausa] Acho que tinha havido um beberete qualquer, a experiência foi um sucesso… ele foi com uma colega para a estufa, passaram lá um bocado, estavam bebidos – vês, já me estou a lembrar! – … ela vai-se embora e ele adormece lá dentro…
Pega no seu copo de vinho e bebe com avidez até o esvaziar. Valério volta a atestá-lo, aproveita e atesta também o seu.
Gonçalo
[continuando]
… acorda no dia seguinte… abre os olhos, não se consegue mexer… vê que há movimento fora da estufa… estranha o movimento, porque era suposto estarem todos de folga, a curar a ressaca… mas está toda a gente de bata, e luvas, e capacetes, tanto quanto ele pode ver… as paredes da estufa são densas e desfocam bastante… até que alguns entram na estufa para fazer umas medições quaisquer com uns aparelhómetros… [olha para o amigo] Eu tinha isto tudo bem pesquisado, agora não me lembro bem dos detalhes científicos…
2
Valério
Estou a ouvir…
Gonçalo
[acanhado]
… e… eles estão para lá a fazer as tais medições e cálculos e a trocarem informações… números complexos e tal… e não vêem que ele está deitado no chão, a um canto… andam de um lado para o outro…
Valério começa a rir e engasga-se com o fumo do cigarro que tinha acabado de puxar. Tem um ataque de tosse que se agudiza ainda mais com o riso.
Gonçalo
[contrariado]
Pronto… esquece!
Valério
[tossindo]
Desculpa… mas eu [tosse ainda mais]… eu estou a ouvir.
Gonçalo
[amuado]
Oh…!
Valério
[recuperando]
É que estás a contar uma história interessante… uma estufa, a reversão da entropia… um beberete, os dois que se foram comer lá para dentro… mas porquê um neo-nazi? [desata a rir] É que eu estou atento, mas estou sempre a pensar nisso… Porquê!… Um neo-nazi entra num bar… se começas assim, estás à espera que ele parta aquilo tudo!… ainda por cima português! Quê, tem as quinas tatuadas na testa?!.. Não estás é à espera que ele acenda um cachimbo e peça um whiskey de malte… [pausa] Pronto… desculpa.
Gonçalo
[irritado]
E se ele se sentar no balcão, acender um cachimbo e pedir um whiskey de malte…?
Valério
[rindo]
Porque é físico teórico? [pausa] Olha, agora vais fazer birra…
Gonçalo
Não vou nada! [pausa] Mas o que é que tem ele ser…?
Valério
[interrompendo]
À partida, nada… mas então é só um gajo que entra num bar… e que, por acaso, é neo-nazi! Se dizes “o Gandhi entra num bar”, imaginas logo o gajo pequenino, careca, óculozinhos redondos… e ficas à espera de quê?… de cenas à Gandhi!
3
Gonçalo
Cenas à Gandhi!? Mas, então…
Valério
[interrompendo]
Claro que podes começar com “quem-quer-que-seja entra num bar”, mas tens de contar com a expectativa da malta!… “Aquiles entra num bar”… Mas Aquiles porquê?… Está coxo?! É só um tipo vulgaríssimo a quem lhe deram o nome de um semi-deus?… Vou sempre pensar no nome e no porquê do nome e às tantas ele até pode estar a comer caracóis com os pés que eu vou estar sempre a pensar no mesmo…
Gonçalo
Pensas muito, tu…! [irrita-se] E eu não comecei a história assim, na altura! Não foi “um neo-nazi entra numa estufa do tempo”…
Valério
Então não foi por isso que ta recusaram! [desatam-se os dois a rir] Vá, continua… Gonçalo
Agora esperas…
Gonçalo levanta-se e vai direito à porta da direita alta. Entra e fecha a porta atrás de si, deixando Valério sozinho na pequena sala.
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18 Fev 2021

As duas águas: Orwell vs. Rorty   

Na última parte do livro Contingência, Ironia e Solidariedade de Richard Rorty (1989), num subcapítulo sobre Orwell, há uma interessante passagem em que a relação entre os degraus da história e a literatura é estabelecida.

Ora leia-se: “Orwell foi bem sucedido porque escreveu precisamente os livros certos no momento certo. A sua descrição de uma contingência histórica particular foi, assim se verificou, precisamente aquilo que era necessário para representar uma diferença para o futuro da política liberal. Quebrou o poder daquilo a que Nabokov gostava de chamar “propaganda bolchevique” sobre a mente dos intelectuais liberais em Inglaterra e na América. Com isso colocou-nos 20 anos adiante dos nossos correligionários franceses.”.

Em primeiro lugar, clarifique-se o facto de a palavra “liberal” ser aqui empregue na acepção de democracia, ou melhor, de “democracia liberal”, tal como a entendemos hoje. Em segundo lugar, Rorty quis significar por “degraus da história” esta visão subliminarmente axial que entende poder “estar-se adiante” ou “atrás” na compreensão de algo (como se a história tivesse um ‘plot’ que caminharia para uma redenção, fosse ela qual fosse). Em terceiro lugar, entendendo profundamente a razão de Rorty, quero crer que a alegoria de Orwell analisada tem um cariz trans-histórico que suplanta a época de enunciação e as suas mais imediatas referências.

Richard Rorty refere-se, claro está, a Animal Farm (1945) e aos primeiros dois terços de 1984 (obra publicada em 1949 e cujo primeiro título foi sintomaticamente The Last Man in Europe), já que o último terço do romance, depois de Winston e Júlia irem para o apartamento de O’Brien, torna-se – tal como o autor enfatiza e bem – num livro sobre O’Brien, deixando de se constituir como alegoria exclusiva da tentação totalitária do século XX. Seja como for, o que se nota desta disposição crítica de Orwell é que o foco crítico acaba, ele mesmo, por depender, em grande parte, da época em que o juízo se explicita. Repare-se: as duas primeiras partes de Contingência, Ironia e Solidariedade foram escritas nos anos de 1986 e 1987 (na sua origem foram “Lectures”), tendo a última parte, onde surge a análise de Orwell, sido redigida posteriormente (mas seguramente antes de 1989, data da publicação da obra). O que nos aponta para uma redacção que terá tido lugar no final da década das grandes modificações, no centro e na iminência do xeque-mate mais importante do século passado: a queda do muro de Berlim e a emergência da nova era tecnológica, permeável ao fim dos dogmas e ao esvair da “História” como caminhada inelutável e de tectos inevitavelmente progressivos.

É apenas nesta postura de quem ‘pára’ e ‘olha para trás’, conseguindo definir uma esquadria de compreensão dos contracampos do século XX, que é possível entender a análise de Rorty. É, realmente, através de um dado sentido de finalidade – que historicamente se estava a esgotar no momento em que Rorty escreveu –, que os pontos de partida alegóricos de Orwell (do pós-guerra e do quase pré-guerra fria) podem ser descritos como foram em Contingência, Ironia e Solidariedade. O que significa que os “degraus da história” não passam de marcos volúveis, criados pragmaticamente em cada interpretação que se faz do tempo passado, enquanto aquilo que faz a (grande) literatura ser literatura vive justamente do contrário, isto é: da perenidade (por vezes tão transparente quanto ilegível) que acaba – ainda que tal seja uma ilusão deliciosa – por resistir ao tempo.

Por outras palavras: um presente que já foi (o de Orwell) só pode agir sobre o actual (o de Rorty), se receber deste, retrospectivamente, a sua própria eficácia manipuladora. Foi o que aconteceu. É deste modo que o livro de Rorty faz coexistir dois presentes bastante afastados, ainda que dependentes do jogo reflexivo que o texto leva a cabo. No caso da literatura, a coexistência entre muitos presentes pode acontecer como água que se mistura com a própria água sem a necessária dependência de correspondências forçadas (ao jeito das tradições de Joaquim de Flore, de Vico ou de Hegel, por exemplo), tal como aconteceu com Proust que juntou o antigo presente de Combray ao presente que na leitura se torna gradativamente ‘actual’, criando assim o jogo de espelhos que desencadeia e anima toda a irradiação narrativa.

18 Fev 2021

É carnaval ou percebi mal?

Olhem, amigos: está um dia doce, de um azul suave e uma daquelas temperaturas que parecem carícias ternas e castas. Da minha janela entrevejo uma nesga de rio, que como de costume corre indiferente às alegrias e angústias do mundo, seguindo o seu curso com a certeza de que ninguém o irá confinar. Está, portanto, um dia perfeito para a contemplação e para a agrafia serena, uma pausa merecida na batalha ininterrupta destes tempos. Para ser sincero, apetecia-me desfrutar o que se me oferece em silêncio, sem necessidade de tropeçar nas palavras que eu próprio tenho de alinhar. Oh, a doçura do ócio, a vertigem da tranquilidade, a…E foi nesta altura que alguém me lembrou que estávamos no Carnaval.

