Nos alçapões da história

No início de 2004, por proposta de um cineasta, transpus o romance O Bolor de Augusto Abelaira em escrita de guião para um filme que nunca viria a realizar-se. Nem sempre a vida é um texto e nem sempre um texto emerge na vida. De qualquer modo, um texto desta natureza não passa de um cardápio morto, embora se dê a ver como oferenda a si próprio: espécie de antropofagia realizada numa ilha deserta. 
As frases, nuas por natureza da escrita guionista, atropelam-se como que a tentarem descobrir para si próprias um tom (ou, aqui e ali, até alguma possibilidade de sentido). No entanto, há passagens que parecem pedir que as leiamos um dia mais tarde. Como se acendessem uma memória que exigiria atenção:
 
“HUMBERTO continua a vestir-se e a remexer em papéis de processos, enquanto fala. ALFREDO segue a explicação com inusitada atenção.
HUMBERTO
De repente, ao vê-la morta estendida na cama, quando era ainda viva dez minutos antes, descobri uma vida nova à minha frente, uma vida velha acabava ali. Ou então: não era da Catarina que eu não tinha pena, era de mim, de uma época agora irremediavelmente para trás, morta e sepultada. Pois ao observar a Catarina com mais atenção, concluí ser a mim próprio que desejava ver morto.
ALFREDO
A sério?”
 
O efeito surpresa de um texto redigido de início com fins instrumentais não é algo assim tão incomum. Durante alguns anos estudei manuscritos que foram escondidos, no final do séc. XVI, dentro de paredes e poços de aldeias do levante aragonês. Apenas no final do século XIX e por força do acaso viriam a ser descobertos. Nesses textos coexistiam heranças, procurações, testamentos – passagens meramente instrumentais – e registos poéticos luminosos. Um misto que faz hoje arrepiar quem os consiga ler, pois são aljamiados e estão grafados em alfabeto árabe. Transcrevo aqui um brevíssimo excerto (hoje inscrito no Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris): 
 
“- Ainda se levantará (fol.302v), no dia do juízo, um homem da minha comunidade (alumma) na ilha da Andaluzia que fará guerra santa (aljihâd) no caminho de Deus (fí sabíli Allah)./ Não se especificará, nem se saberá (sabrán) quando se levantará o dia do juízo, daqui até que se vejam os montes que (entretanto já) se tenham aplanado (ke se abrán ap(a)lanado)./ Foi relatado pelo mensageiro de Allah, salla Allahu ‘alayhi wa sallam (Deus o abençoe e o salve), que disse:/ – Andaluzia tem quatro das portas do paraíso (aljannat). Uma porta a que chamam (fol.fol.303r) Faylonata e outra porta (chamada Lorca), e outra porta a que chamam Tortosa e uma outra porta a que chamam Guadalajara.”.
 
O texto é ascendente: caminha da sombra mais profunda da gruta até à luz. Como se estivéssemos face a uma poética que nos transporta do subterrâneo da história até ao olhar do presente admirado que o lê. Trata-se de uma memória (e também de uma confissão involuntária) oriunda de uma comunidade ibérica – os “moriscos” – que sucumbiu e cuja autobiografia ficou espalhada dentro de alvenarias em fragmentos e retalhos anónimos como este.
 
Há discursos que nasceram para não encontrar os seus leitores. Um guião é escrito para morrer nas filmagens. E um texto clandestino de um “morisco” de Aragão (inserido por um copista numa miscelânea e colocado depois dentro de uma parede por um terceiro, antes de se pôr em fuga à inquisição) terá sido escrito para morrer consigo nos mais profundos alçapões da história. 
 
Quando sobre este tipo de textos se lança uma luz imprevista, eis que acordam de repente e nos dizem a gritar – e em plenos pulmões – que o passado nunca está escrito e que uma narrativa nunca está acabada. Como se a vista desejasse apenas encarar a obscuridade e adormecesse serenamente nessa fractura aberta. No derradeiros versos de Purgatório, mesmo antes do início do Paraíso, Beatriz confessa-o cristalinamente na Divina Comédia: “Talvez a maior cura,/ que muitas vezes a memória priva,/ lhe tenha posto a vista à mente obscura” (“fatt’ha la mente sua ne li occhi oscura”).
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

18 Mar 2021

Prova de vida

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 13 Março

Na discussão ininterrupta entre o peso e a leveza, a cadeira parece-me um dos mais notáveis argumentos. Assim como o bater de asas do colibri, só o debate nos sustenta. Dir-me-ão que a posição de lótus fará bem a ligação entre terra e céu, mas não encontro nisso construção. Não existimos sem extensões do corpo e a cadeira dá-nos um chão que ir permite ir longe mantendo raízes. O automóvel foi construído para definirmos bem sentados a paisagem. A casa é uma garagem de cadeiras. Sento-me na primeira fila para ver o espectáculo imersivo da meia idade. Sem querer, elefante, salto de nenúfar em nenúfar.

«As ruas que descem são perigosas. Nada de mais, apenas inclinação. Os montes subidos também continham a sua dose de risco, cenário exacto para o Castelo. Sustenha-se a respiração. Uma navalha esculpia na terra como uma tatuagem aquele exemplo de clássica arquitectura militar. A conquista havia tinha que se rasgar com percursos unidos pelas armas que se espetadas na terra. Contavam apenas as que ficavam hirtas e vibrantes. Grande aventura, ter uma navalha na mão no meio dos montes para a atirar com força e gritos. Os gritos são indispensáveis. Nem tínhamos que jogar bruto, mas aí aliviava bastante. Contra um árbitro, que segurava a cabeça do primeiro e por isso se chamava mãe, um grupo enfileirava-se de costas dobradas, cabeça debaixo das pernas do da frente, enquanto o outro grupo saltava de joelhos nas costas. Quem não aguentasse, perdia. Quem não aguenta, perde. Não é diferente fora das histórias: gritar ajuda. Doía mais o círculo dos calduços por causa do silêncio imposto. No meio de uma apertada roda de estátuas proibidas de mostrar os dentes alguém se mexia como doido. Se parasse oferecia a nuca à fortíssima palmada anónima. Se vislumbrasse o autor, caía ele no buraco negro. Não era fácil trocar de abismo.»

Desportos radicais, A história devida, programa Antena 1

«Os textos têm um princípio. E os dias também. Aqueles começam por uma letra, estes por um raio de sol. O universo começou, nem sei se se por acaso ou por necessidade, com um bang. Noutras versões foi um verbo e um sopro. Mas tudo traz um princípio, ainda que tosco. Além do gosto, há princípios que trazem hesitações e despudores. Alguns contêm esforço e sacrifício, quase partos. Com dor. É caso nas utopias. Como o é num ou noutro desejo, até neste pequeno querer fazer: pois ele há princípios de coração, princípios de mão, princípios de cabeça.

Crescer além do momento principal é ainda, e sobretudo, trocar uns princípios por outros, escolher uns quantos e alimentá-los. Evitando que se suicidem contra a luz. Serão os fins principalmente desgostos? A minha colecção sem fim de pequenos princípios não me dá resposta.»

Dedo na ferida, jornal Combate

«A arte pura é exibicionista, gosta que a vejam, não se realiza sem que uns poucos a admirem. É verdade que nem sempre se despe, pois ama a sedução tanto como o mistério. E joga ao gato e ao rato com o que sente e dá a sentir, com o que vê e dá a ver, com o que mostra e dá a esconder. Mas nem todas as artes são exibicionistas.

Na classificação das artes há uns lados de sombra onde se abrigam, ao fresco, aquelas disciplinas tão indisciplinadas e movediças que escapam às supremas etiquetas e às grandes hierarquias do gosto e da sensibilidade. São menores ou impuras, mas nem por isso deixam de se atravessar no nosso caminho. Até se instalam para ficar nos nossos modos de ver e de experimentar as coisas. Como algumas insidiosas melodias que não nos deixam o ouvido, há pequenos momentos visuais que nos paginam os dias, que os arrumam logicamente ou os desarrumam poeticamente.»

Crónica, TSF

«O país Lisboa possui a luz da tolerância e nele convivem há séculos as mais díspares religiões e comércios e corpos e cores. No Martim Moniz, nas suas arcadas e recantos, mora um mundo inteiro. Ali à volta encontram-se passagens directas para os mais distantes lugares: China, se procurarmos bem por entre imitações; África, no cabeleireiro de carapinhas; Goa, num certo restaurante de tentações picantes, ou o Absurdo, no hospital das bonecas. Lisboa ainda acredita na infância.»

Passagens de nível sem guarda, revista Up

«No país da amizade não há tribunais, mas também não há mapas. A primeira coisa que um amigo faz é abrir a porta, a segunda é ouvir. As perguntas só chegam depois, e serão todas passadas pelo crivo da sinceridade. O amigo está sempre lá e acolhe antes de opinar, cada um da sua maneira muito própria. O amigo fará tudo pelo amigo, mas não fará necessariamente aquilo que o amigo quer, mas o que a amizade lhe manda. A razão é simples: não podemos viver a vida através dos outros. Sem ter vivido alguma coisa nada tenho nada para trocar e é disso que falamos quando falamos de amizade: de partilha. Nenhum amigo evita os problemas, ninguém tem as soluções que precisamos. Ajudam a perceber os problemas, o que é meio caminho para encontrar as soluções.»

As ocasiões são para os amigos, revista 20 anos

«Mal o mundo suspire de cansaço, eis a hora certa. Pouse-se o rosto na coxa como um cair de tarde e admire-se. Não basta sonhá-la, como se nunca tivesse existido; não interessa invocá-la, resgatando-a aos confins da memória ou às páginas de um livro; não serve sequer vê-la: temos que a dizer, devemos escrevê-la. Só assim entramos nela iverdadeiramente. (…) Neste endereço se encontra a suprema alegria de jogar com os sentidos, não apenas os cinco, mas os outros que desaguam nesses como marés, aquilo que fomos ou o que estamos para ser, o que preferimos esquecer e apagar. Está tudo ali, na cona de Picasso, que pintava com o caralho.»

A cona de Picasso, jornal Lux Frágil

17 Mar 2021

O sono da razão

Este tempo parece avançar devagar, numa espiral descendente. Até os temas dos dias começam a ser recorrentes, demasiado recorrentes. Não se admire o leitor que também este pobre cronista fique umas vezes refém ou outras vezes soldado contra a agenda que lhe querem impor.

