António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoA pedra e a funda Poucas coisas acontecem para além do que Drummond refere num dos seus poemas mais famosos, «No Meio do Caminho: No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.// Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas./ etc.» Há uma pedra no meio do caminho, uma pedra no olho, uma cristalização na mente, é tudo o mesmo: um inextricável desassossego. Pode também acontecer haver vidas monstruosas de aventurosas. São raras. O mais comum é serem pecas, inábeis, moverem-se em vagarosos ajustes. Haver poucas pedras para cada vida. A Ulisses coube Tróia e a fidelidade de Penélope. Sem ela, seria como os troianos, um derrotado. É Penélope, quem o certifica como herói, na simetria invertida da traição de Helena. Pelo engenho com que Penélope se mantém fiel tece a memória em que se inscreve o amor. Ulisses e Penélope inventam o amor, até aí só havia o desejo e a paixão, a partir deles passam a ser indissociáveis o amor e a memória, eles selaram o pacto. A pedra a meio do caminho de Ulisses foi essa incapacidade de esquecer o compromisso, de convertê-lo em uma mera e nova estria de intensidade, trivializando-o. A meio do caminho há sempre a pedra da trivialização que nos tenta. Como a Circe a Ulisses. No que diferimos é no que cada um faz disso. Na epopeia homérica temos dois heróis, Ulisses e Aquiles. E leio, no magnífico Las pasiones según Rafael Argullol: Aquiles, quando lhe dão a escolher entre a vida e a glória escolhe esta última, já Ulisses perante a mesma questão prefere a vida. Vou dizer algo em contracorrente às aparências: Aquiles foi simplesmente um cobarde. Porque é simples gastar a caixa de fósforos de uma vez. É um puro acto de potlach. Mais complicado é chegar ao fim da vida sobrando alguns fósforos na caixa e sem nunca termos morrido de frio ou termo-nos evadido das pedras a meio do caminho. Aí foi preciso aliar a inteligência à atenção. A capacidade de atenção, eis o que substitui em Ulisses a heroicidade. Graças à atenção, Ulisses aprendeu a fazer o fogo sem ter de desbaratar fósforos e soube contornar as pedras que lhe apareciam no caminho. Tenho por cada vez mais certo que a nossa vida, passado o ímpeto de paixão com que a galgámos nas primeiras décadas, depende da densidade da nossa atenção. E que reforçar a atenção é também uma forma de resistir à cobardia militante com que as nossas práticas sociais nos tentam. A cobardia militante, gregária, está instalada. Pior, a cobardia do literato. Aquela contra a qual previne Mário de Andrade em carta a Drummond, a propósito de Anatole France: «“Devo imenso a Anatole France – diz você -, que me ensinou a duvidar, a sorrir e a não ser exigente com a vida.” Mas meu caro Drummond, pois você não vê que é esse todo o mal que aquela peste amaldiçoada fez a você! Anatole ainda ensinou outra coisa de que você se esqueceu: ensinou a gente a ter vergonha das atitudes francas, práticas, vitais. Anatole é uma decadência, é o fim duma civilização que morreu por lei fatal e histórica. Não podia ir mais pra diante. Tem tudo que é decadência nele. Perfeição formal. Pessimismo diletante. Bondade fingida porque não é desprezo, desdém ou indiferença. Dúvida passiva, porque não é aquela dúvida que engendra amcuriosidade e a pesquisa, mas a que pergunta: será? irônica e cruza os braços. E o que não é menos pior: é literato puro. Fez literatura e nada mais. E agiu dessa maneira com que você mesmo se confessa atingido: escangalhou os pobres moços fazendo deles uns gastos, uns frouxos, sem atitudes, sem coragem, duvidando se vale a pena qualquer coisa, duvidando da felicidade, duvidando do amor, duvidando da fé, duvidando da esperança, sem esperança nenhuma, amargos, inadaptados, horrorosos. Isso é que esse filho da puta fez. , d, d,Foi grande? Foi. Foi talvez mesmo genial nalgumas páginas. Pouquinhas, graças a Deus. Foi elegante, fino, sutil? Foi, foi, foi. Mas também foi filho da puta, porque as grandezas que engendrou não bastam pra pagar um só dos males que fez. (…) O mal que esse homem fez a você foi torná-lo cheio de literatices, cheio de inteligentices, abstrações em letra de fôrma, sabedoria de papel, filosofia escrita: nada prático, nada relativo ao mundo, à vida, à natureza, ao homem.» Tão simples, tão exacto. É o que vejo nos meus amigos liberais, que se agarram Aos aforismos do Cioran ou de qualquer outro céptico para justificarem a sua inércia, numa apropriação turística da tentação niilista. Nos meus amigos de esquerda que dizem ser igual estar Biden ou Trump no poleiro, auto-denunciando aí que os meios não lhes interessam, presos à mecânica dos supostos fins – a maldade do “imperialismo capitalista”, ou a bondade do “solidariedade socialista”, puras abstracções. A ressaca que vivemos não é só a da decepção política. “Os espectadores de cinema, como as avestruzes, são animais realistas”, dizia Godard, “só creêm no que veêm”. O que é verdade. Vê-se como o cinema foi desautorizando as elipses. O que redundou numa depauperação do imaginário. Falta por aqui “uma grande razão”, como diria o Cesariny, um compromisso. Sobretudo com a vida. Teríamos de voltar a andar por dentro dela como andava o Pollock, sem medo, no fulcro da gestualidade que lhe energizava as galáxias. Entretanto, convinha sermos conscientes de que poucas pedras nos serão dadas para aparecer a meio do caminho. Convém agarrar nalguma e transformar em funda. Seja a do amor ou a da rebeldia – perfazer um traço.
Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasAnunciação de ‘Órbita’ No primeiro capítulo de Arbeit am Mythos (Trabalho sobre o Mito), intitulado “Depois do absolutismo da realidade”, Hans Blumenberg ilustra o modo como os humanos levaram a cabo uma primeira tematização do mundo, depois de uma longa fase primitiva sem qualquer domínio do mundo envolvente. Este estado de dependência ter-se-ia pautado, segundo o autor, pela “falta de previsão, de antecipação (do que está por vir) e da consequente falta de adaptação a tudo o que estivesse para além do horizonte”. No centro desta fase pré-mitológica está aquilo que o autor designa por “Angst” – que se traduziria mais por ansiedade e menos por medo -, concebida como “um estado de antecipação particularmente indefinida” ou como “intencionalidade da consciência sem qualquer objecto”. A impotência generalizada que caracterizaria este estádio humano foi sendo superada à medida que as ocorrências particulares passaram, a pouco e pouco, de “não familiares a familiares”, de “não explicáveis” a “explicáveis” e de “não nomeadas” a “nomeadas”. A passagem da ansiedade originária (“angst”) a um estado de medo racionalizado (ou de consciência codificada do outro) é um dos momentos-chave desta superação, ou deste primeiro face a face com o desconhecido. Nomear um relâmpago e atribuir-lhe factos significa inscrever essa ocorrência num âmbito familiar ou de proximidade, transpondo-a do desconhecido para a área do conhecido e criando, desta maneira, condições para um posterior uso de signos no contexto já do mágico, do ritual ou da adoração (projectando as ocorrências vividas em “poderes superiores” – “Ubermachten”). O exemplo do olhar de Medusa que “mata convertendo em pedra” herda, naquilo que condensa e poderosamente afirma, esse primeiro momento em que a errância da ansiedade se transforma numa relação em que os termos em presença – um ‘eu’ e o ‘mundo’ – acabam por se significar (e, quando isso acontece, é o medo claramente e não já a ansiedade primordial que passa a mediar as relações entre os humanos e aquilo que os rodeia). Este processo que Hans Blumenberg situa na “Vorverganggenheit” (“passado do passado”) alia sensação, percepção e afectos – entendidos como “condição de quem presta atenção” – a figuras, nomes, histórias e rituais vários que estão nos antípodas das actuais convicções de realismo, baseando-se naquilo que Rudolf Otto designou por “numinous”. A superação do “absolutismo da realidade” é encarada por Blumenberg como uma tarefa lenta e gradual que implicou necessariamente o confronto com obstáculos, e que evoluiu, a pouco e pouco, para uma noção encenada de conjunto. É deste modo que a exegese humana se terá iniciado, conduzindo à prática das primeiras metáforas e a alegorias ininteligíveis e, portanto, aos primeiros processos de significação (sinais que assinalam a caça, sinais que assinalam a compreensão do corpo e da fisiognomia, etc, etc.) que avançam do singular para o universal, gerando entre ambas as esferas uma série de ligações funcionais. Richard Rorty designou este processo teatral como a passagem do “olho do corpo” para o “olho da mente” que, ao fim e ao cabo, se viria a tornar na futura querela dos universais. A lenta passagem do domínio do terror/ansiedade para a relativa estabilidade do mito consistiu, sobretudo, em converter a indefinição inicial em definição nominal (atribuição de nomes) e em transformar o que era estranho e inexplicável em algo familiar e atribuível (ou minimamente referencial). É provável, como refere Hans Blumenberg a propósito da construção dos mitos, que a saturação de imagens e de figuras a que posteriormente se chegou (o labirinto dos deuses e das divindades nas primeiras mitologias) tenha sido uma condição que, inevitavelmente, conduziria a novos patamares, nomeadamente ao patamar do “Logos” tal como os gregos o haviam de caracterizar. Tudo começou pela noite, o enigma sem a consciência ainda de ser um enigma. Seguiu-se o encantamento pelos reflexos (a água que cria imagens especulares) e o momento em que o terror do desconhecido se transformou em medo de objectos particulares. As narrativas orais celebraram os inícios, através de panegíricos da fundação do mundo e da espécie. Os humanos descobriram que têm visões e transformaram-nas em modos de perceber quer o cosmos, quer os episódios mais imediatos. De jangada saíram dos continentes e foram percorrer os mares e alguns rios, navegações costeiras que condensaram percursos e alteridades. Os nomes terão evocado a realidade pela segunda vez e contribuíram para reconverter a experiência acumulada num jogo tão fracturante que as suas flutuações foram quase sempre imputadas às divindades. A passagem do tempo gerou as primeiras melancolias e com elas a invenção de idades do ouro. Há mais de dez milénios, o neolítico travou o nomadismo recolector e permitiu ao humano cantar as entranhas da natureza e entender, entre os muitos mitos da infinitude, modos concretos de sobrevivência e de organização terrenas. As hordas e os estados impuseram limites e as disputas jamais cessaram. Nunca haveriam de cessar. Em nome deste repto total, a guerra tornou-se no denominador comum apaixonado dos povos e conduziu à criação da figura simbólica dos grandes heróis inimitáves. Eis, pois, em brevíssima síntese, o decantar do que farei constar no Canto I de ‘Órbita’, título genérico de um longo trabalho que iniciei há já vários meses e que será composto por dez cantos poéticos (que correspondem pitagoricamente a dez mil versos), precedidos por um romance e sucedido por um ensaio. O projecto faz contracenar uma biografia do mundo (parte poética) com uma biografia singular (romance), deixando para o ensaio o olhar que livremente averiguará a proliferação do sentido em todas estas construções. Não é a obra da vida, mas é a vida escancaradamente a penetrar e a olear os interstícios da obra. A embarcação dos dias precisa de apostas de grande fôlego.
João Paulo Cotrim Artes, Letras e IdeiasDead line Santa Bárbara, Lisboa, podendo bem ser (uma) Cidade do México, 31 Janeiro, que talvez seja 1 de Novembro A morte está na ordem do dia. Sepultada na campa rasa de lugares comuns, que o chão vai ficando empapado com esta imorredoura opinião miudinha, parece ser a influencer da moda. Uma aparência de importância, portanto, que desaprendemos, com bastante higiene, de com ela lidar. Nunca o soubemos fazer à maneira mexicana ou de New Orleans, mas ainda assim houve tempos em que nos entrava casa dentro, família dentro, olhos e ouvidos dentro. O rito está entregue a estranhos, talvez até o luto. Aqui há atrasado, em plena primeira vaga do atraso de vida, estava em rica conversa dançante com o querido Manuel [San Payo] à roda dessa linhagem arrepiante da Dance Macabre, e memória puxa desenho (é dele o retrato da dansa ansiada que vai na página), verso puxa música e tombamos no samba. Podia lá ser de outro modo, ainda que haja bandas sonoras para cada gosto e outros tantos desgostos. A gama de tambores, o agogô e o repique, o chocalho e o reco reco, o pandeiro e, sobretudo, a cuíca. Os instrumentos ritmistas parecem ter sido arrancados ao corpo humano, pelo que a batida minimal e circular vem bombada do coração às mãos para ribombar na pele antes de se desfazer em sangue na melodia e na voz. Ou então são mas é do quotidiano, restos de lixo sujeitos à afinação dos que sofrem rindo. Ou vice-versa, que daria bom tema. Interessa-me para o caso este que se evola de episódio concreto às alturas do mais aplicável genérico, o de género humaníssimo. Nasce da vida do lutador-bailarino baiano, Besouro Cordão de Ouro, que canta, via Elis Regina, Baden Powell e Paulo César Pinheiro (versão comovente aqui: https://youtu.be/7-KFwAaEC90), o desejo de ser enterrado no quinhão natal, regresso ao útero, portanto. «Quando eu morrer, me enterre na Lapinha/ Quando eu morrer, me enterre na Lapinha/ Calça, culote, palitó almofadinha/ Calça, culote, palitó almofadinha». Isto não ia lá sem sabedoria de arrastar o pé para ganhar balanço e voar. Mais que a culote, comove-me a almofadinha, suavidade de colo para a cabeça. «Vai meu lamento vai contar/ Toda tristeza de viver/ Ai a verdade sempre trai/ E às vezes traz um mal a mais/ Ai, só me fez dilacerar/ Ver tanta gente se entregar/ Mas não me conformei/ Indo contra lei/ Sei que não me arrependi». O lamento que se erga e vá à vidinha da narração cantada, que me deixe ficar aqui a bater copo na mesa, talvez dançando com a amiga do peito tristeza. «Sai minha mágoa, sai de mim/ Há tanto coração ruim/ Ai, é tão desesperador/ O amor perder do desamor// Ah, tanto erro eu vi, lutei/ E como perdedor gritei/ Que eu sou um homem só/ Sem saber mudar/ Nunca mais vou lastimar». Um homem só, despojado de mágoa e tristeza. Homem de um pedido só. Amanhã será o Jorge Dias de Deus, hoje foi o António Cordeiro e pouco antes o Carlos Antunes. Relâmpago e tenho sala feita campo santo. Não diria que macabramente dançam, mas está instalada a cavaqueira. Uma imagem puxa poema, as partículas um céu estrelado, a página de jornal o saxofone, o pó da pedra um jardim, e por aí fora. O Richard Sala está divertido a sacar esboços para a ilustração final, ou talvez esteja só à procura de clássicos do terror. O Ernesto Cardenal está indignadíssimo, cheio de memórias à sua volta, e o Carlos com ele. Começaram um manifesto qualquer, não tenho a certeza. A pobreza incomoda para além da vida. O Cordeiro, cansado de vilões e de casacos de cabedal, concorda e propõe-se encenar algo em torno das raízes. O Eduardo Lourenço levantou os olhos mal ouviu a palavra, sorriu e escapou-se-lhe uma ideia sobre fronteira e outra sobre a incerteza. A Maria Velho da Costa, a pensar em rap, discute Deus com o Lee Konitz, provocando toques de inveja ao ensimesmado Harold Budd. Nisto o Cruzeiro Seixas pergunta alto e com sotaque angolano acerca dos padrões nas samakakas. O Melo e Castro ajeitou os óculos e continuou a acrescentar poemactos ao Cara lha mas. Se há obra inacabada é essa das colunas. A Maria de Sousa traduziu e acrescentou um ponto, mas o John Le Carré topou-a. Não havia mistério que lhe escapasse, achava ele que não dominava a física quântica. O Cutileiro voltou a perguntar se ela não queria posar. O Nikias Skapinakis também não se importava. Quem ria muito era o Dias de Deus, talvez não tanto por causa da astrofísica, nem por causa dos trocadilhos com o nome. O Rubem Fonseca tinha uma receita de feijoada para afinar com o João Ubaldo Ribeiro, que era morto mais antigo e entrou de penetra. O Robert Fisk não pára de falar de oliveiras e carvalhos com o Gonçalo Ribeiro Telles, que bem tentou puxar as novas traduções do T. E. Lawrence para o terreno. O Vicente Jorge Silva deu um encontrão ao Sean Connery, que só estava ali a parecer que tinha saído de um filme. Andava à procura, aos gritos, do Maradona, não se via em lado nenhum, devia ter ido lá dentro. O Manuel Resende, via-se que divertidíssimo, não queria que me pusesse a dizer em voz alta «Os Mal Armados»: «Aqui estamos no tempo dos mal armados/ Em hotéis internacionais de todo o mundo/ Historiadores à la minuta enquanto outros/ Fazem história de improviso//Camarada coração bomba metalo-mecânica de pontas/ eriçadas/ Camarada peixe camarada pássaro camarada cartaz camarada/ São Tiago do Chile//Ali onde se ergueram apenas umas palavras/ Ergueu-se o exército de calá-las// Os mortos já estão mortos/ Empurram a terra até ao inferno». Não acaba assim, o poema, mas estes dias talvez eles nos estejam a empurrar para o inferno. No fundo, só queria que um camarada me ensinasse a tocar cuíca.
