A memória das coisas

“[…] esse objeto vale o ar”
Clarice Lispector

Em vésperas de recolher outra vez de forma compulsiva ao meu universo privado, olho em redor. A casa, os objectos que a compõem, escolhidos por mim ou oferecidos por alguém, irão outra vez ajudar-me a encontrar ordem no caos que lá fora permanece. A casa é mesmo o nosso canto do mundo, o nosso primeiro universo e um cosmo na plena acepção do termo, para lembrar de cor o que Bachelard defendia. Cada coisa é mais do que uma coisa: é uma memória, uma vida, nós.

Não por acaso recebo uma mensagem de alguém muito próximo que está a terminar uma mudança de casa. Ao arrumar em caixotes brinquedos antigos dos filhos uma das leis da vida é-lhe devolvida com uma força implacável: nada se repete. Daí que este arrecadar de coisas se torne numa provação melancólica e nostálgica que, escreve-me ela, a deixou em lágrimas. São pedaços do que nós fomos que parecem ser arrancados devagar mas inexoravelmente. E é verdade.

A relação entre os objectos e a memória há muito que é estudada por disciplinas como a filosofia ou a psicologia. Sejam objectos quotidianos ou relíquias acarinhadas, influenciam de facto a nossa identidade e personalidade porque, entre outras características, são contadores mudos de histórias que por paradoxo nos gritam por dentro. É o confronto com o que fomos e o que somos que liberta o grito e os fantasmas – e isso pode não ser nada fácil dependendo da forma como estamos dispostos a enfrentar essa batalha.

A literatura e a cultura popular – radares mais do que precisos da natureza humana – identificaram desde há muito esse conflito. Normalmente para o pior. Veja-se o belíssimo monumento à tristeza e à perda de um amor que é House Is So Sad, de Larkin. A casa é a sinédoque da ausência que dói e cada objecto fere por isso mesmo. Os três derradeiros versos são lapidares: « You can see how it was:/ Look at the pictures and the cutlery./The music in the piano stool. That vase.» As coisas deixam de o ser para se transformarem em fantasmas do que pôde ter sido e que nos irá assombrar até ao fim. Talheres, uma jarra. Sim, Larkin é amigo.

Mas se preferirem modos mais doces de chegar à mesma dor, oiçam por exemplo a extraordinária canção de Elvis Costello e Paul McCartney, incluída no disco do último intitulado de Mighty Like A Rose (1991). A canção chama-se So Like Candy e a letra é provavelmente de McCartney, embora as autorias se diluam. Mas o estilo do baixista dos Beatles é inconfundível: de uma forma cinematográfica, a canção é uma panorâmica lenta sobre uma sala e os objectos lá deixados em sossego que depois de um amor falhado ganham significados absoluto. McCartney (ou Costello) tenta resolver o drama com o humor triste de alguns versos: « Here lie the records that she scratched /And on the sleeve I find a note attached/ And it’s so like Candy/ “My Darling Dear it’s such a waste” / She couldn’t say “goodbye”, but “I admire your taste” ». Apesar do sorriso resignado pela perda de um grande amor que aqui se chama Candy, a dor é a mesma: os objectos tornam-se facas para a alma e para a memória. Nos meus sonhos idealizava uma colaboração entre Larkin e McCartney. A partir desta canção vi que podia descansar.

Como escapar a isto? Não sei, mais uma vez. De tantas mudanças que eu não gostaria de ter tido fiquei pelo menos com a gratidão que me vai pacificando e que me diz que há memórias nas coisas e nunca haverá coisas nas memórias. Por isso consigo viver com a bagagem mais leve. Abandonar um objecto nunca significará prescindir daquilo que esse objecto significa. Apenas irá descoisificá-lo de uma vez por todas e arrumá-lo, de forma perene e irredutível, no sítio em que sempre esteve: a nossa vida.

13 Jan 2021

Quando for grande

A escritora sueca, Lena Norlén, de 42 anos, mais conhecida como poeta e dramaturga do que como escritora, publicou um romance em 2019 cujo título é «Quando For Grande Quero Ser Leitora». Trata-se de um romance irónico, evidentemente, mas que tem muito de factual. Ela parte da constatação de que todos querem ser escritores, embora sejam poucos os que lêem. O pequeno romance, pouco mais de 100 páginas, conta a história de Olga, uma menina que cresce em Hudiksvall, pequena cidade costeira no mar Báltico a 300 km a norte de Estocolmo. O romance cobre os anos de infância, muito poucas páginas, e adolescência, o resto do romance. Em criança, Olga passa os dias a ler livros em casa, não apenas por ser filha única, mas porque também não se sente atraída pelas imagens dos ecrãs e dos monitores. Lê-se, à página 24: «Mas é na adolescência, aos 14 anos, que a leitura começa a tornar-se algo importante, que se destaca de tudo o resto que fazia no mundo, quando lê pela primeira vez “A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer” de Stig Dagerman: “Não possuo filosofia em que possa mover-me como peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo.” Estas palavras fizeram Olga descobrir o seu corpo, partes que nunca pensara que existiam, que não faziam parte dela. Mas descobriu algo ainda mais importante: que existia dentro dela o desconhecido, que só vibrava com o que lia. E o que lia, agora, fazia-a também sentir o mundo de modo diferente.

Outra passagem, que leria vezes sem conta e de tantas maneiras diferentes, transformou-lhe os olhos em lago: “Na verdade nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo.” A ideia de a beleza ser a kriptonita do tempo nunca a abandonou. Evidentemente teremos de esperar para saber como irá ler essa passagem aos 40, 50 ou 60 anos de idade.»

Depois deste trecho temos de explicar um pouco como a narrativa é desenvolvida por Lena Norlén. O livro começa com a narradora, que é professora de Olga no liceu e cujo nome nunca é revelado, nem sequer a disciplina que ensina, a contar a história da sua aluna, por julgá-la singular no mundo de hoje. A narradora raramente se intromete na narrativa, a não ser aqui e ali, como na última frase que citámos. E é nesse início que a professora diz como teve a ideia de escrever este livro: «A ideia ocorreu-me quando ela me disse que quando era pequena e lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande era leitora. Agora perguntava-me: “que curso devo tirar para ser leitora toda a minha vida?” Não lhe importava a matéria de estudo, desde que lhe permitisse ser leitora, foi o que entendi.» A partir daqui vemos a história de Olga, a menina que queria ser leitora quando fosse grande.

A história não se desenrola apenas através da leitura, embora grande parte seja através dela. Podíamos dividir o livro em três partes: as primeiras 5 páginas, onde a narradora explica o que vai fazer; as próximas 20, onde descreve panoramicamente a infância de Olga; e o resto do livro, dos 14 até ao momento em que Olga vai para a universidade em Estocolmo aos 17 anos. É nestes quatro anos, em que Olga frequenta o liceu Hudikgymnasiet, em Hudiksvall, que se passa grande parte do romance. Olga não tem apenas uma relação forte com a leitura, a partir dos 14 anos, tem também com a música pop e com o sexo. Lê-se à página 76: «Perante a perplexidade de uma amiga, Anna, que não percebe porque é que ela não quer ser escritora, se gosta tanto de ler, responde com alguma graça: “Também gosto muito de sexo e não pretendo ter uma carreira na pornografia.” Riram-se as duas. Cada uma para seu lado, entendendo diferentemente o que entendiam, mas unidas pela gargalhada.»

Talvez não seja um livro de excelência, como alguns que trouxe aqui às páginas deste jornal, ou como a poesia a que Lena Nórlen nos habituou, mas é sem dúvida um livro que nos traz um tema pertinente, o de querermos ser escritores e lermos muito pouco – para parafrasear a resposta de Olga, fazemos muito mais sexo do que lemos e nem por isso queremos fazer filmes porno –, e o de nos fazer pensar com leveza, que é uma arte difícil, como todos os leitores sabem.

* A tradução usada do livro  “A Nossa Necessidade de Consolo É Impossível de Satisfazer”
é da Editora VS., 2018

12 Jan 2021

Ano Devagar

Procuro nesta virtualidade das palavras que têm, sem ter que o ter, um prazo de validade e quero outra coisa.

Como dizer deste ano, senão um ano assim? De deixar coisas a amornar. Impossibilidades e perdas. Algumas, como noutros anos de dificuldades, indecisões e perdas. Com outros culpados e outras atenuantes. Como dizer de tudo o que não aconteceu, que noutros aconteceu? Como dizer que estivemos mais sós do que antes pudemos estar? Um ano à velocidade de o pensar. Pensámos? De estar silenciosos, inventar, projectar e sonhar. Sonhámos, ou lamentámos? Onde estávamos quando podíamos estar onde queríamos e onde estava quem queríamos que estivesse. A magia faz-se em função dos ingredientes que temos à mão. Silenciosos. Ou está errado o que sempre esteve. Tudo o que nos deixou solitários. Antes. O que não houve coragem de fazer, o que adiamos. Mais sós do que antes, ou com o tempo de saber quanto de nós precisa do que precisa. Estamos como estamos mas iguais a sempre, sem definir mudança no futuro? Isso é que me faz triste.

Ou aprendemos bem quem queremos ser, ter, que passos dar e decisões tomar, como prevenir outras catástrofes? Em cada coisa que nos frustrou neste ano, há uma pergunta que não estava respondida, uma indecisão, um desencontro um adiamento. Algo nos fechou para pensar. Pensámos?

Agora, o que entrou e tanta vontade de ser depressa. O que não fomos onde não fomos e o que não fizemos.
Mas eu quero um ano devagar. Sem esta lavagem de tudo o que sendo, de imediato se sente que já não é mesmo não o sabendo. Um ano de coisas com vagar. Esse espaço despido para depositar aquilo que se quer. Lentamente. Sem temer. Que o olhar logo se esfume ou a pergunta se evole ou o pensar se já não exista o que o acendeu. Pavio curto e húmido. Quero um ano como uma embriaguez lenta, sem chegar ao vómito, antes da liberdade. Amo devagar porque amo com todos os sentidos e todos os órgãos e com os órgãos dos sentidos todos. Devagar, contra tudo. Prazos de validade no comércio das palavras. Etiquetas de segurança.

Somos criaturas desesperadas e cegas na ignorância do porvir. Às vezes o que apetece é inventar palavras para as coisas e as coisas. Uma espécie de desintoxicação para este desconhecimento. O desespero, por exemplo. Inventar um ritmo e um modo de o orquestrar exactamente e no exacto momento em substituição daquele emaranhado de emoções. Em lume brando, dependentes de uma determinada sensação de tempo. E o contrário de desespero, talvez a resignação. A idade de fugir ao desespero. Bicho apressado e instável, desconcentrado e precipitado. A arrastar rapidamente o tempo e a querer abreviá-lo. A querer apressar o que já nos ultrapassa mesmo sem querer. E os sonhos, que dizer dos sonhos? Em que se questiona a identidade de uma frase e a personalidade de um nome? Uma loucura ténue que vai de assalto e nesta idade se teme que se instale. Nas margens em que somos. Territórios viáveis. Eu preciso que tudo seja devagar.

Do desespero: quero espero anseio desespero. O próprio termo em si diz de se negar. Não quero e não espero. Paradoxal de tanto se querer, deixar de se experienciar a esperança.

Penso em Marcel Duchamp e na ideia de que se encerrou para balanço, anos. Vinte anos de vida, dizem. Dez anos, dizem. Um período entre Nova Iorque e Buenos Aires, dizem. Dizem que deixou de trabalhar e se sentou à mesa com um tabuleiro de xadrez. Não vale a pena investigar a fundo a dimensão do tempo e a vista da janela de Duchamp. Também dizem que se dedicou sobretudo à táctica – ele. Saídas e passes antecipando o futuro de um jogo, para ele arte. Mas também, afinal, que em segredo trabalhava numa obra lenta como os seus vidros. Sobra-me a questão do tempo. O que é dedicado sem malhas ou sobre uma quadrícula, a uma construção. O tempo que esculpe por interposta pessoa, ritmos e padrões que só depois se tornam visíveis.

Penso nele, a congeminar os seus vidros ao longo de mais de uma década. Não sei se esqueço a aranha que tece uma teia como se não houvesse por detrás um padrão – e há – que se cumpre incógnito ou subliminar a todos os que se constroem na magia dos dias. Dos gestos. Um avanço lento e indizível no mapa do que subjaz. Penso se o que se fez e não fez, fazendo parte do que já éramos, estava determinado, como um destino desenhado e prévio, que lamentamos não ter projectado, e parte da adivinhação estiver irresoluta mas calma na apetência de cada passo de dança. E se, nada disto fosse mais prisão do que desafio. A estarmos sós. A resolvermos a profunda equação, mais nítida e mais implacável? Como um passo de mágica.

Encontro nele o paradigma da lentidão, de uma mente a arquitectar em segredo e com todo o tempo, enquanto à luz se dedica à outra arte e à outra lentidão de táctica e estratégia, o xadrez. Anos. Com os seus vidros, estranhos registos metafóricos em que a poética nasce da manipulação do concreto. A realidade do “espelho armadilha”, por essa transparência permeável ao olhar do espectador – e que o implica – através dos vidros. Espelhos metafóricos, entre os quais se prende o discurso elaborado de matérias, como num limbo que não retém o olhar por completo.

Talvez a transparência do médium não pretenda fixar a profundidade de campo como um ponto definitivo de chegada, mas uma interface. Em que é preciso retornar ao intelecto para ver além dela. É o que a transparência diz.

A virtualidade do objecto físico face ao que à partida pareceria mais etéreo. A ideia.
Ele e a sua certeza de que é a alma que se exprime na obra e é com ela que deve ser assimilada, fugindo ao predomínio superficial do olhar. Interface janela ou ecrã, onde se deve ler o que está para além da matéria. E do mundo. Lento e rápido, tela de matérias e factos, a esconder o que pensámos ou não pensámos.

Fito a quadrícula do tabuleiro de jogo. De estratégia ou de táctica, dependendo da poesia que nele se projecta pelo olhar, pelo encadeado de raciocínios ou de intuições imprecisas que se insinuam. E pergunto-me se algum dia vejo o meu peão como a personificação clara de uma destas personagens e qual. A minha mente recusa imaginar jogadas e desconhece.

Depois olho-os e eles aos beijos e a engolir fogo como se não houvesse amanhã ou como se o amanhã fosse tamanho que é possível desperdiçar pelo imediato do agora mesmo. Ou isso ou o labirinto. E invejo o que os leva nessa deriva jovem, nessa cegueira. Percebo que é o dia de hoje. Eu que oscilo entre o de ontem e o de amanhã a custar a encontrar as palavras do que aqui se instala subliminar a fazer-me deslizar sem frente nem bússola nem estratégia senão a de abrir e fechar portas. Que bom estar frio, este inverno frio como não me lembro de sentir outro. Nunca me lembro desta idade, antes.

Penso nos meus mestres e penso nos meus alunos, duas faces desse mesmo eterno presente como se não houvesse amanhã e situo-me sem saber onde, algures no meio e à deriva e à mercê do que os meus paradoxos queridos me sopram enfunando asas e velas. Sempre ainda no limiar do afundamento, ou não me fossem paradoxais e queridos.

12 Jan 2021

Sem futuro para 2021

É possível estar-se genuinamente só quando se tem um passado? A infância, como laboratório da existência e o resto, aquele momento em que nos abjugamos porque socialmente estávamos alinhavados para a excursão. Moldados para as várias provações e apetrechados de conhecimento teórico. Seguir etapas, projetar ideias, praticar a constância na promessa de uma subsequente jubilação. Tenho novidades: nunca ninguém está preparado. “Estar preparado” não existe, não é estável. O que caracteriza o futuro, senão a quimera? O momento é unicamente tão sólido como as energias electromagnéticas – todo o corpo com temperatura maior que 276 graus negativos. O momento isolado do resto do tempo. Pode ser o passado ou pode ser o futuro, o momento pode ser o único que conseguimos percecionar porque ainda não encontramos as menores partículas fundamentais do Universo.