Por isso foi sem surpresa que desde há algumas semanas ando obcecado com um quadro de Francisco de Goya (1746-1828) : chama-se O Sono da Razão Produz Monstros e nele se vê o que alegadamente é o pintor num sono que se percebe atribulado pela posição desconfortável do seu corpo. Atrás dele, corujas e morcegos surgem das trevas, ameaçando-o. Goya foi um filho do Iluminismo e como tal endeusava o uso da Razão que colocava como o centro de toda a actividade humana. Mas este quadro parece ter ganhado uma vida terrível no presente. A razão – ou pelo menos o bom senso – está adormecida. Ou pior: tende a estar policiada e presa.

Já não vale a pena considerar aquilo que podemos assistir quotidianamente como episódios isolados. Não: os cancelamentos, as proibições, as constantes modificações da linguagem são sinais claros de que a nova ortodoxia está para ficar se nós deixarmos. A supressão do debate está instalada desde o início da década de 90 do século passado, intimamente ligado ao que ficou conhecido como Politicamente Correcto. Peter Coleman, um antigo ministro australiano do Partido Liberal chamou-lhe uma “heresia do liberalismo” e foi mais longe: “O que começou como um assalto liberal à injustiça tornou-se, não pela primeira vez, uma nova forma de injustiça”. Sobre este “não pela primeira vez” há muito que dizer. Mas antes olhemos para o agora.

E agora, só para falar nos tempos mais recentes, há isto: Pepe Le Pew, uma doninha ultra-namoradeira e protagonista de um desejo animado, é banida por supostamente “incentivar à violação”. Outro personagem de ficção, James Bond, para além de sofrer pressões por corresponder a uma minoria supostamente privilegiada e de sexualidade condenável para esta Ortodoxia (leia-se branco e heterossexual) é ainda censurado por “induzir a comportamentos alcoólicos”. Uma antropóloga brasileira de méritos académicos exemplares e conhecido activismo anti-racismo, Lilia Schwarcz, foi linchada nas redes sociais por um texto em que criticava (!) o visual africano de Beyoncé no Black Is King . Principal argumento dos que a atacam: é branca. O caso dos requisitos para quem queira traduzir o poema da tomada de posse de Joe Biden escrito por Amanda Gorman – uma jovem negra – é também já conhecido: para o poder fazer é necessário ser negro e de preferência activista. Seis livros de um dos mais acarinhados escritores de livros infantis, Theodore Seuss, foram retirados de circulação por conterem “elementos racistas”. Os autores canónicos da literatura ocidental (expressão que já por si é perigosa de utilizar neste período inquisitorial) estão a ser retirados dos currículos académicos por representarem a opressão heteropatriarcal, o imperialismo ou a supremacia branca. E sim, falo de Homero ou de Shakespeare.

Perante este assustador estado de coisas alguns liberais moderados reconhecem as causas e identificam a sua origem. Um dos exemplos é Ross Douthat, que escreveu a 6 de Março uma importante reflexão no New York Times. Cito-o sem tradução: « What does this say about the condition of liberalism? Something not so great, I think. (…) But it was a good thing when liberalism, as a dominant cultural force in a diverse society, included a strong tendency to police even itself for censoriousness — the ACLU tendency, the don’t-ban-Twain tendency, the free-speech piety of the high school English teacher.» Outra excelente contribuição é a de Edward Skidelski no The Critic. Ao conceito de Politicamente Correcto prefere abertamente o de Totalitarismo, não o adjudicando exclusivamente à esquerda mas também à extrema-direita.

Os métodos diferirão: a primeira, com mais reconhecimento social, age de forma aberta enquanto a segunda prefere o anonimato da internet. Mas os objectivos são os mesmos: suprimir o que é incómodo para o que se quer um pensamento dominante. Skidelski: « This — note — is very different from the older liberal principle of “no tolerance for the intolerant”. That principle served only to rule out the Lenins and Hitlers of this world, preserving a wide scope for disagreement. But if what is required is not just tolerance, but affirmation, the scope for disagreement is nil. All must affirm, or else face “cancellation”. Herein lies the secret of that strange and horrible metamorphosis whereby the champions of “diversity” and “inclusivity” have become the most zealous persecutors of the modern age.»
Poderia continuar e receio que o faça numa outra oportunidade. Apenas direi que uma das origens deste clima cultural e até político está identificada por todo o espectro ideológico moderado e é paradoxalmente o lugar onde o debate e a liberdade de expressão sempre foram valores blindados e desejáveis: as universidades. Agora o caso é outro. Num ensaio disponível no site academia.edu com o título Academic Inquisition: Are Universities Centres of Higher Education or Higher Indoctrination?, o professor de Linguística Alaric Audé descreve bem o ambiente académico que se vive: « Professors are behaving as zealots and activists rather than remaining neutral where possible and acting as facilitators of complex discussions and problem solving skills. Professors themselves partake in violent demonstrations (Bostock, 2020) and encourage their inexperienced students, not to act with reason, but condone and justify repulsive behaviors in their students. They have forsaken the art of teaching and instead revel in the power and influence that comes with indoctrination. Instead of providing stimulating and through provoking lessons, they water down education and create “safe spaces” as if their students were young children that needed mental protection». E faz mais: estabelece uma genealogia do fenómeno – o tal “não pela primeira vez” que salientei no início da crónica – que já há muito também foi identificada mas que é sempre assustadora: o totalitarismo nazi e soviético, onde professores e alunos com vozes dissidentes eram perseguidos, despedidos e às vezes pior. O verdadeiro problema é que esta mentalidade já passou para os estudantes, também eles os primeiros a denunciar, proibir ou cancelar toda a possibilidade de opiniões contrárias à ortodoxia vigente.
A razão parece continuar adormecida. Os monstros estão bem acordados e não se recomendam.

17 Mar 2021

Calo-me quando morrer

O escritor Enzo Rossi, nascido em Palermo em 1956, escreveu vários romances ao longo de quase cinco décadas, mas nenhum deles superou o êxito de crítica e de vendas de «A Aldeia», publicado em 1984. Independentemente da qualidade do romance, não é este que me traz hoje aqui, mas uma entrevista que ele deu a um jornal português em 1989, aquando da sua passagem pela Feira do Livro de Lisboa. De modo a compreendermos aquilo que está em causa na entrevista, precisamos de ter pelo menos uma vista panorâmica da narrativa de «A Aldeia». O romance é narrado por um jovem professor que vai visitar os avós à aldeia onde o pai nasceu. Roberto nunca tinha visitado os avós sozinho e a última visita acontecera quando tinha dez anos. Agora chega sozinho, de carro, e ao entrar na aldeia depara-se com uma septuagenária curiosa que lhe acena. Como não sabia bem aonde ficava a casa dos avós, resolveu parar e perguntar se a senhora conhecia o sapateiro Rossi, adiantando que era seu neto e vinha visitá-lo. Assim que a senhora começa a falar, a narrativa do livro passa a ser feita por ela: «E você é o filho do Benedito ou da Rosália? […]

Ah, do Benedito, aquele que foi pra Palermo. Também vive em Palermo? […] Olhe, filho, a casa do seu avô?… não tem nada que enganar. Você segue por esta rua a direito e quando chegar lá ao fundo, há-de ver do lado direito a loja de rações do Senhor Luigi, aquele que tem um filho que anda na droga. Uma desgraça, nem queira saber. Coitados dos pais, tanto têm trabalhado, tanto têm gastado com esse filho, que lhes dá cabo do dinheiro e da saúde. Imagine que até rouba aos pais. Sim, sim. Rouba. É uma desgraça.

E o senhor Luigi, que é tão boa pessoa! E a mulher, tão religiosa, tão decente. Não é que não sejam careiros, porque são, mas também não os podemos culpar por isso, não é? A verdade é que quem não sabe vender, o melhor é fechar a loja. Pois claro. Tenho muita pena deles. Olhe, só para ter uma ideia, o filho já estoirou três ou quatro carros ao pai. Tudo por causa da droga e da bebida. Enfim. Eu nem gosto de falar da vida das pessoas. Seja como for, meu filho, assim que vir a loja do senhor Luigi à sua direita já sabe que vai virar na próxima à esquerda. Assim que virar, vê logo ao fundo, em frente, uma padaria. É da dona Mommina, uma peste, até bate no marido! E não é pouco, coitado. Está bem que o Alfredo se mete nos copos, é verdade, mas também com uma mulher daquelas… E apesar disso é bom trabalhador. Um bom pedreiro. É verdade que também tem a fraqueza das saias. É verdade, sim. Não pode ver uma burra de saias, que não descansa enquanto não se meter em trabalhos. Se quer saber, eu acho que não está certo, mas compreende-se. É homem, apessoado… e, depois se não é feliz em casa, não vamos ser nós a julgar o que deve e não deve ser feito, não é? Não se casaram por amor. Nem por amor nem por respeito. Diz-se, e olhe que eu acredito, que ela se casou com ele por ruindade. Os pais dele deviam uns dinheiros ao pai dela e foi assim. Ela sabia bem que ele não gostava dela, e sabia bem que ele rondava tudo o que era aldeia atrás de raparigas. Mas o que é que quer? Foi por vaidade. Para dizer que podia. E assim casou. Casou e foi o desastre que se vê. Enfim. Quando vir a padaria siga à esquerda até ao posto dos correios, que se vê logo. A esta hora a Rita já deve ter fechado…»

É este o tom do romance, que acaba por ser quase todo narrado pela fala da septuagenária a dar as direcções até à casa do avô do narrador, enquanto descreve a vida dos habitantes da aldeia. Quando a jornalista, em Lisboa, perguntou a Enzo Rossi de onde lhe veio a ideia do livro, se tinha sido algo a que ele assistiu ou que lhe contaram, respondeu: «A ideia veio simplesmente de ver nas tabernas, nas lojas e nas praças de Palermo as pessoas a falarem da vida dos outros e de todos os acontecimentos do dia anterior, por mais insignificantes que fossem. Alguns mais velhos chegavam a repetir as mesmas histórias dias seguidos. As pessoas só se calam quando morrem. Custa-lhes mais o silêncio do que a fome, se esta não for prolongada.» Na altura em que li esta entrevista, tinha 24 anos, ainda não tinha lido o romance, e fiquei muito impressionado com aquela frase «as pessoas só se calam quando morrem». Mais impressionado ainda, porque já a tinha ouvido na primeira pessoa, quando era criança, por uma senhora num lugarejo perto de Sines: «calo-me quando morrer». Nesse tempo, ia muito para Sines, nas férias da escola, pois o meu pai, o meu avô e o meu tio-avô trabalhavam juntos e tinham lá uma casa. Aquela frase, que ouvi tantas vezes aquela senhora dizer, anos atrás, só agora me fazia sentido, ao ler aquela entrevista de Enzo Rossi. Nós temos uma relação estranha com a linguagem. Não falamos para dizer alguma coisa, mas para não estar calados, para não nos escutarmos no silêncio. Calar, só quando se morre. Quando já não nos é possível amordaçar o que podíamos pensar, o que podíamos contemplar.