Paulo José Miranda Artes, Letras e IdeiasA ética e o monstro Jonathan Jordan, falecido na semana passada em Cork, vítima de Covid-19, já tinha 64 anos quando publicou o polémico ensaio «A Ética e o Monstro», no início de 1998. O livro gira todo em torno da pergunta que é exposta e multiplicada logo no início: «Qual a diferença entre humilhar, maltratar, dizer mal de uma pessoa e matá-la? Haverá diferença substancial entre todos esses gestos?» O que está em causa para Jordan é que o gesto que leva à humilhação do outro ou a dizer ma dele pelas costas, gestos muito comuns na nossa sociedade, «[…] tem como fundo o mesmo, que é a aniquilação do outro, a destruição do outro.» Jordan vai mesmo ao ponto de dizer que «Assim, podemos estar certos de que muitos dos que humilham ou dizem continuamente mal de alguém, o que os impede de matar não é um mandamento ético, mas um mandamento jurídico: a pena em que incorriam e que temem.» Parece-me que já não é preciso explicar muito mais a razão da polémica do livro, que chegou mesmo a levar o escritor Adam S. Burnhedge a escrever-lhe uma carta aberta na revista «The Spectator». Leia-se uma passagem da mesma: «O senhor Jordan parece não querer fazer diferença entre o desprezo que lhe tenho, que até agora pratiquei com a indiferença desejável e apropriada, e a vontade ou impulso de querer vê-lo morto. Mas a verdade, senhor Jordan, é que a despeito de julgá-lo um pensador de fim-de-semana, um “opinion maker”, e que as suas palavras não são apenas ocas, mas perigosas para a liberdade, não só não pretendo vê-lo morto como seria incapaz de fazer qualquer gesto nessa direcção. O desprezo ao outro é um direito do qual não abdico. E isso em nada me diminui eticamente.» A polémica durou o ano todo de 98 e estendeu-se a outros jornais. A BBC chegou mesmo a organizar um debate televiso em torno do problema que se levantara. Nesse programa, recordo-me das palavras da filósofa Martha Savage (cito de memória): «Para usar uma palavra que parece cara ao escritor Burnhedge, “a despeito” de querer minimizar o livro e o pensamento de Jordan, a verdade é que o debate que ele introduz é pertinente. Quer se tenha ou não dúvidas acerca do mesmo. […] Reservo-me o direito de ter dúvidas e de precisar de mais tempo para pensar acerca do livro de Jordan.» Deixando um pouco a polémica e regressando ao livro, Jordan traça uma relação de similaridade entre a ética e o medo da pena jurídica ou até a pena social, isto é o modo como os outros nos passariam a ver se descobrissem o que fizemos, com a Bela e o Monstro. Depois de introduzir o problema que o traz, no início do livro, Jordan vê necessário fazer uma pequena síntese do livro Bela e o Monstro, de modo a preparar a sua análise. A versão que Jonathan Jordan segue é a segunda e a mais conhecida versão, de 1756, de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, e não a versão original, de 1740, de Gabrielle-Suzanne Barbot. Assim, e depois de explicar a relação entre o conto de fadas e o propósito do seu ensaio, Jordan passa a mostrar-nos o resumo que lhe interessa do livro do século XVIII: «O livro narra a história de um comerciante muito rico que tinha três filhas. A mais nova chamava-se Bela, gostava de ler bons livros e tratava bem todas as pessoas. As irmãs mais velhas eram arrogantes, tratavam todas as pessoas com sobranceria, diziam mal de todos os que julgavam inferiores ou não fizessem parte dos seus círculos – muitas vezes até mal dos seus pares –, para além de só pensarem em festas e em serem aduladas por admiradores. Devido ao seu interesse pelos livros, pela sua generosidade e pela completa falta de interesse nas questões mundanas, as irmãs humilhavam frequentemente Bela, principalmente depois da falência do pai, e de terem sido obrigadas a viver numa casa no campo, muito longe da cidade. Aqui, só Bela trabalhava. Era a primeira a acordar e cuidava da casa. Nos tempos livres, lia. Passado um ano, por questões de negócios, o pai teve de partir em viagem. Quando o viram partir, e prevendo voltarem aos dias faustos de antigamente, as filhas mais velhas pediram-lhe muitas coisas; Bela pediu apenas que o pai lhe trouxesse uma rosa. O comerciante partiu. No regresso perdeu-se e perdeu as mercadorias. O inverno chegou. Durante um enorme nevão, já pensando que ia morrer de frio e fome, avista ao longe umas luzes. Ao chegar perto, deparou-se com um castelo com lindos jardins floridos, como se ali nunca houvesse inverno. Lá dentro, numa das salas, estava uma mesa cheia de comida e uma lareira acesa. Comeu, deitou–se próximo do lume e acabou por adormecer. No dia seguinte acordou e foi ao jardim colher uma rosa para a sua filha Bela. Nesse momento, um grande e horrível monstro irrompe furioso. Perdoava-lhe o abuso da comida e da dormida, mas não lhe admitia o roubo das rosas. Isso era inadmissível e deveria ser punido com a morte. Cheio de medo, o comerciante explicou que era para a sua filha mais nova. Disse que tinha perdido tudo e a rosa era a única coisa que lhe podia dar. Ao saber das filhas, o monstro propôs trocar a vida dele por uma das filhas. Deixava-o partir se ele lhe enviasse uma das filhas para o castelo. Ao chegar a casa, o comerciante conta o sucedido às filhas e Bela aceita ser entregue ao monstro, julgando que ele a devoraria. O resto do livro não importa para a nossa análise. O que importa é a relação entre Bela, as irmãs e o monstro.» Para Jordan, as irmãs são o mal comum que não se manifesta em crime pelo medo da pena jurídica (por vezes também social), Bela é a ética, o monstro – tal como também aparece no livro de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, segundo Jordan – é «[…] aquilo não só aquilo que vemos nos outros segundo as convenções e os preconceitos que temos, mas também aquilo que precisamos averiguar, de modo a entender o nosso ponto de vista humano em relação à ética.» O que parece estar em causa para Jordan é que aquilo que usualmente julgamos por comportamento ético não passa de um comportamento derivado da aplicação do código civil, sem o qual a ética ruiria. No fundo, o direito romano a sobrepor-se à ética grega. A tese mais radical, e que na verdade espoletou a polémica à volta do livro, é a de que nós não somos apenas intrinsecamente maus, mas a de que só não radicalizamos os gestos, isto é, não passamos do dizer mal acerca de alguém a matá-lo, por medo da aplicação das penas previstas no código civil. As nossas acções não são à imagem da acção de Bela quando aceita entregar-se ao monstro para salvar o pai. Nós, de modo geral – Jordan aceita as excepções –, somos as irmãs de Bela. Aquilo que importa também assinalar, pelo menos de um ponto de vista do efeito literário, que não me parece de somenos importância, é que a ética humana nos aparece ao longo do livro como o verdadeiro conto de fadas, e não o livro Jeanne-Marie Leprince de Beaumont. Escreve Jordan: «A ética é o grande conto de fadas da história da humanidade. Na verdade, deriva daqui todos os nossos enganos, todas as nossas fantasias». «A Ética e o Monstro», apesar de todas as controvérsias ou precisamente por isso, parece hoje um livro incontornável, essencial. Literário e filosófico.
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias CartografiasNocturno Ficam-me sempre os olhos presos nesta hora fugidia, em que a luz se retirou do mobiliário do mundo e ainda resiste no céu. Dezoito e trinta por ser esta estação do ano nas coordenadas particulares da minha rua. Noutro mês e noutro lugar do mundo seria uma hora diferente para a mesma impressão. Por isso mesmo, o tempo nada tem a ver com as horas. Ou com os relógios. Como dizia Proust: “Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem”. Este cinzento de um azulado soturno com uma luz ainda, por cima, a querer resistir à noite que já tolda o rosto do prédio em frente. Estes minutos de transição. Que me fazem sempre pensar que parece haver um tipo de horas e de luz mais dadas à metafísica. Mas é talvez ouvir o corpo a entristecer. Nesta memória longínqua, de animais, que temos. A espalhar pistas imperceptíveis que conduzem ao buraco quente que habitamos, a um cobertor tecido de lã de outros animais e a um restolhar confortável de folhas revolvidas para gerar conforto. Em cada fim de dia o caminho percorrido está lá. Instalado. A prestar contas de solidão e persistência. É errado esperar que uma mão nos conduza, um olhar nos confirme, ou uma palavra nos aponte o próximo passo. Ninguém ensina o desassossego nem o adivinha. Ninguém respeita a zona de sombra nem salva desta coisa triste – porra triste, como dizia o outro. Que não abafe a escuridão quem não lhe entende o esplendor. A dádiva possível no gesto prismático, daquilo que, sendo complexo, parece simplesmente dor. Estamos talvez tristes, em casa a espreitar o caminho. Há uma esperança que nunca morre. E um desalento que também não. Sentam-se juntos no sofá da sala. Mudos e belicosos. Não há visitas, de momento. Esqueletos. Não há chave esquecida sobre a mesa, mala, relógio, ensaio de escuridão. Uma mão para tocar com uma bola-mundo. Aquelas aldrabas antigas de bater à porta com a mão e com o mundo. Uma coisa no plexo solar. Apalpo com a mão. Empurro sem mesmo saber porquê o momento pelo umbigo abaixo. Aliso a saia. Levanto-me da cadeira gasta com um fito indefinido e que é literal, reduzido àquilo. Depois vem o assunto. Faço uma coisa útil e a casa e a vida agradecem porque a vida e a casa necessito-as em serena arrumação como se houvesse a possibilidade de o mundo parar nisso e me deixar um travo de liberdade na mente. As coisas em desalinho e a mente em desalinho. Não que sejam coisas diferentes. Contas. Dou uma volta rápida. Uma tarefa impertinente, uma geometria imperfeita, uma forma informe, um desvio do lugar e emendo e endireito o que lembra ciclos de fazer e desfazer. Deito fora, apago. Um rasto a esquecer, um prato com restos, uma pilha de sofrida de papéis ou levanto do chão a alma de uma coisa caída, daquelas a que o olhar se acostuma e de vez em quando lança um grito surdo de coisa que vive noutro lugar. Eu estou presa em casa, eu não saio. Como se de morrer isto já fosse um ensaio. Mas esta hora é como de algo que se acende. Parece, todo o dia, pelo som deste silêncio, que o sábado morreu à uma, mas eu tenho que ir passear um bicho. Sem esquecer o essencial que é invisível aos olhos. Porque a verdadeira viagem faz-se por imersão na memória. E, de novo Proust. Eu a caminhar ao lado e no caminho de Swan. Assim, apaziguo este ser delimitado na casa e lembro-me de que o passeio não dado, não é de hoje nem de ontem mas existe. Súmula de todos os que dei ou inventei antes. Ia por ali abaixo a sentir a aragem delicada do crepúsculo e somente por isso ou para isso. Passava pelos lugares dos meus dias tão irregulares e às vezes mesmo sem sair de casa estavam lá, os becos e divergências, meio de caminhos, que nem olhando para trás providenciavam uma explicação ou uma nitidez que os colocasse num mapa que não o escondido num diário ficcionado sem linhas nítidas ou limites. Eu passava e tornava sobre aqueles passos, na exaustiva decisão de organizar cada gesto estranho e cada silêncio, cada palavra dita ou cada intervalo de sentido. E tudo demasiado parecido com um número imaginário. Em tudo as areias movediças a que faltava uma fé a serenar, num olhar único, essa visão do real passado e ultrapassado. Uma fé que não tive em Deus a deixar traços no caminho. E os anjos. Que diferença na minha afeição por essas criaturas inexistentes e nítidas. Sinais modestos e inequívocos como sinais. E eles, que sinto necessários, que quase vejo, quase toco e sinto e quase velam por mim, são talvez tão chegados, que delegam em mim esse fardo de consolo que busco. Como parte de parte. E o segredo está nessa hipotética parte de meia pessoa, que um dado estatístico pode manusear como rigorosa realidade da incidência de um dado facto, mas que se sabe não existir. Existir mas não existir. Como um número irracional? Ou será essa parte de meia pessoa, a parte de mim que elabora uma outra entidade em forma de anjo? Talvez pertencente ao conjunto dos números transcendentes por não prefigurarem a raiz de um polinómio de coeficiente inteiro como uma fé, uma crença ou uma convicção. E outras coisas que não são inteiras nem racionais. Depois a noite cai em si. Como todas as noites E as noites já me ultrapassam. Vejo-as sair como amigas queridas, jovens e egoístas. Anseio pela limpidez nova das manhãs. Eu que detestei as manhãs de qualquer idade. Levantar para os dias. Mas pesa-me a ascensão dos que já não chegam frescos nem novos ao cimo. Nem pacientes nem activos nem mais do que criativos mas sem força para o gesto. Cada vez tenho mais frio. Mais inverno. Mais desejo do outro dia, como se a vida no fio. Um gume a cortar o tempo em dias. Horas de desistir. As de antes resistir, esticar, persistir, não querer dormir. Porque depois, não querer acordar. Digito as horas. Depois da insónia, sonho com um homem que guardou muitas bolas verdes dentro da perna das calças. Depois, ao experimentar o sapato, elas espalham-se pelo chão. As pessoas de tanto terem medo de ficar sós fazem coisas estúpidas. Digito as horas e levanto-me. Digito-as e custo a levantar-me. Depois o dia parece grande. Oiço os sinos. Pássaros.
Paulo Maia e Carmo Artes, Letras e IdeiasOs Amigos de Zhang Yu e a Nostalgia da Errância Nizan (1301-1374), o mais livre dos pintores da dinastia Yuan (1279-1368), passou o seu tempo vagabundeando desde que, em 1366, abandonou a sua casa fugindo a um ataque de soldados saqueadores que prenunciavam já o fim da dinastia, alojando-se em casa de amigos, em mosteiros budistas, reflectindo no espaço a liberdade do seu espírito. Esses poucos que encontrou no mundo e que o receberam não o impediam de perceber um outro olhar de outros que o desprezavam, ao contrário a sua sensibilidade permitia-lhe reconhecer a sua vida como uma anomalia, quiçá um caminho para uma outra coisa e essa seria indizível. «Aquilo que designo como pintura não é mais do que a alegria de desenhar despreocupadamente com o pincel. Não busco a semelhança, faço só o que me entretém e alegra. Recentemente vinha caminhando ao acaso e cheguei a uma cidade. As pessoas que lá quiseram saber das minhas pinturas queriam-nas exactamente como desejavam, representando um momento particular. Então, foram-se embora insultando-me, amaldiçoando-me de todas as maneiras possíveis.» A sua via estranha seria prosseguida por outros individualistas como Huang Gongwang ou Wu Zhen entre outros. Mais tarde, quando os historiadores da pintura, escolheriam estes como os pintores que estavam no caminho certo. Porém ao lado deles, pintores como Zhao Mengfu (1254-1322) e outros, persistiriam aparentemente num outro modo de representação que se alguns consideraram mais conservador porque referindo os modelos clássicos, mostravam a mesma dor de um impreciso exílio. Foi o caso de um pintor de Suzhou que, ao contrário de Nizan, terá ficado em casa. Zhang Yu (1333-1385?) foi poeta, calígrafo e pintor numa era em que estas artes, que perseguiam objectivos diferentes, eram praticadas pelos mesmos artistas. Num tempo em que era perigoso viajar, o pintor fez questão de celebrar a amizade em Suzhou, pelo que se pode deduzir do seu memorável grupo dos «Dez amigos da Muralha do Norte» da cidade. No mesmo ano de 1366 em que Nizan abandonava a sua morada, Zhang Yu fez a pintura de uma paisagem intitulada «Nuvens de Primavera sobre o estúdio dos pinheiros» (rolo vertical, tinta e cor sobre papel, 92,1 x 31,8 cm e que está no Metmuseum em Nova Iorque) em que, tal como nas pinturas de Nizan, não aparecem figuras humanas mas em que, pressentindo-se o mesmo nostálgico sentimento de quem se quer um eremita, tudo é enganosamente próximo do real. Os «pontos de Mi» nos cumes das montanhas, referência cultural que alude a Mi Fu (1074-1151) denunciam o seu carácter artificial. Talvez um dos seus amigos, Wu Gui, escreveu na pintura um poema: «Mestre Zhang, inspirado e elegante,/ No seu estúdio dos pinheiros, com o seu pincel delicado, fez maravilhas./ Tantas vezes a poesia evoca a pintura,/ Mas como é semelhante a comparação que a pintura evoca.”