Nenhuma memória é igual ao presente daquele momento do passado. O passado não é o que recordamos mas sim o que recreamos. Há vários mecanismos de defesa do ego que nos ajudam a recriar o passado como forma de continuar. Confiemos neles. Aqueles momentos em que não queríamos o momento mas que no futuro se torna desejável porque o recordamos com lentes positivas. Aquilo que deixou mais marcas ou a forma como preferimos manter determinada reminiscência: intocável, limpa. Limpamos a recordação para a tornarmos mais estética.

Fantasiamos com o passado e isso é o futuro. O futuro é sempre uma fantasia. É uma aspiração impossível de concretizar, é aquela dose necessária de esperança que nos faz pensar que o agora não é só o agora, é também o que será. Esse sentido de futuro é quase nobre. Mas não é real. Todas as expectativas se elevam acima de nós só para não termos de enfrentar o que é já efetivo.

Como quem escapa. É errado escapar? Nenhum sentimento de transgressão nos vais libertar nem de nós nem do presente. Contudo, é possível estar-se mais consciente do momento, prestar-se mais atenção. É nesta simples ideia que podemos encontrar conforto.

Em 2020, todos nos sentimos sós. Em 2020, todos nos sentimos isolados a determinada altura. Por vezes, levou-nos perto da loucura. Não estamos sós enquanto existirmos, por muito que o vazio interior se possa parecer a um abismo. Uma ausência que parece tão concreta e sólida como a terra ou a gravidade. Devemos reconhecê-la, prestar-lhe homenagem, perceber que vazio é este que nos ocupa desta forma e nos leva à loucura. Quando chegarmos a alguma conclusão, teremos percepcionado que esse vazio está repleto de nós. Ele não se apodera de nós porque nós somos o universo. Repleto de projeções e expectativas, repleto de desejos em constante mutação que no momento em que surgem se parecem tanto com tarefas por concretizar. Não possuímos propósito porque já o somos. O único material corpóreo, palpável, tocável, físico e visível. Quando esse lugar desabitado passar por nós, falemos para ele.

Porque isso será o nosso próprio recheio atulhado, satisfeito e pleno. Quando nos ocorrer pensar que não temos futuro, respiremos. O sangue corre-nos nas veias, alheio a todas as nossas dúvidas. A respiração continua, a gravidade mantém-nos de pé. Este medo de cair é só porque alguém nos disse que um dia íamos voar. Não temos de o fazer. Pés na terra, olhos no mar. Somos tão expansivos como o oceano, mais onda, menos onda.

8 Jan 2021

Trump, o ganso

É o homem mais admirado da América. Não tem segredos o sucesso do Donald. Basta reparar que ele usa a boca como se lhe faltasse o bico de ganso.

É uma criatura em falta, que queria ser acima de tudo um bípede com penas, e sente-se.
Nos comícios republicanos, o apoiante vai ver um político e sai-lhe um bípede fruste, que se desunha em caretas e esculpe com os lábios palavras que apanha no ar, porque lhe roubaram o bico com que podia grasnar.
Não há quem não queira voar, ter boas penas para a almofada, encontrar um igual num filho de famílias milionários que prima em ser reles como nós, e isso reconforta. Para além disso, finalmente, compreendi: além de desejar voltar à condição de ganso, Trump é o rei do karaoke.

E o sê-lo — rei do karake — justifica que a adrenalina lhe arme os esgares que quiser, à velocidade que quiser, inúmeras, infinitas caretas moldadas na plasticina do seu fácies, mais virtual que real. Contudo, o mistério é este: como pode um rosto vomitar tantas máscaras, sem extenuar-se e sem parar?
Trump tem tantas máscaras como a serpente do Paraíso escamas — é assustador.

Que mulher aguentará amar um “homem” que em nenhum momento desmancha a máscara? É preciso ter um coração de amianto. Amar um homem, digamos, que nunca está nu? Só pode ser possível a quem seja a ressurreição da Virgem.

Nos comícios, não demora mais, à segunda careta cai a ficha de Trump e mostra que os conteúdos não lhe interessam, e que voltou à adolescência e ao castelo escocês onde, em férias, assestava os binóculos sobre o monstro de Loch Ness e lia os diários da cruel Lady Macbeth, a mesma que sempre confundiu menstruação e os harpejos do poder.

Aliás, quem lhe confidenciou que a vitória na Georgia foi sua foi o Monstro de Loch Ness, um agente do MI7, a troco de uma malga de caldo verde, visto estar farto de salmão.

Também o cabelo de Lady Macbeth era daquele laranja confinado que dissimula sob palha queimada o gosto do sangue e que fazia as delícias das selfies de Trump, antes deste branquear a poupa para parecer ter menos energia e aproximar-se do rival Biden, disfarçando a ira com o semblante dos que mandam executar porque não tem sequer a grandeza de perpetrar os seus crimes.

Se lhe fixamos o rosto dez minutos seguidos, só vemos tiques, a esperteza saloia que lhe perpassa no olhar, aquele sorriso de quem está em cena e dela não sai. O Trump usa as palavras como um engraxador maneja os sapatos, pelo lado de fora, sendo de antemão postiça… ou pose, a menor aparência de seriedade, dado aos cinco minutos de qualquer discurso conspirarem os seus próprios músculos, à sucapa, contra si, querendo denunciar, pelo exagero, a mentira de tudo quanto diz.

Claro que as pessoas acreditam nele, porque precisam de acreditar, na caganita de uma cabra se for preciso. E quando esse é o único critério.

Hoje sabemos que metade dos Americanos acreditam na caganita de cabra que telefonou ao governador da Georgia e implorou por batota.

Desde que vi a foto que ilustra esta crónica que me divirto a imaginá-lo como um Moisés tão soberbo e gabarolas que Deus lhe dá uma tábua das leis em chumbo, que ele imediatamente deixa cair sobre os seus próprios pés, esmagando-lhe os cascos de bode…

Obama, todos os todos os dias estudava o Tucídedes e fazia exercícios de gargarejos, ele não, chapinha nos charcos e lastima o bico de ganso que lhe roubaram.

Mais ninguém viu porque ninguém quer acreditar e quando não se quer acreditar não se vê. Nem o próprio Ted Cruz acreditou, aliás, também já lhe crescem asas nas axilas… E desde há uma semana que toda a gente me toma por doido quando falo disto. Fui afastado compulsivamente de vários convívios, ameaçam-me com um psiquiatra, querem internar-me. Ora, eu vi, não há há nenhum palavra que ele diga que seja dele e lhe saia da cabeça: o Presidente americano só faz karaoke. De quê? Do discurso do presidente da câmara em City Light, de Chaplin. Por isso parece não pensar.

Mais, sofre por interiormente já se sentir transformado num ganso e ninguém mostrar que notou. Não há outra explicação para a agonia que ressalta desta foto. O lampejo no olhar desorbitado é o do ganso que viu partir os seus irmãos do gansaral para paragens mais quentes e teme ser agora transformado em foie gras. Todas as tripas se lhe revoltam. Até a gravata vermelha se mudou em azul: é o desesperado apelo a que o céu não lhe falte.

Que não lhe falte. Eu tenho no quintal uma gaiola com dois gansos africanos. Se hoje se confirmar a derrota e os seus piores pesadelos, deixem-no que cruze na oblíqua o Oceano Atlântico a caminho do cálido Índico.

Não o impeçam, peço-vos. Eu acolho-o no exílio. Entre os meus dois gansos, no melhor e no canto mais refrescante da minha gaiola. Juro que não “afogarei o ganso” e que o pouparei no próximo Natal – que todas as minhas filhas morram de saúde…

7 Jan 2021

A real vertigem

Nunca se está preparado. Seja para uma época com acontecimentos absolutamente imprevistos, seja para o abandono daquilo que mais estimamos e amamos. Seja ainda para prevermos o que aí vem, sempre que os números nos surgem a baptizar um ano que se diz novo.

Há duas décadas, a então editora Difel publicou um volume intitulado ‘Predições’, organizado por Sian Griffiths, no qual trinta autores, entre os quais Stephen Gould, Umberto Eco, Arthur Clarcke e Francis Fukuyama, foram convidados a antever o que iria acontecer no século em que já nos habituámos a viver.

Nenhum deles focou, naturalmente, o 09/11, a invasão do Iraque, a crise Lehman Brothers e das dívidas públicas ou a pandemia Covid de 2019-2021. Os textos centraram-se sobretudo em três direcções: visões (apocalípticas ou utópicas), amplificações inteligentes e (já bastante menos) relativações.

No primeiro caso, cabem tanto Arthur Clarcke como Stephen Gould. O primeiro ao ter acentuado que, “depois de 2020, quando a inteligência artificial atingir os níveis da inteligência humana, haverá no planeta Terra duas espécies inteligentes, uma das quais evoluirá muito mais rapidamente do que a biologia humana poderá alguma vez evoluir”. E o segundo ao ter referido que a “discordância entre o avanço tecnológico e o avanço moral actua como um factor desestabilizador. Nunca saberemos como, e de que modo, estes episódios de destruição irão ter lugar” (…) “exigindo um verdadeiro renascer de cinzas de velhos sistemas, como aliás tantas vezes a vida fez – de um modo maravilhosamente imprevisível – após episódios de destruição em massa”.

O segundo caso é o de Fukuyama, cuja previsão parte da observação do mundo imediato para depois passar a valorizar o factor demográfico em articulação com a questão do género: “Daqui a uns cinquenta anos, os países desenvolvidos do mundo terão populações com idades medianas na ordem dos cinquenta. A combinação do maior impacto das mulheres no sistema político com a alteração na idade mediana, a deslocar-se para cima, irá conduzir a um tipo de política muito diferente. Admitamos, a maior parte da confusão no mundo é provocada por homens jovens, ou então por gente tipo Saddam Hussein que pretende conduzir os jovens (homens) a entrarem em vários tipos de aventura”.

Por fim, o terceiro caso enquadra-se na interessante relativação que Eco levou a cabo: “Quando os primeiros dirigíveis apareceram, as pessoas pensaram que se seguiria uma progressão linear” (…) Mas tal não aconteceu. Em vez disso, a certa altura, deu-se um desenvolvimento lateral. Depois de o Hindenberg se ter desfeito em chamas em 1937 (matando 35 pessoas), as coisas começaram a ir numa direcção diferente. Em certo momento, parecia mais lógico que se teria de ser mais leve do que o ar para poder cruzar os céus – mas depois descobriu-se que se teria de ser mais pesado do que o ar para se voar mais eficientemente”.

Tal como acontece desde os alvores do humano, as previsões oscilam quase sempre entre o plano da visão (disfórica ou eufórica), a consciência de uma possível derrapagem (talvez o sinal de alerta mais lúcido) e o aspecto mais simples e elementar de todos: a ampliação do já observável.

Os diálogos de ‘A República’ de Platão e da ‘Utopia’ de Thomas More a par das distopias (sobretudo as do séc. XX, casos de Aldous Huxley, Adolfo Casares ou de Fritz Lang, entre muitos outros) encaixam-se no plano das visões. A amplificação – onde cabe também o “vaticinium ex‐eventum” praticado no A.T. por ‘Daniel’ ou em textos como ‘Similitudes de Enoch’ ou ‘Apocalipse de Baruch’ – é um conhecido processo de textos de cariz utópico e contíguos como os de Louis-Sébastien Mercier (‘L’An 2240’) ou mesmo de Maquiavel. Já a antevisão não linear, ponderando falhas e súbitas mudanças, é menos frequente, mas não deixa de ser o modo mais intenso por convocar a evidência do factor surpresa e do imponderável (é na grande literatura e na poesia que encontramos vias fulgurantes que permitem sinalizar o indeterminado).

No final do “círculo nono” do longo “inferno” (últimos versos do canto XXXIV), Dante, o protagonista, e o seu guia, Virgílio, depois de terem descido ao centro da terra saem abruptamente pelo outro lado. Um e outro apercebem-se, a certa altura, do lugar onde se senta o demónio: “Há um lugar a Belzebu remoto/ tanto quanto esta gruta já se estende,/ que, não por vista, mas por som é noto de um regato que por ali descende/ na boca de um rebordo pedregoso”. Nesta linha de súbitas inversões, Dante acaba por encarar o diabo de pernas para o ar: “alçando os olhos cri que ia avistar/Lúcifer como eu o tinha imaginado/ e então o vi de gâmbias para o ar”.

Não haverá melhor metáfora para indiciar o modo como o conhecido é amiúde um efeito metafórico do desconhecido (moldado e devidamente retrabalhado). Nas antevisões, nunca estamos preparados para o que é legível e tangível, porque somos invadidos pela inquietação daquilo que não conhecemos. Esse lapso – que valoriza mais o ‘não dito’ do que aquilo que o pensamento e a linguagem autorizam a dizer – é muito convidativo às visões e às projecções (a partir daquilo que nos rodeia). Ter em conta o ‘senão narrativo’ da história já é bem mais difícil. De facto, as ideologias e as escatologias nunca ou raramente tiveram em conta as falhas, as incertezas, a sorte ou os acasos. Havia sempre lugar nesses receituários a um espírito santo ou a um leninezinho para ‘nos’ salvar. E muito facilmente varriam esses arrojos “cépticos”, por vezes com singular violência nas arenas da inquisição ou dos gulags.

Não estar preparado e, ao mesmo tempo, ser capaz de antecipar são dons próprios do humano. Este paradoxo das nossas aptidões faz com que estejamos sempre a descer as escadas do futuro em direcção ao presente para medir a pulsação dos “estados de coisas” e dos “corpos”, como diriam os estóicos no seu tempo. Com a vertigem de tanta descida, mal temos disponibilidade para perceber quais são as muitas viagens que, em cada momento, nos chegam do passado. Essa (ainda que relativa) cegueira talvez possa receber o – não menos paradoxal – nome de realidade.

