A tristeza

Há tristeza quando não há como responder ao mundo. O que a origina pode ou não ser concreto. Na maior parte dos casos, não existem causas para a tristeza que sejam definitivas, embora a perda seja a grande excepção.

A perda não é referencial e dificilmente se centra num objecto claro. E quando parece tê-lo, logo o foco se reparte por diversos outros universos sem que haja controlo sobre esse travelling existencial sempre em movimento. A perda é uma viagem ou uma queda interior que vê o mundo da mesma forma que os periscópios dos submarinos pressentem o perigo. A perda tem as suas paisagens próprias. São paisagens lentas, paisagens que comprimem, paisagens que por vezes sabem conter a respiração. Não há espaço fora de si na tristeza que advém da perda.

A perda não tem conteúdo e geralmente avança como uma água gelada que se distribui de modo desigual e que não permite avaliar, se o que está em causa é remediável ou não. A perda não é, no entanto, desgarrada ou susceptível de ser vivida num vórtice. Paradoxalmente, interpela-nos de modo tranquilo, paciente e introspectivo, acenando-nos até com uma espécie de amor próprio.

A perda, o elo mais cristalino da tristeza, tem sobretudo como base a incompreensão. Desde logo dela mesma. Por isso se pode perguntar: o que se perde com a perda de um ente querido? o que se perde com a perda de uma pessoa amada? O que se perde com a perda de um objecto único? Ou o que se perde com a perda de uma cidade que já ardeu? A resposta será sempre vaga, deslizante, centrípeta. A perda é, por isso mesmo, irrespondível. Tal como um bom poema.

Para além da perda, a tristeza pode ter na sua origem algo que nos aparece com brusquidão pela frente e que traz consigo um efeito de desalento (ou mesmo de desilusão) movido por uma alteridade negativa. Trata-se de qualquer coisa que não se espera, porque quem no-la faz aparecer demonstra uma ausência de empatia e de verossimilhança que seria desejada e sobretudo esperada. Este tipo de alteridade implica o desamarrar abrupto de laços, quando se tinha em conta que eles estariam firmemente ligados. A confiança quebra-se como o gelo e a tristeza estará na evidência surpreendida desse abatimento.

Apesar da perda e da alteridade negativa, a tristeza sustenta-se fora de causas. Existe por si e com um combustível próprio que preenche a incompletude. Só quando é nomeada, ou tida em conta no território semântico das palavras, é que nos aparece como se fosse o oposto da alegria. Mas nada pode ser mais falso. Não é por haver menos alegria que há mais tristeza, nem é por haver mais alegria que há menos tristeza. A tristeza é rigorosamente autónoma, desenvolve atmosferas próprias e não cria fronteiras rígidas com nada; ela própria sabe muito bem como contemplar o nada (que é próprio da angústia) com toda a parcimónia.

A tristeza é a certeza vivida de muitas mortes sem as antecipar, ou sem estar na crista do acto em que elas tiveram ou terão lugar. A tristeza não é uma reacção seja ao que for, mas antes o viver intensamente imerso nesse território a que imaginariamente se reagiria de fora para dentro. A tristeza respira dentro do inconcebível, o que significa estar mergulhada num aquário que roda sobre si; um aquário reflexivo, mas desprendido de ferramentas técnicas de reflexão. O que encara na sua frente, desaba logo, mas sem qualquer rasgo, pois a poética da tristeza é um céu brando de que não se sai (um céu virado ao contrário onde os movimentos mundanos e correntes da vida continuam à nossa volta como se fossem um mero espectáculo).

Por ser centrípeta, autónoma e não ter conteúdo, a tristeza não tem sequer linguagem. Tal como a perda ou a alteridade negativa também não têm linguagem. O glossário da tristeza é um glossário abstracto, sensorial e intraduzível. Um glossário poético e, ao mesmo tempo, um glossário que é um manual para a grande arte da sobrevivência, de que se poderão extrair dois ensinamentos essenciais: (1) estar triste fora da tristeza é saber viver com sageza e (2) estar triste dentro da tristeza é – no que corresponde à finalidade de toda a filosofia – uma forma (serena) de aprender a morrer.

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