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasUm locutor de trailers Um sujeito calha a estar num sítio com televisão à hora em que começa o telejornal da noite. Este abre, como não podia deixar de ser, com o resumo diário do estado da pandemia em Portugal. O que não é normal, porém, é a montagem da peça: enquanto o jornalista de Auschwitz relata o quotidiano dos hospitais e os números da pandemia, sucedem-se planos rápidos do interior de uma unidade de cuidados intensivos. Os doentes, de bruços sobre a cama e entubados, são filmados em registo de puzzle: enquadra-se um braço inchado e imóvel, um olho fechado e – o preferido de quem filma ou de quem edita – o tubo por onde circula o oxigénio entrando na boca do paciente. Quando não incide sobre os doentes, a câmara mostra os médicos – cujo equipamento faz eco dos filmes apocalípticos tão em voga neste início de século – deambulando pelas camas dos pacientes, os dispositivos que monotonamente oxigenam os pulmões, um enfermeiro a desfraldar a agulha de uma seringa, o pormenor de uma viseira. Tudo isto ao som da máquina que faz bip. Para quem, como eu, não costuma ver televisão, o registo da peça é, no mínimo, desconcertante. Que aconteceu à sobriedade enfadonha com que se costumava abordar os assuntos mais sensíveis? Que é feito da circunspecção e da reserva que os doentes nos cuidados intensivos e os seus familiares em casa merecem e quase certamente apreciariam? A filmagem e edição são muito mais condizentes com um trailer de um telefilme apocalíptico de série B do que com uma peça informativa emitida à hora de jantar. Eu lembro-me de dar conta, há meia dúzia de anos, de que o canal National Geographic – antes uma coisa razoavelmente soporífera a que se assistia em família, no domingo à tarde, depois de almoço – passara a ser uma espécie de sucedâneo, em registo vida animal, dos piores filmes de acção de Hollywood. “The solitary lion will be confronted with its worst nightmare in just a couple of hours. Its archenemy, the hyena, is after him and packs a powerful bite, one of the most powerful in the predator world. Let’s compare stats and so we can forecast the outcome of this epic battle!” Nada disto – deste tom entre o comentário de wrestling e o filme de acção – me interessa. Nem percebo que possa interessar a alguém. A vantagem que eu via nos programas sobre a natureza – além da contemplação na segurança do sofá daquilo que é exótico – era a de oferecem um contraponto em termos de formato e de estilo para a restante programação televisiva. Outrora, cada programa tinha um registo muito próprio. Era impossível confundir o 70 x 7 com a Tieta do agreste ou o Telejornal com o Big Show Sic. Era uma das coisas que apreciava na televisão – enquanto apreciei televisão – havia conteúdos para – mais ou menos – todos os gostos. Lembro-me bem de assistir ao Monty Python Flying Circus na RTP2, já muito a desoras, ou ao Northen Exposure, ou ao Hill Street Blues. A televisão de agora – e posso estar a ser tremendamente injusto nesta generalização, tendo em conta o pouco a que assisto – parece mais ou menos toda criada pela mesma cabeça tentando parecer, em cada um dos seus ângulos, uma coisa diferente. É tudo confrangedoramente épico – tudo o que é e tudo o que não é. Faz lembrar o Manuel Alegre a ler uma ementa de um restaurante armado em cama de espargos. Ora este tipo de registo, num telejornal, só contribui para, em vez de suscitar a reflexão por via da notícia – sóbria, objectiva e ponderada –, amedrontar aqueles que já têm medo e afastar os que passaram a desconfiar do jornalismo convencional, não servindo, portanto, a ninguém. A vida, no que tem de bom e de mau, é desigual, múltipla, dinâmica. Como escrevia Wittgenstein no Tratactus: “O mundo é tudo o que é o caso”. Não me parece que o mundo ou a vida possa ser adequadamente reflectidos, em toda a sua complexidade e beleza, por um locutor de trailers de maus filmes.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoO Ventura e nós Há uma histeria colectiva em relação ao André Ventura que só lhe aumenta as metástases e o legitima como um novo David em luta contra os Golias do “sistema”. Não é apenas na comunicação social, esta ecoa o que ocorre nas redes sociais. É preciso desmantelar a pretensão do Ventura em ser “anti-sistema”, não reforçá-la. Não entender isto pode ser mortal. O calafrio nasce do medo de que o calor não volte. Ora é impossível que o calor não volte pelo motivo mais simples: o sol não se deslocou. Evidencia-se um desejo não formulado nesta obsessão em dar forma ao medo, quando (lembrou muito bem Daniel Oliveira) ele é apenas o senhor doze por cento numa extensão de cem; e metade da fatia que lhe coube não lhe pertence, foi-lhe emprestada por quem votou não exactamente nele mas contra qualquer coisa, e cujo protesto volante, na próxima, recairá noutro oportunista. O Alentejo terá virado o seu sentido de voto? O horror disso prende-se com a ideia arreigada de que “antigamente é que era bom”. Será agora mais útil analisar as causas: que erros se cometeram para que o cansaço face aos vícios com que a “idealidade” se foi inquinando se transformasse em ressentimento e canalizasse as suas parcas energias votando no inimigo? Quem deu os votos ao Ventura? As más políticas da esquerda. O Ventura existe enquanto conseguir manter-se na esfera daquilo que à partida é «desqualificado». A sua força vem-lhe daí. Só se fala do Ventura para o desqualificar à priori: é fascista, o coiso, a besta, o grunho, etc. Talvez, mas é tão caricatural e redutor que o transforma numa vítima. E essa desproporção atrai os que ao intelecto preferem a “acção” e não entendem não se lhe dar uma chance “para mostrar o que é capaz!”. As massas são lerdas, quer se deixem manipular pela esquerda, quer se deixem manipular pela extrema- direita. Só muito raramente brilha a inteligência colectiva. Existe, sim, o irracional das emoções, como uma massa de bolo em que os demagogos metem a mão para a conformar. É mais difícil de contrariar aquilo que, na verdade, é “fabricado” pelos seus detractores, porque se está a combater uma projecção – que tende a tornar-se monstruosa – e não a substância, afinal frágil. O Ventura vive dos medos alheios, o seu centro é oco. Foi o que Marcelo denunciou no debate com ele, ao apontar-lhe a sonsice de oportunista. Ele não existe para além dessa manha. O Ventura desmancha-se com paciência, pedagogia e humor, contrapondo serenamente argumentos, como quem, caridosamente, explica algo a um mau aluno, ou com o riso. Tomando tudo o que diz como bravatas. Se ele for tomado a sério mas como palhaço, ele próprio se exasperará e aí cai-lhe a máscara. Desqualificando-o à cabeça, sem lhe dar sequer o crédito de poder ser um bom palhaço, é o único método que lhe dá forças. E deixemo-nos de ilusões: não haverá sempre, potencialmente, cinco, dez por cento de aprendizes de fascistas em qualquer sociedade democrática? Para que eles não cresçam só há dois caminhos: a educação (e também a política) e a uma regulação quanto à qualidade do fluxo televisivo. Porque é falso que o gosto não se discuta, o gosto tem regras e tradições, aprende-se. Entretanto, leia-se o que Marcio Sotelo Felippe (um antigo procurador geral do estado de S. Paulo), escreveu a favor do impeachment do Bolsonaro: «O fascista busca se legitimar por meio do apelo a certa massa suscetível ao ressentimento social e por meio do apelo à pequena-burguesia, ou classe média, perdida entre o pavor da proletarização (que se torna pavor dos proletários, de seus partidos e de seus movimentos) e a sua própria representação no imaginário da grande burguesia. O ressentimento transforma-se em ódio. Essa massa cresce com desqualificados, escroques, oportunistas, lúmpens, também amealhados entre os trabalhadores. O discurso de um líder fascista expressa a ideologia que cimenta o irracional dessa massa. Por isso ele precisa dizê-la. Ele nada fará sem essa torpe legitimidade. Após dizê-la, tem que cumpri-la para que essa legitimidade se transforme em poderosa força social. A liderança e a massa se nutrem reciprocamente da anomia moral que daí surge. É por isso que o fascismo, em regra, prescinde de golpes dados na calada da noite por tanques que irrompem pelas ruas e tropas que tomam os centros estratégicos do poder. Eles simplesmente chegam ao poder pelo voto, como Hitler e Mussolini, Trump e Bolsonaro. No poder, a sua base de massa paralisa, imobiliza a parcela sadia da sociedade. Uma combinação fatal entre coerção e consenso. O fascismo é sempre possível porque em toda sociedade há uma massa que pode ser galvanizada pelo apelo à irracionalidade, que pode se mover fascinada pela anomia moral que lhe permite dar vazão a impulsos primários,(…) em uma sociedade que não lhe reserva lugar algum e que não consegue construir a racionalidade que lhe aponte caminhos.» Uma «combinação fatal entre coerção e consenso» é o que encontramos hoje nas redes sociais, supostamente contra o Ventura. Fica socialmente tão mal não manifestarmos a nossa indignação imediata contra o Ventura que escolhemos os epítetos mais toscos para o desqualificarmos, competimos com ele na irracionalidade, sem perder tempo a desmanchar-lhe os argumentos. Juramos: o próprio senso comum se encarregará disso. Ora, o senso comum é uma batata, eis-nos na cilada: ele adora que renunciemos a raciocinar. Gostamos tanto de agir em manada que fomos “coactivamente cativados” – passe o óximoro. Dependemos dele para existir, ou, como se diz na economia: estamos a capitalizá-lo. Ele não tem a importância que parece. Em vez do medo, melhoremos a educação, no lugar da ira, o riso. E só às quintas-feiras, entre as 9h45 da manhã e as 10h15. No resto do tempo há coisas extraordinárias a acontecer e que reclamam a nossa atenção.
Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasA outra doença Para além da tragédia global que a todos nos consome, um dos aspectos mais nocivos do factor covid19 é a sua espectacularização. Ela é responsável em grande parte pela banalização das mensagens que dão a conhecer os dados diários da pandemia, pelo chamado “cansaço” das pessoas (como se fosse algo a normalizar e a legitimar) e, em primeiríssimo lugar, pela indiferença crescente face ao número de mortos e de infectados que se registam neste nosso país que passou a ser o pior de todo o planeta no combate à catástrofe sanitária. É como se a notícia de uma fatalidade terrível apenas pudesse ser veiculada, tendo por cima imagens dos canais do cabo que somam ao culto da velocidade a banalização da violência, do sexo e da morte. Diante deste estranhíssimo cenário, até mesmo as reportagens da campanha eleitoral tiveram, por vezes, um sabor provocatório e de mau gosto, como se fosse dúbio aquilo que realmente estava – ou deveria estar – em causa nestes tempos tão negros. Mesmo que se parafraseie William Burroughs – “The theater is closed” –, sabemos bem, reatando a citação, que “não há́ lugar fora do teatro, que tudo ocorre no mundo, que não há lugar para onde escapar” neste ‘face a face’ com as encenações tecnológicas e telemáticas que nos envolvem (como se não existisse um lado de fora e um lado de dentro nesse envolvimento). Na verdade, o espectáculo sempre correspondeu ao mais profundo dos humanos porque condensa todas as histórias possíveis e todas as montagens imagináveis, para além de proporcionar, sem paralelo, a fruição de intensidades imediatas. O espectáculo pode imitar, truncar ou parodiar de formas muito diversas, condensando, divergindo e abrindo-se sempre a um leque muito grande de escolhas. Há 25 séculos, na ‘Poética’, Aristóteles disse-o de modo pleno, quando tornou clara a superioridade da tragédia face à epopeia: “A tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia” (…) “e demais, o que não é pouco, a melopeia e o espectáculo cénico, que acrescem a intensidade dos prazeres que lhe são próprios.” Sair deste aquário de imagens que quase o transbordam em intensidade, como dizia o filósofo (sem imaginar que o mundo se transformaria todo ele num vasto teatro), vai ser tão penoso quanto sair do próprio mal da pandemia. Se a vacina nos promete esta segunda saída, já a primeira arrastará consigo uma patologia de vivências e de memórias difícil de curar. Só daqui a uns meses – ou talvez anos – entenderemos que a saturação de imagens com que temos vindo a viver, durante este último ano, somou à tragédia real uma disrupção de óptica (e de objectividade) com origem em fantasias, negacionismos e ‘fake news’ da rede, na inflexibilidade dos calendários políticos (por que não se adiaram as presidenciais, por exemplo?), nas abjectas estratégias sacrificiais (o caso mais óbvio foi o de “salvar o natal”) e, também, claro, na obsessiva distopia televisiva. A banalização resulta de uma repetição interiorizada que não dá sequer tempo para separar o fundamental do acessório ou mesmo, tantas vezes, do desprezível. É esta uma das consequências da instantaneidade tecnológica. Neste tipo de processos que conduzem à vulgarização, as imagens não apenas fazem por encadear como têm vida própria. Razão tinha Adolfo Bioy Casares, no seu pioneiríssimo romance ‘A Invenção de Morel’ (prefaciado por Borges há oito décadas exactas), quando lá escreveu – “A hipótese de as imagens terem alma parece confirmada pelos efeitos da minha máquina sobre as pessoas, os animais e os vegetais”. O encadeamento espectacularizado de imagens, gerado no espaço público em toda a sua extensão, tem permitido à santa aliança entre o virtual e a idiotice mais chã pressionar os efeitos do real (bem como a imagem que dele temos e que no-lo permitem ajuizar). Este encadeamento, com forte recepção nos ‘mainstreams’ sociais, é uma segunda doença de que pouco ainda se fala. Geralmente tem-se dado mais importância aos sintomas exteriores do que a ela mesma. Venturas e Trumps são efígies criadas por esta terrível névoa que faz do delírio, das temáticas franco-atiradoras e da violência gratuita o seu jogo sem finalidade alguma. Por vezes, ridicularizando e minorando a pandemia. Lama que cai em cima da lama e que paralisa a própria lama. Seja como for, apesar de ser possível prever que existem males crónicos que irão persistir por muito e longo tempo, creio que, dentro de um ano, ou talvez antes, nos iremos admirar por poder livremente voltar a olhar o mar e subir as dunas lado a lado com todas as outras pessoas sem necessidade de máscara. Há-de chegar esse dia. O dia para amar e desarmar as névoas perigosas. O dia que visto daqui de longe – seja lá quando for – nos garante, afinal e desde já, alguma da nossa sanidade. É nesse ponto do futuro que nos devemos colocar a observar com lucidez o tumulto, o desacerto e a cegueira que estão neste momento a dominar o presente.