7 Jan 2021

Fata_listas

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 1 Janeiro

Não faço lista de desejos. Tenho estranha relação com o dito, tal qual a metáfora. Se esta me leva a lugares, estabelecendo ligações, abrindo perspectivas, desdobrando possibilidades, mas no fingimento da transparência, de aproximação a um qualquer centro, uma verdade, nesse mesmo movimento me distrai. Há metafísica suficiente em não pensar em nada. No desejo não encontro degrau para chegar ao real, para transfigurar o volátil em palpável. Se mastigado com tempo e sentidos, o desejo desdobra-se fim em si mesmo e exige múltiplos cuidados e leituras. Portanto, faço listas dos afazeres que teimo em descumprir, mas não dos movediços desejos.
Estou certo que na contagem dos dias que agora recomeça entrarei nas areias movediças da criação partilhada com o André da Loba. A imagem que aqui se tatua pertence a um projecto de revisitação da tira desenhada, buscando nexos entre o desenho livre e o aforismo selvagem, uma gramática das formas em movimento, posta a palavra na cadeira do espectador a dizer por dizer.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 2 Janeiro

As fatais listas dos melhores do ano, aqui e ali, incluem o «Aaron Klein» e «Os grandes animais». Também está frio e até choveu. Não sei se há neve nas terras altas. Amigo [querido] tem a mania de ilustrar as conversas com livros, pelo que durante o fechamento me atirou habitante das listagens, «Chuva Miúda», de Luis Landero (ed. Porto Editora). Não será mau romance, com excelentes observações, frases de bom tom, fino recorte dos protagonistas e uma competente gestão dos tempos da narrativa. É uma história, que se pretende dura, ou melhor, céptica na visão da família que não saberemos nunca como ser nem deixar de ser. Uma história que talvez seja de consolação, como as que o narrador pensa durante os pensamentos da Aurora, personagem que começa por parecer viver apenas nas palavras dos outros: «que haverá na narração que tanto nos consola das culpas e dos erros e das muitas penas que os anos vão deixando à sua passagem?» Cansou-me sobremaneira a omnipresença do narrador, inescapável, por certo, mas que não precisava tornar-se ferramenta voraz, eléctrica chave que abre tudo para pôr explicações e conclusões nas fendas. O mesmo querido [amigo] pôs-me nas «Viagens», de Olga Tokarczuk (ed. Cavalo de Ferro), que me tinha escapado por entre confusões, mediatismos e certa alergia ao corrente. Também por aqui se dá basto consolo e histórias de ver ao espelho, com princípio meio e fim, não sei se por esta ordem. Para bem dos nossos pecados, acende pensamentos que brilham por muito, faz canções, dá início a outros tantos romances, recorta notícias da banalidade, faz dos pontos de interrogação mapa onde coloca corpos e tempo, não se cansa de fazer e refazer bibliotecas. Está também em várias fatalistas, de prémios até. Não me quero armar em canonista, que não tenho carta de pesados, mas interessa-me mais o que entrega labirinto na vez de porta. Por bem desenhada que esteja na parede.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 3 Janeiro

A vizinha gruta de Ali Babá recebeu umas velhas novidades e lá colhi, puxado pela capa com título desenhado tão viva e modernamente que parecia impresso ontem: «50 anos de poesia portuguesa: do simbolismo ao surrealismo», de um algo destratado João Gaspar Simões, e inserido na colecção/editora movimento que me desperta curiosidade a cumprir. Sem surpresa, encontro por aqui ideias, prenhes de dados e conhecimento, com que dialogar. No essencial, Gaspar Simões defende que o simbolismo teria marcado de modo indelével a produção poética nacional, atacando-o, mastigando-o, celebrando-o, reinventando-o, no balanço do a favor e do contra. Os poetas do surrealismo «iam direitos ao absoluto, resolviam de uma só vez o enigma da alquimia medieval. O poeta é por assim dizer o demiurgo que refaz dentro de si mesmo os segredos essenciais do universo.» Nesse pólo oposto do simbolismo, depois de sustentada digressão, por nomes, movimentos, publicações, temas (onde o amor figura com destaque), acaba o ensaísta por detectar convergência paradoxal. «Esteticamente, afinal, o século XX viveu, e continua a viver, pelo menos no domínio da poesia, das grandes descobertas dos poetas que no final do século XIX conferiram à criação poética prerrogativas de conhecimento absoluto.»

Sobra ainda da leitura uma lista de poetas que passaram entre os pingos da chuva radioactiva dos cânones, seja qualquer for a origem do dito, academia ou mediania. Será talvez triste para quem o não entenda, mas este jogo de escondidas torna-se, com o tempo, motivo de alegria para quem queira atrever-se. (Entrando nos alfarrabistas.) Eis um caso, distinto, por só agora deixar a obscuridade das gavetas. José Rui Teixeira, que já havia trabalhado como poucos a figura do morador da Horta Seca, Guilherme de Faria, tratou agora cuidado extremo o seu companheiro, António Hartwich Nunes, personagem a justificar curiosidades, não apenas pela ilustre filiação. «O Livro de Ónio» (ed. Cosmorama) reúne a poesia de alguém que a praticou toda a vida, como o desenho e a pintura, sem assumir as inerências da condição: «fui poeta sem querer e, sem querer, continuo e continuarei a sê-lo». Um mote essencial, não apenas na sua relação com o suicidado Guilherme, está no mote-enigma: «Sonhei um sonho tão velo,/ E foi pior para mim…/ Agora para esquecê-lo,/ Gasto a vida até ao fim.» Amor, Deus e uma solidão, que talvez só o humor alivie, traçam aqui singela paisagem de almas. «Só comigo fui;/ só eu sei quem sou./ Mas eu senti tudo,/ tudo me falou.// Tudo passa e move;/ tudo é já no fim./ Mas a morte é vida/ a chamar por mim.»

Não será a modéstia encantatória do Levi [Condinho] a afastá-lo das atenções merecidas. Valorizamos demais a presença no palco. E para vestir o fato do poeta há que caber nas várias peças do bem parecer, gravata de maldito incluída. Levi está bem na penumbra, praticando os malabarismos de uma arte poética que independe das leituras: «Perscrutar os veios da matéria/ seus nexos sons perfumes/ íntimas substâncias copuladas pela língua/ inventar o Verbo que invente a negação/ da profaneidade da palavra/ que autómatos nos move sobre escarpas.» A Húmus fez «Colheita serôdia» de inéditos e dispersos. (Poucos poetas se ficam hoje por uma casa, quase sempre para responder ao apelo magnético da amizade, nem tanto por razões programáticas. Não vem daí mal ao mundo. Na área da música, mais do que bandas de formação fixa, vemos projectos com irrequietos e permutáveis interpretes.)

Até ao começo do século, injustamente acusado de novo, o poeta continuou a cultivar como jardim este ao redor dos acordes, dos nadas, do pequeno e médio Deus, de leituras, das memórias, talvez da morte. E pássaros, corvos e melros. E árvores, sobreiros e choupos. «Ciclo fechado em perpétuo devir/ vertigem medida em tempos certeiros geometria perfumada».

6 Jan 2021

Perder os óculos

E agora que, de pior ou melhor forma, já contribuímos para o ritual sazonal de optimismo que é sempre a passagem do ano, podemos olhar para o momento de duas maneiras: ou foi mais ou menos semelhante aos anos anteriores (e essa é a minha escola); ou, por outro lado, podemos tentar retirar do que aconteceu nessa noite presságios e sinais sortidos. Esta última opção não é de todo o meu estilo mas para o que aqui me interessa vou fingir que sim.

Acontece, amigos, que no início deste ano perdi os óculos. Antes que oiça o coro zombeteiro dos leitores cantar em uníssono “devias estar bonito, devias” cumpre-me dizer em defesa da honra que a ocorrência deu-se antes das festividades. Ou seja, passei a meia-noite míope como uma toupeira.

Para os tais detectives de presságios este acontecimento estará cheio de significados esotéricos que redundam mais ou menos no postulado “o ano vai correr mal”. É provável que tenham razão como é provável que não a tenham.

Mas posso utilizar a perda dos meus óculos como uma metáfora ou uma espécie de desejo inconsciente, um acto falhado que o velho Freud não desdenharia na sua Psicopatologia da Vida Quotidiana e que que se resume ao facto de não querer ver ou querer ver mal este tempo.

Como de costume os dias encarregaram-se de me dar razão. Leio as notícias evitando o tom entre o clima de medo e os faróis de esperança com que agora se fala da pandemia e vou directo às nem por isso pequenas coisas. Como esta: uma professora de liceu em Massachussetts, nos Estados Unidos, afirmou estar orgulhosa por ter retirado a Odisseia de Homero do currículo da sua escola. Repito: está orgulhosa. Transcrevo o tweet de Heather Levine, professora do equivalente ao nosso nono ano de escolaridade:«Hahaha… Very proud to say we got the Odyssey removed from the curriculum this year!» .

A indestrutível estupidez de retirar o fundador da literatura de um currículo escolar fala por si. Mas mais perigoso é o facto de que esse acontecimento não é isolado. Já são banais as proibições ou no mínimo a censura de obras que se consideram “racistas” ou “preconceituosas”. O canône literário ocidental há muito que está sob fogo cerrado, como há muito o fez notar Harold Bloom. Neste caso, trata-se de agitadores de redes sociais, critícos literários e ideólogos variados que sob a hashtag #DisruptTexts se denominam de movimento que pretende reconstruir o cânone literário utilizando uma “lente crítica anti-racista e anti-preconceito”. Como facilmente se percebe, quem quer reconstruir quer destruir. E isso significa censurar ou interditar obras que mais do que literárias são matrizes civilizacionais – como é o caso da Odisseia de Homero.

Mal refeito de tanta imbecilidade viro a página e eis que descubro que na tradicional oração de abertura do congresso norte-americano, um congressista democrata (e que também é pastor religioso) utilizou , num esforço de linguagem “inclusiva”, as palavras “ámen” e “a-woman”. Isto seria cómico se não fosse tão perigoso. Saltemos alegremente por cima do facto de que a palavra latina não tem género e é uma expressão que significa “assim seja”, como todos os cristãos bem conhecem. O que não se deve ignorar é que se isto acontece é porque existe uma ortodoxia que mesmo movida pelas melhores causas, é como todas as ortodoxias: totalitárias e criadoras de fanáticos. Quando se mistura a ignorância com a estupidez cega, o resultado pode ser terrível para todos.

Desisto de ler, até porque os meus olhos começam a ficar cansados. Mas quer-me parecer que assim prefiro nunca mais encontrar os óculos até que os dias mudem.

6 Jan 2021

O futuro eterno agora

James Goodman escreveu provavelmente o livro mais esdrúxulo que já foi dado a ler, «O Futuro Eterno Agora»: um pequeno ensaio acerca de um teledisco dos Metallica, gravado em 1998, que nem sequer é uma canção da banda, mas uma versão de «Whiskey In The Jaar», canção popular irlandesa do século XVII, embora os rockers americanos façam uma versão partindo não do original, e sim de uma outra versão, da banda rock irlandesa Thin Lizzy, que gravou a canção no inicio dos anos 70. Esta canção conta a história de um salteador que acaba sendo preso depois de roubar um militar inglês, nas montanhas de Cork e Kerry. Mas isto é irrelevante para o escritor, pois aquilo que lhe importa é o desregramento que aparece no teledisco dos Metallica, gravado numa casa de Brooklyn.

Nas primeiras páginas, atravessamos aquilo que pode ser considerado a história das versões mais conhecidas da canção: The Dublinners, na década de 60 do século passado, os Thin Lizzy na década de 70 do mesmo século, que é a primeira vez que a música passa realmente para o mundo rock, depois no início da década de 90 uma versão mais rápida por The Dublinners e The Pogues, e por fim a cover dos Metallica, já no final do século XX. E esta é, para Goodman, a versão que importa abordar. E não tanto no disco, mas no teledisco. Porque o livro é acerca do teledisco da banda e não propriamente sobre a canção. Lê-se na pequena introdução: «A canção em si mesma não me importa tanto, poderia ser outra qualquer, desde que o teledisco fosse aquele. É, por conseguinte, um livro sobre um teledisco. E este mostra-nos os Metallica a tocarem numa casa cheia de jovens raparigas seminuas, em ambos os polos dos excessos: dançam, bebem, tomam drogas, têm sexo; caem, vomitam, adormecem. E isto tudo nos mundos fechados que são uma casa e um teledisco de pouco mais de 4 minutos. Aquela casa e aqueles 4 minutos representam mais do que um mundo, representam um modo de viver a vida.»

James Goodman tem agora com 45 anos, 39 quando publicou «O Futuro Eterno Agora», e está longe de ser um reputado escritor americano. Pelo contrário, raramente é convidado para revistas e nunca fez a capa de uma. Goodman ensina filosofia medieval no departamento de filosofia da Universidade Brown, no estado de Rhode Island. A sua tese de doutoramento, publicada depois de «O Futuro Eterno Agora», foi acerca da abstinência e tinha como título «Epicuro e a Mecânica de Controlo do Desejo». Nessa tese Goodman mostra como Epicuro, partindo fundamentalmente dos textos de Platão, funda uma mecânica de controlo dos desejos, de modo a poder alcançar-se apenas os prazeres bons e não aqueles que nos são prejudiciais. Esta acção, de separação do trigo do joio dos prazeres, é fundamental para se alcançar uma vida feliz, segundo Epicuro. Por conseguinte, para que tal pudesse ser alcançado com eficácia, seria necessário um conhecimento profundo da mecânica do desejo, para podermos controlar o desejo que nos poderia tirar do nosso caminho. No fundo, deixar-se levar por desejos que conduzem a prazeres nefastos conduz a perdermo-nos de nós mesmos. Ou seja, um homem deixa de ser ele mesmo quando se entrega aos prazeres que o desviam do seu caminho, os prazeres que lhe são prejudiciais. Como exemplo, Goodman mostra uma extensa paleta de vícios, desde o jogo à heroína, passando pela comida e pelo sexo. Mas a tese da abstinência de Goodman mostra também uma ligação estreita entre abstinência ou controlo dos desejos e futuro.

Ou seja, para Goodman, Epicuro liga domínio sobre os desejos com futuro, como um adiante, com a vida ter sempre um adiante de si. É esta consciência de que a vida é à frente, de que a vida não é aqui e agora, que leva Epicuro à criação desse mecanismo de controlo do desejo. Na sua tese, escreve: «Se a vida humana durasse apenas 30 anos, uma mecânica do controlo do desejo não seria tão importante.» Em «O Futuro Eterno Agora», escreve: «Com o rock’n’roll, e especialmente o punk rock, expandiu-se a ideia de que a vida depois dos 30 anos seria uma triste forma de vida. Do mesmo modo que para os antigos guerreiros morrer de velhos ao invés de no campo de batalha.»

Por conseguinte, parece evidente que estes dois textos têm uma ligação profunda entre eles. Se uma mecânica de controlo dos desejos faz todo o sentido numa vida que se dá conta do futuro, isso não faz qualquer sentido para quem veja a vida como um eterno agora. Para Goodman, o teledisco dos Metallica é uma obra-prima acerca desse eterno agora, de se viver como se não houvesse futuro. Na verdade, é mais do que não haver futuro. Eterno agora é uma ilusão de quem está de fora. De quem está num ponto de vista diferente ou radicalmente oposto, como o de Epicuro. Veja-se como o autor descreve: «O teledisco mostra pessoas que vivem de um modo, não que não contemplem o futuro, mas que o futuro será continuamente igual ao presente. Para aquelas pessoas, que podem ser personagens de um pequeno filme, embora representem um modo real de se viver, o futuro é um tempo que irá repetir o agora em que estão. É errado pensar que o futuro não está no seu horizonte de sentido. O futuro está no horizonte de sentido, mas no modo de um futuro eterno agora. Amanhã, o mês seguinte, o ano seguinte, a década seguinte será semelhante ao agora em que estão, apenas noutro tempo, com o mesmo desregramento, os mesmos desejos, os mesmos tipos de experiência. Ou seja, o futuro existe, mas não existe; ele não é preenchido, mas ilusoriamente preenchido.»

James Goodman conduz-nos a uma reflexão filosófica não apenas acerca dos excessos, mas também acerca da relação da vida que se vive com a consciência que se tem de futuro.

Termino com uma curiosidade. Às páginas 54-5, Goodman fala do som da banda nesse teledisco. Refere-se ao som pesado e mais grave das guitarras – em relação à também versão rock dos Thin Lizzy – como modo de acentuar o desregramento que está em causa em todo aquele «pequeno filme». Acrescenta depois que os Metallica tocam esta canção com uma afinação em C# (Dó sustenido). É provável que haja gravações ou espectáculos em que isso aconteça, mas no teledisco a que o escritor se refere os Metallica tocam com uma afinação em D (Ré), por conseguinte, não tão grave quanto Goodman nos quer dar a entender, embora bem mais grave que a dos Thin Lizzy, que tocava com a afinação clássica em E (Mi). Mas é um detalhe sem importância num texto que nos prende do início ao fim, não apenas pela inusitada reflexão, como também pela profundidade da mesma.