Percebam: a irritação que tenho com esta quadra é já antiga e forte demais para a conseguir ignorar, até em numa época estranha como a que vivemos. Este “adeus à carne” (do latim tardio carne vale e que alegadamente é a etimologia da palavra) e que antecipa por excesso a austeridade da Quaresma nunca me interessou. A razão é simples: não consigo compreender uma selecção de dias em que a maior ambição da Humanidade é obrigar-se a estar alegre e mascarado de minhota. Mesmo em criança aderia à coisa de forma resignada para que os meus pares continuassem a considerar-me. Infelizmente as provas fotográficas desta afirmação ainda existem e foi sem surpresa que redescobri o Zorro mais melancólico de sempre ou o cowboy com o maior tédio a oeste de Pecos.

Escusam de vir com explicações religiosas ou antropológicas do fenómeno: estou-me nas tintas mas aparentemente não o suficiente. Talvez se vivesse num país onde a tradição carnavalesca fosse forte e ansiada, como é o caso do Brasil. Mas não: vivo num país onde o Carnaval consiste em recriar o sambódromo sob temperaturas abaixo dos 10ºC, enquanto a genuína Escola de Samba Bota-Aí-No-Cangaço da Bairrada de Baixo executa as suas tiritantes coreografias. Não me levem a mal: eu respeito quem gosta e pratica. Tenho muitos amigos (olá,Alcobaça!) que fazem desta data magníficas super-produções de disfarces e alegria durante dias sem dormir. Quase que tenho inveja. Mas não tenho.

Este ano, pelas circunstâncias que sabemos, pensei que a coisa ficasse adiada. Mas ao que parece subestimei a tremenda força de vontade dos foliões e foi assim que soube, estupefacto, que o Carnaval iria ter uma variante online. A sério: pessoas que terão gasto horas preciosas das suas vidas a mascararem-se para em seguida se colocarem em frente a um computador. Foi assim em Torres Vedras mas suspeito que esta versão Zoom da folia teve seguidores um pouco por todo o lado.

De repente, amigos, voltei a transformar-me no Zorro triste que fui em criança. Continuo a não perceber. Apenas fiquei a ansiar ainda mais as penitências da Quaresma. Bem preciso.

17 Fev 2021

Cá dentro do lá fora

Santa Âncora, Lisboa, um dia qualquer de Fevereiro

Não terá sido sonho, dos de acender vigílias, menos ainda pesadelo, dos de pesarem na respiração. Foi só vaga ideia, discutida ainda assim naquela base do tóxico «e se?», que logo tende a transformar-se em pueril «não és homem não és nada!». Passados tantos anos quase dói esta relembrança. Era para ser jornal impresso de distribuição gratuita sobre a internet, mais carta de navegação que outra coisa qualquer, um diagrama em progresso, quanto muito manual de instruções ou relato de viagens. Desvantagens de nativo da floresta de fibras do papel em caçada aos pixeis. Como fixar o movediço? Ou melhor, para quê? Desconfiança do imaterial, talvez. Fascínio por mapas, com certeza. Nestes dias de nojo habitável, se custa aguentar as jeremíadas dos clássicos-médios abrigados e alimentados e ligados pela tomada do umbigo, também se encontram nos territórios do entrelaçamento motivos de alegria.

Entra aqui a banda sonora das próximas linhas, projecto velho de mais do que uma década. Tudo começa na pele do tambor. Kutiman, nome de guerra do israelita Ophir Kutiel, resolveu que se podia tocar com pessoas, mais do que instrumentos e sintetizadores e a panóplia completa do deejaying contemporâneo. Foi com uma batida que se atirou ao oceano imenso dos vídeos do youtube, o maior dos espelhos. O resultado foi este magnífico atravessamento das gentes e vozes próprias: http://www.thru-you-too.com/#!/ A improvável orquestra produz música dançável e até comovente, mas os cenários, as roupas, as situações, as origens, enfim, as partes em que queiramos partir a obra fazem do conjunto um dos mais brilhantes testemunhos da época. E inspiradores, que sacrifico com facilidade ao entusiasmo.

A doença da pandemia vai tendo gravosas consequências, mas a criatividade ainda nos insufla. Será mais respiração boca-a-boca, mas ainda assim. O Lux Frágil (https://www.facebook.com/luxfragil), navio que soube sempre viajar atracado, foi dos pioneiros na reinvenção dos encontros. Mas nos últimos dias produz um dos inúmeros diários que infestam o éter. Nem me preocupei com a autoria, que acaba sendo o lugar. Portanto aquele que se assina, é o L. e produz as mais elegantes e bem humoradas piscadelas de olho ao humano sob quietude obrigatória. Os pés que dançavam agora arrastam-se. «Dia 409 de 2020. podes fazer um cocktail, podes fazer um molotof, não podes fazer um cocktail molotov; podes fumar e podes beber, podes fumar antes de beber, não podes fumar depois de beber; podes cruzar-te com o amor da tua vida sem sair de casa, não podes sair de casa à procura do amor. // a vossa casa é o vosso mundo. a minha voltará a ser.» A cada leitura estou na varanda de copo na mão em boa companhia.

O aforismo desde tempos imemoriais que se vem fazendo meio de transporte. O Rui Vitorino Santos (https://www.facebook.com/rui.v.santos.5) há meses que arranca páginas do seu caderno, mas que se tem revelado um bairro enorme, que digo, uma cidade. Anda na contrafacção de selfies de figuras diversas da urbanidade, que se dizem em pose. Cada corpo apresenta-se com apêndice, a fala como membro. Imagem a figura que diz: «Estou neste momento empenhada num projecto pessoal que conto lançar no dia do meu aniversário». (Outro exemplo na página). Mais melancólica que cómica, desenha-se por ali uma sociologia da afirmação, corpos quase sempre nus em entrega e encenação. O que queres ser quando continuares do mesmo tamanho?

O Filipe Homem Fonseca tem tido uma vida cheia e vertiginosa, donde estas «Memórias da Lua Lenta» (https://www.facebook.com/media/set/?vanity=fhfonseca&set=a.10157828636158208). Em hilariante delírio está sempre a cruzar-se no tempo e nos espaços com estrelas desse lugar extraterrestre chamado pop. Extrema atenção à oralidade, a invocação do que está condenado a não existir para além do presente, um levantamento arqueológico que no fundo lá no fundo é de pesos pesados em ambiente sem gravidade. «O Rod Stewart lembrou-se de fazer uma caracolada no intervalo das gravações do videoclip do “Sailing” em Peniche, e o Paul McCartney, que estava lá de férias, desatinou porque achava um desperdício estar-se numa zona pesqueira a comer caracóis. Ligou-me a perguntar se eu podia passar com a carrinha pão de forma à porta da pensão onde ele estava hospedado para carregar dois quilos de petinga e ir ter com o Rod. No caminho, começou-me com a conversa de que o Everton tinha sido roubado pelo árbitro mas eu disse-lhe: “Eia, Paul, se é para falares de bola, ficas já aqui.” Parei à beira de uma estrada de terra batida e ele foi-se embora, todo ofendidão. Mas deixou a petinga. / Fui ter com o Rod Stewart e estivemos a comer caracóis e a beber rosé até às tantas. Acabámos por adormecer todos, eu, o Rod, e a equipa de filmagens, nas traseiras da pão de forma. / Com a petinga fizemos omoletes na manhã seguinte, foi o nosso pequeno-almoço. Eram dois quilos, ainda se estragou peixe.» O culto da personalidade tem os dias contados. Aqui.

(continua)

17 Fev 2021

Nada está perdido

PRIMEIRO ACTO CENA 1

Uma pequena sala escura com paredes empedradas e chão de madeira escura. Ao fundo, dois toros robustos ardem na lareira. Encostado à lareira, um fogão de ferro envelhecido com uma cafeteira ainda a fumegar; do lado oposto, um balcão de madeira com um lava-loiça de pedra onde alguns pratos jazem amontoados. À direita de cena, uma janela com as portadas abertas para uma noite escura. Nem árvores, nem estrelas. Encostada à janela, uma pequena mesa com uma máquina de escrever, algumas garrafas de vinho e um pequeno candeeiro a petróleo. Na esquerda alta, a porta da casa e o bengaleiro, de onde pendem dois casacos de neve e alguns cachecóis. Há alguns quadros pendurados nas paredes: algumas naturezas-mortas, um oficial exibindo as suas condecorações e uma aberração de circo, sem braços e sem pernas, equilibrando uma bola na ponta do seu grande nariz. Ao fundo, na direita alta, uma porta para quem se quiser aventurar para outras divisões. Há livros e jornais espalhados pelo chão da pequena divisão.