João Paulo Cotrim Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoQuero é dançar na chuva Horta Seca, Lisboa, sexta, 8 Janeiro «Nós, em devir// oramos todos uns dias por um quinhão de alegria». Envolta em mãos desenhadas, simples à vista e outras quase ocultas a tocar corações e complexidades, chega-me «oração», de Isabel Baraona, em correio com carimbo de data e selo contem Amália na fronteira de serrilha. Leio a magnífica litania logo passando para a voz alta, seu indubitável lugar. O caderno que sobra para lá do invólucro de mãos acolhe com mestria gráfica a cadência dos versos em repetição acrescentada, como se fossem chegando para irem adensando até ao núcleo dispersando depois. Aspectos e segredos de mães e amantes, «um coração duas línguas», apanhados no ar para irem definindo corpo, de palavras que são matéria, e casa, de espaços que são respiração. «nós, plural feminino// nós, que somos apenas/ nós, que somos quase// nós, em devir, nós, plurais e por vezes repetitivas,/ as eleitas, mas não as mais jovens/ amantes, mas não as mais belas/ nós, à escuta do amor dos homens/ desejando neles a fêmea que também são/ nós, canhestras e porventura insolentes/ hirtas, entre músculo e ossatura frágil/ esfolamos os seios até ao coração.» A citação falha na aproximação à experiência, destrói o objecto, perfura a borboleta ainda viva. Leio vezes sem conta, «não dizendo angústia porque as palavras são desejos», mas celebrando-a. Um grito bordado em murmúrio. Uma pérola de carne e osso. Mais do que jardinagem de sinais poéticos, dizem-se as palavras que precisão ficar contíguas ao corpo e à casa para o definirem. O ícone não representa, faz-se presença. Uma afirmação de brutal carga eléctrica, indispensável para sobreviver «ao ícone desfeito em tempestade». Queria muito voltar a rezar assim: «nós,// oramos sempre e ainda por uma alegria leve e viva». Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 15 Janeiro Cá está novo fechamento, anunciado à náusea, adiado ao limite. Ainda assim, as ruas não se esvaziam. A catástrofe está instalada à razão de um avião em queda por dia, mas nem isso acende as campainhas histéricas dos telexes virtuais. Ou antes, os alarmes são ignorados, por não querermos acreditar na impossibilidade de se viver como habitualmente. Arde-me a casa, mas na vez de tentar apagar todos os fogos, o fogo, entendo por bem arrumá-la. Nem isso: escolho um gesto minimal repetitivo e nele me instalo, performance silenciosa no escuro. Melhor faria se observasse os mil modos do gato se espreguiçar, harmoniosas odes à potência do salto. Parceiro de projectos postos em pausa, o João Francisco [Vilhena] desafia-me para um «Diário das nuvens», desconhecendo ainda assim a minha desmedida e diletante atracção por esses fugidios elementos. Que teriam para dizer essas imemoriais companheiras destes nossos pára-arranca? Um dos muito encantos das ditas massas suspensas de água e poeira está em nada dizer. Somos nós que nelas penduramos estados de espírito, tornando-as vestes da tristeza ou da melancolia. O João envia, a cada dia, fotografia de um caso, jogando com luz, composição e a sua leitura do dia. Estou a vê-lo a bater às portas para poder subir às varandas, aos telhados, identificando-se: «é para contar as nuvens». Para contar das nuvens só mesmo palavras, micro-histórias ao sabor da absoluta liberdade, perseguindo ideia ou descascando palavra, descrevendo objecto ou engendrando situação, observando, dentro e fora. Exercício de felino doméstico, arranhar sofás e espreitar visões do vizinho nenhures. As decisões urgentíssimas que continuem presas na sua desesperança prática. Topei logo a fala das portas dos últimos dias — estava capaz de criar uma religião. O Bernardo [Trindade] está a fechar com estrondo uma de vidro que permitia, mesmo nas madrugadas aflitas, ver as lombadas alinhadas a conservar saberes. Nem o gradeamento em losangos, arremedo securitário pintado de flores por estes dias, impede que nos assomamos ao miradouro. A da abysmo foi raspada e polida, caiu o verniz, perdeu brilho, portanto, para acolher entretons de laranja. Dá-lhe movimento, parece que acabou de se esfregar na pele na cidade, parou para descansar por instantes antes de continuar a roçagar-se pelas coisas do mundo. A do prédio aqui possui curiosa mistura de peso e transparência, momento distinto das artes aplicadas, com a fechadura próxima do chão, uma bela moral: tu que queres entrar, baixa-te para alcançar a abertura. Apanhei a tua nuvem, João, hesitando entre pára-quedas e metáfora. Entrada primeira: «Estava capaz de jurar que era uma ideia. Foram as suas hesitações perante a porta que me despertaram. Era uma porta semelhante a tantas horas que se rasgam em rectângulo na face dos prédios. Umas são como canções, outras não. Umas são de abrir acessos, outras de os travar. Esculturas de ferro com transparências de vidro. Cegas na bruteza. Vendo bem, esta era distinta. Era a porta da rua. Não do prédio, mas da rua. O exterior, que costumava ser de todos, vedava-se. A ideia encontrava-se entalada no exacto espaço entre entrada e saída. Ainda bem que o desconforto térmico não era por aí além.”
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias CartografiasUm fósforo e era fogo Era uma vez uma senhora que escrevia cartas de amor. Sobretudo. Por ofício. Por encomenda e por medida, como um bom alfaiate. Uma história que começou na infância. E lá, aonde eu vou, quando se definia brincar a algo, combinava-se as personagens previamente. Agora eu era e tu eras. Nunca pensei, então, porque o dizíamos assim. No pretérito imperfeito porque era um mundo perfeito em que habitava aquela fantasia e em que o único defeito era o de não existir. Imperfeito, mas pouco. De era uma vez. E algo nos suspendia inocentes nesse presente do passado, que não existindo nem tendo existido, ainda assim era como se fosse uma história antiga a encenar. Porque nem havia como demonstrar não ter existido, já que se inventava com efeitos para trás, um presente contemporâneo desse passado. Que não queríamos ver concluído, passado e perfeito. Mesmo as histórias de embalar começavam com este pretérito tão imperfeito como tantos passados. E nele se mantinham todos os verbos. O que era e não era. Talvez porque nunca nada se concluiu, foi também onde começou aquele fenómeno estranho e que assim ficou para sempre no presente do presente. Abeirar-se do telefone, ou de um olhar, como quem se colocava à beira do abismo. Um espelho de água, uma poça de água da chuva, afinal sem demais profundidade. Em tudo do quotidiano parecia dizer-se que “a ordem visível das esferas mais altas virá mirar-se na profundeza mais sombria da terra”. Era o que parecia. Hesitar abismada no medo. Por isso as cartas de amor, por ofício. Por encomenda. Tecia ou talvez bordasse, como sabia ou tentando melhor, com tudo o que a vida lhe punha ante os olhos, fios de luar ou feromonas. Era uma vez. Um tempo. Eu era a senhora que escrevia cartas de amor, sobretudo. Comecei na infância com coisas cerimoniosas em postais de cartolina branca com o cavalinho em sangue de boi dos correios portugueses. Eu tinha duas avós e a ambas cortei o cabelo, na idade avançada, mas somente a uma escrevia cartas. Por ela, que as não sabia mas ditava. Até um certo ponto e depois eu tinha que inventar e esticar o assunto para encher o exíguo espaço dos postais porque tinha letra pequena e porque o ditado ainda era mais curto do que o espaço em branco. Para a avó chegava, mas para mim era uma questão de brio. Pelo menos encher o espaço. Minhas queridas irmãs, dizia ela. Uma minha querida a cada uma das duas e em cada postal, porque quando escrevia a uma escrevia a outra. Deus queira que ao receberes este meu postal. Sempre assim do mesmo modo e com as mesmas palavras. E por ali fora, sempre igual porque estava bem. Outras vezes de pêsames naqueles envelopes pequeninos contornados a negro como aquela fita que se colocava nas mangas e se chamava fumo. O do luto a ensombrar a fronte. Mas nem chegavam a ser tristes naquela formalidade longínqua aos sentimentos. Ensaio e pergunto ruborizada se está bem se é assim o sentir: Estou a perder-me sem ti. Sinto-me uma não habitação neste espaço só de te retirar. Perco-me sem fito sem sentido sem fim quero acabar em ti deixar-te tudo e para mim ter-te se é demais se devo ser mais sóbria mais contida menos emoção ou mais romantismo mais mistério ou mais exotismo. Pergunto, sentada, a roer o lápis de nervosismo, como o que sempre o amor provoca. Mesmo o de quem está na minha frente e explicou e encomendou. Escrevem-se cartas de amor. Diz o anúncio que aqui traz estas pessoas que me dão o nome o amor e o nome do seu amor. Para que o escreva numa carta em papel como antigamente. Selada e fechada em envelope de papel bom. Imito a caligrafia sem grande preocupação mas para ser uma espécie de verdade. Querem-nas bonitas e eu quero-as verdadeiras e quero-as profundas. Puxo por um fiozinho com jeito, a espreitar interiores. Que se prendam às palavras que virão depois. É o que desejo. Que seja tudo verdade. Mesmo a voz. Tento retê-la com atenção. Tem que se colar à folha e aos intervalos de silêncio. Aos espaços entrelinhas. Tenho este anseio. De escrever o que não escrevi. De me empenhar e ruborizar em todas as palavras difíceis. De me encarniçar – o vermelho é uma cor de guerra às palavras difíceis de dizer – do rosto à alma. Ferozmente encontrar o termo exacto. E esconder os olhos na textura grossa do papel fresco. E na tinta permanente em azul, da caneta em repouso para depois do lápis, que serve para as primeiras impressões. E apetece-me dizer entrelinhas, para o caso de surgir uma dúvida uma hesitação ou desconfiança: esta é a voz que te ama. Se não a caligrafia, a voz. Que tento adivinhar no rosto á minha frente. Sento-me no banco do jardim e olho aquele rosto de óculos, por detrás do fumo e penso no que será capaz, ao ler-me no rosto pensamentos resistentes. Ela que as escreve. Aquelas difíceis e doces, que começam como as histórias de embalar, num pretérito imperfeito: eu gostava de te dizer. E depois, o resto. Que as mulheres mais velhas da família lhe ensinaram a não dizer, de sentimentos, mas a sentir com pudor e a esconder sentir. Tudo. Procurava nas palavras difíceis que são as do amor. Ensaios sem fim à vista. Quando tudo se resume á palavra que são duas pessoas. Com hífen. Sem mais. Sem saber a dor no impacto. E a dor do ressalto, como o da coronha de uma arma. Quero-te, desaconselha. Porque intimidante. O lugar da emoção é o mais difícil de dizer. Fica a ouvir todas as palavras de cada um, antes da síntese ideal. Era uma senhora que escrevia cartas. De amor. Prometeu que a encontrava no Jardim Botânico e por ali vagueio até descobri-la. Sentava-se num banco, para além de intrincados atalhos, como para se perder de ser encontrada sob a cumplicidade discreta e murmurejante das árvores. Pensa ou penso adivinhar o que diz quando perguntam: As pessoas que me tocaram, as que me marcaram, as que rasgaram cicatrizes e escaras. A história nunca está acabada na escrita que lhes faço. Talvez por isso. Depois, á minha frente, o rosto redesenhado de linhas a mais, as pálpebras, os contornos a descair amolecidos pela vida e as asas despidas como de folha caduca ou radiografia em demasiado inverno para voar e sinto afeição por essa senhora e é com ela que me apetece escrever. Cartas de amor. A lembrar Machado de Assis: “Depois…depois (…), queimaremos o mundo”, (…) “e eu vivo e morro por ti”. E é nestes verbos que sobrevivo. Acrescento. E, era ilusão minha, ou ela sorria.
Paulo José Miranda Artes, Letras e IdeiasA resenha de Immanuel Kant Em 1764, Johann Georg Hamann, amigo e antigo aluno de Immanuel Kant, escreve uma carta a Moses Mendelssohn, onde diz que o filósofo estaria a escrever uma resenha da obra do sueco Emanuel Swedenborg, «Arcana Coelestia», oito volumes publicados durante oito anos, um por ano, acerca dos espíritos, e de como essa relação do autor com os espíritos o leva a uma nova interpretação do Antigo Testamento, conduzindo-o a uma nova religião. Essa resenha seria uma espécie de antídoto contra a crendice que se levantava na Europa acerca desse tipo de assuntos em geral e dessa obra em particular. A obra do sueco foi sendo publicada entre os anos de 1749 e 1756 e cedo criou uma aura de genialidade à sua volta, contrariando todo o trabalho do iluminismo. Tornou-se, aliás, uma espécie de arma de arremesso contra as teses iluministas. Segundo Kant, a obra do sueco em oito volumes não passava de uma espécie de sortido de crenças cristãs ao longo dos séculos, que ele pretendia desmontar, de modo a reconduzir as mentes no caminho são da razão. Na verdade, essa resenha seria publicada em 1766, em dois números da revista fundada e editada por Johann Georg Hamman, Revista de Estudos Académicos e Políticos de Königsberg, com o título «Sonhos de um Vidente de Espíritos, Ilustrado por Sonhos de Metafísica» e seria muito mais do que uma resenha à obra do autor sueco. Nesse texto, Kant ironicamente critica a posição de Swendenborg acerca da sua ideia de espírito, mais do que a sua interpretação da Bíblia a sua nova versão religiosa, e começa por desmontar a falsa autoridade do conhecimento metafísico. Mais do que a questão religiosa, Kant estava interessado em arrasar o ponto de vista pseudo-metafísico do sueco. Leia-se uma passagem desse texto: «Vive em Estocolmo um certo Swedenborg, cavalheiro de posses, financeiramente independente. Nos últimos vinte anos ou mais tem, palavras suas, se dedicado exclusivamente a cultivar um contacto próximo com os espíritos e com as almas dos mortos, para obter deles informações sobre o outro mundo […] e compõe volumosos volumes dedicados às suas descobertas […] Mas a longa obra de Swedenborg é completamente vazia e não contém uma pequena gota de razão.» E veja-se o que um dos seus biógrafos, Moritz Kronenberg, escreve a respeito deste episódio, nas páginas 161 e 163 de «Kant; Sein Leben und Sein Lehre / [Kant; Vida e Ensino]» (Beck, 1897): «Kant traçou um paralelo surpreendente entre as visões de Swedenborg e as dos metafísicos de seu tempo. Swedenborg acreditava estar tão familiarizado com o além quanto com a sua própria casa. Mas não também isso que acontecia com os filósofos? Kant acreditava estar em posição de explicar esses delírios, os de um pelos dos outros, e assim se livrar de ambos. Kant desprezou tão completamente Swedenborg e os metafísicos contemporâneos, acabando por fazer piada deles […]. Tal tom só é assumido por quem vê seu assunto muito abaixo de si. Assim se considerava Kant em relação aos metafísicos […].» Tudo isto são factos que servem de base a um romance de Anna Scheler, publicado em 2018, «Espanta Espíritos e Outros Males», onde a jovem Anna von Knobloch, estudante de filosofia – e octaneta da senhora Anna Charlotte von Knobloch que trocou correspondência com Kant, a propósito de Swendeborg –, descobre uma longa carta de Kant entre papéis perdidos na casa da avó materna, Charlotte von Knobloch, em que o filósofo alarga a crítica que levara a cabo na revista de Hamann e na correspondência conhecida. É assim que ao longo das duzentas e quinze páginas seguimos não apenas a resenha de Kant aos oito volumes da obra do autor sueco, mas também a carta do filósofo à octavó de Anna von Knobloch e as reflexões desta acerca do nosso tempo e da leitura de Kant. Não estamos perante um romance muito original, mas para além do estimulante contexto histórico, o mais interessante é a forma como a resenha de Kant e a carta ao antepassado de Anna se cruzam com a descrição política dos seus dias, que são os dias em que vivemos. Quase no início da carta lemos estas palavras: «Entregando-se aos seus instintos mais baixos, o homem tem tanta necessidade de dizer mal de alguém quanto de endeusá-lo. Deriva daqui a facilidade com que os homens seguem os fanáticos. E isto é tão válido para os assuntos religiosos quanto políticos ou artísticos. Espero que ao longo da minha resenha o leitor tenha visto que só a razão e o conhecimento podem servir de antídoto para tamanha doença do espírito.» Segundo Anna Scheler, a ideia de escrever este romance veio quando assistia aos noticiários das notícias do Brasil e à eleição de Jair Bolsonaro como presidente do país. Diz a escritora numa entrevista: «Nessa altura estava debruçada no estudo de Kant, particularmente o “Ensaio Sobre as Doenças da Cabeça” – texto de Kant também publicado na revista de Hamann em 1766, em cinco números, em que também critica Swedenborg – quando vejo aquelas notícias, que de imediato se ligaram à eleição de Donald Trump e ao crescimento dos governos autoritários e de partidos de extrema direita. Pensei na necessidade de voltarmos a Kant. Na necessidade de razão que o nosso tempo tem. Nestes tempos sombrios, estamos muito necessitados de voltar a ler Kant, que se bateu pela sanidade humana como poucos filósofos o fizeram.» Independentemente da escritora e professora de antropologia filosófica na Universidade de Berlim poder estar certa ou errada, o que aqui nos traz é o seu romance. E no romance está tudo certo e cristalino. Na sua carta, Kant desmonta a falácia e o fanatismo de Swendenborg, explicando melhor do que na resenha, segundo ele mesmo escreve, ao mesmo tempo que Anna nos mostra a sua perplexidade com este tempo em que vivemos. Escreve Kant na carta: «Quanto mais anódina é uma vida, mais ela sente vontade de pertencer a algo irracional, o que justifica o enorme apreço que o livro do senhor Swendenborg acerca dos espíritos vem tendo. A vida anódina quer acreditar que já foi uma vida destacada no passado e voltará a ser no futuro. E esta aceitação da existência dos espíritos por parte dessas vidas é a prova de que, no fundo, o estar a ser actualmente anódina é um intervalo entre espíritos mais elevados. A sua vida não começou quando nasceu e nem vai terminar quando morrer. Este tempo em que vive é apenas um momento em que espera por voltar a ser um espírito destacado, que ainda não pode saber qual é, como se estivesse à espera da assinatura de um funcionário público na requisição que entregou num departamento do estado.» Depois de nos apresentar esta passagem da carta de Kant, Anna von Knobloch escreve: «Talvez não sejam apenas as vidas anódinas que necessitam de pensar que pertencem a algo que é maior que elas. Talvez estejamos todos a milímetros de resvalar para uma irracionalidade pura, bastando para isso algum contratempo com que não conseguimos lidar. A adesão às teorias da conspiração não é uma forma de pensarmos que de algum modo alguém nos quer fazer mal? E não será isso atribuir-nos uma importância que não temos?» O livro de Anna Scheler leva-nos pelo mundo do iluminismo e seus inimigos, ao mesmo tempo que nos mostra o pensamento humanista de Kant. Mostra também como nos dias de hoje estamos a ficar cada vez mais longe desses ideais. Ou, como ela prefere dizer, através da narradora: «Estamos cada vez mais a ficar longe do que poderia ser o nosso melhor.» Há também passagens hilariantes acerca de alguns livros da moda actual, não apenas de auto-ajuda, mas também extensos romances, colocados ao nível da obra de Swedenborg e que poderiam ser alvo de uma resenha de Kant, mas que não transcrevo aqui para não estragar a surpresa, aquando da vossa leitura.