5 Jan 2021

Fernão de Magalhães em Portugal

Sobre a data e local de nascimento de Fernão de Magalhães existem divergências, sendo 1479 o ano mais provável e para alguns adeptos o de 1480, enquanto muitas terras reclamam tê-lo visto nascer, mas três salientam-se, Ponte da Barca no Minho, Sabrosa em Trás-os-Montes, que Stefan Zweig diz não ser, referindo como aceitável o Porto e Rui Manuel Loureiro especifica Gaia. Pertencia a uma antiga família da nobreza rural, sendo filho de Rui de Magalhães, alcaide-mor de Aveiro, e de Aldonça Mesquita. Seguiu ainda jovem para Lisboa, servindo como pajem da Rainha D. Leonor, esposa de D. João II, e manteve-se morador da casa real com D. Manuel.

Na capital, Fernão de Magalhães soube da descoberta de Bartolomeu Dias e terá presenciado as partidas e chegadas, entre outras, das viagens de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. No ano de 1502, muitas foram as expedições que regressaram a Lisboa, como a de Miguel e Vasqueanes Corte Real, pois o irmão Gaspar ficara a explorar a Terra Nova; da Índia veio a terceira frota comandada por João da Nova, onde embarcara Diogo Barbosa, participante mais tarde na viagem de Fernão de Magalhães; e a de Américo Vespúcio, que navegara para além da parte portuguesa do continente americano e singrando para Sudoeste no Atlântico, explorou até próximo do extremo Sul à procura do Cabo de Catígara, para entrar no Índico.

Nas tabernas de Lisboa, os recém-chegados marinheiros contavam as experiências e em discussões inebriantes surgiam ideias como, se havia ligação por água na parte Sul de África entre o Atlântico e o Índico, então esses ‘mares’ estariam também ligados a Oeste. Questionava-se se essa costa percorrida era a da China, ou correspondia a um novo continente. Novas misturadas com outras notícias do reino, do estrangeiro e do social quotidiano, no adro de S. Domingos a certas horas do dia eram licitadas por quem as queria ouvir.

Preparava Cristóvão Colombo a quarta viagem, iniciada nesse ano de 1502, mas não ia acompanhado, como acontecera nas duas primeiras viagens, por o piloto e cartógrafo espanhol Juan de La Cosa. Este, em 1500 desenhara o primeiro mapa com o Novo Mundo, onde em destaque de cor verde representou a América, do Canadá ao Brasil com as Caraíbas, enquanto num pardo tom mostrava o restante mundo até à China. De 1502 era o Planisfério dito de «Cantino», desenhado por um anónimo cartógrafo português, actualizado já com informações geográficas provenientes da viagem de Álvares Cabral. Tinha ainda como base o mapa de Ptolomeu e usava as tradicionais cartas-portulano para os lugares não visitados por os portugueses. Baseado em latitudes e rumos, apresentava apenas 250º de longitude, representando com certo rigor a linha de costa do Extremo Oriente, apesar da península Indochinesa se alongar em latitude para o hemisfério Sul, quase a tocar o trópico de Capricórnio. Nele constavam legendas, entre as quais a de um oceano Oriental a fazer de ligação ao outro lado do planisfério, com o Novo Mundo. O problema do cálculo das longitudes só dois séculos e meio depois ficou resolvido, desactualizando então o Planisfério, que custara 12 ducados de ouro (uma fortuna) ao duque de Ferrara e foi levado para Itália por o seu agente em Lisboa, Alberto Cantino.

ANUAIS ARMADAS À ÍNDIA

A consciencialização de globo e de um novo mundo começava a estruturar-se e colocava Fernão de Magalhães a magicar sobre o que escutava. Assistia então à partida da quarta armada à Índia, capitaneada por o Almirante Vasco da Gama, que pela segunda vez ia ao Oriente, agora para apresentar as credenciais do Rei D. Manuel, Senhor da Navegação, Conquista e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. Dividida em duas frotas, a primeira partiu a 10 de Fevereiro de 1502 com quinze navios e a segunda esquadra a 1 de Abril, composta por três naus e três caravelas, capitaneada por seu filho Estêvão da Gama, onde seguiam os embaixadores aos reis de Cochim e Cananor. (A. G. em Anais do Clube Militar Naval, 1989)

No porto árabe da ilha de Quíloa (na actual Tanzânia) tornou tributário de Portugal o Sultão, que como prova de fidelidade deu um tributo de mil e quinhentos miticais de ouro, usado (como escreveria Damião de Góis, nascido nesse ano) para fazer a Custódia do Mosteiro dos Jerónimos.

Encontrando estacionado em frente a Calicute o navio egípcio Meri, Vasco da Gama agiu sem piedade e queimou vivos os 300 passageiros e porque o Samorim de Calicute se recusou negociar, bombardeou-lhe a cidade e matou todos os locais que capturou. A 7 de Novembro de 1502 estava em Cochim, onde os cristãos nestorianos do Malabar se subordinaram ao Rei de Portugal, ficando assim realizado um dos objectivos da viagem à Índia, o de procurar cristãos. O outro, o de buscar especiarias, a feitoria de Cochim fizera a aquisição de um enorme carregamento para ele levar no regresso a Portugal. Vasco da Gama deixou o tio Vicente Sodré com cinco navios a apoiar as feitorias de Cananor e de Cochim, incumbindo-lhe também a missão de em pleno território do Islão impedir a passagem ao Mar Vermelho das naus que se dirigiam a Meca. À entrada desse mar, Vicente Sodré encontrou na Primavera de 1503 a ilha de Socotorá; estava então a sair do Tejo a quinta armada composta por três esquadras, com três naus cada uma, comandadas por Afonso de Albuquerque, seu primo Francisco de Albuquerque e António de Saldanha. Este último ficou com a missão de patrulhar a costa da Arábia e impedir os navios dos maometanos de hostilizar a navegação portuguesa no Índico. Os dois primos foram directamente para Cochim, o principal entreposto para a aquisição de especiarias, a fim de assegurar a carga a transportar para o reino. Com Afonso de Albuquerque na primeira esquadra seguia capitão de uma das naus Duarte Pacheco Pereira que, após destruírem 50 embarcações de Calicute, ficou em Cochim desde Novembro de 1503 como capitão da fortaleza, entretanto construída. Tinha três barcos, 150 soldados, com artilharia e munições para resistir aos constantes assaltos do Samorim e conseguiu demovê-lo desse intento. Pacheco Pereira regressou no início de 1505 a Portugal na sexta armada, capitaneada por Lopo Soares de Albergaria.

Vasco da Gama ao comando da quarta armada fez a viagem de retorno e estava em Lisboa a 1 de Dezembro de 1503.
A chegada dos portugueses ao Oriente perturbou o comércio dos produtos asiáticos, sobretudo especiarias, tanto aos reinos indianos e árabes das costas do Mar Arábico, como na Europa, cujo comércio era controlado há três séculos por Veneza, aliada com os mamelucos (1250-1517) do Egipto, onde em Alexandria os mercadores venezianos estavam instalados desde 1310.

D. Manuel, segundo Veríssimo Serrão, compreendeu “a necessidade de alterar a sua estratégia no Oriente. Esta não podia mais confinar-se ao envio de frotas anuais com objectivos mercantis e religiosos. Impunha-se também assentar um domínio político que garantisse a força militar e o recurso a outros centros comerciais do Índico.”

4 Jan 2021

O Monge Que Deu o Braço a Bodhidarma

Crónica por Paulo Maia e Carmo

Li Ao (772-841) escritor e em geral erudito confuciano, possuía uma vontade de conhecer que se manifestou no reconhecimento filosófico e literário mas também no deslumbramento do espaço. Na sua célebre «Memória da minha viagem ao Sul» que decorreu no ano 809 e que o levou de Luoyang a Guangzhou foi anotando o que via e interpretando. No dia 1 de Abril, por exemplo, escreveu: «Visitei Wudangshan (Hubei) a Montanha da floresta marcial (…) Escutei o vento nos pinheiros convocando as montanhas encantadas com longos cantos, escutei os guinchos dos macacos e rapazes da montanha que imitavam as cotovias.» É possível que tenha sido aí, nessa atenção ao que escutava, que teria ouvido falar de um mestre do Budismo Chan chamado Yaoshan Weiyan (745-827) cuja fama se difundia na habitual forma de diálogos reveladores. Um deles coloca-o conversando com o seu mestre Shitou Xiqian (700-790) que lhe terá perguntado: «Que fazes aqui?» ao que Yaoshan respondeu «Não estou a fazer nada.» «Então estás só aí sentado, a descansar» disse Shitou. Yaoshan respondeu: «Se estivesse sentado, a descansar, já estaria fazendo alguma coisa.» Essa fama de sabedoria loquaz levaria Li Ao, o confuciano, a querer conhecer o monge adepto da súbita iluminação. Porém, ao encontra-lo, terá ficado decepcionado: «Ver-te não é tão interessante como ouvir falar de ti.» A resposta do mestre perduraria na reflexão sobre a realidade final, aquilo que pode ser visto: «Porque desvalorizas o olhar e dás importância ao ouvido?» Na realização dessa imprecisão, pintores adeptos do Budismo Chan criariam uma fórmula de representação que daria um valioso contributo para a percepção de o que é a pintura.

Shi Ke, que viveu no século X, no período das Cinco Dinastias (907-960) seria reconhecido na posteridade pela pintura «Dois patriarcas» que, numa provável cópia do século XIII, se encontra no Museu Nacional de Tóquio (rolo vertical, 35, 3 x 64,4 cm, tinta sobre papel) e se tornaria icónica desse tipo de representação, utilizando só linhas velozes e sombras. Numa dessas duas figuras sentadas, «harmonizando a sua mente», observadores reconheceram a efígie do segundo patriarca do Chan, Shenguang, também conhecido como Dazu Huike (487-593) que possuiria uma inquietação que só Bodhidarma o primeiro patriarca, poderia aquietar. Quando foi ao seu encontro, ele meditava frente à parede de uma caverna, perto do mosteiro de Shaolin, e a vontade de ajudar a difundir os ensinamentos do Chan era tal que se diz que cortou e lhe ofereceu o seu braço, um sacrifício do corpo que os adeptos facilmente entenderam como sinal de liberdade espiritual. Que na pintura de Shi Ke se revela nesse diálogo entre o Chan e a pintura, que resultaria na adopção de especiosos termos para se explicar como pomo, a tinta espalhada ou yipin, a categoria naturalmente desenvolta.

4 Jan 2021

Tornados & Réveillon

28/12/20

O ano termina. Não predigo nada. Sempre gatinhámos de crise em crise, só a identidade dos desafectos é que muda. A novidade que emergiu em 2020 é que os costumes de sermos servidos pela natureza a nosso bel prazer foram virados do avesso com a lotaria do vírus. Ficámos avisados. Temo que a partir de agora o Pai Natal nos traga o apetite devastador de uma praga virológica. Passámos de caçadores a presas.

Bom, isto é o problema de alguns, não o meu, pois, a partir do próximo ano, segundo o sonho que tive hoje, serei comissário de bordo na companhia aérea de Moçambique. Deve ter sido da ventoinha que me refrigerou a soneca, esta noite. Gostei de me ver todo pintas, de farda azul e botões dourados, a servir uísques embrulhados em guardanapo e no inglês desenvolto do filho de um diplomata do Burundi. Ninguém parecia dar pela minha idade e acordei convencido de que já estava em 2022 e estivera sempre a voar para destinos opostos aos dos surtos epidémicos. Mais: Deus existe e era uma bela hospedeira da Costa do Marfim, com quem partilhava uma suite em hotéis de todo o mundo. Há sonhos que tornam ingrata qualquer aterragem.

30/12/20

Esta semana tive uma conversa engraçada numa esplanada. O jovem empregado de mesa, avançava e recuava, vacilante, antes de se me dirigir:

Profe, posso perguntar-lhe uma coisa? Força. Estou a escrever um livro. Óptimo. Qual é o assunto central do teu livro? A águia. A águia? Bom, como trabalhas todo os dias nesta esplanada não será um livro sobre a observação das aves. É uma ficção? É real. É tudo o que me aconteceu, desde lá até aqui… Uma auto-biografia, por que não? E já terminaste? Estou com dificuldades em relação ao prefácio… Estás a sugerir que eu o possa fazer? Se o professor gostar. Why not? E tens a coisa muito desenvolvida? Tenho quatro páginas. Estás a ver aqui o Savana? Quatro páginas dá um artigo de meia página. É preciso mais para um livro. Quantas? Para um primeiro livro, se chegares às quarenta, não seria mau. Vou caprichar, profe… Não espero outra coisa…

Este diálogo só me faz lembrar um poema do Bertolt Brecht, A LISTA DOS PRECISOS, que diz assim:
«Muitos conheço que andam por aí com uma lista/ Em que está o que precisam./ O que vê a lista diz: É muito./ Mas o que escreveu diz: É o mínimo. // Mas muitos mostram com orgulho a sua lista/ Em que está pouco.»

O diálogo com o jovem aspirante a escritor recorda-me ainda como durante quinze anos redigi começos de narrativas que nunca acabei, enquanto, profissionalmente, escrevia diálogos para filmes, em cima das estruturas que eram construídas colectivamente. Sozinho não me atrevia a acabar qualquer narrativa.

Até que pelos trinta e cinco anos me saiu o primeiro conto, começado, continuado e acabado num jacto. Chamava-se O Milagre de Sevilha e está no meu primeiro livro de contos, Cegueira de Rios.

Era uma variante em torno do mito de Don Juan. Dois motoristas aguardam no parque de estacionamento pelos patrões. E um, intrigado, pergunta ao outro: É verdade que o teu patrão chegou às mil amantes? Confirmo.

Espanta-se o primeiro: Mas como, se o homem é cego? O que a partir daí se desenvolve é bastante delirante e relata o sucesso desse particular Don Juan até que numa visita a Sevilha, onde, coincidentemente, o cego se deslocara em negócios, o Papa faz o primeiro milagre do seu pontíficado e cura-lhe a cegueira. Isso perturbará para sempre o seu dom.

O conto é divertido, embora dê agora conta que ter como personagens dois motoristas empobrece-o. Devia ser assim: dia 24 de Dezembro, o Pai Natal, enfadado pela rotina do seu trabalho, vê o motorista do Don Juan num parque de estacionamento. Resolve “estacionar” por momentos as suas renas e ir interrogá-lo: Mas como, se é cego?

Também a bondade não é cega, pergunta-lhe o outro. O que se seguirá, a partir destas premissas, promete ser bastante delirante e ganhar em pedalada ao diálogo anterior. O tempo corrige sempre o informe.

31/12/2020

Há 22 anos escrevi um livro com a Maria Velho da Costa, Prémio Camões e uma das grandes escritoras portuguesas do século XX. Chama-se o livro O Inferno, eram três guiões cinematográficos sobre o Camilo Castelo Branco, e foi editado, por mim e pela Teresa Noronha, numa pequena editora que tivemos, a Íman. Agora, à Teresa acabou de ser atribuído o Prémio Maria Velho da Costa, patrocinado pela SPA (Sociedade Portuguesa de Autores), por causa do seu romance Tornado (noto agora, à sua maneira, outro Inferno). O círculo completou-se. Alegram-me duas coisas:

a) tenho a certeza de que a MVC gostaria muito deste livro, b) este romance vai trazer boas novidades, formais e de conteúdos, à literatura moçambicana. Há quinze anos que assisto ao parto difícil deste livro, que teve, no mínimo, cinco versões. Mas valeu a pena a persistência. Já comprámos um champanhe de outra qualidade para festejar este auspicioso fim de ano.