Gonçalo está sentado numa cadeira de madeira, ensimesmado, de costas para o fogo. Por cima dele, um lustre dourado e envelhecido com algumas velas acesas. Ao seu lado, estão três garrafas de vinho vazias, pousadas no chão. Valério está ao pé da mesa, abrindo outra garrafa com um saca- rolhas. As labaredas recortam as suas sombras intermitentes nas paredes.

Gonçalo

É mais como se fosse um sopro, agudo… mas às centenas. O calor que me rodeia é insuportável. [pausa] E estou sozinho…
Valério
Sozinho?
Gonçalo
Sim. [pausa] Quando penso nisso… é o que me parece, sim. Que estou sozinho. Só eu e o inimigo… não há ninguém do meu lado. Ou melhor, ninguém a meu lado… porque mesmo que haja, seja quem for… ninguém me poderá valer nessa altura… é cada um por si, cada um consigo próprio e o inimigo, que é comum a todos.
Valério
E o calor, vem de onde?
Gonçalo
Dos fogos… dos rebentamentos. A floresta arde, os morteiros continuam a silvar…
Valério
Ah, é numa floresta!
Gonçalo
[surpreso]
Sim.
1 of 3
Valério
Não tinhas referido.
Gonçalo
Hmmm… o sol está quase a pôr-se.
Valério
Ajuda a elevação.
Gonçalo
Sim.
Valério pousa o saca-rolhas na mesa e cheira o vinho pelo gargalo. Enche o seu copo e prova o vinho. Depois, vem sentar-se num velho cadeirão, ao lado de Gonçalo. Este bebe o resto que tem no copo e Valério enche-o com o novo néctar.
Valério
Os morteiros continuam a silvar…
Gonçalo
Sim.
Valério
E…?
Gonçalo
Eu encolho-me… no meio de uns arbustos. Tapo os ouvidos… [pausa] A mistura dos cheiros, o sangue queimado e o metal a ferver…[pausa] é…
Valério
Nauseabundo?
Gonçalo
Não… não diria tanto. É… [pausa] perturbador. Valério
Hmmm…
Gonçalo
E é precisamente nessa diferença que está a questão. [pausa] Se fosse nauseabundo, eu continuaria vergado, a vomitar o medo… mas o cheiro do metal ardente… [pausa]… impele-me…
Valério
A olhar para cima?
Gonçalo
Sim. [pausa] E é nesse momento que acontece… o relâmpago interior, fugaz…
Valério
O êxtase?
2 of 3
Gonçalo
O êxtase, sim. Os sentidos… o conflito dos cheiros, as balas que me sopram ao ouvido, os silvos dos morteiros… uma sobra gigante cobre-me… olho… e lá em cima, no céu alaranjado… um bombardeiro desaparece no meio das nuvens depois de largar a carga mortal… e algures entre o sol e as nuvens há uma… [sorri]… uma presença, uma paz… [pausa] Encho-me de felicidade… e nunca estive tão desprotegido como estou ali, naquele momento. E sou invencível.
Os dois amigos ficam em silêncio durante algum tempo, repisando aquele episódio nas suas cabeças e beberricando o vinho.
Valério
Isso parece um sonho molhado de um neo-nazi!
Os dois desatam a rir, Valério entorna o seu vinho.
Gonçalo
Du bist… du bist… du bist ein schwein!
Valério
Nein, nein, nein… ich bin ein untermenschen!
Gonçalo
Nein, nein, nein! Mein Gott… du bist ein arschloch!
Valério limpa o vinho que caiu em cima de alguns livros, passando a manga da camisola sobre eles, enquanto espreita os títulos. Depois da limpeza, dá-se conta da quantidade de livros espalhados pela pequena divisão.
Valério
Tens livros suficientes para ficares sozinho e nunca te sentires sozinho… [pausa] Isso é perigoso! Gonçalo
Hmmm…
Valério serve-se de vinho, repara que Gonçalo ainda tem o copo a meio e mesmo assim enche-o até quase transbordar.
Gonçalo
Falei-te do primeiro conto que escrevi? E que foi recusado por uma revista?
Valério
Ainda havia revistas a publicar contos e foste recusado? Fala-me disso!
Gonçalo
Primeiro vou mijar.
Ele não se levanta. Valério acende um cigarro e dá duas longas baforadas. Oferece o maço a Gonçalo. Este tira um cigarro e acende-o, dando uma longa baforada. Os dois em silêncio, recordistas em apneia de fumo.

11 Fev 2021

Um pioneiro chamado Blanchot

A ideia de fim – ou mesmo de fim último – fez uma alegre caminhada ao longo de milénios. Fosse nos “Livros” que se pretendiam revelatórios, fosse nos mais diversos domínios agnósticos. Na cultura contemporânea (divirto-me quando a intitulo por “mundo-pós-pós”), esse modelo linear, que liga as visões de uma origem única ao seu termo, parece hoje, no mínimo, encoberta por uma névoa bastante espessa.

Em primeiro lugar, porque a rede inventou um novo modo de ‘morrer e nascer ao mesmo tempo’, como se com isso tivéssemos fundido a metempsicose platónica às redenções do Ganges com um tipo de instantaneidade que hoje brilha de modo natural no instinto das nossas crianças. Em segundo lugar, porque a febre da actualização (o deslumbre do ‘refresh on-off’) já se tornou numa aprendizagem que nos diz que um corpo só é de facto um corpo, se estiver sempre conectado com a rede.

Esta reinvenção da vida que se baseia no ‘update’ permanente afasta-nos das tradições melancólicas, pois passamos o tempo a nadar nas vagas do presente como se nada mais existisse. A tradição da melancolia sempre se associou a um tipo de “História” – ou a um conjunto de narrativas –, cujo significado irradiava do passado por razões míticas, canónicas ou de domesticação moderna do tempo. Contudo, nas últimas décadas, esse tipo de narrativas estáticas – que me educaram na escola e fora dela – foram perdendo as suas estruturas subjacentes, os seus centros e a sua territorialidade imperial.

A supremacia do ‘Agora’ passou a governar todas as novas melancolias, convertendo-as numa doce ansiedade que apenas se conforma ao teclar ou ao deslizar com o dedo sobre os ecrãs. Já não existe hoje a melancolia que se estruturava em objectos fixos (na Carta medieval do Pseudo-Hipócrates, a bílis era ainda o humor da melancolia), tendo esta dado origem a uma outra que se dilui na exaltação das interacções e na acelerada ‘desreferenciação’ da vida e do quotidiano.

Quando penso neste tipo de efeitos que decorrem da nossa ininterrupta ligação à rede, ocorre-me quase sempre Maurice Blanchot, no momento em que, possuído por uma espécie de desespero apocalíptico, se pôs a imaginar o último escritor sobre a terra (o autor referia-se ao escritor, enquanto figura pós-romântica que encarnaria um deus a passear-se para sempre nas arenas do espaço público). Quase no final de Le livre à venir (Gallimard, 1959), Blanchot colocou em cena a morte do último escritor e questionou, alarmado: o que resultaria de um tal facto? A resposta, umas linhas à frente, era clara: “Apparemment un grand silence”. É uma daquelas frases de que me lembro muitas vezes.

A reflexão de Blanchot é logo a seguir invadida por um vaticínio dramático, já que, com a morte do último escritor, apareceria “um novo ruído” com a função de nos anunciar ‘a era da não palavra’ (“l´ère sans parole”). Este novo ruído passaria a ouvir-se para sempre, transformando-se num vazio que fala (“un vide qui parle”). Um vazio insistente, indiferente, sem segredos, capaz de isolar os homens; capaz mesmo de separá-los de si mesmos e de os conduzir a labirintos ínvios e sem fim. Este “terrível” ruído, espécie de recriação da música com apelo disfórico, teria uma natureza estranha (“l´etrangeté de cette parole”) e basear-se-ia na mais pura simulação. Se parecia querer comunicar-nos qualquer coisa concreta, essa “palavra” estaria antes a convidar-nos ao nada, ou seja, ao paraíso da angústia pura, território desapossado de passado onde, como é natural, não há sequer lugar para um olhar melancólico.