Sara F. Costa Artes, Letras e IdeiasA lamechice de pensar Quando o treino começa, o líder transmite a obediência regional com as palmas das mãos. Gritos de guerra tornam-se objetos duros pendurados na testa. Os objetos precipitam-se para se tornarem comestíveis. A procura do equilíbrio é a procura do terreno, olhos em forma de guardanapos para limpar o suor, para limpar o esforço físico e polir o ego. Qualquer terreno de visão é comestível quando se trata de alimentar o ego. Quantos hospitais habitam a nossa falta de amor-própio? Os outros têm de morrer e nós temos de sobreviver. Mesmo sabendo que isso é um mero acaso, é-lhes importante fazer disso bandeira. Os homens, duros, homens que se sabem defender, homens-muro onde não entra a lamechice do raciocínio. “É preciso alguém que diga umas verdades” diz um desportista para o outro. “É parar de usar palavras bonitas, é preciso ir-se direto ao assunto”. Homens-muro onde não entra a lamechice do pensamento. “É daqueles gajos que incomoda as mulheres” ou os homens fracos, pessoas com batom vermelho que têm ar de quem lhes deve dinheiro. A ferocidade da falta de propósito, o vazio da rotina, a vontade de outra coisa. Outra coisa qualquer desde que haja contenda. Treinam há anos e nunca estiveram numa guerra. Give me a cause to die for. “Minorias étnicas é conversa de larilas”. Subitamente o desprezo por qualquer demonstração de inteligência. Homens duros onde não entra a lamechice da emoção. Conversa de mulher, muito articulada, à procura de vítimas nas vítimas, com pena dos pobres. Homens-muro onde não entra a lamechice da empatia. “Era pô-los a todos na garagem e vê-los transformarem-se em arco-iris nus”. “Era pô-los no hospital a salivar com as papilas vermelhas e alimentar só a ponta da língua”. Trabalham e outros não trabalham. Queriam a vida de outros mas os outros só podem ter a vida que têm, porque eles não a têm. Porque eles trabalham. Dignidade importada de existir sem estar presente. Centros de treino geridas por totalitarismo patriarcal. As vítimas não são os refugiados de guerra nenhuma. Precisam de atenção. As vítimas roubam-lhes a atenção. E são vítimas de exploração, arbitrariedades e violências. A fome de violência na crise existencial pousada nos sacos de pancada. As vítimas não são os refugiados de guerra nenhuma mas já que insistem, pode-se fazer uma guerra aqui. Se todos os sítios estiverem em guerra, já ninguém foge da guerra. Assim os impostos a serem usados de forma muito mais justa. Em armamento-esforço. O esforço de existir sem causas mas ser-se digno. Correr como quem tem poder. Um dia ouviram falar de interseccionalidades com as feminilidades e fizeram logo duzentas flexões seguidas. Homens que nunca cumprem regras porque são superiores a elas mas acham que a lei é para ser aplicada e a constituição alterada com todas as limpezas de um germofóbico. Libertam-se na atividade bélica porque o único confinamento necessário é o do horizonte. Todo o ódio acumulado numa falsa causa. Afinal, pensar é lamechas e idolatrar um tirano é transformar-se em tirano.
Valério Romão Artes, Letras e IdeiasUma questão darwiniana Um sujeito senta-se para escrever uma crónica depois de uma interrupção de mais de um mês e pensa: deve certamente haver um assunto sobre o qual valha a pena discorrer que não gravite à volta da pandemia e dos seus efeitos. Quase toda a gente escreve diariamente sobre a COVID. Mais do que esclarecer ou ajudar a dissipar a bruma noticiosa na qual navegamos à vista, a multiplicação interminável de opiniões contribui para adensar o ruído e concorre para a confusão instalada. A “Era da informação”, como era gloriosamente apelidado o acontecimento da Internet e da comunicação global em tempo real revelou-se, afinal de contas, a era da confusão, e um sujeito, em vez de ter mais informação disponível e informação de maior qualidade, vê-se pelo contrário a navegar num charco onde a maior parte daquilo que pretende passar por informação é apenas opinião infundada amplificada pelo meio que a veicula. Há apenas uma vintena de anos, o futuro parecia risonho. O século XXI prometia acabar com o cancro e a maior parte das doenças, com a fome ainda escandalosamente instalada nos países mais pobres e até se falava na possibilidade cada vez mais presente de descobrirmos por fim que não estamos sozinhos no universo. Talvez não estejamos tão longe de cumprir alguns dos desígnios a que nos propomos. Talvez o século XXI acabe por ser estupidamente generoso do ponto de vista técnico. Todos os dias milhões de mulheres e de homens trabalham – com meios técnicos cada vez mais sofisticados – para tornar a nossa vida mais fácil, mais prazerosa e menos propensa aos achaques com que a natureza nos presenteia desde sempre. A esperança média de vida aumenta todos os anos. A sobrevida ao cancro, um dos grandes ceifeiros planetários, também. Erradicámos a varíola. A poliomielite. Estamos no caminho certo para desacelerar e, porventura, travar esta pandemia. Nunca tivemos tantos recursos para o fazer. E, no entanto, subsiste – e não tão discretamente assim – uma aura de desesperança que perpassa todos os estratos sociais e aspectos do quotidiano. Durante muito tempo pensei que seria razoável alocar grande parte da responsabilidade pelo estado-de-coisas desanimador na estupidez generalizada e na aridez espiritual de que nenhuma técnica ou artefacto nos consegue aliviar. Por mais tecnicamente competentes que nos tenhamos tornado, cada homem e mulher continua a nascer tão oco como no início dos tempos. Acresce ainda a dificuldade de cada vez haver mais para conhecimento produzido por apreender, digerir e integrar. A educação, no sentido helénico do termo, continua a ser um percurso e uma responsabilidade individual. Pode ser que estejamos tão entretidos com a passagem do tempo e com a necessidade de preencher avidamente cada segundo desse andamento que não prestemos a devida atenção ao vagar, ao silêncio e ao que está mesmo ao nosso lado, a pedir olhos que vejam e mãos que cuidem. A minha tese no entanto, é por um lado mais optimista – no sentido em que isto não será um estado-de-coisas permanente – e mais pessimista – no sentido em que as coisas não melhorarão antes de piorar. Eu acho – sem qualquer fundamento científico que suporte esta tese, mas há ideias demasiado atractivas para não serem partilhadas – que estamos a viver, enquanto humanos, em pelo menos duas velocidades evolutivas diferentes. Parte da humanidade é ainda homo sapiens, o homem moderno cujos fósseis mais antigos foram descobertos em África e datam de há quase trezentos mil anos atrás. Tudo muito bem, o homo sapiens deu-nos as equações newtonianas, a relatividade geral e especial, Bach e o barroco e os antibióticos. Mas talvez já se esteja a esgotar – ou mesmo a regredir – do ponto de vista evolutivo. Outro homem, mais adaptado às circunstâncias deste mundo, delicadamente em equilíbrio entre o espírito e o chip de silício, reclama o seu lugar e, a seu tempo, uma nova classificação. Embora partilhem geografias, língua e cultura, um e outro nãos e entendem. Aquilo que promovem e pretendem, para si e para os outros, é radicalmente distinto. E este acontecimento, este choque evolutivo, não se dissipará sem que uma espécie erradique a outra.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoNo Esmeralda Habitual As águas estavam amenas e no esmeralda habitual, e Jaime matara saudades do Índico, com um prazer que Sara não lhe divisava desde criança. Nem quando um boer descuidado fez roçar a sua prancha de surf pelo ventre de Jaime que se levantava de um mergulho na água, o irmão se prestou a mais do que uma advertência amistosa, coisa impensável no passado. Recordaram até galhofeiramente disputas políticas e as zangas de outrora, macios e reconciliados. Nesta visita de Jaime a Moçambique, a primeira em cinco anos, Jaime, que vinha em negócios e nem trouxera a família, parecia apaziguado e não tecera qualquer crítica ao que lhe era dado contemplar, elogiara até a nova ponte e a estrada para a Ponta do Ouro; também Saul, o seu marido, estava mais descontraído e foi ele quem, no caminho, antecipou aspectos patéticos da governação do país, o que – ao contrário do que acontecia antes – não foi aproveitado por Jaime para desferir o seu azedume e as suas ácidas sentenças políticas sobre os “grunhos” que governavam. Iam a meio da reserva dos elefantes, quando Sara comentou: Elefantes hoje nem vê-los… Lembras-te daquele conto de um tipo do leste, húngaro ou romeno, em que um elefante ascendia no ar da cidade como um balão? Era o Mrozeck, um polaco… – esclareceu Jaime. Pois é, um dia destes é mais fácil vermos um elefante a voar na cidade do que no seu habitat… Está tudo a saque. Já sabes que o dicionário da Real Academia Espanhola acabou de aceitar a expressão «filho da puta» como sinónimo para banqueiro? – perguntou Saul. Ah, essa não sabia mas é muito boa… – anuiu Jaime. Aqui só muda alguma coisa quando aceitarmos que Rapina seja sinónimo de Planeamento… – concluiu o cunhado. O teu marido está muito desempoeirado, brincou Jaime, não fui eu quem o desencaminhou. Não é? – concordava a irmã. Avistavam a tabuleta que assinala Salamanga, Saul repetiu a piada de sempre, Esta miséria só se desenvolve quando passar a chamar-se Salamanca: O que teve a réplica habitual de Sara: Até já têm fábricas de farinha, mudou muito… Saul fez-se à curva descontraídamente. Em sentido contrário, vinham um camião e um fô by fô, a velocidades destemperadas, em despique, mordiam-se na curva. Saul teve de dar uma guinada brusca no volante e sair fora da estrada precipitando-se no barranco. O carro capotou e rolou, três quatro vezes, antes de estacar. Quanto tempo depois despertou Saul? O hematoma na cabeça latejava, mas apalpando-se confirmou: não tinha nada partido. Sara ao seu lado estava inanimada; pressionando com o indicador no pescoço dela encontrou-lhe as batidas cardíacas. Olhou para trás, Jaime não estava dentro do carro, fora cuspido. Saiu do carro e procurou o corpo do cunhado. Jaime, estatelara-se num socalco de brita, quatro metros acima do carro. Estava consciente, embora de respiração ofegante e de olhos contraídos pela dor. Quando lhe perguntou se estava bem, Jaime, com dificuldade, acenou negativamente com o indicador. Que tens? Encostou a sua cabeça à boca de Jaime para o ouvir. Co-lu-na, soletrou este. Foda-se, reagiu Saul, não te mexas, vou chamar a ambulância. E aguenta-te, meu filho da mãe. Selou o pedido com um beijo na testa. Subiu até à estrada. Começavam a chegar os curiosos. Uns metros à frente estava o camião, parado, o tipo do jipe tinha-se escapulido. Saul pediu um cell emprestado e ligou para ao seu amigo Igor, do Hospital do Coração. Depois gritou para os presentes, Ninguém vai lá abaixo, não se pode tocar naquele homem, só os enfermeiros é que o podem transportar, tem um problema na coluna… E encaminhou-se para o camião, abrindo a porta de rompante. Um jovem, não teria mais de vinte anos, chorava desalmadamente, agarrado ao volante, e pedia-lhe perdão. A mulher vinda de nenhures, do avesso de uma mafurreira, transportava à cabeça um saco de carvão. Era magra mas desembaraçada, apesar da idade via-se que subia sem esforço. Atrás dela saltitava um miúdo de cinco, seis, anos que levava uma gaiola de cana com um pássaro de cabeça amarela e peito muito verde. Iam vender para a berma da estrada, ela o carvão, o miúdo o pássaro. Passaram pelo carro virado, examinado por ela num relance, isento de especial curiosidade. O miúdo é que espreitou nas janelas do carro e gritou, Tem uma mulher… mas, ela não abrandou, num gesto mecânico indicou que o caminho era em frente. Só parou no socalco onde Jaime amargava. Este, por entre o novelo da dor, num calafrio, deu conta da mulher e do miúdo. Temeu que quisessem auxiliá-lo e o deslocassem, o que lhe seria fatal. Fez-lhes sinal de que seguissem em frente. Com susto, viu que a mulher pousava o saco de carvão e se inclinava para os seus pés. Temeu o pior. Que fazia ela? Não, tentou articular, a voz embargada. Pediu a Deus que a mulher não o mexesse. O semblante desta era pétreo, despido de emoção. A mulher, vagarosamente, desatou-lhe os atacadores, e centímetro a centímetro, tirou-lhe os sapatos dos pés. Roubava-lhe os sapatos? Jaime com um olho, seguia os gestos delicados daquela operação e com o outro procurava o socorro de Saul, na berma da estrada. Entre ele e a estrada havia de permeio várias moitas, de cima não se veria o que a mulher lhe fazia. Esta, com a mesma mansidão, guardou os seus sapatos no saco de carvão. Jaime olhou o céu e acudiu-lhe à mente a alcunha que a família da mulher ganhara no campo de reeducação, Nobody one, two, nobody three… and so one. Fora assim que aquela velha o tratara, fizera-lhe desaparecer os sapatos sem lhe tocar, como se ele fosse há muito apenas uma moeda perdida na irrelevância da areia. Só lhe podia estar grato.
Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasNatal: uma calamidade desejada Muito se escreveu já sobre a possibilidade de as baleias se suicidarem. Parece que é mesmo pura ilusão desta nossa espécie que é, ao mesmo tempo, a maior predadora do planeta e a única com real vocação suicidária. Antonio Petri, professor da universidade de Cagliari, analisou mais de um milhar de estudos de caso publicados ao longo de quatro décadas e não encontrou quaisquer provas de que os animais, baleias incluídas, praticassem suicídio de um modo consciente. O fenómeno do suicídio colectivo ou, mais exactamente, da arte da entrega ao suicídio colectivo, é exclusivamente humano e não faltam seitas religiosas e narrativas mitológicas para o documentar. É evidente que a vastíssima genealogia das guerras é uma parte seminal deste escol. A ‘Ilíada’ é porventura o texto em que o corpo a corpo na guerra é mais delirantemente colocado a nu, mas sempre com um pano de fundo encantatório. A entrega ao sangue surge naqueles combates de centenas e mais centenas de páginas como o supra-sumo de uma glória maior. Até ao início do século passado, mais concretamente até ao simbólico ano de 1914, era ainda normal a população vir para as ruas saudar e festejar a partida dos soldados para as frentes de guerra. As guerras sempre aconteceram em nome duma aura colectiva, fosse o filtro a graça divina, o que aconteceu durante séculos no mundo pré-moderno, fosse o filtro uma nuvem nacionalista ou ideológica, já no alvor do ocidente moderno. Logo no início de ‘Viagem ao fim da noite’, Céline, com aquela sua ironia e escárnio habituais, focava este ambiente: “Era um nunca mais acabar de ruas e ruas, e dentro delas ainda os civis e as suas mulheres que nos gritavam encorajamentos, que atiravam flores nas esplanadas, em frente das estações de igrejas repletas. Quantos patriotas ali havia!”. Em Portugal, antes de a primeira grande guerra mundial se iniciar, Jaime Cortesão também apelou profeticamente à grande batalha com argumentos “civilizacionais” a par da “livre e democrática” Inglaterra e em nome da “grande, bela e generosa” França e contra a Alemanha “imperialista e militarista” e a Áustria “católica e déspota”. Apontando no mesmo sentido, Augusto Casimiro evocava “dois princípios hostis: a liberdade generosa e a força tirânica”. Teixeira de Pascoaes, referindo a antiga aliança anglo-portuguesa, escrevia que o “passado vela pelo futuro” e concluía que a sorte da Inglaterra e da França seria sempre a sorte de Portugal. Teófilo Braga temia, pelo seu lado, a perda da “ocidentalidade”, enquanto alicerce do equilíbrio europeu. Raul Proença apelou mesmo à “mobilização moral dos portugueses” com o objectivo de se criar um “nexo patriótico” que sustentasse a campanha portuguesa na guerra. Por fim, Leonardo Coimbra via a guerra como o “esforço transcendente das forças espirituais” contra “a vertigem materialista do mundo moderno”*. Enfim, a intelectualidade portuguesa estabelecida teria a consciência dos efeitos de todos estes apelos e sentava-se tranquilamente no palanque que Céline descreveu no seu mítico romance, mas, apesar disso, a história acabou por falar mais alto. E sabe-se bem como. Esta tendência de entrega generalizada ao sacrifício (ou mesmo ao suicídio) nem sempre se revestiu de uma aura bélica. Há uma longuíssima história sobretudo de rituais que fazem jus a esta atracção colectiva pelo que diríamos ser de calamidade própria. Joana Guimarães, num ensaio sobre suicídios colectivos, referiu a abundância do tema na mitologia grega (é o caso, entre outros, de Praxítea, Aglauro, Alciónidas, Cicno, Híades, das filhas de Erecteu e de Cécrops ou das companheiras de Erígone)*. Poderíamos juntar a este caudal, entre muitíssimos outros e com a devida diversidade, as tradições dos sacrifícios astekas, o haraquiri nipónico ou mesmo os estranhos acontecimentos de Jonestown em 1978. Se todos estes casos surgem como exóticos, datados ou próprios de um alhures (situados no território do ‘outro’, isto é, fazendo parte daquilo que nós ‘não’ somos), pode crer, caro leitor, que existem casos deste teor que se passam connosco, mesmo na nossa frente e com um golpe de asa tão translúcido – e tido como normal – que quase passam incólumes ou invisíveis. Foi o caso da estratégia do governo português para a pandemia, tal como foi delineada no início do outono passado e que foi secundada por todos (repito: todos) os partidos políticos existentes no país. Fiquei estupefacto, quando, em Outubro passado, o PM e o ministro da economia, cada um à sua maneira, apareceram nas televisões a dizer que a estratégia anti-pandémica do governo passava por “salvar o natal”, sabendo-se que estávamos à distância de pouco mais de um semestre para que o processo de vacinação começasse a produzir alguns efeitos. Cálculos matemáticos publicados pouco depois disso referiam um desmedido número de mortos e um grande número de infectados, caso se optasse por não anunciar medidas restritivas no natal. Unânimes e conscientes do sacrifício colectivo, a medida de ‘liberalização’ avançou. É evidente que tudo o que agora está a acontecer em Portugal tem essa estranhíssima decisão como fonte primeira. Em vez de se convidar o povo a festejar (criativamente) o natal em Junho ou em Julho de 2021, o peso pesado do ritual foi de tal monta que agora bastar-nos-á infelizmente contar os mortos, fazer um confinamento redobrado – que meio mundo está a levar a brincar – e observar as misérias e as falências em série e em catadupa que se esperam. Tudo podia ter sido evitado, se não fosse essa bizarra obsessão chamada natal. Talvez seja exagerado dizer que se tratou de um verdadeiro crime, pois os humanos, como se viu, estão talhados para este tipo de arte da entrega ao sacrifício colectivo. Valha-nos, pois, o ouro muito escuro – escuríssimo – desse saber que dá pelo nome de antropologia. *Castro Leal, E. ‘Narrativas e Imaginários da 1º grande guerra – O Soldado-Saudade português nos nevoeiros de morte’ em ‘Revista de História das Ideias’, Coimbra, 2000, p. 445. *Guimarães, Joana. Suicídio mítico: uma luz sobre a antiguidade clássica. Publicado por: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos; Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/2325 (acesso: 14-Jan-2021 18:42:12)
João Paulo Cotrim Artes, Letras e IdeiasConta-fios Horta Seca, Lisboa, sexta, 8 Janeiro Não sei bem o que pensar sobre o assunto. O encontro do editor com o autor começa sempre por um texto, mas a expectativa está em que o autor entre nesta casa para a habitar. «Nós não somos do século d’inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século d’inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.» Custa-me trazer para o assunto a palavra trabalho, uma palavralha, mas disso se trata, além dos textos e das suas potencialidades, interessam-me trabalhar com autores para nasçam criações que seriam diferentes sem esse encontro. Daqui mais se poderia desdobrar, assim escadote extensível. Nisto me afasto dos caçadores de tesouros que por aí proliferam. Terão o seu lugar no ecossistema literário, claro, mas procuro outras madrugadas. Uma inesgotável produtividade somada à ânsia de ver papel impresso, faz com que as gavetas transbordem para todas as chancelas e mais uma. Na poesia não há lugares, está visto. E um logótipo pouco mais é. Enfim, o Herberto sofreu ao ler nas suas capas Porto Editora na vez de Assírio & Alvim, mas o homem era excepção. O mais curioso, digamos à falta de melhor palavra, acontece quando a justificação assenta no facto de a abysmo ser editora de casos difíceis. Aqui te deixo este objecto desafiante, mas vou ali publicar o habitual. Depósito de complicações, não me parece mal como apresentação. Não sei bem o que pensar, mas tomo nota da perturbação que estes trânsitos me causam. Talvez seja natural, por estes dias de fragmento e ruína, atirar tijolos o mais depressa possível a quantas janelas se possa. Janelas Verdes, Lisboa, domingo, 10 Janeiro Está um frio como há muito não se via. E uma luz como há muito não a sentia. As manhãs são mais esplendorosas nesta colina expectante, comentando à vez com o Tejo as passagens, do tempo e das mercadorias, as diferentes velocidades, a rima dos degraus de uma escadaria ignorada pelos nossos filmes e as solipas de uma linha férrea que desenha este contorno com que o oceano beija a cidade. Este museu não podia ter escolhido melhor porto para atracar. Fujo das famílias deliciadas com o sangue que brota do «encontro» das civilizações e vou ao encontro do Simão [Palmeirim] na Sala do Tecto Pintado, para me emaranhar com ele no Almada que pensa. O original que se mostra é o pensamento, o resto são maquetas, uma exposição de reversos, da carpintaria que sustenta a arte. (Minto, há dois originais absolutamente fascinantes, de tal modo que hesito no rumo do texto. O gozo que me dá este titubear…) Fiquemos, por ora, com o «retábulo imaginado para o Mosteiro da Batalha». A história de «Almada Negreiros e os painéis» tem as facetas de diamante, mais perspectivas que prisma, e, se nos metermos com ela pelos becos da vida e da morte, nuances de roman noir. Três putos e um século na casa dos vinte entram no museu e, perante, meia dúzia de velhas tábuas fazem uma aposta: estudá-las, autopsiá-las, enfim, fazê-las suas. Amadeo de Souza Cardoso e Guilherme de Santa Rita acabaram não tendo tempo. Almada usou o dele para decifrar o enigma da criação artística. Enquanto a praticava. A vanguarda rasgava épocas para descobrir raízes nos primitivos. O estudo enquanto duradoira obsessão. Fora isto policial e tratava de disparar sobre esta moralidade que agora assomou. O caro António [Valdemar] reconta bem os meandros, que, aliás, o envolvem, no catálogo. A entrada no debate de lava da nossa historiografia da arte nasce de pormenor, o chão que as figuras pisam. Se aplicada lógica geométrica, o movimento das circunferências e dos triângulos haveriam de nos levar longe, a certa capela de mosteiro onde encaixar aquelas personagens e várias outras, em narrativa que, ainda por cima, poria no centro aquele perturbador e irradiante Ecce Homo. Quando, no fim da vida, ergue o painel Começar, à volta do qual construíram a Gulbenkian, Almada confirmava o eterno retorno: a sua vida estava toda ela cheia de inícios, de invenções de Dias Claros. «Há palavras que fazem bater mais depressa o coração – todas as palavras – umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os logares e as posições das palavras. Segundo o lado d’onde se ouvem – do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol./ Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo./ As palavras querem estar nos seus logares!» Eis-me aqui basbaque a mirar os bastidores de uma ideia. Só que estes esboços, com reproduções fotográficas à escala, montados em madeira e depois percorridos por fios de várias cores são ainda, além de ferramenta, obra em si. Vibrante. Atravesso o corredor feito de passagens entre as salas até ao Tiepolo, saudei o general do mar (se tivesse que ser general queria ser do mar, só para cavalgar a revolta das ondas) e dei-lhe costas para vislumbrar a maravilhosa cama-de-gato que Almada aplicou sobre os painéis para descobrir as mais insuspeitas relações, entre números e gestos da geometria, entre objectos de nada e posições de mão. Chamou-lhe com delícia «estudo em fio», como deveriam ser todos, e pouco importa agora que seja mapa de descoberta. O encantamento não pára um instante e chama-nos de longe, fazendo-nos atravessar poses e afirmações, lugares, palácios e paisagens, nuvens e pesadelos, esperanças e demónios, seres das mais geométricas carnes e formas pensantes ou não, evocações e narrativas. Vem, parece dizer a estrela sob o tecto pintado, que aqui se oferece a vera explicação de tudo. Pega nos números e arrisca dar esses passos de funâmbulo sobre cada um dos fios. Este caminho há-de ser diagonal sobre plano. «Há systemas para todas as coisas que nos ajudam a saber amar, só não há systemas para saber amar!» Esta exposição está ligada por um fio a outra, na Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, de igual composta pela mão conhecedora do Simão. Estas curadorias são também elas performance. Ainda está para uns meses, mas não sei se a pandemia me permitirá ir lá pôr os olhos. Entretanto, antes de regressar à luz ajoelho perante o Ecce Homo, agora a ignição do estudo a linha do Almada. Voltarei. Alecrim, Lisboa, quarta, 13 Janeiro O Bernardo [Trindade] resolveu mudar de pele e encerrar, 44 anos volvidos, o 44 da Rua do Alecrim. Cidade que perde faróis desta altitude arrisca naufragar, quebrando casco nos penhascos da desmemória, da ignorância, da cegueira. Vezes sem conta fui espectador. Da luxúria que se arrumava nas estantes e nos recantos, nas gavetas e na memória narradora do senhor da casa. Livros em toda a sua extensão, de capa encerada a guarda colorida, desdobráveis e ilustrações, cunhos a ouro e compartimentos secretos, incunábulos e uma floresta cerrada e luminosa de tipografia. E depois mapas, pautas, cartazes, dedicatórias, cartas, bilhetes, fotografias, documentos fulgurantes, restos de nada, pequenas esculturas e largas pinturas. Do jogo de sedução entre aquele que anseia e o seu procurador. Entendi os modos como um negócio pode ser elevado a bela arte, com elegância e extrema generosidade. E humor. Aqui se misturavam os tempos em dança vertiginosa de alegria e descoberta, a de certos rostos à vista do objecto do desejo. Vezes sem conta fui espectador da vida nesta loja onde ela brotava que nem fonte. Esta noite vi ainda a tristeza ser tratada como deve ser. E depois, Bernardo, está nos livros, que o aprenderam das velhas voltas do mundo: a cada noite sucede um dia.
Nuno Miguel Guedes Artes, Letras e IdeiasCarta de separação a um lugar e mais Em 29 de Outubro de 1953 o extraordinário cronista brasileiro Paulo Mendes Campos escrevia mais uma das suas jóias do quotidiano, desta vez virada para dentro. A crónica chama-se (Carta de separação à garrafa de uísque) – assim mesmo, entre parêntesis – e o título é auto-explicativo. Com humor mas também com alguma nostalgia o autor despede-se da sua bebida preferida, que tantas vezes lhe fez companhia – até que essa companhia tomou conta dele. A separação era inevitável, para que ambos sobrevivessem. A princípio não percebi porque é que este texto me veio à memória. É certo que o conheço de trás para a frente e aconselho os leitores a procurarem-no. Mas depois de fazer de detective de mim próprio durante algum tempo cheguei à causa da coisa. Elementar, meu caro Guedes: estou prestes, também eu, a enfrentar uma separação. Nada que tenha a ver com amores, amigos, países ou dependências. Não: tem a ver com um lugar e nesse lugar existem pessoas. É esta separação que mesmo não sendo definitiva – poderei sempre regressar a lugares onde fui feliz – me remeteu para o humor terno da crónica de Mendes Campos. Despeço-me então do lugar onde vivo, pronto que estou para rumar a outras geografias que são felizmente desejadas. Escrevo para me despedir de um lugar lindo, no coração da cidade que mais amo no mundo, com vista próxima para o azul-lisboa e tudo o que sob esse milagre existe. Mas sobretudo a separação aqui é do bairro feito gente, à escala humana. Escrevo para me despedir do senhor Manuel, do Carlos ou do épico mau humor do senhor Sebastião do café que eu frequentava e que ao recomendar o prato do dia não se abstinha de comentar: “Eu não gosto como eles fazem mas se quiser é bom…”. Separo-me do senhor Manuel, cozinhando sempre de boné e da sua mulher, a Dona Carmo, casal proprietário e resistente do restaurante onde tantas vezes fui o único cliente e onde, quando isso não acontecia, tive o prazer de discutir tudo e mais alguma coisa com os nativos do bairro. Ou seja: pertencer, pertencer-lhes. Despeço-me dos miúdos da escola municipal número 1, cujo chilrear me entrava pela janela e tantas vezes me deu forças para enfrentar os dias. Digo adeus a esta rua íngreme com frutarias, armazéns de revenda, floristas, cafés onde se joga à moeda, com quatro ou cinco nacionalidades por metro quadrado. Lisboa vive, sem folclore e assumindo sem problemas a sua raiz mestiça, esfarrapada mas digna, capaz de a qualquer momento sair de casa na sua mais deslumbrante roupa só porque sim. Escrevo esta carta de separação um pouco triste mas com a certeza de que irei regressar. Porque de facto é de mim que me separo, do pedaço da minha vida que fica agarrado a esta calçada, a estas vozes, a estes sorrisos. Sei que me esperam outras aventuras e rostos amigáveis. Mas seremos sempre Ítacas de nós próprios e francamente não quero escapar a esse destino. Não é adeus, é até já.