Depois, e por causa daquela entrevista – na verdade por causa daquela frase – fui ler «A Aldeia». Evidentemente, quando cheguei às páginas do livro, já ia com esta frase e com tudo o que ela me tinha feito pensar e, talvez por isso, gostei muito do romance. Mas tenho a certeza de que a minha leitura sem aquela frase prévia, sem a entrevista do escritor, não teria sido a mesma. Sem «as pessoas só se calam quando morrem», que me levou à senhora da minha infância que dizia constantemente «calo-me quando morrer», teria lido o livro na superficialidade da sua narrativa. A frase que Enzo Rossi diz na entrevista nunca aparece no romance. Sem dúvida, sem essa frase anterior, seria capaz de reconhecer o engenho do escritor, quer pela ideia quer pela capacidade narrativa, mas pouco mais do que isso. O que me faz pensar: o que é que lemos quando lemos? Ou seja, do mesmo modo que aquela frase dita pelo escritor numa entrevista me fez ler o livro completamente fascinado, com «calo-me quando morrer» no horizonte de cada página, sem essa frase, de que maneira teria lido o livro? Numa neutralidade como a de quem ouve alguém contar uma história engraçada? Ou pior, deposto no preconceito de estar a ler uma historinha bem contada? Mesmo sem um pensar filosófico, não podemos deixar de ver que a linguagem encerra em si um enorme mistério: não se sabe o que ela nos diz. Nunca sabemos o que alguém lê quando está a ler. Nunca sabemos o que alguém ouve, quando está a ouvir. Este mistério é a própria linguagem, que nos faz falar até à morte. De tal modo, que preferimos não nos ouvir a nós mesmos a deixar de usá-la. Preferimos falar sem saber o que dizemos ou sem sequer nos perguntarmos sobre o que falamos, do que deixar de falar. Preferimos até falar da vida dos outros, de que não fazemos a mínima ideia, a não ser de vagos contornos, a ficar calados. Preferimos falar a não falar.

Assim, mais de trinta anos atrás, quando li «A Aldeia», estava fascinado pela entrevista que Enzo Rossi deu, por aquela frase que nunca escreveu no seu romance e sem a qual a minha leitura não seria aquilo que foi. E o que é que leva um escritor a dar entrevistas? «Calo-me quando morrer»? Infelizmente não é algo de tão interessante, apenas a necessidade de promover o livro.

16 Mar 2021

Novas dos icebergs (3)

Continuam.
Como este universo mais vasto em que queremos ler passado e futuro e em tudo um espelho. A humildade, que o paradoxo de Fermi-Hart nos deveria colocar em mente. A grandeza dos números e a escala do universo, gera uma imensidão de probabilidades da existência de mais vida no universo, mais inteligente e muito mais antiga, e o confronto, ao mesmo tempo, com a estranha e completa falta de evidências, E coloca a questão da insignificância.

Talvez face à desproporção entre os recursos, a inteligência humana, e a vastidão incomensurável do universo a que queremos adivinhar vida, civilizações e inteligências maiores, e, a sê-lo, inimagináveis à nossa escala e á distância de números transcendentes de milhões de anos até ao alcance da capacidade de vislumbre ou pressentimento, tenhamos simplesmente que as imaginar civilizações mais avançadas, sofisticadas e predatórias, que nos achem demasiado irrelevantes para se darem a ver.

Talvez, pensam os imaginários das ciências, tenham cá estado antes. E, à distância de um tempo, para eles ínfimo em termos civilizacionais e para nós a diferença entre já existirmos ou não. A nós que dificilmente, mesmo ignorando os seres enternecedores que nos cercam, conseguimos imaginar que outros mais antigos, mais ocupados com coisas mais avançadas e maiores, nos ignorem. No seu atingido registo inimaginável, mas seguramente de grande vocação predatória e conquistadora, em que a ética a empatia seriam meros atavismos anedóticos de um passado irreversível. A menos que a evolução as determinasse, como um recurso de sobrevivência. Coisas pouco prováveis em civilizações muito mais sofisticadas do que a nossa mas que são já fáceis de reproduzir por uma inteligência artificial.

Ou talvez planeiem voltar na sua próxima primavera. Daqui a milhões de anos. E seremos no máximo vestígios arqueológicos ou restos fósseis e registos microbiológicos, como os que sonhamos encontrar em Marte, nesta paixão pelas dimensões do tempo que nos ultrapassam ainda mais. E talvez descobrir esses vestígios de vida em Marte, camadas de passado, seja a pior das notícias. A de que estamos a contemplar o futuro por uma nesga da janela que abrimos. Fascinante. Indizível curiosidade mórbida de saber ter havido vida ali, que já não há. Como querer saber o momento da morte. O futuro.

Esse futuro, que não parece augurar nada de bom. Chamam-lhe o grande filtro. Um conjunto de variáveis que um dia vai conjugar-se e nos reserva a desaparição. Da qual não ficará qualquer sentimento póstumo mas simplesmente antecipado.

De qualquer maneira, em termos civilizacionais, já demonstrámos o enorme poder e uma espécie de vontade suicida subliminar, de tornar inviável a sobrevivência, acelerando o desgaste do nosso pequeno paraíso terrestre, à nossa escala de pequenos números na vida do universo. Mas imaginar essa escala como realidade presente, é triste e rouba toda a energia para viver o curto instante de cada uma das nossas pequenas vidas, mesmo na insignificância que esse infinitesimamente curto momento, como os segundos, representa na escala de grandeza do universo. Uma coisa muito jovem a terra na qual estamos encavalitados. Não vamos longe. Mesmo quando vamos a Marte numa espreitadela irresistível. A um futuro possível lá. Uma fuga para a frente, para cima, para um futuro como se sempre o houvesse, ou como uma estratégia de terra queimada.

Queimamos e fugimos para cima. Rumo a Marte.

Esta paixão pelas paisagens inóspitas mas quase familiares, desérticas, agora lunares – semeada a metáfora – de Marte. Como uma página em branco do romance terrestre a projectar-se ali. Sem vida, já, sem cultura ou qualquer estrutura social. Uma espécie de visão total de liberdade na ausência dos outros. Que provém de todas as ausências. A liberdade de pensar o futuro e uma civilização, simplesmente com base na ciência. Do possível ou do impossível. Mas não chego a concluir o paradoxo deste olhar. Pensar, ver, o nosso futuro ou pensar o nosso passado numa perversa antecipação. Um relance num passado abismal e num futuro, o nosso, igualmente vertiginoso. Como uma linha do tempo, esticada e visível até perder de vista.
Mas antes de menos infinito e de mais infinito. Porque mais para aquém ou para além, somente deus. Se há.

O que sabemos é que é ali o maior vulcão do sistema solar, o Monte Olimpo. Afinal era ali a morada.
Somente para nós há este aperto de quase emoção presa na garganta quando a vemos, azul e terra, por momentos dissociados da nossa visão de dentro e imersos na fantasia de a ver de fora à distância inócua como se nela não contornássemos ou enfrentássemos dilemas diários. Mas de Marte a visão é mais distante. Um ponto luminoso no espaço para além. Major Tom, não hesita. Mesmo à distância de contornos reconhecíveis, desligou-se do apelo vão do ground control. Uma utopia que talvez nos atormente – a todos – em certos dias.

Esta experiência do corpo raso na plataforma de gelo. Como uma performance na galeria virtual. A monitorização – the new black – do poder. Opostos, o calor e o frio do gelo. Poderes que teoricamente se afectam mutuamente. Destroem. Dissolvendo fronteiras, em contacto um derrete o outro petrifica. Tendência ao equilíbrio. Imagine-se o corpo, o calor como afecto, deitado contra a superfície gelada, o frio ou a força do inevitável. A força do calor potencialmente a derreter o gelo e a enorme combatividade do gelo a transmitir progressivamente a sua temperatura ao corpo. Que nunca vai perder a forma, mas ganha a rigidez do gelo. E este, pelo contrário, perderia a sua cristalização e seria no final água. Poderia ser imagem da desproporção dos valores humanistas face a outros poderes mais determinantes: a política, a economia a ambição da ciência. Ambos, calor orgânico e frio cristalino, com a possibilidade recíproca de se destruírem. O calor é o afecto como o frio a força do inevitável. Sabe-se à partida que vence neste jogo injusto de forças desproporcionadas: a variável sempre imiscuída do tempo. O que define o poder do mais forte.

Talvez por isso e circundados de abandonos, ansiemos seres de além. Mas separa-nos o tempo em unidades que nos transcendem. Tempo e silêncio.
O Grande silêncio, “silentium universi”. Aquele que nos diz que, se nada de lá ecoa, é talvez um intervalo de paz entre as inúmeras possibilidades. O silêncio da noite do universo. Enquanto durar – dizem – é bom sinal.

Mas será sempre à nossa escala de insignificância e imperfeição, o encontro com o que pode salvar. Para uma geração em que muitos avós não acreditaram que poisámos definitivamente os pés na Lua. Volto a encostar-me, numa lassidão de alheamento, talvez “floating in a most peculiar way”, ao ombro quente da vida. No sofá da sala. Mais meia hora, a esta escala, e há que desligar o forno. Os aromas a inundar a casa são uma sólida realidade, como a da veemência invisível de pegadas no chão. Na telefonia Lulu Monde cor-de-rosa, quase vejo Major Tom “stepping through the door”. O que deixa um sabor melancólico, a imortal paradigma de juventude.