Blanchot reviu nesta metáfora da ‘palavra-ruído’ algo que escaparia à intimidade e ao ânimo, como se tivesse sido criado expressamente para os operários-autómatos a que Fritz Lang deu corpo no seu magistral ‘Metropolis’. Uma “palavra” que, ao fim e ao cabo, subtrairia a humanidade ao essencial pois só sobreviveria se estivesse ligada a uma máquina. Uma “palavra” fantasmática e em forma de vírus – continuava Blanchot já no penúltimo capítulo do livro (capítulo IV) – que seria “essencialmente errante”, manipuladora e exterior (“toujours au-dehors”), ao contrário, por exemplo, do fulgor do monólogo interior que seria movido a partir de um centro irradiador.

Apesar de se poder hoje escarnecer desta metáfora de Blanchot, ela contém em si uma premonição interessantíssima do mundo da rede. Ao ‘actualizarmos por actualizar’, a todo o momento, removemos o que antes aconteceu e, a pouco e pouco, apagamos a memória sem sequer darmos por isso; ao entregarmo-nos minuto a minuto aos nossos terminais, prendemos a mente a esse gesto e o próprio rosto torna-se num diagrama que declina e que se assume em estado de dependência.

Relembro que este livro de Blanchot, baseado no mais puro questionamento metafórico-literário, saiu a público curiosamente na mesma altura em que, no campo da ciência, duas teorias – que viriam a ser importantes para uma história da internet – se tornaram conhecidas: a teoria dos grafos aleatórios de Paul Erdos e Alfréd Rényi e a teoria da interacção simbiótica homem-computador de Joseph Licklider. A coincidência fala por si.

Erdos, Paul e Rényi, Alfréd, ‘On Random Graphs’, Publicationes Mathematicae, Debrecen, N.6, pp. 290-297, 1959.
Licklider, Joseph, ‘Man-Computer Symbiosis’, IRE Transactions on Human Factors in Electronics, Piscataway – New Jersey, Vol.1 pp. 4-11, 1960.
11 Fev 2021

Marcha dos cangalheiros

No último mês tenho assistido aos telejornais portugueses a que posso aceder (RTP e TVI), e estou atónito: a Cultura foi exterminada. Aliando isto à inexplicável proibição de comprar livros “presencialmente” e à suspensão de tudo o que seja espectáculo, confirma-se: para além de um imenso tecido profissional rasgado em pedaços por determinações do poder que pela metade são algo arbitrárias (não vejo a dificuldade das salas de teatro ou de espectáculos – se não convém ter orquestras em palco, divulge-se a música de câmara, por ex. – poderem abrir com restrições de lugares que salvaguardem as medidas sanitárias), regista-se uma profunda insensibilidade para o que seja e representa a cultura. O escandaloso? Que não haja um político revoltado contra “o estatuto de coisa decorativa e dispensável em que se confinou a cultura”; que os agentes da cultura não estejam unidos contra a vileza da miséria simbólica que permeia o actual “pensamento” político (cada sector indiferente aos demais); que os professores não sejam os primeiros a repudiar este estado de coisas. Veremos porquê.

No meu ensaio sobre o Bocage escrevi: «Bocage foi o artista possível num mundo intelectual que era a inúmeros títulos uma farsa. No tempo de Pombal, na ópera italiana da corte, “o primeiro dançarino era cego. Acostumavamo-nos a ver a medida dos seus passos regulada pelas proporções do palco”», e dizia-se «”(…) A representação nem sempre é de bom nível, excepto no caso das farsas”. É um povo que só dá para a farsa, desde que a mordacidade seja doce — e que não se quer creditar para além disso. Natural que os castratri e o travestismo durem em Portugal até ao último lustro do século XVIII, enquanto os actores eram menosprezados, no dizer de Cavaleiro de Oliveira, que daqui zarpou: “Os portugueses, a exemplo dos romanos, têm os actores em grande desprezo. A profissão de comediante é a mais vergonhosa de todas. Consideram-se ainda abaixo das que são realmente infames e criminosas.

Para nos convencermos disto, basta dizer-se que negam sepultura em sagrado aos actores, e que as dão aos salteadores e facínoras” (…) Ao mesmo tempo, segundo os testemunhos estrangeiros, na cidade denota-se um estulto orgulho em ser “mosca”, esbirro, servil, bufo (…) e veja-se esta observação de Eduardo Mascarenhas, biógrafo de Manique: “aos moscardos e moscas entretetidos a vigiar de longe e de perto os cafés (…) não lhes sobrava horas para outros serviços” — ó codiciosa e recompensada preguiça! Neste chão em que os ociosos eram recrutados como delatores, todos eles se viam, mediam e ajuizavam uns aos outros, comendo à vez da mesma gamela; uns pelo elogio e a hipocrisisa, outros pela vileza da denúncia. A dignidade não é ainda uma palavra com plena cidadania. » Daqui não saímos.

Para o filósofo e pedagogo José Antonio Marina, uma cultura fracassa quando, em confronto com um mundo mais complexo do que aquele em que crêem os seus políticos ou comunicadores, estes simplificam a realidade. É um vivo retrato do jornalismo actual, ocupado a simplificar a realidade e a encurrá-la num único índice: a morte. Passámos com exaltação das Indústrias Culturais para as Indústrias da Morte. E com a indignidade dos bufos, que num afã de controle, se esmeram em não falhar nenhum número, esquecendo outros pontos de vista da realidade e até qualitativos, os pivots vestem a pele dos gatos-pingados. É tão deslocado como recrutar Paulo Portas para comentar o Covid.

Um dos marcadores que faz esmorecer a inteligência colectiva é o medo.
Quatro desejos fundamentais motivam as actividades humanas (cf. JAM): sobreviver, desfrutar, vincular-se e ampliar as possibilidades. Para que esta última, a mais importante, se realize é necessário que a relação entre o indivíduo e a sociedade se paute por uma cada vez maior autonomia individual; dinamismo emancipador que faz nutrir a inteligência e essa capacidade desiquilibradora que é o pensamento crítico.

Só depois da terra estar remexida por estes dois instrumentos se semeia a liberdade, nem há desenvolvimento sem que isto se cumpra.

Vejo os telejornais e só me lembro da abertura de um ensaio sobre o Mal do Fernando Gil: «Venho falar-vos do mal. O bem está acima das minhas posses». Esta irónica inversão dá conta dos paradoxos do mundo: a loucura com que a humanidade se evade de interrogar a atracção para alimentarmos com o erário público fortunas instantâneas que nos exaurem, ou o desleixo de não interrogamos porque é que nenhum director de canal televisivo ou um pivot de renome (esses Novos Cangalheiros que passam por “influencers”) se lembrou de que, sendo uma das funções da arte a catarse, e, dada a Grande Anomalia em que vivemos, despontava uma óptima oportunidade para conciliar a arte e a cultura com novos públicos e para aumentar na programação televisão as horas dedicadas ao teatro, à música, à dança, aos livros, às artes plásticas. A questão é: porque é que nenhum se lembrou, desbaratando esta oportunidade histórica? O que os motiva?

Há um contínuo derrame de bens e recursos, como se, precisamente, o Bem estivesse acima das nossas posses enquanto pelo consentimento do Mal brilhasse a promessa de nos lambuzarmos com os restos do saque.

Outra frase, no ensaio de Gil: «A malignidade da natureza humana não é tanto a maldade… isto é… uma intenção de admitir o mal enquanto mal como motivo… como a perversão do coração» resume aquilo a que assistimos hoje: um encortiçamento geral do coração. E se onde há cortiça há vinho, neste caso, não é do que nos aquece o sangue mas é do que nos habitua ao sabor da ira e da cólera e alimenta os Venturas.

Os canais televisivos traíram o resguardo simbólico que só a cultura de um país pode vivificar. Os seus jornalistas aderiram à cobardia militante e já não desfrutam nem vinculam: colocando-se por escolha exclusiva do lado da morte, onde, como arautos desta, só enrolham.

11 Fev 2021

Conto 2

Tenho um olimpo de bolso onde moram o clássico, o moderno…
Coro: Sou solidário: como, sem alguém que o assista, sem um sócio que o esguarde, infeliz, sozinho sempre, padece de moléstia que não cede…

Neoptólemo: Começo pelo início: somos gregos, se é isso o que desejas conhecer.
Filoctetes: Que som subtil! Depois de tanto tempo, ouvir desse rapaz a doce música.

