Como “effodere”, segundo Isidoro de Sevilha

[dropcap]H[/dropcap]á quase três décadas, fui dar com um texto na Biblioteca Nacional de Paris (o manuscrito Nº 774) que se iniciava assim: “Isto é uma profecia revelada (sakada) por astrologia e pelo sábio digno de grande ciência, Santo Isidoro, que diz assim: “ (…) “não sou profeta nem filho de profeta, mas sirvo a unidade e os seus profetas, cada um em seu lugar e Allah me ponha (a mim) no seu paraíso (aljanna(t)). Ámen (Ámin)”.

O texto data presumivelmente da década de vinte do século XVI e apresenta-se escrito com alfabeto árabe, mas a língua utilizada é latina, mais concretamente uma estranhíssima mistura entre o aragonês e o castelhano. Os seus autores eram mouriscos das regiões rurais de Aragão, algumas décadas antes de terem sido expulsos em definitivo de Espanha, o que aconteceu em 1604.

O interessante neste texto é o facto de a autoria ser atribuída a uma personagem com autoridade histórica, Isidoro de Sevilha (560 – 636), cuja existência precede em quase mil anos a sua redacção. Era um modo de o texto surgir perante o seu público com um indiscutível crédito. A figura de Isidoro de Sevilha devia ser tão marcante na época que até uma profecia popular de origem islâmica (quase de cordel, dir-se-ia hoje) – um curiosíssimo híbrido que mistura “Allah” e “Ámen” – se socorre da sua pretensa paternidade.

O famoso arcebispo de Sevilha era um enciclopedista. Na sua vasta obra, de que se destaca ‘Etymologiae’, uma recolha dos mais diversos saberes do mundo clássico, há um livro que tenho comigo há muitos anos e que, de vez em quando, me conduz à perdição. Trata-se de ‘Differentiae’, no fundo uma compilação de palavras e de conceitos muito próximos que Isidoro de Sevilha justapõe, aclarando depois os seus respectivos significados e sobretudo as suas diferenças.

Entrando em algumas das 609 diferenças analisadas apenas no volume I da obra, passamos agora a fazer uma breve viagem simulando a construção de um romance. Para tal teria que começar por algo essencial, isto é, pelo ritmo ou pela disposição com que me entregaria à tarefa. Ficaria logo a saber que se trata, neste caso, de celeridade e não de velocidade:

“Entre ‘uelocitas’ (velocidade) e ‘celeritas’ (rapidez). A ‘uelocitas’ resulta dos dois pés, enquanto a ‘celeritas’ é interior”.

Depois embrenhar-me-ia naquilo que desejo contar e ficaria a saber que navego no território (aristotélico) da mimese, ou seja, dentro daquilo que Isidoro caracteriza como ‘fictum’ (inventado):
“Entre ‘falsum’ (falso) e ‘fictum’ (inventado). ‘Falsum’ diz respeito aos oradores que escamoteiam a verdade e, portanto, negam o que terá de facto sucedido; ‘fictum’ aplica-se aos poetas, desde que saibam dizer o que aconteceu sem realmente ter acontecido”.

Neste período de invenção genuína, trabalharia naturalmente com figuras e situações que vou imaginando, passo a passo. Isidoro especifica a este respeito:

“Entre ‘fantasia’ (fantasia) e ‘fantasma’ (simulacro). ‘Fantasia’ é a imagem de um corpo vista e depois revista mentalmente. ‘Fantasma’ é uma imagem que se forma a partir de uma imagem desconhecida, por exemplo a imagem de um avô de que não me recordo de ter alguma vez visto. Deste modo, a ‘fantasia’ é uma reconstrução conjectural de coisas desconhecidas a partir de coisas conhecidas, enquanto ‘fantasma’ é uma presunção do conhecido a partir do desconhecido”.

Quase a chegar ao fim do meu romance, ficaria ainda a saber que a perfeição corresponde a algo que não carece de mais acrescentos, nem revisões (uma utopia inocente, claro está):

“Entre ‘perfectum’ (completo) e ‘consummatum’ (acabado) é esta a diferença: é ‘perfectum’ tudo aquilo a que não se pode acrescentar mais nada; ‘consummatum’, por outro lado, é toda e qualquer obra que chega ao seu possível fim”.

Resta a conclusão que acabaria por se realizar através de um vocábulo particularmente interessante: ‘effodere’ que corresponde, mais ou menos, ao que na contemporaneidade se designa por ‘work-in-progress’:

“Entre ‘fodere’ (escavar) e ‘effodere’ (desenterrar). ‘Fodere’ é apenas revolver a terra, enquanto ‘effodere’ implica encontrar algo ao realizá-lo” (por exemplo a forma com que o carpinteiro persegue as costas de uma cadeira até a encontrar, ao longo do seu árduo trabalho). “O antónimo deste último é ‘infodere’ (ou seja, enterrar)”.

O ‘Effodere’ de Isidoro parece muito próximo daquilo que Heidegger, em ‘A Origem da Obra de Arte’ (1931-32), situa ao nível da desocultação das coisas, tarefa do próprio ser. No caso da obra de arte, acrescenta o filósofo, o “ser-criado da obra” corresponde ao ser “estabelecido na verdade da forma”, o que se traduz através do combate entre a ‘expressão’ e o vir a ser da forma.

É óbvio que a forma que um carpinteiro persegue é a mesma que um escritor perseguirá – à volta dos labirintos entre a ‘fantasia’ e o ‘fantasma’ -, embora Isidoro, de um modo muitíssimo pioneiro, volte a traçar uma última diferença que, muito mais tarde, os estetas iluministas (a partir de Baumgarten, uns bons doze séculos depois das ‘Differentiae’) irão precisar:

“Entre ‘ars’ (ciência) e ‘artificium’ (artifício). O ‘ars’ é nobre por natureza; o ‘artificium’, pelo seu lado, aplica-se a tudo aquilo que é aplicado manualmente”.

Se os mouriscos da Aragão quinhentista estavam fora de tempo (tinham perdido a língua mãe nos últimos dois séculos e socorriam-se de figuras há muito desaparecidas para se fazerem ouvir), também Isidoro de Sevilha não deixava de estar. Só que o arcebispo de Sevilha funcionou, no seu tempo, como uma verdadeira prolepse (ou prefiguração) dos futuros enciclopedistas e cultores daquilo que, na modernidade, entre outras coisas, se viria a significar por arte e por estética.

Ao fim ao cabo, Isidoro de Sevilha cumpriu primorosamente a sua tese acerca de como bem ‘effodere’, ou seja, tal como Picasso sublinhou com olho clínico: “Eu não procuro, encontro”. E é claro, se “encontro”, é para imediatamente realizar até ao fim, separando sempre as águas. Ou, se se preferir, recorrendo ao aceno poético, é para imediatamente realizar até ao tutano, separando sempre – como escreveu Natália Correia no famoso ‘Diário de Lisboa’ de 5 de Abril de 1982 – “o fim imaculado” do “truca-truca”.

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