16 Mar 2021

Coisas de tempo e de lua

Os meus avós viveram toda a vida num sítio chamado Vale de Ebros, um ermo no interior algarvio, sempre a subir para quem vem de Cacela Velha, a estrada serpenteando naquela cacofonia de montes e vales onde pequenas courelas competiam por sol e água, a certa altura o alcatrão desaparecia, desapareciam também os postes por onde telefone e luz circulavam e tínhamos de fechar as janelas do carro, mesmo em pleno Verão num carro sem ar condicionado, e se eu me esquecia porque ia a ler (não leias no carro, que ficas cego antes de tempo!), o meu pai virava-se para trás e fulminava-me com um olhar que a memória tratou de adocicar até dele só restarem saudades.

A distância que ia da nossa casa em Tavira até à casa dos meus avós era medida em tempo: o tempo que se levava a chegar lá e o tempo a que se recuava na chegada. Lamparinas de petróleo, água de cântaro, uma fogueira generosa para nos receber na cozinha, o meu avô, já tremelico de mãos, a servir-nos uma malga de cozido (couves, carne de porco, o melhor chouriço que já comi na vida) e a minha avó a varrer o soalho de pedra com uma vassoura de palha.

De repente, o passado. Para um miúdo que crescera em França, bastião de primeiro mundo orgulhosamente tecnológico, a casa dos meus avós tinha tanto de fascinante como de assustador; faltavam-lhe interruptores, televisão e demais impulsos digitais tranquilizadores.

Quando ia dormir, soterrado por camadas infindáveis de mantas ásperas (dias de infernal calor, quarenta graus de um sol capaz de chamuscar a orla do inferno, noites gélidas em que a geada, mesmo no Verão, queimava as folhas mais frágeis), a minha avó vinha apagar a lamparina e aconchegar-me no seu algarvio indisfarçável «drome filho, drome». Eu passava imenso tempo a tentar perceber de onde vinham os ruídos que me acompanhariam noite fora e que, na minha cabeça, pertenciam a criaturas muito mais fantásticas do que os mochos e insectos de onde me afiançavam originar.

Certa noite mais amena, estava eu e o meu avô no alpendre, a olhar para aquele céu estrelado que acontece somente nos sítios onde a civilização rareia, comentei, apontando para a lua «já viste, avô, é incrível já termos ido lá, não é?», ao que o meu avó me respondeu, como se eu fosse meio atrasado «lá onde, filho?», «à lua, avô, Neil Armstrong e os outros dois, uma das maiores aventuras da história dos homens», e o meu avô, cada vez mais convencido de que eu tinha um problema qualquer, «ó filho, mas tu acreditas em tudo o que te dizem», prosseguiu, entre o paternalista e o preocupado, «já viste o tamanho da lua, como é que achas que alguém podia ir para lá? E fazer o quê?», «é maior do que parece daqui», comentei, «na verdade é grande o suficiente para construir cidades. Um dia até poderemos viver lá. Nós não, mas no futuro…», «ó filho», continuou ele, desanimado, «tens de ter cuidado com o que te dizem. Há gente muito má por aí. E tu és novo. Cautela.»

Nunca consegui convencer o meu avô de que a lua era maior do que ele a via ou de que havia pessoas tão reais como ele que tinham caminhado sobre o seu solo, também este tão real como uma porção de terra ressequida por onde se passa entre sítios.

Entretanto, os meus avós morreram. O Vale de Ebros é ele próprio uma espécie de paisagem lunar; deserto, destroços do quotidiano espalhados aqui e ali, um carro enferrujado deixado ao abandono, um cenário pós-apocalíptico pouco condizente com a vida síncrona com as estações que há apenas vinte anos se avistava da estrada a caminho.

O telhado da casa dos meus avós desabou. É um mundo que finda, uma porção de passado à qual deixa de ser possível regressar, um continente que se afasta. Sob o olhar atento da lua.

12 Mar 2021

Dos brasões e dos impérios

Coitado do império romano, um império de mil anos, que foi sempre colonizado mentalmente. Dir-se-ia até que foram marionetes, primeiro dos gregos, depois do Cristianismo – ‘tadinhos!

O que nos ensina, este exemplo? Que a História não é linear, não é um mecanismo que conduza ao estipulado pela caução determinista. A História extravia-se irremediavelmente em becos, desperta energias que diferem em relação ao seu eixo e restitui, nos gérmenes das mentalidades que desperta, o que estava na sombra e agora irradia com uma tremenda força de contágio em direcções não previstas.

Daí que, di-lo Benjamin, caiba ao historiador suspender todo e qualquer preconceito se quiser contar a história tal qual ela é, i. é, no engendramento do que bifurca de si mesmo. E adianta na segunda das suas Teses sobre a História: “o cronista que narra profusamente os acontecimentos, sem distinguir grandes e pequenos, leva com isso a verdade de que nada do que alguma vez aconteceu possa ser dado por perdido para a História.”

Pior, em Benjamin, a utopia não é mais pensada como a crença no acontecimento inexorável de um Ideal localizado no termo mítico da história, antes ressurge – através da categoria de Redenção – como “a modalidade do seu acontecimento possível a cada instante de tempo”. E neste resgate acrescenta-se dignidade aos vencidos, que apenas de forma temporária e contingente, se encontram desse lado da barricada.

A História, portanto, reconfigura-se a partir das particularidades, do que nela jazia subterrâneo e marginal ao sistema em vigor. Pelo contrário, a História mostra-nos como tudo tende para o gradual e fosforescente domínio dos vencidos no plano das mentalidades. Para o bem e para o mal. Pelo que, na dúvida, na colisão das narrativas, é sempre melhor negociar cedências mútuas do que “vencer”.
Até na “indústria cultural” é assim: o rap, expressão das periferias foi assimilado, e, convertido em hip-hop, tornou-se dominante, até à náusea.

A Alemanha fascista ergueu-se sobre as ruínas dum tecido social vencido, humilhado e esquecido; a atracção pelo modelo estalinista nos países comunistas mais não foi que a violência maniqueia do ressentimento com que os vencidos trocaram de posições. A Primavera Árabe não foi pervertida, simplesmente acordou o monstro adormecido, que com um atitude sobranceira se havia negligenciado, etc., etc.

Aquilo que o Freud explicava caridosamente quando dava como uma das leis do inconsciente a sua impossibilidade de esquecer, tudo se retém na caixa negra do inconsciente para ser baralhado e voltar à superfície lá mais para diante. Com os povos e a História é o mesmo. Tudo o que se censura volta, o que foi desdenhado e empurrado para a periferia voltará sem remédio.

Acho por isso delirante a polémica em torno de “abafar” ou não os brasões, no Jardim da Praça do Império. O acto de retirar os 32 brasões do Jardim do Império é tão irrelevante para a dignificação da memória das comunidades afro-descendentes como desnecessário. Afinal, o que representam os brasões? Legumes, pequenos arbustos e flores das diferentes e antigas províncias do “Império”. Porquê vedar às crianças a oportunidade de perceberem que as papaias, a pêra abacate, as mangas, a goiaba, que vêem à venda nos hipermercados, são originárias dos países africanos de que inventámos os mapas – para depois lembrar que os “benefícios” do colonialismo geravam a infelicidade dos povos autóctones.

Já retirar os brasões perpetua o erro de recalcar o que supostamente – no novo império do “politicamente correcto” – é vergonhoso. A História faz-se também das suas vergonhas e crimes e não convém ocultá-los.
Só se adquire uma dimensão crítica quando ficam expostas as contradições do sistema e isso possibilita o recuo que nos distancia da carga ideológica de que os seus vários signos eram portadores.

Como escreveu Sena no poema Chartres ou as pazes com a Europa: «Europa, minha terra, aqui te encontro/ e à nossa humanidade assim translúcida/ e tão de pedra nos pilares sombrios.» A “humanidade” nalguma Europa é ainda (apesar de tudo, confirma-o a condenação de Sarkozy) translúcida porque expõe os seus pilares sombrios, não os esconde com um tapume.

Diga-se: a actual cultura ocidental aceita que a sua academia ou artes contrariem ou forjem narrativas paralelas à da sua “história oficial”, num ventilado sistema de correcção conceptual e de fugas, em sendo os argumentos convincentes. Esta liberdade não é global. Onde se oxigenam os ensaístas pós-coloniais, dos diversos quadrantes e raças, e que minam, tantas vezes com acerto e pertinência, a credibililidade das narrativas europeias; em cujo território, apesar de dissonantes, são tratados com respeito, beneficiando até de um mínimo conforto material para poderem zurzir com habilidade e apoio institucional na civilização ocidental? Na Europa (ou nos EUA).

E adianto já: é assim que deve ser. A saúde democrática demanda a presença de antídotos.
Não podemos é aceitar isto por um lado e querermos apagar, como revisionistas, o lado negro da História.
Nas sociedades conservadoras ou autoritárias os liames que cimentam uma sociedade são mais diacrónicos do que sincrónicos: emerge de um desligamento forçado com o presente a força dos símbolos fundadores.

Hoje, na era pós-colonial e da democracia electrónica, diferentes narrativas e tempos históricos digladiam-se e no tecido do quotidiano notamos a presença de vários tipos de presentes, correspondentes a uma heterogenia na composição do(s) passado(s). Neste panorama, o cultivo da memória e o seu debate são cruciais e não devem ser objecto de demagogia.

Como o fará o Chega, que ergueu a bandeira de partido que preserva “todos os símbolos históricos da nação portuguesa”, os quais vai distorcer e idolatrar. É importante que um pai afro-descendente a passear no jardim, possa comentar aos seus filhos, “Era com estes engodos simbólicos que os filhos da puta endrominavam os soldados que iam para a guerra oprimir-nos”, e que eu possa apontar aos meus, “As nações fazem-se numa soma de erros e barbaridades que convém não serem escondidos para podermos estancar a irracionalidade.”

11 Mar 2021

Desenterrar o visível

O romance ‘Aparição’ de Vergílio Ferreira foi importante nos verdes anos, porque, quando o leste, em 1971, desenterrou a cidade que continuavas a ver diante dos teus olhos. Foi um verdadeiro pasmo. Sem dares por isso, na altura, aprendeste que desenterrar aquilo que é visível corresponde, afinal, a toda a história dos humanos. 
 