Anabela Canas Artes, Letras e Ideias CartografiasSentinela O tecto da minha rua abre para a noite do céu. E os telhados esgueiram-se compreensivos. Sobram os rostos de obscuridade suave dos prédios. Os cílios fechados, a respiração calma de quem dorme. Um cântico mais alto, à hora marcada. Desvia-me para a janela os olhos presos num beco das palavras. As que se adivinham sem saída. Na sua urbanização própria e atávica. Camisas-de-forças na cidade. Já não há ninguém que sonha ou projecta becos. Senão os poetas. Mas gosto desta ilusão de que tudo lhes fora possível. Querendo. E gosto de pensar nas palavras, porque elas têm uma narrativa própria nos meus dias. A sua. Como parentes ruidosos que me dão que pensar. Uma rua com princípio e fim, o que significa, numa rua, um caminho aberto dentro da cidade. Está um olhar fino na noite. Daqueles a que não se resiste nem camuflamos em fuga. Com tantas máscaras nos olhos. A lua estreita como um estilete de luz curva. A rasgar o escuro da noite. Cortante e invencível luz. Aqui, no planeta redondo faz-se-lhe sombra quanto se pode nesta contra-dança do sistema que nos une. Baixo os óculos e vejo uma curvatura diferente. Como nos ilude. O olhar. E se corrige, este, nesta esquiva noção de realidade. Mas, neste caso, um simples pormenor de forma subtilmente diferente. Depois desce e desaparece. Mas, entretanto, fico aqui sentada. E enquanto dura, aproveito para não pensar em mais nada. Pensar porque é apaziguante esta visita diária pela noite. Porque é sempre. Porque é o universo grande a fazer-se visível na sua inesgotável permanência, por agora. Como se os animais não estivessem a extinguir-se em massa, tristes com o mundo e incapazes de se adaptar. Só nós nos adaptamos a tudo, da comida má à má educação. Confeitarias, luvarias, retroseiros e livreiros que fecham as portas. Lojas bonitas de coisas bonitas sem tempo para modas. Enquanto o mau gosto se expande e o souvenir se difunde. E estenderíamos a mão para ela e para a levar para casa. Só para nós. Ainda bem que não podemos. E nos basta olhar. Mas só porque não podemos, se calhar. Depois apetece dizer porque sinto calma porque sinto paz. Não sabendo eu o que o dia amanhã me traz. Encosto-me à varanda a ouvir nada. Sinto um vento de través. Como se firme impotente e constante estivesse afinal de mãos fincadas numa amurada, num convés. Depois, mas só a fingir que depois e não no dia de ontem, vou à varanda, de novo. Mas não há lua e se não há lua é porque não reparo. E as coisas, é como se não existissem se não as vemos e não as pensamos. Noite serena e bairro recolhido, não fosse o prédio ao lado e gente na varanda ali em baixo. Gritos e risos histriónicos, palavras soltas e gritos e gritos e risos, que vinham de um aquém do corpo, das vísceras, do ventre ou do que quer que algumas pessoas tenham para lá da pele e antes do abismo da alma. De fugir. Elas ao abismo e nós a elas. Música estridente, noite feita, a cortar a harmonia sossegada do bairro, gritos, palavras numa outra língua, longe da terra e de vizinhos exigentes. Vêm para aqui. Encerrar-se numa casa impessoal e fender a noite dos outros que não conhecem nem imaginam nem sentem. Os outros, por detrás dos olhos fechados, das casas a dormir, as melopeias que são precisas. Os silêncios. As vozes pequenas dentro do invólucro privado. Invadido. Como se estes não existissem. Ou eles. Penso se sabem que existem e perturbam ou terão muito medo de não serem nada. Do vazio. Parecem movidos a um pavor catártico. Talvez gritem para terem a certeza. Talvez tenham medo. Da cidade adormecida e serena como de um bicho manso. Como dorme e como está calma. Talvez tenham medo de si próprias, estas vozes incontidas e indiferentes. A fugir de quê e com que luminosidade ao fundo da rua para olhares cegos pelos gritos? Para outros ficou assim uma noite sem luar, a olhar para baixo. A sentir o arrepio da agressão. À cidade acolhedora, de bolhas da cidade, como de um cão que se volta ao dono. E a querer pôr as mãos geladas nos ouvidos, escancarar a boca e depois um grito – de Munch – surdo para sempre. Experimento búzios e a sua memória da voz do oceano e experimento esponjas marinhas, corações esponja, ouvidos esponja. Sem sistema circulatório e sem sistema nervoso. Por isso não se enervam nem irritam. Sésseis, simples amigos do silêncio porque nem este os perturba nem o ruído excessivo lhes faz impressão. Simples, como são, simplesmente filtram. Depois volto para dentro. O fundo da casa, como um beco. Em busca do banho quente, do paraíso ou de uma biblioteca, para onde fugir, o que para Borges seria o mesmo. Ou coisas para pensar. Uma dança – o olhar, uma dança – feita do gesto contido de uma única mão. Cerrada como rosto e sem tocar. Firmemente abraçada a um lápis macio. A uma caneta Bic. Bic cristal como antigamente. E cristalina volta a ser a noite, como lúcida é a deslocação de um par de amantes, como uma linha da vida no espaço. De uma mão. A abrir como à flor abrupta uma manhã se expõe. Pétalas em gesto. Inexorável gesto. De abrir. A mão. E dar, como uma flor. E tudo a propósito daquele quadro. Volto sempre a ele passados tantos anos. Já volto… Porque hoje há silêncio.
Paulo José Miranda Artes, Letras e IdeiasA vida é outra Quando o escritor catalão, Alfredo Mendizabal, escreveu o ensaio «A Vida É Outra», onde nos mostra que a vida humana depende da ficção, não poderia prever que o livro se tornasse um best-seller. Numa entrevista polémica dada ao jornal madrileno El País, disse: «Nunca ambicionei escrever um livro que fosse um sucesso de vendas. Tudo isto é um tremendo disparate. Estou em crer que aconteceu apenas porque as pessoas estão descontentes consigo mesmas. Ou então não entenderam nada do que escrevi.» Adiante, nessa mesma entrevista, diz: «É evidente que o livro é irónico. […] E quero acreditar que as pessoas têm bem presente a ironia, mas o que vejo no dia-a-dia impede-me de dar esse passo.» Estas palavras podem levar a pensar que o escritor desprezava não apenas o sucesso, mas também os seus leitores. E de algum modo isso não deixa de ser verdade. Mas passemos ao livro. «A Vida É Outra» começa assim: «Uma vida em si mesma não tem interesse para outra vida. Uma vida só tem interesse para outra vida numa ficção, numa construção. Quem nunca se viu a si mesmo a não dar a importância a outrem? O que é um outro? O que é alguém? A vida de outrem só tem interesse a partir da minha vida concreta, do meu sujeito concreto, da construção que faço. A vida precisa de foco, de enfoque, de uma ficção.» Logo desde o início, Mendizabal conecta vida e ficção. Mas rapidamente o livro chega à sua tese mais radical: a de que a vida humana depende da ficção. É a ficção que concede realidade à vida humana e não o contrário. Leia-se: «Aquele ali é alguém de quem gosto, por esta e por aquela razão, mais nada. Razões que eu atribuo. E sem essa subjectividade o outro é uma pedra. O “não matarás”, essa construção máxima do humano, é a tentativa de ultrapassagem da necessidade do subjectivo, porque, no fundo, sabemos desde sempre que os humanos não podem depender dos humanos. A humanidade não pode depender de algo tão frágil como a subjectividade. A subjectividade precisa de algo mais, de um “a mais” que o humano em si mesmo não tem. A vida humana depende da ficção.» Ao longo do livro defende também que a razão de cada vez nos interessarmos menos pela leitura ficcional, em detrimento de outras, deriva do facto da escrita ficcional actual – principalmente o romance – nos mostrar muito claramente esta nossa condição de ficção e isso não agradar ao leitor. O leitor preferia ficar a assistir à ficção a desenrolar-se como se fosse fora de si e não parte dele mesmo. Antes da publicação do livro que se tornou best-seller, Alfredo Mendizabal escrevera apenas 3 livros, embora todos claramente provocadores: «A Merda dos Outros», «A Política e os Porcos» e «Tudo Puta». No primeiro, partindo da célebre frase retirada da peça de teatro de Jean-Paul Sartre, «Entre Quatro Paredes», «O inferno são os outros», tece um irónico comentário acerca das massas, principalmente nas redes socias e nas caixas de comentários dos jornais. Escreve: «As nossas quatro paredes, o nosso inferno é o rectângulo do computador. Podíamos escolher espreitar sites onde pudéssemos aprender a limpar-nos, mas escolhemos espreitar sites onde nos sujar. Poderíamos escolher escrever palavras belas, elogiosas ou edificantes sobre os outros, mas preferimos escrever o contrário de tudo isso. E, na maioria das vezes que escrevemos palavras elogiosas, elas enojam. Porque não representam uma atenção verdadeira acerca do que se está a escrever. Só a atenção pode conferir autenticidade ao que se escreve sobre outrem.» No segundo, um ensaio politico-literário acerca de «Animal Farm» de George Orwell, estabelece uma relação entre os políticos actuais e os porcos, onde estes já não são os piores, pois são manietados por aqueles que têm dinheiro, os humanos, numa clara alusão às multi-nacionais e aos multi-milionários que decidem sobre os destinos do mundo. Leia-se uma passagem: «Os porcos governam a quinta, mas sob as ordens obscuras dos humanos. Não de todos, apenas daqueles que têm dinheiro suficiente para comprar porcos.» Por fim, em «Tudo Puta», estabelece uma relação entre a humanidade e a prostituição. Escreve: «Puta e prostituta é igual. Dizer puta ou prostituta, pelo menos aqui no meu texto, é o mesmo. Fora dele não quero saber. Puta é quem vende o seu corpo. E com esta venda surgiu a ideia mais perigosa do universo: a ideia de alma. Ao fazermos com que o corpo não fossemos nós, mas uma propriedade, tivemos de arranjar algo em nós que nos conferisse a identidade. Vem deste princípio, princípio de puta, a queda da humanidade.» Ora, como é bem de ver, são títulos e livros que muito dificilmente chegariam a best-sellers e nem isso passava pela cabeça do escritor. Assim, quando «A Vida É Outra» chega à vigésima primeira edição, o escritor sente-se traído. Como ele mesmo diz na entrevista ao El País: «Os cabrões [os leitores] vingaram-se. Esfregaram-me o dinheiro nas ventas, como se me dissessem: “agora vê lá se te calas!” E têm razão. Resta-me calar.» A verdade é que, desde 2012, altura da primeira edição de «A Vida É Outra», nunca mais publicou nada.
Duarte Drumond Braga Artes, Letras e Ideias Crónico OrienteA Egiptomania em Portugal Um caso curioso dentre as febres de fim de século é o da egiptomania, que a Portugal também se dignou chegar. E não falamos de reproduções de estranhos monumentos junto aos Jerónimos, ou de maquilhagens bizarras, mas de poesia. No Egipto dos modernistas portugueses, as pirâmides, a esfinge e restante bric-a-brac imagético são sinais de uma ambiência hierática, rara, ritualística, e não apenas puramente exótica. Para exótico, qualquer Java ou qualquer Algarve serviria. Só o Egipto parece dar ao poema aquele misterioso timbre de sarcófago mental; envolvê-lo numa certa ambiência, tornando abstrato o que é concreto e concreto o que é abstrato. O terceiro poema da série «Chuva Oblíqua», do Pessoa ortónimo, reflete essa construção de um ambiente misterioso em pleno surto vanguardista. O Egipto atravessa o próprio ato de escrita do poema: “A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/ Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente/ E ao canto do papel erguem-se as pirâmides… (…)/ Ouço a Esfinge rir por dentro/ O som da minha pena a correr no papel…/ Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme”. Muito longe de qualquer descritivismo do país dos faraós, há aqui um mistério no ato de escrita que só o Egipto permite cifrar. Em Alfredo Guisado, um galego republicano da baixa de Lisboa, a atração pelo mistério redundou num travestismo metafísico junto às pirâmides, no terceiro poema da série «As Exéquias da Princesa»: “Meu Corpo é um Egipto de Saudade. /Mênfis a minha Alma. Meus sentidos/Pirâmides na minha antiguidade./ Meus seios são lagoas sempre cheias./ Múmias de reis meus olhos doloridos /E Nilos de desejos minhas veias.” É curioso que este poeta-princesa pouco se quis prolongar para além dos tempos da Vanguarda. Guisado calou-se por volta de 1918, reunindo apenas uns versinhos galegos. Ficaram só estas estranhas pirâmides do seu corpo metamorfoseado em país, e só elas conseguem simbolizar aquela misteriosa indefinição de um corpo. Já Ângelo de Lima, triste cativo vário de hospitais psiquiátricos, Pessoa juntou-o ao grupo da revista Orfeu para o seu segundo número, aumentando o escândalo. As geografias orientais de Ângelo vão além do Nilo, chegando até ao Rio Amarelo, mas é junto ao primeiro que a sacerdotisa e rainha Neitha-Kri entoa o seu próprio louvor: “Sou a Grande Rainha Neitha-Kri… /Sou Devota da Noute Pensadora…/ E Neith é grande, pelos Céus Senhora… / E eu, Sua Filha, Sou Nofrei-Ari!…”. Aqui não se trata do mistério da escrita ou do corpo, mas da reconstituição de uma liturgia perdida de uma religião mistérica ou esotérica, que o poema procura simular para isso recriando a própria língua portuguesa com palavras e expressões anómalas. O último exemplo é Luís de Montalvor, poeta órfico pouco conhecido, conquanto dinamizador de Orfeu, que se afogou com toda a família num carro que foi parar ao Tejo, uma espécie de Nilo lisboeta. Montalvor dirigiu a famosa coleção de poesia da Ática e verdade é que a sua obra poética, quase desconhecida, é-o sobretudo por ser muitíssimo parca, onde contudo se encontra a fantasia oriental «Dromedário», com elementos que citam condensadamente a temática da viagem ao Levante, mais do que precisamente ao Egipto: “Verdade ou sonho? Que importa/ ao morto olhar o rumo incerto)?/Eu sigo o sonho (e cismando!)/do dromedário pisando/silêncios do meu deserto…” Trata-se dum cenário reduzido a dados puramente simbólicos que remetem para uma paisagem essencialmente interior. O Egipto, como se vê, forneceu bons materiais para um hieratismo e um culto do Mistério que interessava aos poetas modernistas portugueses. Em síntese, é sobretudo um clima imagético e simbólico, por vezes puramente textual, como em Pessoa, que a partir dele se desenha.