Será publicado pela Exclamação, em Fevereiro Março deste ano, o romance, que assim começa:

«Soube anos mais tarde, quando vasculhava nos arquivos do Notícias à procura de alguma maldita crónica ou sinal daquele dia, com os jornais abertos à minha frente, que varri de trás para a frente e de frente para trás, sem encontrar qualquer indício especial e nem mesmo o menor traço necrológico, notícia ou fotografia, como se a tua morte fosse, mais do que anónima, ignorada. Mas soube aí, com surpresa – e talvez esse facto possa desenrolar o primeiro fio deste novelo que se emaranhou depois da tua morte – que o quarto dia do mês de outubro de 1983, em que decidiste pela enésima e derradeira vez deixar o mundo, pertenceu àquele estranho ano em que as acácias se esqueceram de florir.”

31 Dez 2020

A tristeza

Há tristeza quando não há como responder ao mundo. O que a origina pode ou não ser concreto. Na maior parte dos casos, não existem causas para a tristeza que sejam definitivas, embora a perda seja a grande excepção.

A perda não é referencial e dificilmente se centra num objecto claro. E quando parece tê-lo, logo o foco se reparte por diversos outros universos sem que haja controlo sobre esse travelling existencial sempre em movimento. A perda é uma viagem ou uma queda interior que vê o mundo da mesma forma que os periscópios dos submarinos pressentem o perigo. A perda tem as suas paisagens próprias. São paisagens lentas, paisagens que comprimem, paisagens que por vezes sabem conter a respiração. Não há espaço fora de si na tristeza que advém da perda.

A perda não tem conteúdo e geralmente avança como uma água gelada que se distribui de modo desigual e que não permite avaliar, se o que está em causa é remediável ou não. A perda não é, no entanto, desgarrada ou susceptível de ser vivida num vórtice. Paradoxalmente, interpela-nos de modo tranquilo, paciente e introspectivo, acenando-nos até com uma espécie de amor próprio.

A perda, o elo mais cristalino da tristeza, tem sobretudo como base a incompreensão. Desde logo dela mesma. Por isso se pode perguntar: o que se perde com a perda de um ente querido? o que se perde com a perda de uma pessoa amada? O que se perde com a perda de um objecto único? Ou o que se perde com a perda de uma cidade que já ardeu? A resposta será sempre vaga, deslizante, centrípeta. A perda é, por isso mesmo, irrespondível. Tal como um bom poema.

Para além da perda, a tristeza pode ter na sua origem algo que nos aparece com brusquidão pela frente e que traz consigo um efeito de desalento (ou mesmo de desilusão) movido por uma alteridade negativa. Trata-se de qualquer coisa que não se espera, porque quem no-la faz aparecer demonstra uma ausência de empatia e de verossimilhança que seria desejada e sobretudo esperada. Este tipo de alteridade implica o desamarrar abrupto de laços, quando se tinha em conta que eles estariam firmemente ligados. A confiança quebra-se como o gelo e a tristeza estará na evidência surpreendida desse abatimento.

Apesar da perda e da alteridade negativa, a tristeza sustenta-se fora de causas. Existe por si e com um combustível próprio que preenche a incompletude. Só quando é nomeada, ou tida em conta no território semântico das palavras, é que nos aparece como se fosse o oposto da alegria. Mas nada pode ser mais falso. Não é por haver menos alegria que há mais tristeza, nem é por haver mais alegria que há menos tristeza. A tristeza é rigorosamente autónoma, desenvolve atmosferas próprias e não cria fronteiras rígidas com nada; ela própria sabe muito bem como contemplar o nada (que é próprio da angústia) com toda a parcimónia.

A tristeza é a certeza vivida de muitas mortes sem as antecipar, ou sem estar na crista do acto em que elas tiveram ou terão lugar. A tristeza não é uma reacção seja ao que for, mas antes o viver intensamente imerso nesse território a que imaginariamente se reagiria de fora para dentro. A tristeza respira dentro do inconcebível, o que significa estar mergulhada num aquário que roda sobre si; um aquário reflexivo, mas desprendido de ferramentas técnicas de reflexão. O que encara na sua frente, desaba logo, mas sem qualquer rasgo, pois a poética da tristeza é um céu brando de que não se sai (um céu virado ao contrário onde os movimentos mundanos e correntes da vida continuam à nossa volta como se fossem um mero espectáculo).

Por ser centrípeta, autónoma e não ter conteúdo, a tristeza não tem sequer linguagem. Tal como a perda ou a alteridade negativa também não têm linguagem. O glossário da tristeza é um glossário abstracto, sensorial e intraduzível. Um glossário poético e, ao mesmo tempo, um glossário que é um manual para a grande arte da sobrevivência, de que se poderão extrair dois ensinamentos essenciais: (1) estar triste fora da tristeza é saber viver com sageza e (2) estar triste dentro da tristeza é – no que corresponde à finalidade de toda a filosofia – uma forma (serena) de aprender a morrer.

31 Dez 2020

Das promessas de um ano novo

Pois sim, pois claro: estes 365 dias que são a medida do tempo que por estas bandas se inventou não correram nada bem. E a razão do medo, solidão, revolta e outras emoções que todos sabemos atravessou de forma implacável a maneira como cada um vê os dias. De repente os calendários uniram-se numa constatação terrível e óbvia de que de nada vale a hora que cada um inventa quando a urgência é maior, visível e letal. E mesmo assim – mesmo assim, amigos – todos os crentes no calendário gregoriano, para não me afastar de onde vivo, irão reiterar os seus desejos e resoluções optimistas e, aqui entre nós, irresolúveis.

Não estou aqui para envergonhar ninguém mas a verdade é que me lembro na perfeição do que desejei entre brindes no primeiro minuto de 2020 – o mesmo do que toda a gente. Que a partir daquele momento a vida fosse mais fácil e bonita e próspera para nós e para os que nos estão próximos. E depois chegou 2020.

Não me levem a mal. Até eu embarco nesse optimismo sazonal e, de preferência, ligeiramente ébrio. Mas na ressaca e quando a dor de cabeça vem dar razão ao pessimista do costume a mesma pergunta regressa: porque raio desejamos o que será extraordinário acontecer? E mais bizarro ainda: porque diabo nos comprometemos a mentir descaradamente a nós próprios?

Não tenho grandes respostas, apenas perguntas. Sei que em relação à primeira pergunta o desejo desesperado de um mundo melhor já vem de trás: desde os babilónios que prometiam aos deuses devolver o que tinham roubado durante o ano, passando pelos votos dos romanos ao deus Janus e chegando ao judaísmo e ao cristianismo, reflecte sobretudo uma vontade de dias mais solares e um melhor comportamento para si e em relação aos outros.

Não duvido que a poucos passos do dealbar de 2021 o mesmo irá acontecer – mesmo que esses desejos possam vir a ser tragicamente contrariados como agora infelizmente soubemos da pior maneira. Francamente, continuarei a considerar as promessas de melhores dias pessoais e universais desta época algo que oscila entre o desejo e a culpa.

Mas não faz mal: este ano, mais do que outros, essa suspensão da descrença torna-se ainda mais necessária. E não serei eu a interrompê-la com a verdade do cínico. Por isso, amigos, estejam onde estiverem, acreditem que o próximo ano será melhor, a começar por vós mesmos. Peçam-no, gritem-no. Vivamos em festa e em vertigem feliz, até que a realidade nos venha morder as canelas. E quando isso acontecer, apaziguem-na com gratidão e com o melhor que os dias têm para oferecer.
Feliz ano novo para todos.

30 Dez 2020

O homem que escrevia sobre os outros

Numa entrevista nos anos 80, o escritor franco-polaco, Charles Ravinski dizia que escrevia muito sobre os outros para se proteger de escrever demasiado obre si mesmo. Outra das suas tácticas para se proteger desse pecado mortal, como lhe chamava Ravinski, era a tradução. Isso não o impediu de, aos 87 anos, já no início deste século, escrever a sua obra magna «Os Caminhos do Senhor». Neste livro, de mais de 700 páginas, a que o filósofo francês Louis Garnier chamou «a obra dos outros», Ravinski escreve só sobre os seus amigos e vizinhos. Não naquele sentido telenovelístico de espreitar para a casa do outro e descrever o que lá se passa – eventualmente trocando os nomes e por vezes as profissões – mas intercalando frases deles mesmos com pensamentos que poderiam pertencer-lhes, partindo das suas frases. Aliás, escreve à página 23: «O que pensamos nunca é nosso.» Mas veja-se como começa o livro, de modo a entendermos a operacionalidade: «Gustave chegou ao café sentou-se à minha frente e disse-me que ia morrer. Um cancro no pâncreas, detectado apenas a tempo de ordenar o que ia ficar para os outros. Perguntou-me: “Charles, queres ficar com alguma coisa lá de casa?” Quando nos separámos fiquei a pensar em quando aquela dor seria também a minha. Teria a coragem dele? Olhar para as coisas da casa, tentar entender o que deveria ser dado indiferentemente, o que deveria ser destruído e aquilo que devia ficar para os amigos. Tenho tido muita sorte com o meu corpo, com a minha vida. A situação de Gustave fez com que me lembrasse de um dos meus primeiros amigos, Jacques, que morreu aos 19 anos, num acidente de carro. E depois lembrar-me também da minha primeira mulher, Catherine, que morreu de cancro da mama aos 37 anos. Ainda oiço e palpo o sofrimento dela. E lembro-me, muito claramente, da minha incompreensão. Tenho tido muita sorte com este corpo.»

Estas reflexões e discursos de Gustave – porque há mais conversas no café –, alongam-se por mais de trinta páginas. Em momento algum, nos encontros entre Charles e os seus amigos ou vizinhos aparece uma palavra que não seja derivada da situação dos outros frente a ele ou das suas próprias palavras. Nem sequer um «bom dia» ou «como está?». As recordações da sua vida são apostas ao que os outros falam, ao que lhes acontece, como se as suas memórias fossem um prolongamento dos outros e não dele. Porque, escreve Ravinski, a propósito do «Vidraças», um pedinte junto à casa de Charles, que se sentava sempre encostado aos vidros das montras a ler, com uma pequena caixa de plástico em frente, para as esmolas: «Nenhum de nós é único. Somos todos paredes contíguas de outros. De um de nós para o outro, ouve-se tudo o que dói. A vida humana é tão incompreensível que deveríamos ter outra palavra para ela. A vida não é isto que somos. É uma parte dela, não é significativa, nem sequer a melhor ou a mais importante; nem sequer a que mais sofre. Somos a parte absurda da vida. Escutamos tudo, não compreendemos nada.»

Ravinski expressa o absurdo de viver para ver morrer quem se ama. Ele mesmo dizia ser uma maldição continuar a viver para além dos outros. Pensa, enquanto está sentado no café com o amigo: «Quando Gustave morrer, ficarei só no mundo. Nem mais um amigo dos tempos em que havia futuro e não se dava por viver. Mas Gustave interrompe-me os pensamentos e diz: «Lembras-te da Sara? A Sara Bronstein, uma poeta muito bonita, que se apaixonou perdidamente pelo Camus e se suicidou aos trinta e poucos anos… Nas últimas semanas não me sai da cabeça.

Lembro-me continuamente de uma coisa que ela me disse: achas que alguém se vai lembrar de mim se eu morrer amanhã? Nunca lhe respondi. Nunca lhe disse nada. Ela tinha bebido bastante e julguei aquilo um disparate. Enchi-lhe o copo com um sorriso, foi tudo. Dias depois matava-se. E agora, mais de trinta anos depois, aqui estou à beira da morte a lembrar-me dela, mais do que das minhas amantes e dos meus amigos.” Fiquei em silêncio a olhar para ele e não tive coragem de lhe dizer que também eu tinha sido amante de Sara, a bela poeta suicida.»

O livro está repleto de pequenas histórias a envolverem os seus amigos, alguns apenas conhecidos, intelectuais e artistas de Paris. Assim, «Os Caminhos do Senhor» torna-se um longo desfilar de mortes, de sofrimento à volta das mortes, de muitas pessoas que fizeram parte da vida de Ravinski. O livro aparece-nos como uma espécie de longa ode à memória. Porque, mais do que exaltação da vida ou da morte ou do amor ou da amizade, é a memória que surge com mais iluminação. Como diz Gustave: «Poder chegar à nossa idade lembrando tanto e ainda continuar a descobrir novas sentidos nessas memórias não deixa de ser belo, não achas Charles?» Ou já a mais de meio do livro, uma fala do seu barbeiro de décadas, pouco mais novo que Charles: «“Doutor, isto de lembrar o antigamente, tem que se lhe diga! Veja lá que ainda ontem me lembrei de quando era criança, ainda em Rheu, na região de Rennes, ter partido a cabeça ao meu irmão com uma pedrada, por estarmos a discutir por causa de uma bicicleta… E a vida toda, ou quase toda, está bem de ver, tinha a ideia de que quem lhe partiu a cabeça tinha sido o Frederique, um amigo nosso que só nos fazia mal. Uma espécie de aviso pra vida… E afinal o amigo mau fui eu. Para você ver. Como o meu irmão já morreu e da outra peste nunca mais ouvi falar, vou ficar sem saber o que realmente se passou.”

Fiquei a pensar que provavelmente o irmão também não iria lembrar os acontecimentos tal como se passaram, porque talvez ao longo da vida eles tenham sido tão construídos como na realidade aconteceram. E hoje o que importa é a luz que ilumina esse dia, há mais de setenta anos. Esse dia continua iluminado, como se fosse um actor em palco, movimentando-se e dizendo as suas falas.»

Os caminhos do senhor, para que o título do livro remete, tem a ver com a estreita e estranha relação entre o destino e a memória. E por destino, em Ravinski, devemos entender os caminhos que se desenrolam ao passarmos de um dia para o outro, como portas. As pessoas que são invocadas ao longo destes caminhos, quer seja o Vidraças ou o barbeiro ou a senhora da mercearia ou os amigos mais próximos, que na altura da narrativa é apenas Gustave, tornam-se criações de Ravinski através não só da reflexão, mas fundamentalmente da memória. «A memória transforma tudo. A grande diferença, entre a memória de um computador e a nossa, é que o computador é um armazém e a nossa é um negociante. A memória do computador guarda tudo como foi, a nossa negoceia tudo para que seja como foi.», diz Gustave, e continua: «“Um dia, lembrar-te-ás de mim, sim, porque tu ainda vais passar dos 100 anos, e dirás: aquele gajo era muito boa pessoa. Logo eu, que sempre fui do pior com os outros. Sem simpatia, sem compaixão, sem uma mão estendida. Tu sabes bem, Charles, que sempre quis que o outro se fodesse, não sabes?” Eu sabia, claro, já éramos amigos há mais anos do que nos lembrávamos. Mas, evidentemente, o Gustave não tinha só qualidades. De quando em quando, lá tinha uma fraqueza e fazia qualquer coisa boa. Ou será que já a minha memória a trair-me.» Neste momento do livro, damo-nos conta de que tudo pode ser uma grande invenção.

De que na realidade talvez tudo não passe de uma grande invenção. Um livro que, além de belo, de nos mostrar algumas personagens icónicas de Paris, no faz pensar de um modo pertinente a acção da nossa memória. Porque no fundo, o que é a memória senão invocar os outros? Tudo o que não está aqui é outro. Ravinski sabia isso muito bem e mostrou-nos melhor ainda.