A “Ideia” de Platão, o delírio sobrelunar inventado por Aristóteles, o lektón dos estóicos (ou “significado”, a única coisa incorpórea que existiria no meio de uma visão da vida inteiramente materialista), a pré-concepção de Santo Agostinho e os mil experimentalismos modernos, tudo isso, eram formas diversas de desenterrar o visível. 
 
Além deste detalhe gigante, o romance incorporava o debate existencial que à época ainda não arrefecera. Independentemente de tudo o que se possa mencionar à primeira vista, o livro vivia – e vive – duma atemporalidade de fundo que nada tinha que ver com o espaço concreto onde as acções (e as reflexões) decorriam. Havia ali um tempo paralelo, uma espera sem termo, uma incerteza longínqua, um aceno comovente. 
 
A grande literatura vive destes mitemas e sussurros, tantas vezes invisíveis, mas que frisam o espanto e o salto que a leitura pode e deve provocar. Desenterrar o visível tornar-se-ia no rastrear de algo sempre maior. A perder de vista (na verdade, uma aparição pode cegar).
 
Alguns anos antes, estavas em Sintra e observaste o imperador da Etiópia, Hailé Selassié, a acenar dentro de um carro preto que tinha o tamanho de uma lança sem terminação. Uma lança que ainda hoje vês passar por ti tantas vezes. Foste ao encontro dos fungos que se instalam na memória e confirmaste que a visita teve lugar nos últimos dias de Julho de 1959, ano em que o romance ‘Aparição’ foi lançado.
 
Entre essa data e 1996, a bandeira da Etiópia mudou oito vezes. As listas horizontais vermelhas, verdes e amarelas mantiveram-se, mas o leão da Judá do tempo de Selassié transformou-se numa estrela de cinco pontas. Lembras-te ainda de que havia rendas junto à janela onde a mão do imperador se agitava. Nunca tinhas olhado para um imperador e toda aquela sobreinvestida fez-te pensar, suspender os séculos. 
 
No ano em que a bandeira da Etiópia inaugurou a sua última versão, cruzaste-te no funicular de Haifa com vários soldados etíopes. Eram judeus etíopes. À saída, um deles avançou na tua direcção e disse: “I´ve been there!”. E ali ficou com o dedo a apontar para o Mediterrâneo, na direcção do sol-pôr. E tu entendeste que o alvo era inevitavelmente Sintra. Concluirias, nesse instante, que o entendimento é uma teologia sem deus ou o fac-símile de uma primeira pessoa confusa (a olhar para o mar). E lá continuaste a jornada, sempre a subir, em direcção ao monte Carmelo. Nesse mesmo dia – era 1 de Março – morreu Vergílio Ferreira.
 
Alheio à morte, às metamorfoses das bandeiras e às taras do Selassié, Vergílio Ferreira continuou a sua tarefa de desenterrar o visível. 
 
Em certos dias, como hoje (fosse em 1986 ou em 1996, que interessam as tabuadas?), regressas aos mais altos cumes de Haifa e tentas seguir a direcção do dedo indicador do soldado etíope. Segue-lo como se espreitasses por um monóculo potente e, ao fundo, lá está o escritor na sua casa de Fontanelas (afinal era mesmo em Sintra) a escrever: “Alguém a trouxe de um paraíso perdido ou de uma ilha dos amores para uma serenidade de amar. Sintra é o refúgio de nós próprios e de todo o excesso que nos agride ou ameaça.”. O mar a perder de vista. E a desenterrar o visível.
 
(texto parcialmente extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)

11 Mar 2021

Primeiro acto – Cena 5

Desatam a rir com a declamação de Valério. Quando acalmam, acendem um cigarro e servem mais vinho. Dão-se conta dos primeiros raios de sol que entram pela janela. Valério espreita o relógio e a sua expressão muda.

Gonçalo
Tens de ir embora.

Valério
Não devia.

Gonçalo
Não?

Valério
Não…

Gonçalo
O que é que se passa?

Valério
[hesitante]
Troco mensagens com os meus alunos de faculdade…

Gonçalo
E…?

Valério
Temos um grupo… professor e alunos… fala-se de tudo e mais alguma coisa.

Gonçalo
Caramba, estás lento… desembucha!

Valério
Calma, deixa-me estruturar o discurso.

Gonçalo
Confessa… não penses muito.

Valério
Não vou confessar nada!

Gonçalo
[rindo]
Porque ainda não fizeste nada… mas andas com o pecado às voltas na cabeça, seu maroto!

Valério
Mas qual pecado?!

Gonçalo
É tão óbvio! Estávamos às gargalhadas… reparaste que o sol estava a nascer, olhaste para o relógio e ficaste nini.

Valério
Nini? O que é isso?

Gonçalo
Nini… abatido, melancólico. Os teus alunos não usam essa expressão, nini?

Valério
Mas o que é que isso tem que ver com pecado?

Gonçalo
Tem tudo. Tens alguém em casa à tua espera… e tu aqui, a estas horas… pecado! Que eu saiba não vives com ninguém, portanto… Tens trabalho atrasado e tu aqui, a cavaquear e a emborcar à grande… pecado.

Valério
Culpa, queres tu dizer.

Gonçalo
Neste caso é a mesma coisa. Andas a trocar mensagens com quem não deves… continua.

Valério
Não é bem assim.

Gonçalo
Só pode ser isso… ficaste nini. Perguntei porquê. Disseste “troco mensagens com os meus alunos”.

Valério
Mas foi um engano… eu troco mensagens no grupo, mas também troco mensagens em privado. E são eles que me mandam mensagens… a propósito de trabalhos, ou exames, ou o que for…

Gonçalo
E?

Valério
Calma! [pausa] E… eu escrevi no quadro da sala os nomes e os horários de apresentação de uns trabalhos quaisquer, tirei uma fotografia e enviei para o grupo… apaguei o quadro e fui-me embora. Ao fim da tarde começo a ser bombardeado com mensagens no grupo… enganei-me, pelos vistos… havia duas apresentações à mesma hora, num mesmo dia. “Enganei-me, peço desculpa, fulano ou fulana tal apresenta na aula seguinte e não no mesmo dia, se estiverem de acordo”, respondi. “Tudo ok”, responderam eles… passadas umas horas recebo uma mensagem de um número que não tinha gravado… a mesma fotografia, com a mesma pergunta “Não se terá enganado?”… não respondi, não conhecia o número. Mas fiquei curioso, voltei a espreitar a mensagem e quem a enviou já a tinha apagado.

Gonçalo
[rindo]
Estás a inventar!

Valério
Não estou!

Gonçalo
Para já, é uma seca! Uma sequência de factos insípidos… depois enviei isto, depois eles responderam aquilo, depois eu fiz não sei quê, depois eles fizeram não sei que mais… Ainda por cima, és monocórdico e deixas todas as frases suspensas… e tararará… e tararará… e tararará… não há paciência!

Valério
[levanta-se]
Bem, vou-me embora.

Gonçalo
Oh, vá lá…

Valério vai até ao lava-loiça e começa a lavar o seu copo.

Gonçalo
Agora vais tu fazer birra?

Valério aproveita para beber água, volta a lavar o copo e deixa-o a escorrer. Vai até ao bengaleiro e veste o casaco. Põe-se a revistar os bolsos.

Gonçalo
Acaba lá a história.

Valério
Não!

Valério continua à procura de qualquer coisa nos bolsos do casaco.

Gonçalo
Não podes conduzir assim.

Valério
Sem chave, não.

Gonçalo
Vá, sentas-te, não bebemos mais e daqui a pouco vais embora. [pausa] Começo já a fazer o café.

Gonçalo vai até ao fogão de ferro e pega na cafeteira. Valério torna a tirar o casaco e a pendurá-lo. Põe as mãos nos bolsos das calças, contrariado, e descobre a chave do carro num deles. Gonçalo desatarraxa a cafeteira e passa-a por água no lava-loiça. Valério volta a sentar-se.

Gonçalo
Continua…

Gonçalo põe o café, atarraxa a cafeteira e põe-na ao lume. Vem sentar-se ao lado do amigo.

Valério
Peço desde já desculpa pelo conteúdo e pela forma… [pausa] Atalhando… umas horas depois, estava eu num site de engate… já me tinha esquecido do assunto… Sabes que as procuras podem ser baseadas em proximidade, certo? Local de trabalho, casa…

Gonçalo
Sei, avô!

Valério
Pronto… nos critérios de busca, para além do género, idade, interesses… tenho o local de trabalho. Não pus a faculdade, pus a zona, como é óbvio.

Gonçalo
Porquê?

Valério
Porque não quero que saibam onde trabalho.

Gonçalo
E a profissão?

Valério
O que é que tem?

Gonçalo
Tens a profissão no teu perfil?

Valério
Tenho.

Gonçalo
Professor universitário?

Valério
Sim.

Gonçalo
Então, se és professor e trabalhas na zona tal…

Valério
[interrompendo]
É óbvio! Mas não está lá o nome da universidade, não me apetece, pronto. Continuando… às tantas aparece-me o perfil de uma mulher… jovem… a fotografia não era muito boa, não dava para perceber bem como era a cara dela… acho que deve ter posto aquela fotografia de propósito, para não ser reconhecida… era uma aluna universitária ali da zona e tinha o número de telefone. Quando vi o número, percebi que era o mesmo da mensagem que tinha recebido e que entretanto tinha sido apagada.

11 Mar 2021

Platero

De forma a esconjurar este ambiente triste em volta – e à volta do mundo – lembrar os seres em vias de extinção e o seu legado amoroso na vida das culturas a que pertenceram, Platero, um burro, leva-nos a revisitar o sul ibérico, Andaluzia, terra de mouros e ciganos, de laranjas e de flores, de tudo o que é bom nesta parte do mundo terra de antigos califados.

Jimenez, andaluz, traz-nos a atmosfera que também podemos encontrar em Lorca para percorrer esse salão grande da memória meridional. Jimenez – Juan Ramón Jimenez – levou-a para o mundo e dele recebeu um Nobel de Literatura na qualidade de Poesia, e a Andaluzia em peso está ali plasmada como que a dizer que uma certa grandeza se alcança quando levamos o solo natal inalterável e alheio às influências que o modificam. Num tempo tão urgentemente ecológico, havia ele lembrar os conhecimentos imprescindíveis que educam a sensibilidade para que se faça em harmonia com o chão dos sonhos, mais importante que fazer neófitos que declaram sem filtro novas formas de totalitarismo. É nesta componente que a preservação se dá, não por dogma, mas por uma doçura ambiental que as ideias nunca alcançam.

