Nocturno

Ficam-me sempre os olhos presos nesta hora fugidia, em que a luz se retirou do mobiliário do mundo e ainda resiste no céu. Dezoito e trinta por ser esta estação do ano nas coordenadas particulares da minha rua. Noutro mês e noutro lugar do mundo seria uma hora diferente para a mesma impressão. Por isso mesmo, o tempo nada tem a ver com as horas. Ou com os relógios. Como dizia Proust: “Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem”. Este cinzento de um azulado soturno com uma luz ainda, por cima, a querer resistir à noite que já tolda o rosto do prédio em frente. Estes minutos de transição. Que me fazem sempre pensar que parece haver um tipo de horas e de luz mais dadas à metafísica. Mas é talvez ouvir o corpo a entristecer. Nesta memória longínqua, de animais, que temos. A espalhar pistas imperceptíveis que conduzem ao buraco quente que habitamos, a um cobertor tecido de lã de outros animais e a um restolhar confortável de folhas revolvidas para gerar conforto.

Em cada fim de dia o caminho percorrido está lá. Instalado. A prestar contas de solidão e persistência. É errado esperar que uma mão nos conduza, um olhar nos confirme, ou uma palavra nos aponte o próximo passo. Ninguém ensina o desassossego nem o adivinha. Ninguém respeita a zona de sombra nem salva desta coisa triste – porra triste, como dizia o outro. Que não abafe a escuridão quem não lhe entende o esplendor. A dádiva possível no gesto prismático, daquilo que, sendo complexo, parece simplesmente dor.

Estamos talvez tristes, em casa a espreitar o caminho. Há uma esperança que nunca morre. E um desalento que também não. Sentam-se juntos no sofá da sala. Mudos e belicosos. Não há visitas, de momento. Esqueletos. Não há chave esquecida sobre a mesa, mala, relógio, ensaio de escuridão. Uma mão para tocar com uma bola-mundo. Aquelas aldrabas antigas de bater à porta com a mão e com o mundo.

Uma coisa no plexo solar. Apalpo com a mão. Empurro sem mesmo saber porquê o momento pelo umbigo abaixo. Aliso a saia. Levanto-me da cadeira gasta com um fito indefinido e que é literal, reduzido àquilo. Depois vem o assunto. Faço uma coisa útil e a casa e a vida agradecem porque a vida e a casa necessito-as em serena arrumação como se houvesse a possibilidade de o mundo parar nisso e me deixar um travo de liberdade na mente. As coisas em desalinho e a mente em desalinho. Não que sejam coisas diferentes. Contas. Dou uma volta rápida. Uma tarefa impertinente, uma geometria imperfeita, uma forma informe, um desvio do lugar e emendo e endireito o que lembra ciclos de fazer e desfazer. Deito fora, apago. Um rasto a esquecer, um prato com restos, uma pilha de sofrida de papéis ou levanto do chão a alma de uma coisa caída, daquelas a que o olhar se acostuma e de vez em quando lança um grito surdo de coisa que vive noutro lugar.

Eu estou presa em casa, eu não saio. Como se de morrer isto já fosse um ensaio. Mas esta hora é como de algo que se acende. Parece, todo o dia, pelo som deste silêncio, que o sábado morreu à uma, mas eu tenho que ir passear um bicho. Sem esquecer o essencial que é invisível aos olhos. Porque a verdadeira viagem faz-se por imersão na memória. E, de novo Proust. Eu a caminhar ao lado e no caminho de Swan. Assim, apaziguo este ser delimitado na casa e lembro-me de que o passeio não dado, não é de hoje nem de ontem mas existe. Súmula de todos os que dei ou inventei antes.

Ia por ali abaixo a sentir a aragem delicada do crepúsculo e somente por isso ou para isso. Passava pelos lugares dos meus dias tão irregulares e às vezes mesmo sem sair de casa estavam lá, os becos e divergências, meio de caminhos, que nem olhando para trás providenciavam uma explicação ou uma nitidez que os colocasse num mapa que não o escondido num diário ficcionado sem linhas nítidas ou limites. Eu passava e tornava sobre aqueles passos, na exaustiva decisão de organizar cada gesto estranho e cada silêncio, cada palavra dita ou cada intervalo de sentido. E tudo demasiado parecido com um número imaginário. Em tudo as areias movediças a que faltava uma fé a serenar, num olhar único, essa visão do real passado e ultrapassado. Uma fé que não tive em Deus a deixar traços no caminho. E os anjos. Que diferença na minha afeição por essas criaturas inexistentes e nítidas. Sinais modestos e inequívocos como sinais. E eles, que sinto necessários, que quase vejo, quase toco e sinto e quase velam por mim, são talvez tão chegados, que delegam em mim esse fardo de consolo que busco. Como parte de parte.

E o segredo está nessa hipotética parte de meia pessoa, que um dado estatístico pode manusear como rigorosa realidade da incidência de um dado facto, mas que se sabe não existir. Existir mas não existir. Como um número irracional? Ou será essa parte de meia pessoa, a parte de mim que elabora uma outra entidade em forma de anjo? Talvez pertencente ao conjunto dos números transcendentes por não prefigurarem a raiz de um polinómio de coeficiente inteiro como uma fé, uma crença ou uma convicção. E outras coisas que não são inteiras nem racionais.

Depois a noite cai em si. Como todas as noites E as noites já me ultrapassam. Vejo-as sair como amigas queridas, jovens e egoístas.
Anseio pela limpidez nova das manhãs. Eu que detestei as manhãs de qualquer idade. Levantar para os dias. Mas pesa-me a ascensão dos que já não chegam frescos nem novos ao cimo. Nem pacientes nem activos nem mais do que criativos mas sem força para o gesto. Cada vez tenho mais frio. Mais inverno. Mais desejo do outro dia, como se a vida no fio. Um gume a cortar o tempo em dias. Horas de desistir. As de antes resistir, esticar, persistir, não querer dormir. Porque depois, não querer acordar.

Digito as horas. Depois da insónia, sonho com um homem que guardou muitas bolas verdes dentro da perna das calças. Depois, ao experimentar o sapato, elas espalham-se pelo chão. As pessoas de tanto terem medo de ficar sós fazem coisas estúpidas.
Digito as horas e levanto-me. Digito-as e custo a levantar-me. Depois o dia parece grande. Oiço os sinos. Pássaros.

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