29 Dez 2020

Teoria da indiferença

Esquece – digo – com fervor, a mansidão lenta do deserto, as flores sobreviventes. As flores adaptadas, garras de leão, lindas e em extinção. As montanhas difíceis e de raro chover. As altas moradas. As visitas guiadas. As rosas do deserto, de troncos enlaçados a lembrar corpos e a abrir flor. Os mortos. A secura árida. As ruas sem limite e o horizonte fugindo a cada passo em frente. Dado ou devolvido. As pegadas. Que, mesmo nítidas se esfumam no recorte. Vendo bem, nem o lado da frente se lhes distingue do outro. E basta um vento. Daqueles que rolam rolos de fibras secas a varrer o deserto. Crânios. Esquece a tumultuosa ferida do meio-dia, a miragem aquosa, os animais que só bebem uma vez, que não somos nós e os cascos duros, fendidos e secos. A desidratação – mais grave – um esmorecimento difícil de revolver.

Esqueço. A alegria de ansiar a costa para qualquer lado em que é sempre vale. O desenho em frente do caminho mais longo. A persistência da água no corpo, a lucidez e a própria resistência, se se me entende. As ruas do deserto largas em todos os sentidos. E os semáforos inúteis que não desistem de crescer com as primeiras chuvas. Parcas chuvas e sinais. Ossadas a dormir tristes e em pose. E as dunas. A migração. Bocas fendidas a rir sarcasmos repetidos e em coro. Sorrisos sinuosos. Ondulações sem olhos, porque já bastam as estrelas serenas do alto, a velar.

A futura morte. Do que se afoita a inventar o acaso. O caminho pela linha mais longa e pela mais larga é o azar do erro. Esqueço. Aquele gesto a pedir a face quando não haja nem o gesto nem a face e tudo esteja como sempre.

Esquecer. À beira de uma coisa como indecisamente. As impróprias flores do deserto para tudo menos solidão. Mas não sei a cura neste remédio. Ao largo, na franja ainda do deserto, recuperável pela humidade. Remédio para a esperança que é para curar se é. Mais uma amputação. Nas ruas sem desenho. Do mal de viver, como um braço estranho e a mais e só porque se sente estranho e mais. Ou da raiz que é de crescer. Poderia dar-nos, o lirismo, para a elaboração, ou a perseguição ou a caminhada e o sentido. Ou a evasão. Uma casca para defender, para matar. A dor. Reconhecer e definir. A condição patológica do limiar baixo é como não abandonar o vale para subir ao cume.

Imitar o resto da natureza e o exemplo do casulo. A casa confortável, sedosa e nada ruidosa. A magia da elaboração e a miragem da transformação. Mas tanto que fazer nas ligações entre as coisas difíceis e destiladas complicações, fadadas à arrumação contante, recorrente e desesperante. Uma espécie de lida doméstica e como ela sem fim.

Esquecer. Teorias do sentido e do sentir. Esquecer. A indiferença. Ou sentimos o mundo ou nos encerramos. Casulos de seda são riscos. Entrar borboleta e sair larva, como um erro metafórico.

Esquecer. O encontro que é saber, antes de reconhecer. Antes do deserto o desenho da porta e antes da porta. Uma vastidão de lagartos estranhos e espreitar a carantonha do tempo e é à dentada e feroz que lhes arranca inglório a cauda. Sacodem-se mais leves e rápidos e sorriem sorrisos de lagarto no pensamento de que cresce de novo. A cauda. O paradoxo no esgar da bocarra que arranca e deixa crescer.
Esquecerei. Tudo, quando morrer.

28 Dez 2020

Dezembro

Que me desculpe, se surge todos os anos assim. Nem é que seja um mês pior do que os outros. Mas avizinha-se e o golpe nunca falha mês adentro. Como um Cristo a antever o abraço de pietá. O que é isto, dezembro. Um comboio aguardado no cais de embarque, cheio de expectativas e contas. Um comboio em que me vejo embarcada e já foi. Agora há que seguir. Eu não tenho nada. Mas eu celebro porque tenho um corpo, espaço. E cobertores sempre a mais. Nunca hei-de ter frio. Muito se esconde sobre a cama por debaixo de um cobertor. Uma criança de olhos arregalados e sono espantado a pedir a mesma história de sempre, pela milionésima vez e dedinhos pequeninos a sentir e a agarrar. Um gato quando se tem pressa e entre mãos umas meias finas de seda nunca imunes àquelas unhas agudas de brincar. Um cão grande do tamanho de um sofá da sala escondido com medo do trovejar da natureza. E, um dia, tudo lembrança.
A lembrar fragmentos de canções. Nina. Depois títulos, grandes títulos, dos quais simplesmente se podia costurar um texto, como uma manta de retalhos bem unidos a fazer sentido. Tanto já dito e escrito e precisar de continuar. Repetir, talvez. Algo pessoal com respeito. Por este corpo que é único mesmo se pequenas as suas incursões às palavras que são de ida e volta.
Dezembro é mês em que não suporto ficar. Ao ponto de encerrar todo um ano e reinventar todas as cartas e desejos. É a vertigem da viagem. Acabar e recomeçar sempre. Partir. Celebrar.
Dou números às coisas. O desta, em forma de crónica, é o número cinquenta, redondo como os zeros que se aproximam na meia-noite de fim de algo. De ano. Cinquenta desta leva e seriam celebrados também cento e cinquenta crónicas no todo, mas uma foi e veio por terra e só voltou dois anos depois. Portanto não pode contar a dobrar. Assim se perfazem para a semana e haverá que voltar a celebrar. Esta escrita nunca imaginada possível. O insólito e inesperado encontro de todas estas palavras entre si. E celebrar é o acto contínuo de viver. E de encontrar.
Celebro porque já tive pais. Porque já tive cães, mesmo os que não eram meus mas era como se fossem. Um por um dia e morreu porque já vinha da rua a morrer. E gatos. E um por vinte anos e esse era meu mas também se era já não é. E já tive crianças que também não eram minhas mas era como se fossem tão amadas e minhas que eram. É o que lhes acontece. Escaparem-se-nos. E depois, deixarem-se reencontrar como um passado ou uma promessa. Celebro por tudo o que me trouxe ao dia de hoje e a amanhã. E depois logo se vê. Tenho uma vida, um corpo. Cuido, mas cuido pouco. Por isso é o mesmo de sempre com estas diferenças incontroláveis. Bebo, fumo. Doces a mais e amarguras a mais. A sedosa alienação das gorduras. E uma raposa por uma noite na cozinha um mocho por uns tempos a comer atento pedacinhos de carne crua. Ele apanhava pássaros de cantar, com armadilhas de visco de madrugada que ficavam escondidos por debaixo de panos translúcidos para não se distraírem. E, de novo, nada disto é meu mas é da minha vida. Com quem diz eu tive uma fazenda em áfrica porque o livro.
E pássaros bonitos a fazer ninho, rolas a perturbar o sono tudo no sótão e acho que acaba aqui a lista. E o que parecem metáforas mas não são. É isto a escrita. O que parece e o que é. E vice versará sempre. Mas a menos que sobre o grito, que é sempre puro.
Há que celebrar, partir. Esta viagem. Num comboio por um sul que atravessa montanhas em túneis de profundidade exasperante. O estrondo da luz depois e de novo o mergulho na escuridão por debaixo destas toneladas imensas de rocha, pesadas e inabaláveis. Em escarpas que, súbitas, deixam espreitar lá abaixo a antiguidade de passagem. É o sabor de décadas a montante, o que fere de emoção e alimenta a seta. Cravada fundo na europa. O comboio a ferir o flanco. Túneis atrás de túneis a evidenciar os acidentes da terra íngreme. A parecer a vida, nesta alternância de luz e escuridão e sempre com os focos artificiais a cumprir o inevitável. A suprir o inevitável, deveria dizer. A viagem de comboio é lenta porque a terra é grande mesmo se o comboio é rápido. Combinámos para lá das montanhas e ao fundo do último túnel. Destes. Vamos chegar enxovalhados. É estranho, até, como a vida de três dias se nos amarfanha visivelmente no rosto e nas roupas, de nada fazer senão deixarmo-nos ir ao encontro.
Mesmo que chegue mais cedo, é certo que sempre gostei destes apeadeiros imprevisíveis de solidões adormentadas arrumadas como possível no desconforto de bancos corridos de madeira. Luzes fracas amarelas e a atravessar a noite não vão os viajantes, alguns de lado nenhum, perder o próximo comboio do meio da noite. Lá fora a avançar no cais.
Aquele momento de apanhar um comboio nocturno e chegar ao lugar marcado. Mas antes, sentar. O início da viagem com todo o resto pela frente. Pela noite fora. E lá no fundo, tu.
Enrosco-me no cobertor de lã quente com a cabeça apoiada na janela para a noite e olho o outro dobrado no banco em frente. Havemos de nos deitar naquele alto descampado e frio, que não será frio porque temos estas mantas. Para contemplar estrelas e contá-las no céu sem fim. Um momento que não é para datar. Coisas sem essas coisas.
E sempre e enquanto dura, este som continuo e embalador. Mecânico. As rotações mecânicas do comboio pela noite fora. A levar em frente. E em frente, amanhã.
Não olho agora pela janela. A noite só me devolve o meu reflexo e as luzes amarelas da carruagem.

14 Dez 2020

O possível

Para haver liberdade tem de haver uma liberação completa do passado. Mas só uma outra possibilidade de futuro poderá ser essa liberação. O presente da decisão tem de estar sob o encantamento de um futuro. O futuro tem de ser mais poderoso do que a realidade da actualidade. O futuro possível tem de assomar no horizonte. Algo “possível” não aconteceu, ainda. Mas também não podemos dizer que não é nada. O futuro também não é veio até presente e, quando vier, pode não trazer o que queremos ou o que esperamos que venha acontecer.

O nosso olhar presente está cheio de um futuro, próximo ou mais ou menos distante, por que estamos à espera. Quando estamos à espera de transporte, estamos de pé, com o corpo virado numa determinada direcção da rua, com os olhos postos lá ao fundo. Se estou na Av. de Berna à espera de transporte para a Praça de Espanha, estou a olhar na direcção do Campo Pequeno, mas não fixo o olhar em nada de concreto. Estou à espera que venha o autocarro, que ainda não veio. Quando peço um café, fico à espera que o tragam. Quando marcamos consultas, há um acordo tácito entre nós e quem marca um dia e uma hora para um local, mesmo que meses depois, quando digo “entre!”, espero que alguém entre no gabinete. Quando faço uma encomenda, espero que ela me chegue. Quando digo “fica bem!”, espero que alguém fique bem por muito tempo, na verdade para sempre. Há coisas por que esperamos anos. Quando nos matriculamos numa universidade, para estudar. Por outras, esperamos a vida inteira: “quando eu tiver o que eu quero”, melhor: “quando eu for como eu determino”. O possível depende do feitiço que nos lança, para que fiquemos virados para a própria possibilidade.

A possibilidade com a qual nos podemos criar tem de ser inventada para poder ser encontrada.
Qualquer que seja uma possibilidade positiva, terá de destruir o dique que erigimos a toda a nossa volta. O possível que chega até nós é pessoal e cheio de sentimento. Desperta em nós uma paixão que nos comove. Não é nenhuma realidade. E, contudo, tem uma eficácia actuante que provém do futuro. A possibilidade é um fiozinho de água, em que não conseguimos ainda mergulhar. Mas a água vem até nós de alguma maneira. Ou será como o fio de lã por onde escorrega uma gota de água que existe entre almas, para as pessoas se compreenderem entre si e poderem aprender umas com as outras, sabendo de que estão a falar? O transmissor temporal entre o futuro e o presente, conecta-nos à alma da vida. É do ser da vida que destila o possível, tal como é daí que vem o futuro do tempo e, assim também, uma opção de vida possível nunca antes encarada. Do interior íntimo, das entranhas da existência, vem a possibilidade. Toda a possibilidade vem do futuro e, contudo, já está a tocar-nos no presente. O possível vai moldando a nossa realidade.

Ora quando o futuro nos acende, o presente desprende-se do passado. A véspera má é esquecida. O passado que nos assola, prende e impossibilita, nunca se apaga, mas é transfigurado. Não é apenas lamentado já. É esquecido efectiva e afectivamente. Não traz tristeza já. Não precisamos de o querer fora da nossa vida nem que nunca tivesse acontecido. Agora, é como se estivesse vida fora e nunca tivesse acontecido. Mas o que neutraliza o nosso passado é o futuro. Não um futuro qualquer, mas o futuro que traz um bem possível.

“A calamidade morre às mãos de nobres alegrias.// O bem mata o sofrimento e porventura trará o esquecimento.” (Píndaro)

É difícil mudar o presente. Somos o resultado das nossas escolhas. Deslizamos na onda do presente que está a ser impelida pelo caudal do passado. O presente não é feito num só dia. É o resultado de todas as nossas escolhas. O que somos foi o que fizemos de nós dia após dia na convicção de que estávamos a obter prazer e a viver como deveríamos, quando, pelo contrário, nos podemos estar a afastar cada vez de nós próprios, quase ao ponto de perder o contacto com a origem.
Mas o bem possível vem como uma gota de água. Estanca a sede na atmosfera irrespirável em que nos encontramos.
A liberação vem do futuro, vem da nova possibilidade, é sentimental e comove-nos. Dia após dia constrói-se o tecido de uma existência que para atravessar a realidade de cada instante tem de dizer “agora não, talvez mais tarde”. Mas para ultrapassar o instante temos de o atravessar. A boa nova sentimental sintoniza-nos com um bem maior. Contra todas as expectativas uma possibilidade sobriedade é também uma alegria sustentável. Não resulta da abstinência de possibilidades vãs, vazias, falsas. Porque a vida altera-se com o êxtase do manancial de sentimentos, emoções, disposições que agora assomam o horizonte. Para sentirmos o coração da vida é precisa a coragem necessária para estarmos na clareza. A transparência é obtida pela neutralização de tudo o que nos desvia dessa afecção do ser que agora se revela e nos dá a compreender o que há, é para ser. E é possível.

“Aí, onde as brisas oceânicas sopram ao redor da ilha dos bem-aventurados. Ardem flores de ouro.// Umas, da terra firme, a partir de árvores esplendorosas. Outras, alimenta-as a água.//Com grinaldas entrelaçam as suas mãos e coroas de flores.”

Píndaro. IIª Ode Olímpica.

11 Dez 2020

Água

[dropcap]A[/dropcap] água é o princípio. Tales de Mileto (624/623–548/545 a.C.) exprime o que pode – mas não deve – ser despedido como uma banalidade. Na água está pensada a humidade. Está pensado, por oposição, o seco. O seco é uma característica essencial da terra. Nos quatro elementos ou letras do alfabeto da realidade: água e ar, terra e fogo, encontram-se características que não são apenas estáticas, mas dinâmicas. A água metamorfoseia-se em diversos estados: líquido, sólido e gasoso. Mas os processos com que se transforma são também experimentados por nós. A pedra de gelo derrete sobre o chão da cozinha ou mistura-se com a bebida, arrefece a sopa, refresca o sumo. A água nas couvettes congela no frigorífico, a neve gela. A relva molhada pela rega seca ao sol, ao ar. Do rio sobe uma neblina. Há uma relação entre arrefecimento e humidade e aquecimento e secura. Podemos tentar compreender, assim, os diversos processos que efectivam diversos estados: evaporação que transforma a água em vapor, faz nuvens a partir de rios, lagos, mares, oceanos, mas também de plantas e animais por transpiração. A condensação transforma o estado gasoso em líquido. Cai chuva. A precipitação enche de novo o caudal dos rios. A água é bebida, sorvida e absorvida pelos seres vivos. Não terá Tales pensado a água neste ciclo hidrológico, as características de cada estado, os processos envolvidos na transição de um estado para o outro e a relação existente entre todos? Não é apenas um elemento que foi identificado, uma substância, por mais complexa que seja, mas o próprio processo de transformação, o vir a ser e o deixar de ser, a passagem a ser e transformação de uma mesma estrutura que se metamorfoseia. E a relação de todos os seres vivos com esse elemento, humanos, animais, vegetais, orgânicos e inorgânicos. Bebemos água potável. Respiramos água no ar. Deslizamos no gelo. Não vemos no nevoeiro, neblina. Sentimos a chuva a cair, o caudal dos rios engrossar, aumentar e diminuir a rapidez, nadamos, navegamos, mergulhamos. O ser vivo está implicado, envolvido por, água tanto que a falta de água globalmente põe em cheque a sobrevivência da própria vida.