Não iremos encontrar aqui nenhum antropomorfismo, não é uma fábula, nem tem conteúdo moral, também o autor rejeitou que apelidassem de uma obra para crianças, e entende-se bem porquê, a entrincheirada escrita juvenil não é muito do agrado dos poetas, mas só eles sabem como fazer para que o maravilhoso fique intacto para todos, e as crianças serão as primeiras a saber desse efeito: a actual literatura infantil está ainda a abarrotar de componentes estéreis que podem estar a afectar os dons oníricos das próximas gerações.

As crianças conhecem dinossauros, mas suspeitamos se conheçam burros, a velocidade a que foram rasurados os nossos amigos próximos, pode ter criado efeitos mentais não muito explícitos para que se possam já analisar.

Amigos! Sim, a obra é a de uma amizade, e ela dá-se entre várias formas de vida, de espécies vivas, e porque, e sobretudo, nós os mamíferos temos um profundo sentimento de empatia uns pelos outros, esse encontro de vidas é certamente a mais viva componente de respeito por ela que aqui o poeta nos traz. Ele fala de, e, com Platero, com a narrativa limpa, o respeito intacto, e o carinho mais intenso, ele percorre então todas as rondas dos caminhos e são ainda os seus olhos de água que dão fôlego à narrativa e nos lavam a alma sujeita a tanto estilhaço de divisão colectiva.

Teremos de interpretar tal obra como uma consolidação do poder narrativo do seu autor que não poderia no entanto ter feito outra coisa que prosa poética « o poema em prosa existiu desde sempre, como o conto, e o poema em verso ou o ensaio» editado pela primeira vez em 1914 a reedição de 1917 seria aumentada, esta, já com componentes de crítica social tendo cento e trinta e oito capítulos que desejou estender sem sucesso até aos cento e noventa.

A primeira edição é por isso mesmo a mais indicada para a leitura das novas gerações, que no entender do poeta, as crianças deviam ler o que lêem os adultos, dependendo das escolhas, evidentemente. Ao prosseguir esta jornada damo-nos conta do impressionante efeito visual, como se lêssemos uma pintura descritiva e cheirássemos ainda aquelas rosas com que cobriu Platero ao mencionar-lhe que caiam, e esta vastidão de encanto é toda ela uma vitória dos sentidos. Não precisamos de construir a nossa própria atmosfera dentro da narrativa, entregamo-nos a ela como fazem os amantes, e tudo isto é ainda melhor que os seus desejos (componentes do outro que por excesso nos recria) é uma lembrança muito boa da maneira maravilhosa de gostar. Também há dor, Platero morre, e não há espaço livre no coração que o descreve para a esperança imediata. O luto é entendido como uma paragem recomendada no processo da separação, e de lá saem as sombras negras das mulheres viúvas que o sul tão solar sabe fazer azeviche, como se esse processo, todo ele fechado e só, fosse uma dádiva, a única liturgia para dizer adeus.

 

Platero, tu vês-nos, não é ?
Verdade que vês as crianças correndo…
Levando mariposas brancas….
Sim, tu vês-me.
Creio agora ouvir …. a tua voz tão minha.

A alma de Platero não é mais pequena que a de qualquer um de nós, e a saudade que deixa, menos importante que uma outra saudade. Mas isso, só quem ama – esse que abarca o todo em todas as criaturas- o poderá compreender.

10 Mar 2021

Nefelibata de trazer por casa

Horta Seca, Lisboa, quarta, 3 Março

O motorista a mirar-me no retrovisor deve ter pensado, mas nada disse. Talvez tenha aumentado a tolerância aos desvios da normalidade, desde que confinados aos comportamentos da burguesia tele-transportada, bem entendido.

Lá ia indo eu de polegares e indicadores a enquadrar com imaginada câmara lambendo as paredes do percurso em longuíssimo travelling. Os olhos da alma das cidades, os acessos aos bens e ao mal, as passagens para o grande circo do gozo, as montras estão todas fechadas. Cada uma com o seu modo de assinalar a suspensão ou o encerramento: o pó, os papéis, os jornais que ainda servem para cobrir e vedar, muros a murmurar um digno volto já ou tão só o abandono do que se lixe. Devia ter continuado às voltas e nem me lembrei da câmara do telemóvel. As realizações na cabeça ficam sempre melhor.

A estranheza continuará a marcar o dia assim que as mãos tocam no «Salazar, i w godzinie jego śmierci» (ed. Timof Comics). O grafismo está de tal modo semelhante que parece erro de sintonização, um piparote no cocuruto e talvez aparecesse em húngaro ou russo ou filipino. Ganhou leveza com a troca de papel, mas até prefiro o relato sem brilho. No final, acrescentam-se páginas de tradução e enquadramento de alguns dos materiais de que nos socorremos para evocar momentos concretos, sobretudo jornais, que ainda hoje servem para nos dizer de ontem. O título ganhou o «e» que o aproxima da fórmula da velha oração, ou seja, perdeu o que se pretendia com o «agora, na hora da sua morte». A biografia condensava-se no instante derradeiro que o leitor irá desvendando. Ao que se somava a ideia, optimista, bem sei, de sugerir que estava na altura de desligar a assombração permanente do ditador. Ao contrário de outras produções literárias, tardamos a mastigar e digerir a nossa História de maneiras que não sejam apenas este tão contemporâneo quanto redutor agitar de bandeiras ou implodir de estatuária. Insistem depois os editores polacos na tradicional dicotomia entre desenhador e argumentista, que o Miguel [Rocha] e eu sempre recusámos por redutora em relação à complexidade destas parcerias criativas, em que ambos escrevemos com imagens. Vai-se notando alguma evolução, mas se até custa a entender a alguns dos nossos melhores investigadores… Diverte-me aqueloutro facilitismo na apresentação da contracapa que coloca a novela «no Top 3 da banda desenhada histórica portuguesa», abrindo-me a curiosidade de saber quais seriam os outros e com que critérios se punham uns em cima dos outros para chegar ao topo. A biografia velha de décadas dá-me como jornalista e deixa-me, como de costume, melancólico, afinal a mais constante das vocações.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 6 Março

A parada e resposta do Diário das Nuvens dura há 50 dias. Se soubesse extrair uma raiz do quadrado diria que nunca antes tinha estado tanto tempo a escrever ininterruptamente. Se me ficasse pela leitura faria melhor ao ecossistema, mas perdoe-se o mal que faz pelo bem que (ainda) sabe. Celebrámos a brincadeira com uma antologia em versão lençol que me pôs logo a sonhar com variações na pele de Lisboa: https://abysmo.pt/diario-das-nuvens-de-joao-francisco-vilhena-e-joao-paulo-cotrim/ O entusiasmo promete para já variações mais fílmicas, mas a brincadeira tornou-se caso sério. Surgem reacções comoventes, onde cada peça se revela espelho ou consolo. Além da partilha de interesses e trabalhos artísticos em torno destes fascinantes habitantes dos céus. Para celebrar a data redonda atropelei a regra e olhei por breves instantes para o miradouro (junto vai a visão correspondente do João [Francisco Vilhena]). As nuvens também se avistam umas às outras.

«Pare, escute, olhe. Na passagem de nível sem guarda que se atravessa, a paragem passou a ser um sexto sentido muito. Nas camadas superiores está posto trânsito dos diabos. As raivas que se condensam em rangentes nuvens dentatas não respeitam nada. Ao passo que as robustas saudades acumulam-se pacientando pela queda do sinal verde na passadeira vermelha. Os enxames de cristais de gelo circulam indiferentes em contra-mão. Andam praí a cuspir nuvens da boca para fora. Vai daí a locução própria do nível informal atrai cada vez mais praticantes. É vê-los equipados com desvelo a velar zelosamente pela nuvem de palavras. Um toque dá acessos e conta as vezes. Atracção fatal pelo artificial, a dos fazedores de chuva. Uma gaze mais não é senão nuvem feita tecido trocando consolo pela tintura do sangue. E quem chamou nuvem turva à primeva ecografia, primeira Eva?»

Santa Bárbara, Lisboa, terça, 9 Março

Perto tem morrido gente, mas também alguns nascimentos se anunciam e nisso sopra leveza. Vem grávido este livro cujo lançamento será gravado hoje, mas para acontecer mais adiante no âmbito do Ronda, o festival de poesia de Leiria (o novo normal bem tenta fintar o tempo). Por estar na colecção Mão Dita, por ser poesia, além do primeiro neste «famigeradano», abre ainda janelas primaveris no coração pesadote da abysmo. «Cordão», de Ana Freitas Reis, com capa de Eugénia Mussa, diz como quem dança que o corpo «é um evento apaixonado» e que faz parte do mistério, que a mulher não abdica do seu papel principal, que ainda há lugar para o espanto e o assombro, que Deus faz parte da fauna e flora, que a investigação maior do mundo só pode ser feita pela palavra, ainda que condenada ao fracasso. Canta ainda muita música. Transbordemos portanto, que nem «Pégaso»:

«Só o que gera salva / E tudo o que nasce deixa buraco,/ o fino corte da beleza.// Não seremos nunca o pássaro afinado./ Porque o corpo é água viva/ e todo o movimento/ é duelo contraditório.// O jogo é deixar transbordar/ atravessando o corpo./ O campo empírico/ tem um modo próprio de pulsar.// Sobram-nos suspiros sob a cintura./ Por instantes liberta-se/ o fardo empoleirado aos ombros/ dando um salto que não depende/ do porte do cavalo.”

10 Mar 2021

Era uma vez uma sombra que fugiu da parede…

Aurora, Murnau -1927
“Os poetas , como os cegos, podem ver no escuro”
Jorge Luis Borges

Entrei numa gruta sem saber onde estava. Os gritos do imperador ecoavam de dor, enquanto os seus olhos se derramavavam nas sombras da sua concubina preferida, reminiscências daquelas que Platão aprisionara na sua caverna. Simulacros lançados na indefinida coreografia que iria reger o ocidente e o oriente, ao compasso de incertas dramaturgias entre transcendência e imanência. Deitei-me, fechei os olhos e disse para mim mesma: daqui não saio, daqui ninguém me tira. O real ensopado de mil chuvas e corroído por mil vermes ficava de fora. Eu ficava dentro, no lugar onde todo o espaço explodia e se guardava no meu olhar, qual porto onde ancorava um desejo antigo, muito antigo de cinema, antropologicamente antigo e aparelhado pelas mãos de Dédalo. Uma vontade de ver imagens correndo em continuidade e animadas pelo vento.