Estou deitada de costas de olhos postos no céu, como se ele fosse o grande atlas de todas as cidades que planeei conhecer nestes contos. O céu, não sei onde termina, mas sei que é do tamanho do meu olhar. Lá se projectem as imagens do Olimpo, que contemplo da humilde plateia planetária. Está tudo ali desde a primordial angústia, o primitivo som, o original risco, a grávida palavra, o primigênio grão semeado, o inconfudível símbolo orto-gráfico, a paradigmática sedentarização, a linguagem que nos permite, entre outros, ao trágico e à cidade.

Anseio que se soltem na tela do destino todos os pequenos olimpos que os humanos guardam no bolso, libertando performativamente a figuralidade, entre passados, presentes, e futuros, na valsa da realidade que nenhuma linguagem pode captar totalmente. O baile, devassando poeticamente a experiência, remete as obras para a empiricidade e para as imagens, que se instalam na crosta volúvel e caprichosa da Terra, o singular acontecimento que nos move no mundo.

Em profundidade, a cena ganha a cor dos belos cabelos de Ariadna quando entrega a Teseu o fio que, mais do que salvá-lo no labirinto, o salva da natureza que ela representa e, traindo-a, o herói afirma a isonomia e a polis. Vendo isso, Dionísio, deus da potência e do irracional, casa-se com a princesa abandonada por Teseu e dá-lhe filhos. Mais tarde, mata-a, projectando para sempre no céu a constelação da figura trágica de Ariadna. O labirinto pode ser Dionísio, mas pertence ao touro -“besta que desatrela a vida e que a afirma na legitimidade da ocupação do seu labirinto”- como segreda Deleuze. Certo é ser um lugar sempre inaugural: cada vez que se avança, entre figuras, fantasmas e corpos, a natureza incontrolável da experiência renova-se nas entradas, corredores e clareiras, onde afinal não nos perdemos, mas retornamos nietzscheanamente.

Numa voluntariosa afirmação, Sófocles, o cidadão da polis grega, e Godard, saído da multidão contemporânea, entram em cena, opondo dramaturgicamente a cidade que ganha, à cidade que nos perde. A imagem é refractada e desfocada pelo choro que inquieta as urbes quando a tradição se quebra, e novas linguagens emergem. A Tragédia, quando a cidade está na aurora da sua positividade com o nascimento da Polis Grega; o Cinema, quando a cidade moderna enfrenta o seu primeiro momento de crise e negatividade, como é a Paris de Baudelaire e Benjamin. Neste devir solta-se um testamento que não é destinado ao futuro, como desconfia Char, mas deixa herança desde que romperam na terra a divisão entre os que veem e os que actuam, criando uma comunidade específica: a dos espectadores, separados fisicamente do palco ou do ecrã. A luz baixa, e dois offs – que os textos também os têm – juntam-se à cena.

Aristóteles (OFF): A plateia é a comunidade de cidadãos…
Barthes(OFF): … que provavelmente conhecem as tragédias que vão assistir. Como se uma grande faca tombasse sobre a experiência, a mão grega corta ontologicamente com a totalidade mítica do mundo. Numa paideia cívica sem precedentes a Tragédia exorta a universalidade racional da acção humana e persuasão dos cidadãos pela palavra, no espaço público da polis.

Vernant e Barthes confirmam que as perguntas dramatúrgicas expressam o novo quadro cívico e se distanciam das antigas respostas míticas. O fio de Ariadna ligava, afinal, dois mundos cuja separação foi mobilizada politicamente na Tragédia, celebrando com os contemporâneos a superioridade do novo mundo grego.

Como um tremor de terra, 2000 anos depois, a crescente velocidade tecnológica acelera e instabiliza a experiência, esfacelando o espaço público clássico, actualizando um modo de ver adequado à vivência moderna: tempo descontínuo, espaço fragmentado, montagens rápidas de imagens e sons, numa estética do choque. O cinema é a escola desta nova forma de percepção, “aquilo que os gregos designavam por estética”. Benjamin deixa claro que a “percepção da colectividade humana transforma-se ao mesmo tempo que o seu modo de existência”.
Benjamin(OFF): A plateia do cinema é uma multidão que perde a capacidade de contemplação e se conforma em ser um colectivo de espectadores distraídos e alienados.

Num mesmo lance, defrontam-se as raízes do clássico e do moderno e estremeço porque sou ávida desta dilogía em que balança a positividade e negatividade da civilização ocidental, desde o seu berço à sua forma contemporânea. O cinema representa o “inconsciente visual” da sua época, como “um caleidoscópio dotado de consciência dos “perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo” e a função política do cinema, “não está em condicionar espectadores distraídos, mas em descondicionar espectadores manipulados. O grande cinema é crítico, não mobilizador”, palavras de Benjamin com ressonância criativa em Godard, que se inspira também na vontade do filósofo de conceber uma obra a partir de arquivos, citações, montagem, constelações, e que se ergue de novo no palco deste meu pequeno olimpo.

Godard: o cinema foi a fábrica do século XX e do mundo contemporâneo!
Vernant: A tragédia foi a fábrica do século V e do mundo grego! Do homem trágico que morre de temor de não viver na cidade.

Num interlúdio trágico as figuras valsam neste céu de veludo que somos nós a
pensar. Porque o pensamento está sempre a recomeçar.

11 Fev 2021

A linguagem esquecida dos móveis

Santa Bárbara a pensar nas Janelas Verdes, Lisboa, domingo, 31 Janeiro

Ícone patético, «Ecce Homo» mantém-se enigma fulgurante. O seu criador (chamam-se mestre) é desconhecido e conhecem-se umas quatro variantes, nisso se perdendo a ideia peregrina de original ou cópia. Os veios da madeira permitiram datações mais aproximadas de uma realidade que até interessa pouco. No rectângulo não está uma representação de Cristo, cumprida a via-sacra, instantes antes da crucificação. Um ícone tem a potência de evocar o que representa, ali manifesta-se uma forma de santidade. Uma presença. A banalização da palavra tornou-a emblema, quando muito símbolo. Assim como patético na correnteza da língua deixou algures de ser móvel de afectos, algo tocante, que provoca dó, piedade, tristeza.

Neste umbral entre o humano e o divino, encontra-se a inteireza do indivíduo. Os olhos ocultos pelo panejamento branco permitem que cada qual neles se reveja. A humana condição: sangrada por espinhos que tudo atravessam, a pele como pano sobre o esqueleto marcada pelos castigos, as mãos atadas ao pescoço, agir e respirar presos na escravidão de desígnios indomináveis. Os lábios assentes em extrema tranquilidade. Afinal, levanta-se no horizonte a possibilidade solar da auréola, a escapatória do sagrado ao alcance do homem comum. Esta promessa da alegria não se detecta com facilidade. Exige a nudez da entrega.

A exposição «Almada Negreiros e os painéis», a cargo do Simão [Palmeirim], revelou dois extraordinários originais do mestre conhecido. Um aplica a trama de fios leitores ao «Ecce Homo», em recriação inesgotável na minúcia. O outro (aqui na página) diz-se estudo geométrico e revela sem cessar a essência. Ondas concêntricas nascem de 9 círculos, tantos os meses da gestação, a multiplicação por três das sagradas trindades, por exemplo, Pai, Filho e Espírito Santo. «Ecce Homo» cumpre jornada que abre para o infinito. Como pedras atiradas ao lago dos nossos dias, as ondas continuam a reverberar. Não nascemos para sofrer.

Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 4 Fevereiro

Ao que parece, existe em papel e tudo a versão polaca de «Salazar, Agora na hora da sua morte», novela de sombras e fogos-fátuos que compus com o querido Miguel [Rocha], de quem tenho imensas saudades, avivadas agora com estes trânsitos. Ninguém como ele extrai dos cardos matéria de nos encher de alegria. O objecto, que atravessa uma Europa a passo de caracol, está a ter fortuna crítica, dizem. A ponto de suscitar viagens que parecem o horizonte: quanto mais nos aproximamos, mais elas se afastam. O que chegou, entretanto, foi a altura de reeditarmos esta ida com volta ao esqueleto do armário, isto é, às ossadas do fantasma que se imaginou nação. Pensou-se encarnação de país, mas estava só com a sua arrumadinha esterilidade. Aquela nossa visão encheu-se de cadeiras de todas as formas e feitios. O poder não conhece descanso, apenas desânimo.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Fevereiro

Com o esvair da luz na tarde chuvosa veio-me estranho desejo de mobiliário, desconfio que suscitado por ter plantado raízes no sofá. Encontraria conforto no mero beneficiar da madeira, cheiro e aparas, a visão do caos a arrumar-se. Assalta-me com tudo, entalhes e cola branca, determinado objecto, reflexo no corpóreo da mais gasosa abstração: uma mesa. Desde que sem utilidade, anã e desnivelada, feita de restos e de madeiras diversas, descomposta, mas capaz de se encher de gavetas e compartimentos ocultos. E que se tenha de pé.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 7 Fevereiro

Esta atenção diária às nuvens, a partir da colheita do João Francisco [Vilhena], por vezes do próprio dia, com enorme variante na proximidade à mais fantasiosa imagem do real, tem produzido irónico desacordo. Na vez de proporcionar escape, marca-me com o ferrete do concreto, lembrete do irresolvido que se acumula. A suposta leveza ganha corpo de âncora, a jaula está feita de transparência. Mas o jogo tem de continuar. Apesar de tudo, é momento consumido na liberdade mais absoluta, ainda que a melancolia ou o absurdo, velhos parceiros, insistam em sentar-se à mesa. A perspectiva dispersa-se pelas mais variadas direcções, muita vezes para o miolo das palavras e a iridescência dos sentidos, mas nunca se dirigiu às nuvens. Ao vigésimo terceiro dia, o saque do fotógrafo apresentava-se épico e resolvi levantar os olhos, encontrando estampada ali a justificação para o que vamos fazendo. Não foi dado a ler nas entregas quotidianas, por estar fora de tom, a olhar para onde não devia Os manifestos trazem a língua de fora na mania de se anunciarem tonitruantes. 
«Sinais minúsculos nas dobras da pele, as asperezas fazem parte. Pedem toques no panejamento que tornem cabal a experiência do ver. E daí alcançar a soma, o complexo. Do micro ao macro, estão como nas velhas fotografias sem fazer nada. Ao óculo parece-lhe ter capturado o momento, fixou-o no âmbar do olhar. Mas desassossegado. No coração da aparência revolvem-se lavas abrasadoras, fossas abissais, alísios, suões. Os sucessivos cambiantes locomovem-se sobre a sua própria irrequietude, mastigando-se na potente auto reflexividade, o sépia da memória aconchegando-se à epiderme do negro que contém tempestades, um quase branco a deixar-se brilhar nas ascendentes passagens de tom. Tecidos esculpidos em mármore. Análogo se está desenrolando com o peso, pinceladas de preto agravadas no baixo, âncoras pardas, que não evitam o drapejar das massas logo acima. Logo será distinto e de igual e feliz modo indiferente, inútil, mas por agora acontece uma inesgotável meditação acerca da vizinhança. Dos corpos, dos seres, até das palavras. E da pele, poroso passadiço, senhora da proximidade, movediço miradouro de ver ao perto. As nuvens indicam em contínuo o lugar do observador, o da conversão. Uma exigência de entrega plena ao ficar. Pairando, se for o caso. Absorvendo até à saciedade, tão só existindo, pulsando, emitindo-se. Ignorando-se por completo de modo a ser inteiro.”

10 Fev 2021

Churchill não virá hoje jantar

“If you’re going through hell, keep going.”
Winston Chuchill

 

Foi numa dessas tardes de chuva, ainda antes da ordem de reclusão e quando o ócio nas ruas ainda não estava proibido. Com tempo a meu favor decidi dedicar-me a uma das minhas actividades preferidas: deambular entre livros. Aconteceu numa dessas livrarias que se encontram nas estações de metro lisboetas e que reúnem exemplares que são restos de colecções, best-sellers que nunca se venderam, livros de auto-ajuda semi-clandestinos e, para o caçador atento, algumas pérolas a preço extremamente convidativo.

A caça ao livro é um desporto onde a sorte, a perspicácia e a paciência têm de estar juntas. Sobretudo em lugares como este de que vos falo: há muita oferta mas na realidade muito pouca coisa interessante. Mas há: e nesses casos o olhar treinado e algumas obsessões temáticas ajudam a separar o trigo do joio. Eu, felizmente, possuo essas duas características; e foi assim que consegui resgatar meia dúzia de livros que me interessavam, sendo um deles e para o que aqui nos interessa, a edição portuguesa da biografia de Churchill – obsessão, lá está – da autoria de Paul Johnson e que julgava já fora de mercado.

Feliz com o resultado da minha expedição dirigi-me à jovem encarregada da livraria, que ao ver a biografia que eu levava confirmou que aquele exemplar tinha sido salvo da guilhotina. Mas depois, depois: a rapariga – que não teria mais de 30 anos – pega no livro, demora-se a olhá-lo com um de forma quase apaixonada e diz-me num suspiro: «Ah…O que nós precisávamos agora era de um Churchill».

Achei extraordinário e fiquei sem palavras, limitando-me a sorrir e pagar. Mas regressei a casa a pensar: um Churchill porquê, para quê? Por mais que admire o homem nas suas gloriosas imperfeições e lhe esteja eternamente grato pelo legado de liberdade que nos deixou não consegui encaixar a necessidade premente de ressuscitar o estadista. Quer dizer: pelo menos é um gigantesco passo em frente em relação ao antigo chorrilho ouvido nos táxis que pedia o regresso urgente de Salazar para “pôr ordem nisto”. Mas duvido que Sir Winston se desse bem com os dias de agora.

A conclusão chegou pouco depois: o que a moça reflectiu foi o atavismo nacional do providencialismo, da figura maior do que a vida que, de uma maneira ou de outra, irá mesmo pôr ordem “nisto”. E aqui, parece-me está o problema: lidamos mal com o que temos, com o hoje. É verdade que a nossa história está repleta de maus decisores políticos. Agora mesmo não será excepção. Mas esta velha tradição de remeter para uma figura vinda de um nevoeiro de utopia que a todos irá resgatar é para mim mais perigosa. Mais: há gente e agrupamentos políticos que vivem exactamente dessa cultura messiânica de pacotilha. E estão a crescer.

Não virá Churchill, não virá ninguém em nosso auxílio. Apenas podemos contar connosco e com as armas que nos são dadas e usá-las até à exaustão. Agora. Já.

10 Fev 2021

Desolação

O Inverno pandémico traz uma consternada atmosfera vista de qualquer ângulo o que impõe uma severa contrição interior. Contribui para isto muita desigualdade social que se transforma em fragilidade humana face à magnitude dos ciclos transformadores. Mesmo que o Sol brilhe a desolação não é menor, nesta altura não aquece, e por vezes, essa claridade torna-se ainda mais ameaçadora. É a vida agora uma parede húmida por onde escorre um fio de água doce de doçuras amargas, que nós, estamos sitiados na enxerga dos pesadelos e das insónias com populações envelhecidas e sonâmbulas. Subitamente vimos como a Europa é um continente envelhecido e frio por um calor qualquer que se foi.

O mundo de Janeiro parece nesta latitude e com a dimensão viral em mutação um aglomerado de fantasmas, uns falantes, outros mutantes, e muitos, paralisantes. Não tem havido espaço para recapitulação, e os desejos frouxos vão apenas até ao restabelecimento daquilo que fora interrompido fazendo do acontecimento global um interregno estarrecedor. Enquanto isto, há excepcionais trabalhos que avançam, que abrem cortinas de interesse maior e permitirão sem dúvida conquistas breves do estado de consciência tais como, teletransporte de mecanismo remoto, falar com os mortos em registo combinatório com um programa de alta tecnologia bem como uma vibrante e modeladora escala poética difíceis de decifrar no instante pela força fechada das necessidades.

A reanimação vem de zonas até agora desconhecidas mas que estimulam a capacidade humana de ir fechando capítulos cujos alicerces a própria vida se encaminhou de anular. Dobramos um cabo sem precedentes! Agregados por distância imposta, olhamos melhor o contorno do nosso corpo, e longe nos parecem já os tempos da Hidra das mil cabeças de quando nos deslocávamos febris para amálgama de grupo. Esta consciência espacial só por si recria um movimento novo de orientação, e não estar atento é ficar irremediavelmente em estado de sabotagem, desviando os dons para uma obstrução perigosa. Deste conflito nascem todas as teorias da conspiração, todos os vales caídos dos negacionismos, e depois, a loucura, esse perigo que grassa como lepra pois que a energia estagnada se dissolve em pranto.

