Artes, Letras e IdeiasUm locutor de trailers Valério Romão - 29 Jan 2021 Um sujeito calha a estar num sítio com televisão à hora em que começa o telejornal da noite. Este abre, como não podia deixar de ser, com o resumo diário do estado da pandemia em Portugal. O que não é normal, porém, é a montagem da peça: enquanto o jornalista de Auschwitz relata o quotidiano dos hospitais e os números da pandemia, sucedem-se planos rápidos do interior de uma unidade de cuidados intensivos. Os doentes, de bruços sobre a cama e entubados, são filmados em registo de puzzle: enquadra-se um braço inchado e imóvel, um olho fechado e – o preferido de quem filma ou de quem edita – o tubo por onde circula o oxigénio entrando na boca do paciente. Quando não incide sobre os doentes, a câmara mostra os médicos – cujo equipamento faz eco dos filmes apocalípticos tão em voga neste início de século – deambulando pelas camas dos pacientes, os dispositivos que monotonamente oxigenam os pulmões, um enfermeiro a desfraldar a agulha de uma seringa, o pormenor de uma viseira. Tudo isto ao som da máquina que faz bip. Para quem, como eu, não costuma ver televisão, o registo da peça é, no mínimo, desconcertante. Que aconteceu à sobriedade enfadonha com que se costumava abordar os assuntos mais sensíveis? Que é feito da circunspecção e da reserva que os doentes nos cuidados intensivos e os seus familiares em casa merecem e quase certamente apreciariam? A filmagem e edição são muito mais condizentes com um trailer de um telefilme apocalíptico de série B do que com uma peça informativa emitida à hora de jantar. Eu lembro-me de dar conta, há meia dúzia de anos, de que o canal National Geographic – antes uma coisa razoavelmente soporífera a que se assistia em família, no domingo à tarde, depois de almoço – passara a ser uma espécie de sucedâneo, em registo vida animal, dos piores filmes de acção de Hollywood. “The solitary lion will be confronted with its worst nightmare in just a couple of hours. Its archenemy, the hyena, is after him and packs a powerful bite, one of the most powerful in the predator world. Let’s compare stats and so we can forecast the outcome of this epic battle!” Nada disto – deste tom entre o comentário de wrestling e o filme de acção – me interessa. Nem percebo que possa interessar a alguém. A vantagem que eu via nos programas sobre a natureza – além da contemplação na segurança do sofá daquilo que é exótico – era a de oferecem um contraponto em termos de formato e de estilo para a restante programação televisiva. Outrora, cada programa tinha um registo muito próprio. Era impossível confundir o 70 x 7 com a Tieta do agreste ou o Telejornal com o Big Show Sic. Era uma das coisas que apreciava na televisão – enquanto apreciei televisão – havia conteúdos para – mais ou menos – todos os gostos. Lembro-me bem de assistir ao Monty Python Flying Circus na RTP2, já muito a desoras, ou ao Northen Exposure, ou ao Hill Street Blues. A televisão de agora – e posso estar a ser tremendamente injusto nesta generalização, tendo em conta o pouco a que assisto – parece mais ou menos toda criada pela mesma cabeça tentando parecer, em cada um dos seus ângulos, uma coisa diferente. É tudo confrangedoramente épico – tudo o que é e tudo o que não é. Faz lembrar o Manuel Alegre a ler uma ementa de um restaurante armado em cama de espargos. Ora este tipo de registo, num telejornal, só contribui para, em vez de suscitar a reflexão por via da notícia – sóbria, objectiva e ponderada –, amedrontar aqueles que já têm medo e afastar os que passaram a desconfiar do jornalismo convencional, não servindo, portanto, a ninguém. A vida, no que tem de bom e de mau, é desigual, múltipla, dinâmica. Como escrevia Wittgenstein no Tratactus: “O mundo é tudo o que é o caso”. Não me parece que o mundo ou a vida possa ser adequadamente reflectidos, em toda a sua complexidade e beleza, por um locutor de trailers de maus filmes.