O cinema era o Outro, deste outro tempo anterior que já não estava ao alcance da minha mão, mas do encantatório Rosebud sussurado por Orson Welles, hipnotizando o fundo do meu pathos. Fui afectada pelos ecrãs dos cinemas, viajei por muitas cidades cinematográficas desde Griffith, Lang, Ford, Mizoguchi, Renoir… foram dias felizes. Na verdade as metrópoles mais belas da carta-khôra destes meus contos, são acontecimentos, metamorfoses semânticas, rasgos no céu e no devir. Como os gregos, nada somos se não vivemos numa cidade e, diferentemente deles, o que nos atrai, contemporaneamente, é o desvio do que já aconteceu e nos conduz para mais longe, na direcção de um não acontecido – o horizonte poético da potência. As minhas cidades são erguidas pelos artífices e artesãos da arte e porta voz de uma energia urgente e inadaptada, e as cinematográficas rompem a parede onde estão as sombras, passam para o real e para o sonho de uma sombra, percorrendo a extensa região de Píndaro.

Eclipsando a importância da Sagrada Família ou da Casa Milá de Gaudí, as notas em sol triste, que ecoavam num beco, atraíram-me como uma fêmea com cio para a cave escura onde Tete Monteliu improvisava ao piano.

Connosco o clube ficou com 3, 4 pessoas no máximo, numa total escuridão. Embora o jazz fosse um país que conhecia há muito, e do qual podia desenhar o mapa quase de olhos fechados, lembro-me bem como fiquei emocionada. Tudo o que interessava naquele momento eram as mãos que inquietavam aquelas teclas num misteroso processo, improvisando.

É esta a figura do trabalhador que habita as cidades do meu planisfério. O que contraí o síndrome de improvisar como um actor, um músico, um filósofo, e de inventar como um cientista, ensaiar como um pensador… Neste síndrome, vários sintomas sem causa e sem resposta, disparam, emergem, contaminam as sombras negras daquela cave, revelando um corte, uma inadequação, uma esperança, uma guerra. Suspeitava, claro, da violência com que tudo se arquitectava, o que confirmei nas inúmeras visitas que fiz como viajante, a Brecht, Godard, Viola, onde grandes revoluções foram projectadas. Pouco a pouco, o trabalho das sombras fez de mim testemunha de um passe de magia em que o logos foi conquistado pela imagem, soltando-a agora da black-box e expandindo o que o cinema, afinal, nunca pôde prometer. Por todo o lado, o reflexo narcísico e predador invade territorialmente o mundo, numa expansão imperial sem precedentes, na rede, na white-box dos museus, no teatro, nas instalações, nas televisões das casas, nos computadores, nos telemóveis… e, confesso, até tenho medo que a hybris tecnológica mobilizada pela imagem, se torne tão omnipresente que nos possa cegar.

Voltei à gruta onde encontro Winona Ryder, imóvel durante 30 minutos, enquanto Bob Wilson ajusta as luzes até a imagem de Dias Felizes desaparecer na escuridão. Fecho os olhos e vejo o último plano de Trás os Montes de António Reis: um homem afasta-se em profundidade na paisagem como se fosse parte de um tempo sem ponteiros.

Quem é o outro inventado pelo cinema quando devolve, não a coisa em si, mas a coisa constituída de inesperadas qualidades da mediação? O que muda agora, quando a sombra que se solta da parede continua presente na sua travessia, mesmo quando abandona a projecção numa sala de cinema?

Já de partida, e sem resposta, sonho com Diotima que nasce do negror clássico e me traz numa caixinha de berlindes a memória de Eros. Mais do que deus da ligação, ele é aquele que é capaz de tornar visível o que não está ligado, aparelhando tecnicamente a circulação das imagens, transformando-as na mais poderosa carga de afecção do mundo actual. Como ser intermediário, Eros captura o síndrome da visibilidade irreversível, num movimento de sombras nunca visto. Identifica os sintomas num mundo agora prometido aos Maelstrom de Poe, que é preciso, se calhar, preencher com imagens que não eram previsíveis ou que estavam ocultas e desligadas no anterior regime de virtualização do mundo. Imagens que são agora o que nos securiza na grande queda da vida e se soltam e correm em todo o terreno possível.

Ao contrário de Platão, que temia que a escrita matasse a memória, eu, afinal, não temo que as imagens ceguem o mundo. Sei que os corpos terão de levar para longe, muito longe, esta carga, em subtis remediações de imagens neste mundo medial. Mas nunca esqueço que Murnau ainda é a cidade onde encontro a mais bela e triste aurora…

10 Mar 2021

A maldição de Salieri

Andrzej Górzki é professor de Antropologia Cultural na Universidade de Lodz e autor do ensaio «O Lado Solar de Salieri». Durante os últimos anos têm-se também destacado como activista dos direitos humanos e dos LGBTI, o que o torna «persona non grata» para o actual governo polaco e presidência. Em Outubro passado, o tribunal constitucional proibiu a interrupção voluntária da gravidez, várias pessoas protestaram nas ruas e isso foi pretexto para a BBC fazer uma entrevista a Górzski. O jornalista fez-lhe a seguinte pergunta: «Neste momento, na Polónia, o aborto é permitido apenas em casos de violação, incesto ou quando a vida da mãe estiver em perigo, foi uma decisão referendada? É esta a vontade do povo?» Ao que o autor de «O Lado Solar de Salieri» respondeu: «O governo polaco e o seu presidente são prepotentes, se a ideia de diálogo é impensável, a de referendo é distópica.» Nessa entrevista, Górzki acusa a Comunidade Europeia de não se interessar pelos direitos dos seus cidadãos, principalmente no tocante às comunidades LGBTI. «Porque», disse Górzki «não são apenas cidadãos polacos que estão a ser desrespeitados nos seus direitos, são cidadãos europeus. Nós somos cidadãos europeus. Ainda no ano passado [2020], o Presidente afirmou que a defesa dos nossos direitos [LGBTI] era uma ideologia pior do que o comunismo. Para mim, parece-me claro que a Comunidade Europeia aceita que haja na Europa cidadãos com menos direitos do que outros. Não se pode aceitar que, na Europa, haja pessoas mais europeias que outras. Pelo menos, não deveríamos aceitar.»

Quando, em 2017, Andrzej Górzki publica o ensaio chamado «O Lado Solar de Salieri», tornou-se de imediato alvo do «regime» polaco. Górzki nunca chega a citar quaisquer nomes, nunca pessoaliza, embora o governo polaco se tenha sentido atacado, conseguido retirar o livro de circulação e obrigando o autor a pagar uma multa, sem qualquer base constitucional. O ensaio é dividido em três partes distintas. Mas antes avançarmos para o livro, é preciso ter em atenção duas coisas prévias: primeiro, o Salieri de Górzki não é o de Pushkin, embora seja fundado neste; segundo, à personagem de Pushkin, Górski retira-lhe a inveja ou outras fraquezas, ficando apenas aquilo a que o autor polaco chama «capacidade de apreciar o génio que não tem». Aquilo que Górzki pretende é, por um lado, conceptualizar a apreciação e o conhecimento, que são os instrumentos de se poder compreender o génio e, por outro, mostrar como isso pode e deve levar sempre a defender o que mais importa. Porque a tese de fundo do autor é educacional.

Posto isto, na primeira parte do livro, Górski introduz a personagem de Salieri como conceito que descreve todo aquele que não é suficientemente estúpido para não dar importância ao génio, nem tão inteligente quanto o génio, apenas o suficiente para entendê-lo, perceber a diferença que há entre ambos e com isso prestar-se a defender aquilo que ele cria. Leia-se o que o autor entende por «estúpido» e por «génio»: «[…] estupidez enquanto incapacidade de entender aquilo que está a ouvir, a ler, a acontecer. A estupidez é a surdez da alma. E surdez é metáfora para incapacidade de apreciar não apenas o que a grandeza humana nos dá, mas também a beleza da natureza e o gesto de que pode conduzir a melhorar a cidade. Génio é a capacidade de acrescentar, de modo radical, beleza, conhecimento ou bem-estar ao mundo.» Quanto a Salieri, e enquanto conceito, escreve: «Se a estupidez ou o génio são incontroláveis, pois ninguém pode fazer nada quando a ser um ou outro, ser-se Salieri depende inteiramente de nós. E quem é este que podemos ser? Aquele que se esforça por ser melhor do que é, a cada dia, a despeito de saber que não pode ser Mozart.» No fundo, Salieri é «[…] aquele que somos. Aquele que aprendeu a conhecer e a apreciar a beleza e o conhecimento, e embora não seja suficientemente inteligente ou genial para produzi-los, consegue defender o génio, ao entendê-lo e promovê-lo. A beleza e o conhecimento são também visíveis no espaço público, na política e na educação. Educar, desde a Antiga Grécia, a par da boa gestão pública da cidade, é a mais bela das actividades humanas.»

Estender o conceito de génio à política e à educação e à transformação da cidade foi o que lhe trouxe todos os problemas que tem tido com o «regime». «Salieri compreendeu o génio de Mozart quando mais ninguém o compreendia. Porquê? Porque foi educado para isso. Não se pode ser educado para o génio, mas pode-se ser educado para o entender. Ninguém é educado para a ditadura, mas pode ser educado para a democracia.»

Na segunda parte do livro, Górzki afirma que o nosso tempo é o tempo onde já não há «Salieris», apenas estúpidos e raramente génios. O génio tem também uma decadência neste nosso tempo. «O génio hoje é aquele que joga à bola, que apresenta um programa de televisão ou forma um partido de matriz prepotente. […] E a maioria das vezes são os estúpidos a consagrar os génios. Porque o génio do nosso tempo é ter sucesso e falar mais alto e o que a maioria quer ouvir. […] estúpido não é não contrário a não ser eficaz numa profissão ou numa qualquer actividade, mas surdo para a alma, incapaz de se abrir ao que é o belo e o melhor para todos».