As capacidades transgressoras não vivem bem neste domínio desolador, se acrescentarmos a isto a incerteza endémica de cada nação para os «amanhãs que cantam» ninguém no seu juízo perfeito desejará ouvir muita coisa, que ditas em modelo salva-vidas parecem tão só um mecanismo para náufragos. Unir pontes requer audácia, e estar sentado a falar para ecrãs com vultos obscuros do outro lado à espera de salvação, não é a manobra certa para sair disto ileso. Por outro lado, já mergulhamos em transparência, o que faz do lastro insano uma urgência para o findar; tudo já tinha passado diante dos nossos olhos, continentes inteiros que arderam, florestas comidas por longas e altas labaredas, vastíssimos ecossistemas dizimados, finas camadas de gelo – que o Ártico foi estilizando na horizontal até nos chegar em grandes inundações muito para cima dos calcanhares.

Desoladoramente atingimos o cansaço de grupo mais rapidamente que a imunidade, pois que ninguém se encontra nem impune, nem imune, face à sua própria circunstância. Ter visto tudo isto sem suspeitar em mudanças bruscas com efeitos letais configura um quadro de cegueira colectiva que não desmerece um acordar com assombro e curvatura de coluna. E mesmo assim, muitos há que sem recurso a inteligência associativa e em plena era da artificial, não viu, não ouviu, nem quis saber. Perante factos tão desoladores como o frio impassível do Inverno da pobreza generalizada que é como água fria escorrendo entre lençóis, da transumância das reformas em regime de abstinência, da dúvida intragável do amanhã, zumbis e homens dão pela primeira vez as mãos para a grave travessia, que os regimes mundiais apelam a ambos para as eleições com a mesma legitimação.

Vacinas já existem, vacinados também, uns querem outros não, e o medo de obedecer tornou-se mais paralisante que o medo da desobediência, o que pode colocar em risco a construção do conceito de Liberdade que é a única que ainda dita a Condição Humana. Em certos períodos a Liberdade é radical. Saber que o que se quer ou se deseja é apenas um capricho face à sua eloquente voltagem que estando muito acima dos graves apetites pode eletrocutar incautos, é saber que ela como conquista não deverá dar voz aos seus intermitentes usufrutuários. As opiniões destes inválidos deve ser norteada com admoestação pois que eles apenas gritam para acordar fantasmas adormecidos como a tirania.

Esguios e frios como Catedrais os nossos dias avançam olhando a Abóboda do Mundo. É que ainda pode haver coisas não nomeáveis a concordar para nos surpreender sem o arrastão do primeiro impacto.

10 Fev 2021

Afundar convicções

Embora mais conhecida pelas suas peças de teatro – «O Homem da Casa», «Judith Invadiu o Texas» ou «Ninguém Fode Bem De Calças» – e militância pelos direitos da mulher, Marie Jane Fawcett publicou um romance extraordinário em meados dos anos 70 do século passado com o título «Vida Familiar». O romance retrata o desencontro familiar entre uma filha e o seu pai, no interior do Texas nos anos 70. De um ponto de vista narrativo, o livro não tem nada de especial, a sua história poderia resumir-se deste modo: o capataz do rancho de um magnata texano tem uma filha muito bonita por quem o filho do patrão se apaixona e pretende casar; devido a favores, que se vão descobrindo ao longo do livro, surpreendentemente, o patrão vê esse casamento com bons olhos; e, também surpreendentemente, é a filha do capataz quem não quer casar, não por estar apaixonada por outro jovem, mas porque quer sair dali para estudar na universidade e seguir outro modo de vida, uma vida ligada aos livros. Dito assim, o romance não parece grande coisa, a despeito do radical ponto de vista da jovem, se pensarmos que estamos no interior do Texas em 1973. São os diálogos que tornam este texto precioso. Os diálogos e as reflexões que nos são dadas através do ponto de vista do narrador, em estilo clássico, heterodiegético e omnisciente. Leia-se uma passagem do livro: «Sara não conseguia imaginar a sua vida ligada a um homem. Viver para servi-lo, para lhe ser fiel, para tomar conta de uma casa, de uma família. Ver um homem chegar ao fim do dia a casa como se fosse um altar que ganhara vida. Nessa noite, ao jantar, resolveu enfrentar o pai. Pousou dramaticamente os talhares, pediu que lhe prestasse muita atenção e disse: “Para que quer que eu continue a mentira, pai? Porque quer fazer com que eu diga que vou ser fiel para sempre e ter filhos que continuem este modo de vida, que é uma irrealidade que todos à nossa volta teimam em proteger?

Porque quer que eu faça isso? Não vê que não conseguirei viver assim? Eu não preciso de um homem para viver, pai, mas preciso de ler.” Contrariamente ao que Sara esperava, o pai sorriu e olhou-a fixamente nos olhos, antes de começar a falar: “Diz-me uma verdade e podes fazer o que quiseres. Uma só, que se segure à chuva e ao sol, à passagem do tempo. Não vês que não nos resta nada a não ser a mentira? Não há uma única casa que não tenha sido erigida com mentiras, Sara! São elas que fizeram as paredes, os telhados, as cercas que delimitam o que é de cada um. Foram as mentiras que delimitaram as fronteiras dos estados e deste país. Achas que tudo isso é verdade? Há alguma verdade nisto? E achas que há mais verdade nos livros de que tanto gostas do que numa casa?” Parou de falar. Segurou os talhares para continuar a jantar, mas ainda antes de o fazer, e balançando a faca e o garfo, como se dirigisse uma grande orquestra, disse: “Casar com um homem rico, que te proporcionará tudo o que desejares e até coisas que não sabes que existem, não me parece que seja o pior que te possa querer. Se nada é verdade, minha filha, agarra na melhor mentira que puderes.” Quando se levantou da mesa, apesar de não ter entendido o pai, Sara sentia um medo desconhecido, como se a vida lhe tivesse revelado um segredo. Ainda antes de abandonar a sala de jantar, ouviu o pai dizer: “E ainda hás-de me dizer porque é que os livros são melhores que um homem para a tua vida! Achas que são palavras que te vão fazer feliz?” Era mais um furo no barco de certezas de Sara. Retirava-se ainda mais abalada. Não sentia que o pai tivesse razão, mas afligia-a não conseguir encontrar uma resposta que lhe contrariasse as palavras. O que mais a preocupava não era poder estar errada em relação ao que dissera ao pai, mas poder não ser tão inteligente quanto pensava. E não ser tão inteligente quanto pensava poderia ser um entrave ao que queria ser.

Pensou pela primeira vez que talvez possamos desejar muito ser aquilo que não podemos ser. O pai não conseguiu demovê-la de não querer casar, nem sequer levantar dúvidas acerca disso, mas fez aparecer a dúvida acerca de si mesma. Fechada no seu quarto, Sara pensava agora se seria capaz de ser quem queria ser. Não seria ela como a sua amiga Jane, que queria muito ser cantora, embora não tivesse talento e não soubesse disso? Tal como Jane, também ela podia estar completamente enganada em relação a si mesma.»

Marie Jane Fawcett não teme, neste livro, tocar todas as convicções que temos por certas, quer sejam as mais reaccionárias, quer sejam as mais revolucionárias. No fundo, Fawcett não põe apenas em causa aquilo que ataca, mas também aquilo que defende. Não põe em causa apenas os outros que estão contra ela, põe também se põe em causa a si mesma na defesa do que pensa ser certo. E, neste sentido, o objectivo deste romance parece ser afundar o barco. «O barco de certezas onde Sara e o pai viajavam, apesar de em posições opostas.» Afundar as convicções. Todas as convicções que se possam avistar.

«Vida Familiar» pode também ser visto como um romance de formação. No confronto com o pai, na tentativa de não casar com o filho do seu patrão e seguir a sua vida na Universidade, Sara vai descobrindo que pode não ser quem julga ser, acabando por entender que é esse o começo de começar a conhecer-se. Quase no final do romance, afundada em incertezas, parece dar razão ao pai, de que as palavras não são mais seguras para uma boa vida do um casamento, por exemplo, ou qualquer outra coisa. Ir para a universidade, estudar, ler livros é tão importante como cuidar da terra. «[…] tão importante como conduzir gado, dirigir um enorme rancho ou cuidar dos filhos e esperar o marido ao fim do dia. Sara entendia agora que o conhecimento pode ser tão decepcionante como a sua vida familiar. […] mas uma coisa era decepcionar-se por si mesma, pelas escolhas que fez, outra completamente diferente era decepcionar-se porque fazer aquilo que todos fazem, como casar-se e ter filhos. “Puta que pariu”, pensou, “prefiro a decepção à convenção”.»

Marie Jane Fawcett não defende a relatividade das decisões ou um mundo sem conhecimento, mas põe em causa tudo neste romance. Obriga-nos a nós, leitores, a encontrarmos razões válidas para as decisões que tomámos na vida.