Rosa Coutinho Cabral Artes, Letras e Ideias Teorias do CéuO flâneur, conto1 “Ce quelque chose q’on nous permetra d’appeler modernité” Baudelaire Moro em Baudelaire e gostava de dizer que nasci lá – naquele reino que me enche de comoção – mas nasci noutro lugar que não quero revelar para já. O que urge agora é ser o habitante daquela cidade parida num acto de escrita, e largar o meu corpo no passeio bouleversant das suas palavras, autênticas pontadas de civilização no meu coração nu, sangue de uma nova espécie de humanos: o flâneur que deambula sem profissão nem destino entre boulevards, quartiers, passages subtis e mergulhar “na multidão como um imenso reservatório de electricidade”. E a multidão, como ouvi em Benjamin, “é o véu flutuante através do qual Baudelaire vê Paris”. Ando e desando na cidade e, como numa atracção melíflua, vou sempre parar a Les fleurs du mal – bairro de Baudelaire onde me tenho embebedado, drogado e feito amor com a multidão, desposando-a em cada visita. A cidade é o espaço em que me quero mover para extrair a matéria prima que me interessa: o eterno do transitório na grande fábrica de choques que rege a cidade moderna na “realização do antigo sonho do labirinto” que o flâneur persegue, segundo também encontrei em Benjamin. Benjamin é também uma cidade que visito com frequência, guiada pela minha carta-do-mundo. Nas últimas décadas foram escavadas importantes ruínas cartográficas, lugares de baldaquinos, cartografias e Globos Terrestres na cidade de Sloterdijk – topos deslumbrante mas muito inquieto! Bem sei que parece impossível, mas nem sempre as cidades mantêm as mesmas coordenadas. À frente destes olhos que o tempo há-de guardar, o mapa entra em mutação, como uma aranha desandasse a sua teia, e leva a cidade de Sloterdijk para perto de Marx, cidade incontornavelmente moderna. Mas o território representado no mapa não pára de se transformar e arrepia-se que nem uma serpente, insinuando-se nas cercanias de Kant, zona montanhosa e tradicional. E, não fica por aí, pois já a vi saltar para a frente da sombria cidade de Foucault ou mudar-se provisoriamente para a Ásia… mas isso fica para um conto a propósito de cidades-móveis que terei todo o gosto de vos falar quando chegarmos a Borges, a cidade de todos os Alephs, esferas mágicas, labirintos, bibliotecas encantadas, infinitudes que se concentram num só ponto. Tenho uma absoluta consciência que a minha carta de orientação pode ser uma constelação: aquilo que pertence ao tempo, aquilo que se move, aquilo que está mas que não vemos sempre, aquilo que a luz obscura nos mostra e que podemos ligar a nosso bel prazer, dando nascimento às rotas que nos constituem no caminho. E sigo pela minha viagem. Agora o que interessa é a minha visita a Baudelaire, uma cidade “crispé comme un extravagante”, “éprise du plaisir jusqu’ à l’atrocité”, “beugle”, e “hurle”. Senti-me como “un poète sinistre, ennemi des familles, favori de l’enfer” na maldição poética de Baudelaire. Finalmente instalei-me no Hotel dos Mortos, entre românticos e modernos. Como no Homem da Multidão de Edgar Alan Poe, eu ofereço-me como narradora desta aventura. Neste conto anormal das teorias do céu, o narrador é uma versão longínqua do flâneur, natural de Baudelaire. Neste conto sigo o olhar do flâneur que captura a paisagem num estado de distracção, ou melhor, “embriaguez anamnésica”, vagueando no presente à procura de “aventuras horríveis, raras, através das capitais”, glorificando a vagabundagem. Afinal ando à nora, entre informações disfuncionais. A minha rede de informações em Baudelaire leva-me a tantas outras cidades enterradas dentro dela, que fico tonta. A cidade subterrânea, escapista, as sensações multiplicadas com excesso e intensidade nos bairros de Mon coeur mis à nu, do Pintor da Vida Moderna, nos Tableaux Parisiens, inquietam-me. Como qualquer criminoso, percorri o submundo da técnica moderna das fábricas, dos filmes, e aspirei a dissolução da experiência certa que ser consciente do meu próprio tempo é fundamental. Certa que quase “toda a nossa originalidade vem da marca que o tempo imprime nas nossas sensações.” Posso gritar Eu sou o Outro! O Outro sou eu!! Como um poeta da revolução que abre trincheiras e caminhos secretos para as cidades de Rimbaud e Pessoa. Que sarilho – sinto-me como un Bateau Ivre, um soldado em fuga com uma malinha pequenina e castanha de couro da Suécia, onde guardo dois preciosos materiais: a aura e a experiência, por isso sou o narrador deste conto sobre cidades que nasceram no grande continente da Poesia rodeados do mar da literatura. Voo para o Oriente. Aterro em Pessanha porque tenho esta incrível faculdade de conhecer as senhas de passagem entre cidades, como se fossem bilhetes de ida-e-volta para lugar nenhum. Apenas a viagem me alicia. Pessanha é uma cidade fin de siècle, acertada com o zeitgeist do seu tempo e, coisa rara, com a inteligenzia europeia. Nela reverberam outras cidades, a ocidente do oriente, neste caso, como Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Verlaine… Movi-me como um flâneur entre uma multidão de palavras moventes, álgidas, imagens fugidias, voláteis, instantâneas, fantasmagóricas. Exalo o ópio, o absinto talvez, mas sobretudo aquele bairro de tempo que se chama Clepsidra. Detive-me lá como se eu, a narradora, encarnasse um destino adivinhado a pairar sobre Macau. arando em um montão de estrelas a topografia poética das palavras daquela cidade-móvel que se exilou a oriente do oriente. Nas suas ruas e tabernas embebedo-me com lágrimas e fragmentos de palavras ouvidas na cidade e misturando-as no meu choro: Ai meu coração volta para trás, nas róseas unhinhas, dentinhos, conchas e pedrinhas de um mar em sofrimento, derramado dos olhos mortos dos soldados e guardado no pranto do mundo! “Foi no entanto que choramos a dor de cada um… E o vinho em que choraste era comum: Tivemos que beber no mesmo pranto.” Camilo Pessanha
Luís Carmelo Artes, Letras e IdeiasA liberdade problemática Lembro-me sempre de Sebald, quando se fala da necessidade de esquecer a história de um modo intencional e compulsivo. Foi o que a Alemanha fez após a segunda grande guerra mundial. No fundo, é o que todas as narrativas fazem ao deixarem de lado o que não interessa a cada presente que as lê. Os nacionalismos e os colonialismos de todo o tipo – e de todos os tempos – sempre trabalharam desse modo. Se o esquecimento compulsivo pode atrair a ordem e uma coerência artificial dos factos, não deixa de ser verdade que o oposto – o esquecimento não compulsivo – atrai muitas vezes o acaso. A razão é simples: se o esquecimento não compulsivo está relacionado com uma quebra de continuidade e de controlo, o acaso, por seu lado, dá-se bem com saltos improváveis a que a realidade por vezes se reduz assim que a bússola e a mão de comando se dissipam. O par ‘esquecimento não compulsivo’ vs. ‘acaso’ é um tema maior do nosso tempo e pode ser verificado todos os dias na actualidade política, na expressão da guerra (não necessariamente clássica), nos media, nas crises financeiras, na prolixidade dos comentadores, na redundância das campanhas eleitorais e até na estética publicitária. As obras de Paul Auster reflectem estas realidades de um modo particularmente incisivo. Em quase todos os seus livros se prenuncia uma catástrofe. É assim no desfecho suicidário de Música do Acaso (1990), quando Nashe leva ao extremo a intriga em que se deixa envolver; e é assim quando o mestre Yehudi de Mr. Vertigo (1994), o caderno vermelho de Quinn (da Trilogia de Nova Iorque) e o livrinho preto dos telefones (achado por Maria Turner, em Leviathan – 1992) desencadeiam, cada um a seu modo, sucessivos movimentos de dominó nos destinos das personagens. O desconcerto assenta sempre em lapsos de memória, ou melhor, em descontinuidades entre o presente imediato e aquilo que o antecede, e apresenta-se ao leitor, por vezes explicitamente, sob a forma do acaso. Para além disso, Paul Auster sempre explorou as semelhanças entre os acontecimentos mais diferenciados entre si. Este ponto de partida, baseado na equivalência do improvável, parece por vezes sobrepor-se a qualquer tipo de lógica. É o caso, no romance Música do Acaso, dos paralelismos entre as infâncias de Pozzi e de Nashe e entre os destinos de Flower e de Willie. É também o caso do paralelismo formal que se desenha entre os desaparecimentos de Sachs e de Dimaggio, em Leviathan, e, por outro lado, do tipo de simulação praticado por Quinn/Auster na Trilogia de Nova Iorque e por Maria/Lilian em Leviathan. É ainda o caso das semelhanças que são propostas entre o ponto de partida da própria vida de Nashe (em Música do Acaso) e o que acontece na vida de Walter, no final da segunda parte de Mr. Vertigo. Vale a pena seguir estas pistas exemplares. As semelhanças – que atravessam a superfície lisa ou enrugada dos acontecimentos – narradas por Paul Auster não andam muito longe da interpretação que os media e os governos contemporâneos levam a cabo em situações limite. A tentação de relacionar o ‘não relacionável’ faz parte de um modo de entender o mundo, no qual o desejo adoraria transformar-se em profecia. De alguma maneira, encontramos materializado em Paul Auster aquilo que Gianni Vattimo designou por “liberdade problemática”. Quer isto dizer que a liberdade, tal como é tratada pelo escritor, se transforma quase sempre em algo insuportável, parte da curva de um labirinto maior onde a interpretação acaba por se esgotar, enclausurada que se sente por obsessões tão profundas que não cabem na cartografia das explicações. A questão do terrorismo coloca-se igualmente neste tipo de parábolas actuais que disputam toda uma possível história do sentido. O mundo metaforizado por Paul Auster é, afinal, um mundo muito real, dominado por disjunções inexplicáveis e por ameaças maiores que, no entanto, nunca se tornam inteligíveis. O que acontece supera quase sempre a sua significação. É um facto que sempre existiu uma relação particularmente difícil entre a ética (o ‘dever ser’ interior) e as práticas do terror ou do mal. Susan Neiman afirmou que, desde o Iluminismo até ao presente, sempre existiram dois pontos de vista antagónicos a este respeito. O primeiro, que vai de Rousseau a Hannah Arendt, insiste que a moral nos obriga a tornar o mal inteligível. O outro, que vai de Voltaire a Jean Améry, insiste que a moralidade nos obriga a não o fazer. Esta ambiguidade traduz um campo fértil para a entrada em cena da personagem mais espessa do nosso espectáculo actual: a crise. É difícil ter visto os arruaceiros que invadiram o Capitólio em Washington DC (e a complacência da polícia que os recebeu) e esquecer as incongruências anunciadas, anos antes, pelo mundo literário de Paul Auster. O incompreensível atrai sempre o sabor de uma impossibilidade que, de repente, já está a acontecer diante dos nossos olhos. É no movimento dessa atracção que reside justamente o que se entende por crise. Só que na realidade o acaso parece sempre premeditado como se fizesse parte de uma conjura maior, enquanto na ficção literária ele consegue ter um brilho próprio que se assemelha a uma promessa ou a uma velada predição. Em ambos os casos é a “liberdade problemática” que age com as suas obsessões perigosas e irracionais, de que Trump será por estes dias a imagem mais evidente, mas também a figura que eu irei para sempre tratar ao nível do esquecimento compulsivo. Outra coisa não merece esse diabo.
António Cabrita Artes, Letras e Ideias Diários de PrósperoGógou, a insubmissa 10/01/21 Falam em árabe, na mesa do lado, em voz muito alta, e parece-me que cada um deles só comunica ao outro o que lhe falta. Instala-se uma aspereza gutural que cospe caroços e recorta em modo rouco aquilo que é. Falam e pressinto o ar desmembrado à navalhada ou palpita-me que estou prestes a surpreender esse insólito momento em que um coração se funde num cacto. Lá fora, as folhas da acácia vermelha, finas como dedos, tocam ao vento um piano invisível. 11/01/21 «A tragédia do homem isolado interessa-nos naturalmente muito menos que aquela da coisa pública, causada pelo homem isolado», anotou Brecht, a propósito da peça de Shakespeare, Coroliano, em 20/05/51, nos seus Diários de Berlim. Fala do homem que se acoita no poder. Mas também Brecht, como Coroliano, pensava o seu papel insubstituível na esfera de acção cultural na RDA e a sua tragédia pessoal foi a merencória tristeza com que se foi apercebendo que a sua “liberdade” era cada vez mais um adorno do regime. Daí que, como defende Hannah Arendt, foi, paradoxalmente, quando reuniu as melhores condições de trabalho que a sua criatividade como dramaturgo diminuiu. Nos últimos anos, Brecht era claramente um homem esgotado. Embora sejam notáveis os poemas “mínimos” que foi escrevendo com uma limpeza e uma sabedoria “muito chinesas” e que constituiriam as Elegias de Buckow. Eis algumas: DIA QUENTE Dia quente. Com a pasta de escrita nos meus joelhos/ sento-me no caramanchão. Um barco verde/ cruza os prados à vista de todos. Na popa,/ uma freira gorda com vestes grossas. À frente dela,/ um homem idoso de roupa de banho, provavelmente um padre./ No banco de remo, remando com afinco,/ um rapazote. Como nos velhos tempos! Penso,/ como nos velhos tempos! FUMAÇA/ A casita sob as árvores à beira do lago./ A fumaça sobe do telhado./ Em faltando,/ como ficariam desconsolados/ casa, árvores e lago. ABETOS/ Pela manhã/ são acobreados os abetos./ Era já assim que os via/ há meio século atrás,/ duas guerras mundiais atrás,/ com olhos jovens. 12/01/21 Lembremo-nos de Nunca ao Domingo (1960), de Jules Dassin, uma variação, em farsa, do mito de Pigmalião. No porto de Pireu, mora Ilya (Melina Mercouri), uma prostituta independente e popular, de espírito livre e generosa, que aos domingos convida os seus clientes para sua casa, apenas para entretê-los com comida, bebida e música, grátis. Chega à cidade um intelectual americano, Homer Thrace (Jules Dassin), procurando as causas do declínio da Grécia de Platão e Aristóteles. Ao conhecer Ilya e seu modo de vida, conclui que ela é o símbolo vivo das causas do declínio, e propõe-se a uma campanha para “salvá-la” por meio de sua educação, o que permitirá que ela abandone a prostituição e encontre uma vida melhor. Na luta entre o normativo e a “joie de vivre” é o educador quem acabará por ceder. É um filme maravilhoso e desopilante e absolutamente anarca, e a força de Ilya, que mete de pantanas a propriedade privada e qualquer moral burguesa, arrasa tudo, como quem não quer a coisa. Neste filme, o desespero é o cancro social e a alegria ontológica. Este filme devia ser vendido como complemento do livro de Katerina Gógou, Três Cliques à Esquerda… (Barco Bêbado), outra grega anarca, actriz e poeta, devastadora, inclemente e suicida, e onde tudo funciona absolutamente ao contrário: o cancro devém ontológico, posto que não se enxerga escapatória ao mandamento social. Katerina (1940-93) propõe então o combate: «Sei que há areais infindáveis/ e árvores junto ao mar/ e que o amor é uma coisa maravilhosa./ Mas antes era preciso acabarmos com os porcos.», e avisa o rebelde que não espere descanso ou recompensas, de que só lhe restarão alguns pequenos prazeres sornas arrancados à voragem da rebelião: «A nossa vida é/ bofes de fora em vão/ em greves combinadas/ bufos e carros-patrulha./ Por isso é que te digo./ Da próxima vez que dispararem contra nós/ nada de dar à sola. É medir forças contra eles./ Nada de vender a nossa pele ao desbarato pá./ Não. Chove. Dá-me um cigarro.» É um livro exasperador, sem um poro que não esteja betumado pelo desespero: «Enlouqueço dentro de um sonho/ meu e dos meus amigos, em sucessivos ataques de nervos/ choros histéricos, vómitos de bebedeira e nojo/ tentativas de suicídio e inúteis/ resoluções/ de mudar de vida.» Quando este seu livro apareceu em 1978, propagou-se como uma labareda e vendeu mais de 40 000 exemplares. Neste momento, está a ser redescoberto e traduzida por toda a Europa. Talvez Katerina Gógou esteja para estes tempos de biopolítica como Maiakovski esteve para a revolução russa: puro arame-farpado, é um grito necessário porque nos coloca a nu. E, como a do russo (ou a de Brecht), esta não é uma arte blindada; truculenta, anti-retórica, não se imaginem aqui sentidos figurados, costuras, dependências ou auto-complacências que se acalentem ou fiquem por expôr: « Bom dia doutor./ Não./ Não se levante. De resto, não tenho nada de grave./ O do costume./ Passe-me valium metaqualona triptizol — já sabe de cor —/ Torne-me socializável/ arrume-me, vá,/ junto dos seus semelhantes/ junto aos seus bufos/ foda-me se quiser/ bonitas as gravuras na parede./ Aqui tem uma nota de mil/ e dê-me lá a receita/ porque já perdi a paciência meu paneleiro de merda/ e dê por onde der vou rebentar./ Não. Não se levante doutor. Não é grave./ Obrigada./ Muito bom dia.» Leia-se este livro como uma espécie de A Arte de Rebelião Para as Novas Gerações, na esteira do justamente famoso livro de Raoul Vaneigem. Sobreavisando: não se espere consolo, o livro detona, como um convite à decisão. Esta edição da Barco Bêbado é, mais uma vez, belíssima, com desenhos fortes de Gonçalo Pena e um grafismo à altura, cheio de punch, de Paulo da Costa Domingos, a demonstrar que alguns mais velhos estão para durar.