O que se percebe com a água na sua dimensão metafísica, percebe-se com a terra, o fogo e o ar e a versão mais rarefeita do ar, o éter. Mas não é por aqui que vamos.

O que importa também ver, para lá da dessubstanciação da água e a compreensão do seu ser “verbal”, ser água é poder ser líquido, sólido e gasoso, é passar de um estado para outro, é relacionar-se com outras características que aumentam e/ou diminuem a sua quantidade: quente e frio, seco e húmido. Talvez seja o que está expresso pelo verbo “aguar”. A ligação da água com outros líquidos primordiais: sangue, suor, lágrimas, sémen é feita não por analogia, mas pelo isolamento de uma propriedade da água num dos seus estados: o estado líquido. A liquidez, a sua produção, no corpo humano, por exemplo, permite perceber à vista desarmada, que somos água, somos líquidos e não apenas por bebermos.

Mas para Tales a água não é apenas um elemento físico, fundamental, mas um elemento que tem de ser posto em relação com outros elementos e que existem em estados diferentes.

A água é arkhê, princípio. É elemento no sentido em que dizemos que uma atmosfera é um elemento. O nosso elemento humano é terrestre, embora tendamos a conquistar e ocupar outros elementos: os rios, lagos, mares, oceanos, como o ar e o éter do vasto cosmos.

A água é uma atmosfera. Há ar líquido, húmido e frio. É onde existimos, o que respiramos e bebemos. Há uma relação entre o exterior e o corpo, uma relação de acção recíproca. Há água dentro de nós e fora de nós, entre nós e as coisas.

É conhecida a relação da água com a sobriedade e o cansaço que empapa a cabeça, contrastante com o efeito de outro líquido que também tem água, mas com outros efeitos diferentes do da sobriedade, o vinho que embriaga. “Ter a cabeça em água”, depois de muitas horas de trabalho dedicado a coisas difíceis ou simples, mas depois de muito tempo. “Ter a cabeça nas nuvens”, quando nos distraímos e deixamos de ter os pés assentes no chão. São possibilidades humanas expressas metaforicamente. O vinho com que nos podemos relacionar tem efeitos contrários, mas os efeitos resultam do elemento água nele presente, também aquece e arrefece o corpo, embriaga quando encharca e deixa-nos sóbrios, ao abandonar-nos. A sua actuação no corpo e na mente é diferente da que a água produz.

Mas é a água o melhor de tudo, como diz Píndaro na primeira Ode Olímpica?
Mergulhamos, nadamos, navegamos nas águas de rios, lagos, mares, oceanos e também em águas paradas: tanques, poços e piscinas. Atravessamos o rio a nado, oceanos em barcos e navios, mergulhamos para nos refrescar sem ir ao fundo ou para sondar as profundezas oceânicas. Na travessia e no mergulho, estamos em elementos diferentes. Estamos expostos à manifestação da superfície das águas: calmas ou agitadas, da maré que enche ou vaza, do rio de maré cheia ou de maré vazia, na tempestade e na bonança. Mas no fundo do mar há correntes em dimensões muito mais complexas do que as águas dão a ver ao manifestarem-se à superfície, com ondas ou sem ondas, vagas sucessivas ou na formação de uma única gigante, no mar alto ou a abater-se sobre a orla marítima, em penhascos ou à beira mar.

No mar, mergulhamos em várias correntes, de água quente e fria, que puxa muito ou não existe. Há lençóis de água que os pescadores ou caçadores submarinos conhecem mas nós não. No mar, voamos para o fundo e emergimos para o cimo, para a superfície.
O mar é a vida.

Talvez Tales de Mileto tivesse um contacto privilegiado com o ser da vida. Não é o mar que é uma metáfora da vida, mas a vida uma metáfora do mar.

Píndaro. (2017) Odes Olímpicas. Tradução: António de Castro Caeiro. Lisboa.

3 Dez 2020

Como tem passado?

“O sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?”
Fernando Pessoa, em Carta a Ophélia Queiroz – 29 Nov. 1920

 

[dropcap]A[/dropcap]lguém passa à janela de sombra vazia. Pressinto a sua solidão. Os olhos que lhe cheiram a vento. Vai encarcerar-se mais cedo ou mais tarde, atrás da porta do quarto, no silêncio obrigatório dos divertimentos possíveis. Conheço gente assim. Pessoas trancadas que lêem cappucinos e bebem Cruzeiro Seixas. Gente incansavelmente alta que se estende para lá de si mesma para ver uma onda casual num mar permanente. Passam por elas madrugadas sem olfato. Por entretenimento, travam uma batalha com um peixe-mistério que se infiltrou na frota. Jantam as suas espinhas. Aquele quarto podia ser um poema mas é antes uma equação. Quantos óbitos se confirmam entre os recuperados? Vários webinars depois, o sol não parece menos contagioso do que ontem. Mas elas põe o coração de quarentena, reorganizam armários e lavam as mãos como quem lava os pés, como quem compreende o Inverno melhor do que os outros. E eu na fila de espera. Nós na fila de espera.

Sento-me à máquina de escrever para te falar do meu dia. Este novo dia no novo normal. Esquecer-me de palavras: também eu deixei a minha sombra vazia e abandonei paisagens. A minha paisagem é esta, uma rua perto do mar por onde passam transeuntes ocasionais. Outrora foi uma visão para a metrópole pós-punk que é Pequim, noutra foi uma pequena estrada de passagem em Lisboa, noutra era um campo em Braga. É novamente dezembro. Mês de fecho. Fazem-se as várias contas, as referentes a contabilidade e as referentes a outro tipo de acertos a prestar com alguma entidade ou connosco próprios. Este olhar nostálgico pertence a uma disciplina importante: auto-conhecimento. Eu sei, a palavra tornou-se melosa. Esta época moderna, demasiado pós-positivista para qualquer decurso minimamente hermético. Pouco fã de abstrações.

Não terei pudor em admitir que me dedico, também, ao auto-conhecimento. A todos os níveis. Avalio as minhas crenças e ações, as escolhas tomadas em alturas em que havia escolhas a tomar. Serei parte de uma lonjura imperativa ou estarei a desenhar um único trajeto? Penso, “não é relevante atribuir-lhe significado ou valor”. Começo antes por considerar a importância de me tornar mais íntima comigo mesma. Reconheço que parte da ansiedade exibida como forma de estar nas janelas contemporâneas, deriva da evasão. Os mecanismos que acreditamos serem a cura para ultrapassar, seguir em frente, fazer o que tem de ser feito, são tantas vezes, mera distração. O prolongamento inadiável da distração, que nos parece confortar, resulta antes em desconforto. Afinal, estamos desconfortáveis com a mera ideia de desconforto. Ou seja, mais prisão, menos prisão, não somos exclusivamente o que pensamos que somos. Resta-nos o abandono como exercício. O deixar para trás como mantra de dia-a-dia à hora do café. “Vai-se andando” “como se pode” e quem tem mais experiência disto de estar vivo sabe que tudo passa. Que importa se hoje deixo para trás algumas das percepções mais basilares da minha vida na última década? Alguém passa à janela e depois passa outra pessoa após algum tempo. Tudo passa. A crise, o desalento, o tédio, a indignação, as dores de cabeça, o cansaço, a falta de olfato e a solidão. Tudo passa. Até as pessoas.

3 Dez 2020

Freud & Maradona Lda.

[dropcap]D[/dropcap]e papo para o ar, deixo que o domingo se instale e me entorpeça as flexões. Para não voltar a dormir, pego no livro Le Divan et le Grigi, a longa e maravilhosa entrevista de Catherine Clement a Tobie Nathan, o actual papa da etnopsiquiatria. Peço umas torradinhas e a manhã, o corpo e a vontade encaixam.

E chego à parte em que Tobie Nathan fala da sua descoberta de Freud, com 14 anos, e do seu fascínio inicial; parecia-lhe que o terapeuta propunha “verdades tecnicamente verificáveis”. Até que quando Tobie quis passar à prática e recapitulou por antecipação os passos de uma sessão: «Bom, o psicanalista, instala o paciente no seu divã e cala-se, porque espontaneamente – seria essa uma espécie de lei da natureza – a pessoa há-de entregar-se às associações livres!». E em boa fé, bateu à porta do psicanalista. E continua Nathan: «E bom, é falso! Alguém se deita no divã, tu calas-te e o paciente entrega-se a toda a espécie de coisas porque primeiro que tudo tenta integrar-te, a todo o transe, na conversação. Porque a situação é absurda e o paciente faz tudo para instaurar uma situação mais normal… e quanto às “associações livres”, terás, como psicanalista de ensinar-lhe como produzi-las. Produzir associações de ideias não é o funcionmento espontâneo do espírito, é um dispositivo artificial que os pacientes levam um certo tempo para aprender – alguns recusam-se mesmo, deliberadamente.»

Imediatamente me lembrei da batota que Michel Serres atribuía ao método de Sócrates, nos tais debates dialécticos que fizeram a posterior fortuna de Platão, pois, explicava, era Sócrates quem à partida estabelecia as regras da discussão, o que lhe dava logo vantagem. O que tem tanto de engenhoso como de embuste.

Nunca me ocorrera o que Nathan denuncia, embora baste pedir aos alunos para se entregarem ao jogo das associações livres para verificá-lo; não flui, rapidamente fica tudo emperrado. Para resultar terão de ser “instruídos” primeiro. Resultará melhor em aulas de escrita criativa, alunos que à priori se dispõem ao “artifício”. Diga-se o mesmo sobre alguma teatralização que se instalará na narração dos sonhos, da mesma forma que se detectou e estudou as raízes teatrais nos ritos de possessão.

A psicanálise identificou umas certas leis gerais do mecanismo psíquico de um modo oblíquo, fazendo uso de um certo embuste, do mesmo modo que, para alguns teólogos, primeiro induz-se a crença, depois logo se verá se Deus existe. Eis, na generalidade, a história da aventura do espírito humano. Investe em esquemas e embustes para tactear o que está ainda na sombra mas foi adivinhado antes de conseguir delimitar a sua realidade. Porque à realidade, simplesmente, só a conseguimos conhecer através de ficções, mediante conceitos ideais, por projecções de entes irreais ou por ou intuições criadas pela nossa inteligência. Às vezes capotamos, outras acertamos. E aqui, não é raro atribuirmos um grande papel à intuição.

Quanto a esta, Arthur Koestler usava uma imagem muito sugestiva para a definir: a intuição, dizia, é como uma cadeia montanhosa da qual só vemos os pináculos que se elevam acima das nuvens; se pudéssemos ver simultaneamente por baixo das nuvens, veríamos perfeitamente como esses cumes se enlaçam uns nos outros. Se pudessemos, conclui, assistir à cadeia de associações que se forma sob a consciência veríamos também como se enlaçam esses cumes que denominamos “intuições”.

Verdadeiras intuições tinha Goethe, que um dia escreveu: «Que precisamente o homem só pensa quando não pode conceber aquilo que pensa». É extraordinário que ele tenha escrito isto quase um século antes de Freud.

Esta asserção alude aos labirintos em que qualquer criatura que tenha por trabalho a imaginação mergulha, mas será preciso alguma robustez psíquica para deixar que o devaneio que o pensamento faz brotar desponte, nesse preciso momento em que tomamos consciência de estarmos perdidos no labirinto, em vez de nos esmagar o pânico. Consequentemente, só num assomo de serenidade reencontramos o fio de Ariadne.

Mas não é preciso sermos nem construtivistas nem realistas para entendermos que a realidade entronca num terceiro enfoque, aquele em que acredito: a realidade existe mas apresenta-se instável, movediça e irredutível a parâmetros fixos, de tal modo que desenha trajectórias no palco em que antes figuravam objectos e sujeitos. A realidade existe e devemos escutá-la para interagirmos com ela e penetrarmos nas suas ressonâncias.

De papo para o ar, sou servido de mais torradinhas e cismo outra vez nas flexões. Desta vez nas flexões de rins em que era especialista o Maradona e lhe permitia as fintas. Tantas delas magníficas. Mas é porque a realidade existe, antes e para além das representações que lhe apomos, que acho inaceitável a facilidade com que eregimos mitos.

Toda esta deificação em torno de Maradona é simplesmente patética. Gosto de futebol mas dou-lhe a importância que terão na minha vida as coisas triviais, são breves travesseiros, nos quais repouso a cabeça ou dos quais me sirvo como apoio a outros rins alheios e a outras sibilantes flexões morfológicas e afinal menos acessórias que uma sucessão de cantos falhados.

Além disso, em casos como o Cristiano Ronaldo, ou o de Zlatan Ibrahimović, eles introduziram novos paradigmas no desporto, no que respeita à metodologia dos treinos e aumentaram o tempo útil de duração do desportista em actividade, numa associação entre a plasticidade e a veterania, o El Pibo pelo contrário foi um homem que menoscabou o seu imenso talento e que chegou ao pleno da sua própria caricatura, como se a sua própria sombra fosse uma fasquia demasiado alta para manter.

Um jogador de paixão, disse dele Jorge Jesus, e acrescentaria eu, como Vítor Baptista. Dois jogadores de duas escalas diferentes, é verdade, mas que no melhor da sua exuberância técnica foram fascinantes, apesar de serem dois profetas absolutamente ocos e totalmente aquéns do mito.

2 Dez 2020

As origens não se escolhem

[dropcap]N[/dropcap]o passado dia 24 de Novembro, li este breve texto do poeta Jaime Rocha ilustrado com uma fotografia do mar da Nazaré: “Aqui estou na terra onde nasci, a agradecer ao mar, não o peixe, mas as palavras. Silenciosamente, como um velho lobo do mar, grato por ele lhe ter adiado a morte. Faço-o sempre que termino ou publico um livro. Um ritual que dura há mais de cinquenta anos.”

Este impressivo texto fez-me pensar, pois há quase quarenta anos que escrevo livros e jamais desenvolvi este tipo de devoção face às minhas origens. Nasci em Évora no verão de 1954 e aí vivi até aos 15 anos de idade. Sairia depois para regressar até ir viver na Holanda, o que aconteceu nos anos oitenta. A partir da década seguinte, passei a trabalhar sempre em Lisboa, mas nunca deixei de ter casa na cidade onde fabulei muito do meu tempo. Na última meia dúzia de anos a minha vida organizou-se de vez em Lisboa. Contudo, na passada primavera, a pandemia e uma inundação obrigaram-me a regressar à cidade durante quatro penosos meses e essa estadia fez-me reflectir sobre as relações difíceis que sempre mantive (interiormente) com Évora.

Na realidade, quando termino um livro, jamais me passaria pela cabeça ir a Évora e ao seu mar – que é de planície e brancura – ritualizar um agradecimento demiúrgico como o do Jaime Rocha que, confesso, admiro profundamente.