9 Fev 2021

Da vergonha

Confesso-vos: não tenho jeito para ser português. Não nutro aquele entusiasmo irrestrito por tudo quanto é luso e que, não raras vezes, se traduz em profusas hipérboles capazes unicamente de me causar vergonha. Vergonha talvez seja a palavra certa para descrever o que se tem passado no rectângulo desde que chegou o primeiro lote de vacinas para a COVID. Não duvido que em Espanha, França e Estados Unidos aconteça um pouco do mesmo que se tem passado por cá. Mas a coisa aqui assume contornos de grotesco pelo facto de aqueles apanhados com a boca na botija – ou com a seringa no braço, para ser mais preciso – não sofrerem quaisquer consequências excepto um muito transitório vexame público. Além de não se mostrarem especialmente arrependidos, arranjam toda a sorte de justificações para justificarem o injustificável num estado democrático: o facto de terem abusado do poder conferido pelo lugar que ocupam para subtrair uma ou mais doses de vacinas a quem mais precisava.

Em Março do ano passado escrevia aqui nesta coluna que estes momentos de crise acabam por ser uma espécie de janela e de espelho. Uma janela no sentido em que cada um de nós assiste ao outro revelando-se – como o conhecíamos ou como nunca imaginamos que seria – e assiste – mais ou menos satisfeito com o resultado – à sua própria revelação. Uma coisa é a ética em conversa de café; outra, muito diferente, é como cada um de nós reage numa situação excepcional. Somos capazes dos mais desobrigados sacrifícios e do mais abjecto egoísmo. A história é uma sucessão de homens que, perante a adversidade, cresceram ou mirraram.

O que tem vindo a lume, porém, são maioritariamente histórias do pequeno abuso de poder tão costumeiro em Portugal. Autarcas cujo ego não cabe no reflexo do espelho, convencidos que estão isentos do cumprimento das regras do jogo democrático; pequenos dirigentes intermédios de organismos públicos habituados a levar resmas de papel do escritório para casa a colocarem na lista dos vacinados prioritários mulher, filhos, sogra e periquito; a malta rés-do-chão da hierarquia logística cujos dedos pegajosos alimentam diariamente a estatística do desperdício nos serviços públicos a desviarem aquilo que podem, vacinas incluídas. Portugal em dois vocábulos: desenrascanço e jeitinho.

Por isso tremo quando ouço falar de qualquer tipo de multiplicação de poderes locais. Seja por via da divisão de território para a criação de Juntas de Freguesia adicionais, seja por via da regionalização, uma daquelas bandeiras clássicas que a pretexto de aproximar o poder do povo serve unicamente para distribuir umas migalhas suplementares pelos indefectíveis do partido (qualquer que ele seja). Portugal tem cerca de dez milhões de pessoas – o tamanho de uma cidade média na China – mas só estaremos satisfeitos quando cada um de nós for uma minúscula dependência autárquica por onde passem uns cobres públicos aos quais possamos deitar mão.

Imaginem então os poucos mas prezados leitores quando chegarem os fundos da bazuca europeia. Não há partido que não salive pela cascata de dinheiro prometida. A pretexto do hidrogénio verde, da TAP ou dos bancos cronicamente de cuecas – ao contrário dos seus gestores, impados de tanta opulência – o dinheiro há-de desaparecer à vista de todos como a água da chuva numa sarjeta (ou melhor, até, porque não consta que os bolsos desta gente alguma vez entupam, por mais que se lhes despeje dentro).

O ideal, acaso queiram a minha opinião, é implementarmos uma cláusula através da qual se exclua automaticamente dos lugares de poder todo e qualquer cidadão de nacionalidade portuguesa. Portugal é um país com boa comida, um clima fantástico e algum potencial geográfico.  Só falta quem, desinteressadamente, ponha mão nisto.

5 Fev 2021

A calma de perder o controlo

Ultimamente, tenho lido os estóicos. Têm feito as vezes de um guia prático de sobrevivência em tempos onde a saúde mental de cada um de nós, apesar de cada vez mais vulnerável, tem que ser auto-tratada (consultas desmarcadas, escassez devido a procura, perigo de ir a hospitais).

Dizem que esta é a mais prática das correntes filosóficas. Efetivamente, o meu recurso a ela neste mapeamento de situações mentais não pode estar completamente errado. Muitos terapeutas reconhecem a contribuição do estoicismo para o desenvolvimento de terapias cognitivo-comportamentais. Muitas meditações aurelianas me faltam ainda para me conseguir auto-proclamar uma seguidora de Zenão de Cítio. Uma visão estóica fundamental do mundo que decidi assimilar prende-se com a aceitação total dos acontecimentos externos como não pertencendo a nenhuma forma do nosso domínio. Não há sobre esses eventos externos culpa ou forma de manter o controlo. É um princípio que se aplica à aleatoriedade dos acontecimentos humanos e naturais, em geral. Uma pandemia tem certamente uma origem investigável cientificamente mas tem também um caráter aleatório na forma como se manifesta e impacta as várias camadas de conjunturas em que cada um de nós se encontra individualmente. Temos de admitir: não somos nada bons a aceitar o que é aleatório. Sobretudo, se o fenómeno for extremamente incómodo. É mais fácil atribuir-lhe significado. Pode ser um significado simbólico ou espiritual. A natureza revoltada que nos veio dar uma lição. Pode ser um apontar de dedos – um “alguém está por detrás disto”.

Apesar da distância temporal a que nos encontramos da filosofia helenística sabemos hoje, mais do que ontem, que o universo provavelmente não é uma matéria estável, mas antes um arbítrio. Quem o diz é a física quântica. Ou seja, o único controlo exequível é aquele que ocorre nos nossos vários eventos internos. Não somos nós a olhar o universo, é o universo observa-se a si mesmo. Indiferentes a estas considerações sobre ego e universo, encontram-se as pessoas que procuram justificar eventos externos à luz de lógicas externas, nada fundadas na realidade mas antes na crença ou especulação. Há variantes de conspirações sobre este vírus para gostos diversificados. Que é transmitido pelas torres celulares do 5G, que foi criado pelo Bill Gates para depois lucrar com as vacinas, que foi criado pelas próprias farmacêuticas produtoras das vacinas. Que as vacinas têm microships do governo chinês ou americano (opção de escolha do vilão) para nos espiar e controlar. Que todos os políticos, jornalistas e profissionais de saúde nos ocultam tudo. Este tipo de necessidade de atribuir explicações ao desconhecido, surgiu antes da nossa realidade se tornar cyber-punk. Também em 1348, os flagelantes decidiram atribuir a peste negra aos pecados da humanidade e por isso formaram longas procissões em grupos de mais de quinhentos indivíduos cada que deambulavam pela Europa. Enquanto se chicoteavam, distribuíam pedaços de pele e sangue pelos caminhos que percorriam e, assim, contribuíam boçalmente para a uma aceleração da propagação da doença. Ou seja, na esperança de liquidar a dívida divina percepcionada, estas pessoas ajudaram a piorar a situação. Digamos que a ignorância e a vontade de agir não são a melhor combinação. O racismo e a xenofobia, tão em ascensão na Europa contemporânea, também não são fenómenos exclusivos de escuras cavernas virtuais. Durante o período da peste negra do século XIV, a comunidade judaica foi acusada de ter infetado poços com a praga de forma propositada. Dizia-se que se viam poucos judeus infetados. Foram perseguidos, torturados e linchados publicamente. Comunidades judaicas inteiras foram massacradas até à extinção em eventos como o que ocorreu em Toulun a 13 de Abril de 1348.

Apesar das inúmeras evidências da existência do absurdo na experiência humana, é difícil aceitar o que acontece como simplesmente aquilo que acontece. Aquilo que nos é externo e não controlável. Há, contudo, algo que podemos controlar. Os nossos eventos interiores. Se a necessidade de uma causa ou de uma atribuição de culpas é necessária para explicar o que não entendemos, há um trabalho interior muito importante a fazer e que pode perfeitamente ser feito em confinamento. Vazio existencial? Falta de causas pelas quais se agregar? Frustração?

Depressão? Medo? Reside no interior de cada um de nós a verdadeira razão pela qual não conseguimos aceitar o que nos foge ao controlo. Como os estóicos, deixemos que as revoluções que decidamos iniciar aconteçam primeiro dentro de nós. Isto para que não sejamos, novamente, flagelantes de pecados inexistentes.

5 Fev 2021