Comecemos por uma primeira (e dupla) pergunta: o que são as origens e o que é uma cidade? A resposta parece-me simples: uma cidade é uma confluência de memórias (físicas e imateriais) em ininterrupto atrito com os actos que fazem e desenrolam o presente, enquanto as origens se podem definir como tudo aquilo que não se escolhe. Podemos enraizar-nos no mundo, ou seja, criar raízes e estabilizá-las em geografias de diferentes qualidades, o que, para mim, foi sempre uma urgência; no entanto, das origens somos todos escravos. Ficam para sempre.

Este talvez seja o primeiro grande entrave, muito parecido, afinal, com o da família. As origens dão-nos sempre uma família, seja de que natureza for, embora, com o tempo, pelo menos no meu caso, a família se tenha vindo a tornar cada vez mais num pequeno grupo de pessoas de quem gosto e com quem me identifico (e não nas pessoas com quem tenho “ligações de sangue”). Isto significa que só mesmo as origens estão fora de um horizonte de escolha e de radical autonomia pessoal. Posso esquecer raízes, riscá-las, fazê-las desaparecer; mas as origens não.

Nas primeiras duas décadas de vida fui eterno como todos os jovens. Tive sorte em alguns aspectos, pois a vida social era particularmente dura naquele tempo. Quando percebi que não era eterno, comecei a escrever, tinha pouco mais de vinte anos. Apesar de ter desenvolvido mil e uma actividades ao longo de toda a vida, escrever foi sempre o meu fulcral ‘fio de prumo’, título, aliás, do primeiro livro que publiquei (corria o ano de 1981).

Existirá um segundo entrave que me afasta das origens. Chamar-lhe-ia desolação. É evidente que existe um apelo existencial nesta metáfora que, sendo breve, implica subtrair à idealidade aquilo que lhe sobra em estado bruto. De facto, durante parte substancial da minha vida adulta, vivendo fora ou dentro da cidade, sempre imaginei o que a cidade podia não ser, projectando-a numa espécie de utopia íntima dificilmente traduzível. Talvez tenha sido essa exegese interior que me levou a desenhar cidades, algo que faço há já várias décadas (e é mesmo uma das minhas poéticas mais preferidas). O resultado desta involuntária operação figurativa é que, sempre que reentro em Évora, tudo aquilo me parece uma ruína adiada, espécie de meio termo entre um amuralhado de lápides sublimes e um universo de fantasmas que se move em círculo fechado, repetindo sempre os mesmos (e cansativos) pregões.

Um terceiro entrave terá uma dimensão mais simbólica e humana. Conheci diversos escritores que mantiveram com Évora relações especiais. É o caso de Vergílio Ferreira, Mário Ventura ou Almeida Faria.

Todos eles, para além do fascínio estético, me revelavam a ideia de que a cidade tem – terá sempre tido – as suas “gavetas fechadas” (cito de memória Vergílio Ferreira numa conversa que tivemos os dois há precisamente trinta anos na sua casa da Av. dos Estados Unidos da América). Pode, pois, viver-se durante meio século em Évora, mas nunca se sai realmente da aridez do tampo e do pó da secretária. As gavetas – sejam elas o que forem – serão sempre território vedado. Esta falta de respiração, ou, se se preferir, esta ausência de saudade ou de nostalgia do cosmopolitismo (que a cidade viveu há inúmeras gerações) torna o seu ambiente – e o efeito aqui parece-me francamente atemporal e não apenas “da era da outra senhora” – numa escultura algo estática, sem ânimo e sem projecto. Não será caso único na sua imobilidade poética (ou protésica), é claro, mas a própria morfologia da cidade, atada por muralhas, torna a alegoria demasiado plausível.

O meu prazer de regressar às origens faz-se a levitar por cima destas atmosferas alterosas. Talvez seja por isso que sou totalmente avesso a bairrismos, a regionalismos e a regionalizações. Claro que haverá sempre um fim de tarde com ‘antigos amigos’ para desenganar a cegueira. Mas não encontro, nem creio que alguma vez encontrarei em Évora um oceano aprazível que me permita o tipo de devoção demiúrgica que o meu querido amigo Jaime Rocha pratica.

Num romance escrito há quase década e meia, já este tipo de decantação surgia de modo particularmente nítido: “Quando naquele início de Outono chegou a Évora, Guilherme teve a impressão de que a cidade era uma espécie de âncora que caíra abrupta e desamparadamente no fundo do mar. Depois dessa biogénese remota, os oceanos ter-se-iam evaporado e sobrara em torno da urbe a planura extensa e lisa onde choravam granitos austeros e sorriam com timidez as alvenarias claras. Uma catedral desproporcionada face ao resto do casario dominava e domava a quase desolação dos pátios, dos muros, dos ciprestes solitários e dos rostos paralisados que desciam pelas sombras das ruas estreitas e frias.”.

Frequentar as origens, apenas porque são as origens, tem sempre qualquer coisa de romagem ao túmulo desconhecido de nós próprios. Declino para já esse poema.

2 Dez 2020

Das vidas da vida

Horta Seca, Lisboa, terça, 10 Novembro

 

[dropcap]A[/dropcap]travessamos tempo e lugar de nós mais ou menos cegos, nuvens pesadas a fazerem-se chão duro de palmilhar, vidro moído, areias movediças, pântanos sulfurosos; ao nível dos olhos instalou-se nevoeiro compacto de nos tirar horizonte, as bússolas ora baças ora em doida rotação; no entorno aquele vociferar contínuo de bandeiras misturado com o sussurrar de desgraças íntimas, a fome a morder calcanhares, o inesperado anunciado em relatórios dos serviços de inteligência a insistir que nada nos está nunca garantido, portanto. Quantas palavras serão precisas para dizer continuar?

Este texto não saiu do lote dos atrasados, dos em falta, dos ardentes. Veio de uma das muitas crises que a crise vai desovando, e estava longe de imaginar, quando conheci final e pessoalmente o Luís Cardoso há um ano redondo, que estaria agora nesta dança com ele. Gentil, desde o primeiro momento. «O plantador de abóboras (sonata para uma neblina)» envolve-nos a partir da primeira palavra-frase, possui ritmos de encantamento, leva-nos aos cenários mais ásperos como aos de seda, faz-nos trocar de pele com personagens fortíssimas, mulher, homens, e nelas incluo fauna e flora, burro, ganso, café, abóboras, rosas.

Sem nunca cometer o pecado do óbvio, sem tentar explicar, demonizar ou até descrever, mas assumindo a delicadeza do mistério vai fundo nas teias do colonialismo, como a aguarelar até a dor. Na linhagem ancestral dos grandes contadores, tudo se oferece com simplicidade líquida, de rio a rumorejar para humedecer os diálogos, para lavar o sangue, para desenhar destinos. Ergue-se devagar para dizer dessoutro doloroso processo de depuração que desembocou em país. Conta-nos de Timor, e assim não haverá outro livro, por só agora acontecer. Timor nasce neste livro. Nada mais que uma história, mas, digo eu, sem peso, nem conta ou medida, que fará História. Não há países sem pessoas, e acompanhámos, ao longe mas com intensidade, quantas se perderam para que Timor Lorosae o fosse. Como não há nações sem literatura, sem textos fundadores, rios e montanhas, marés e árvores, mão e pensamento, vontade e esforço, gestos de semear, de rasgar, de acariciar, de erguer, passos e visões. Tudo acontece por causa da gente vivíssima que aqui habita, que morrerá jamais graças ao laborioso discorrer do autor. É de crises feita a nossa paisagem, a íntima e a outra. Jamais deixaremos de andar sobre brasas, de atravessar tempestades, de nos perdermos na floresta, de olhar cada rosto da violência, de tratar o medo por tu. É a puta da vida. Seja ela maior do que a própria vida. Há que dizê-lo cuspindo nas trombas da vida: cresce e aparece! Assim afastaremos a morte, ainda que por brevíssimos instantes. Desabafo tonto: nenhuma lição se retira dos livros.

Ou melhor: o editor tira, sim. O modo como as figuras maiores deste romance andavam pelo meio das plantações, como habitavam as casas, as varandas, pegavam nos livros, se vestiam e despiam, mas também como tocavam na vida animal e vegetal, sugeriram-me de imediato a Ana [Jacinto Nunes] para pintar as portas e janelas do habitual na nossa colecção (a da capa, aqui na página). Devo confessar, com tanto desacerto a acontecer-me, que assisti em delícia ao resultado do seu encontro com o texto. O que parecia primeira proposta, revelou-se esboço e depois nova série e outra ainda, cada uma trazendo olhar distinto, em investigação de leitor a reler, a detectar o pormenor de um olhar, um sobrolho a carregar-se, sempre o rosto como palco. A escolha estava feita, mas a Ana continuou a ler com o corpo todo no papel. Se dúvidas tivesse acerca das potestades que se escondem nestas páginas estavam desfeitas a pincel.

Sequeiro, Lisboa, sexta, 13 Novembro

Acolho a nefasta memória deste dia com almoço que só não é como antes, porque a nova normalidade tende a expulsar-nos dessas maneiras de ser. Vivi nos bastidores de alguns textos, por estes dias. Alguma dor os habita, por tratarem da matéria de que somos feitos. Deixemos para depois. Quero trazer o registo contabilístico de conversas acerca da construção do texto, prazer, portanto.

Prosa, primeiro. O Joaquim [Paulo Nogueira] surpreendeu-me com romance que força os limites dos mecanismos narrativos, de recusar a reflexão sobre a forma, nem excluir o que lhe interessa, também no teatro, desconfio, a aproximação à vida, sabendo que será inevitavelmente outra coisa, que nunca a agarrará.

Como em trabalho de dramaturgia, vi-me a empurrá-lo para o risco, para o entusiasmo, para o fulgor. Conhecemo-nos há muito em contexto de trabalho vivificador na direcção da não-violência. Reconhecemo-nos agora pondo as mãos na violência.

Depois a poesia, que me atirou para as órbitas da infância, esse astro escaldante. O José Ricardo [Nunes] vem amadurecendo volume com afã de jardineiro, atentíssimo à dimensão dos canteiros, ao convívio das espécies, ocupado a distribuir as luxúrias, sem maltratar as daninhas. Incluiu os astronautas e foi isso que me pôs a voar. Mas a partilha de leituras no lugar fresco da generosidade, a trocar truques para excitar a cor do antúrio ou garantir que o carvalho atravessa o verão, na caça ao advérbio ou aos anti-climax, nos alinhamentos que servem o baixo contínuo, na perseguição do título justo, permitiu-me a mim ver mais. Sobre a cosmonáutica e o arrastar dos pés.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 26 Novembro

Não se entra impunemente nos livros de José Emílio-Nelson. Deviam mesmo ser proibidos, garantindo assim as leituras que merecem. Ao «Putrefacção e fósforo», que me é dedicado ferindo o meu pudor, que quase sangrou agradado, segue-se «Coração Cru», intervalados com os desenhos libertinos da Bárbara [Fonte]. Libertinos, não tanto pela abundante e convivente genitália, mas pela absoluta liberdade no redesenho dos corpos. As obsessões tocam-nos ou deixam-nos, entram e saem. Uma delícia, se quereis saber. O voluminho contém a energia do mais potente explosivo, somando reflexão erudita, prosa poética, versos, momentos de puro teatro. Um índice pontiagudo com o qual assinalar a pele dos temas mais excruciantes da nossa vida conventual, portanto doce e castigada. Habitamos os corpos como lugares do sagrado, mas saberemos qual o lugar neles para a oração? Nenhum sabor, por acre ou pestilento, está excluído. Não conheço ponte mais virtuosa e desafiante que nos ligue ao absoluto. A partir da inevitabilidade marmórea do cadáver.

Horta Seca, Lisboa, sexta, 27 Novembro

Puxo duas semanas e sento-me. Nos ares rodopiam os bumerangues: lista de traduções a pulsar na direcção de várias línguas, com o Arno Schmidt à cabeça, uma ideia de texto que me queima, as conversas na margem de Deus, as micro-narrativas com o André [da Loba], o velho infanto-juvenil também com ele, a confirmação do documentário sobre livraria onde o antigo vem à tona respirar, o projecto de puro gozo a partir da cerveja, aquela colecção nova a celebrar a memória, e, por falar nisso, a investigação sobre os passos dados por Jean Moulin em Lisboa, as possibilidades entusiasmantes que chegam a cada almoço pausado há séculos e os primeiros traços firmes no desenho associativo das editoras independentes. Fuga para frente, mas às arrecuas.

1 Dez 2020

Da memória

[dropcap]Q[/dropcap]uer dizer: sabemos que ninguém rejuvenesce nesta vida. Que os nomes, os lugares, as coisas, os dias começam inapelavelmente a escaparem-se de modo a que muito do que vivemos, bom e mau, se transforma em paisagens impressionistas e distantes. Francamente não me parece que isso seja uma má notícia do ponto de vista individual. Desde que escapemos à tragédia de patologias cruéis, em que lúcidos deixamos de reconhecer quem mais amamos, a erosão do que lembramos pode ser até salvífica. Quem sabe mesmo um mecanismo de evolução natural. Que a memória pode ser selectiva é um facto conhecido; o pouco que se pode lamentar ou louvar é o critério dessa selecção. Interessará que apenas me lembre dos melhores momentos da minha vida ou irei angustiar-me porque não os consigo lembrar? Qualquer que seja a resposta há um facto irreversível: não me lembro mas vivi-os. Isso, acho eu, deveria bastar.

Mas a este nível a questão leva a escolhas ou traços de carácter. Se lamentamos um paraíso perdido, lembramo-lo como uma redenção melancólica e inútil; se houver um acontecimento terrível que nos assombre, continuamos presos. “O passado é um país estrangeiro”, diz uma das mais famosas aberturas da literatura. Sim, certamente; e o ser humano divide-se entre aqueles que persistem em habitá-lo e os outros que aceitam que fez parte de um caminho que veio dar até agora mesmo.

Eu faço parte destes últimos. Mas se dou valor ao agora é porque tenho a possibilidade de lembrar o ontem e aprender com ele. A memória, como David Hume escreveu, serve também para conservar as ideias e a sua ordem. E é por tudo isto que me custa viver num mundo e mais particularmente num país cada vez mais amnésico.

Serei sincero: se há coisa que Portugal não tem é uma cultura de memória. Não se pode atribuir isto apenas aos ares do tempo e ao actual modo de pensar basta-juntar-água. Infelizmente o meu país tem rastilho curto no que ao lembrar diz respeito. Lembram-se ocasiões grandiosas, celebram-se efemérides; mas esquecemos os pequenos actos que podem mudar um destino colectivo. Muitas vezes até as grandes infâmias são levadas pela torrente do presente. É certo que quando se trata de factos históricos os fantasmas estarão sempre `disposição dos vencedores. Mas o que custa é o contraditório ter quase desaparecido, existirem poucos que digam “isso não terá sido assim”.

Esta ausência de memória colectiva leva a outro efeito mais grave: não honrar quem já não está. Para não variar socorro-me de António Vieira: «O efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco». Estes ausentes, neste contexto de país, são aqueles que se notabilizaram pelo bem comum. E são honrados não apenas pela lembrança individual mas sobretudo pela conservação de registos materiais de vária ordem que este país parece desprezar. Livros, documentos, fotografias – ou estão em lugar incerto ou é o próprio país que muitas vezes não os deseja nem protege.

A memória, é certo, pode ser nossa inimiga mas tem que existir. É um factor de civilização essencial que por aqui está em défice. E mais do que isso: são as migalhas deixadas no chão dos tempos que nos ajudam a encontrar a saída do labirinto dos dias.

1 Dez 2020