Na terceira parte do livro, o autor polaco tenta mostrar-nos como Salieri – o Salieri Solar, como lhe chama – nos faz falta e de que modo deveríamos privilegiar a formação de «Salieris» na nossa sociedade. Escreve: «A educação, desde a mais tenra idade, deveria concentrar-se em formar “personalidades Salieri” ao invés de estimular a formarem-se “Mozarts”. Até porque, como já vimos anteriormente [páginas antes, no ensaio], não é possível formar “Mozarts”, apenas aprender a apreciá-los. Mozart pode ser um Hitler, mas Salieri seria sempre um Churchill. Os humanos formam-se.»

Infelizmente, este Salieri solar acabou se tornar uma maldição para o autor. Além do livro ter sido proibido, o autor foi atacado na rua por uma milícia de extrema-direita, no mês passado, que gritava «enfia o Salieri no cu», acabando por ser hospitalizado com ferimentos graves. Pouco dias depois, uma jornalista polaca, Agnieska Kapuscinski, escreveu um artigo em que incitava os leitores a partilharem online o texto de Andrzej Górzki, em todas as plataformas que pudessem e em todos os formatos possíveis, não apenas como forma de repor a justiça da proibição inconstitucional do livro, mas principalmente como forma de resistência e de contestação à falta de liberdade e de escamoteamento dos direitos humanos. Começava o artigo com estas palavras: «Não se pode atacar uma pessoa, por não se concordar com o que ela pensa ou de com quem ela fode. O Salieri de Andrzej Górski é mais humano do que aqueles que atacaram o escritor e aquele que lhe proibiram o livro.» Depois, e devido a Andrzej ser também o primeiro nome do Presidente, terminava o artigo deste modo: «Andrzej só há um, Górzki e mais nenhum».

9 Mar 2021

As seis vias terapêuticas da Medicina Tradicional Chinesa

Essencialmente preventiva a Medicina Tradicional Chinesa usa quatro processos de diagnóstico médico: Wang (望): inspecção pelo olhar, observar e ver a face, com exame da tez e órgãos dos sentidos, em especial a língua, para entender no corpo o yin-yang dos Cinco Elementos; Wen (闻): ouvir e cheirar, ao auscultar o paciente pela história médica de como fala e do que sente, escuta-o no som das respostas do questionar Wen (问); já fora do rosto e para confirmar o entendido anteriormente, o medir o pulso, Qie (切). Assim é feita a história clínica na MTC.

Após o diagnóstico realizado, os mestres de Medicina Chinesa têm seis diferentes vias terapêuticos (6 Zhi) para curar (ajudar a equilibrar o corpo):

Bian (砭), terapia cujo método gua sha usa o raspar a pele ao longo dos meridianos com um utensílio, sendo inicialmente realizado por as mãos e depois com uma pedra polida, ou um osso, substituído por uma colher de porcelana ou uma faca de cobre, serve para expulsar pelos poros da pele as toxinas e estimular no interior o desobstruir a energia nos meridianos.

Zhen (针) significa agulha e no ocidente acupunctura (acus – agulha e punctura – colocação), sendo prática já usada no quinto milénio antes da nossa Era, existindo desde então classificadas diferentes agulhas de pedra como, agulha de pedra, pedra bian e pedra pontiaguda e na dinastia Shang (1600-1045 a.n.E.) as agulhas passaram a ser feitas de bronze. Zhang Zhongjing (150-219) descobriu inúmeros pontos (os Huatuo Jiaji) de acupunctura e deu os fundamentos para a prática clínica, tornando-se na dinastia Ming o principal método terapêutico usado na China.

Jiu (灸) significa fogo e no ocidente, moxibustão, terapia que usa moxa (feita pela folha da chinesa artemísia) que quando queimada e colocada próximo da pele, sem lhe causar estragos, o calor penetra no corpo profundamente e vai aquecer os meridianos, revigorando o fluxo de energia que nele circula.

O cone de moxa aceso por fogo pode ser também colocado no interior de uma campânula e após aplicada numa área da pele, o ar aquecido começa a arrefecer e forma-se um vácuo parcial no seu interior. A diferença de pressão entre o ar interior e o exterior acaba por gerar uma força de sucção (ventosa terapia) a restaurar o equilíbrio do corpo.

Yao (药), filoterapia (do grego therapeia = tratamento e phyton = vegetal) é o estudo das plantas medicinais e suas aplicações na cura das doenças, que na China surgiu por volta de 2800 a.n.E. com o Ancestral Soberano Shennong.

Conhecida como medicina herbal, pode também usar ingredientes de origem animal ou mineral na elaboração das suas fórmulas e preceitos relativos à preparação de efusões e sopas (medicamentos), com combinações em proporções que maximizam os efeitos desejados e inibem possíveis efeitos colaterais. Do século II a.n.E. o livro farmacológico ‘Herbanário’ inclui 365 tipos de drogas, lista que ao longo dos séculos foi aumentando pela experimentação empírica e com pesquisas para actualizar os registos na farmacopeia oficial. Desde 1929 esse trabalho tem sido também realizado na forma científica de molde ocidental. Diversas plantas (50 fundamentais), ou seus componentes, já possuem aplicação na medicina ocidental e recentemente a investigação da planta Qing Hao, Artemisia carvifolia, por exemplo, utilizada na MTC para febres, resultou na atribuição em 2015 do Prémio Nobel da Medicina a Youyou Tu pela pesquisa sobre o efeito de um de seus componentes, a Artemisinina.

Em Macau, em meados do século XIX existia à venda nas farmácias chinesas a famosa receita do chá sin-cap (os pães de sin-cap), uma mezinha preparada pelo Dr. Vicente Pitter era considerada um bom estomáquico e eupéptico. Usado como profiláctico após um chá gordo ou lauto banquete, era muito estimado contra afecções gastrointestinais de diferentes etiologias pois é composto de oito simples, quase todos específicos contra doenças do tubo digestivo e usados em medicina tradicional chinesa, segundo registo da Prof. Ana Maria Amaro.
An qiao (按跷), técnica de massagens (An – uso da mão e qiao – uso do pé, para massajar) a estimular ou sedar os pontos dos meridianos do paciente, visando o equilíbrio do fluxo de energia nestes canais e relaxar os músculos.

Uma das técnicas de massagem é Tui Na (massagens cegas, com Tui, empurrar, impulsionar e Na, agarrar, prendes com a mão) frequentemente usada junta com outras técnicas terapêuticas, como a acupunctura, moxabustão, filoterapia chinesa e qigong. Já o Lajin, ao estender os membros por alongamentos torna o corpo flexível ao procurar os seus limites e ir para além deles.

O paida, bater com as mãos em diversas partes do corpo como método de estimular e provocar a reacção e desobstruir os meridianos energéticos.

Dao yin (导引), meditação de origem daoista cujo conceito de Wu wei (acção sem agir) é um dos princípios básicos para a realização do dao yin, que significa conduzir e assimilar e ambos estabelecem uma relação yin yang de acção e não acção. Talvez proveniente de danças tribais e práticas xamãs, tem referências anteriores à sistematizada pelos daoistas no Período dos Reinos Combatentes (403-221 a.n.E.), ainda hoje praticada na Montanha de Wudang (WudangShan, em Hubei) como método para assegurar a saúde e cultivar o espírito. Está associada aos movimentos do Taijiquan e do Qigong (certos exercícios são praticados há 3000 anos) nos dois estilos, o ruangong – suave, que ajuda a relaxar o corpo e o espírito, aumentar a vitalidade interna e canalizar a força, permitindo num estádio avançado realizar proezas inacreditáveis e o yinggong – duro, mais violento, usado como método de autodefesa no qual o Wushu (Kungfu) está enquadrado. O livro O Segredo da Flor de Ouro (Tai Yi Jin Hua Zong Zhi) dá a conhecer o Dao Yin, com os estágios da realização do espírito através da meditação para criar um novo corpo de energia.

Na cosmologia chinesa, os conceitos Origem das Origens (Wu ji) e Energia Vital (Qi) são encontrados conjugados num só, Apogeu Supremo (Tai ji), Espaço infinito contido no princípio da vida. Wu ji, o vazio anterior à criação do Universo é de onde se origina o Tai ji, formado do estado primordial da matéria quando se diferencia em yin e yang e relacionado com os Cinco Elementos geram tudo o que existe. Já o processo de meditação Dao Yin faz-se em sentido contrário, com as dez mil coisas a regressarem aos Cinco Elementos e recuperado o equilíbrio yin-yang desfaz o Tai Ji para se integrar no vazio original, a origem da existência. Para realizar tal momento, exercitar o cultivo da energia vital. “O primeiro efeito da meditação é a extinção da percepção do corpo físico, em seguida penetra-se num estágio em que tudo é energia e a nossa consciência torna-se o próprio campo energético e por último, atingimos o estado de extrema quietude que está na energia repouso, sem trabalho, nem tensões.”
Todo o nascimento é uma condensação, toda a morte uma dispersão de matéria, Nan Hua Jing.

8 Mar 2021

E depois de morrer?

E depois de morrer? O que nos dizem os filósofos?

Para Aristóteles a essência precede a existência, tornando simples a compreensão de uma existência imaterial do ego. Essa essência imaterial é descrita como ininterrupta, sem princípio nem fim, uma vez que não interage com o corpo perecível. Descartes concorda com Aristoteles na sua alegação de que o único ato realmente verdadeiro e que é produzido pela mente é o pensamento. Já Tomás de Aquino concebe a essência humana como uma forma simples, que não se consegue na adição de matéria e forma, existindo nela, contudo, uma estruturação de ato e potência concretizada pelo corpo. O ser estaria para a essência como o ato para a potência.

A chegada do positivismo lógico e, posteriormente, da neurociência, tornam a especulação sobre estes termos um terreno enlameado para a reflexão científica, considerando a experiência espiritual primordialmente ilusória.

Se quisermos espreitar o que os contemporâneos têm escrito sobre o assunto, vale a pena passar os olhos por John Hick. Hick tenta encontrar uma alternativa que não rotule a linguagem religiosa como ilógica. Hick considera a objeção da neurociência insuficiente. Argumenta que os próprios neurocientistas muitas vezes não têm a perspicácia filosófica necessária para interpretar as suas próprias descobertas científicas e que muitos filósofos estão excessivamente agarrados à racionalização, dando uma mera atenção simbólica às descobertas da neurociência, assumindo uma visão de mundo naturalista à partida. O resultado é que se assume praticamente como facto, que a neurociência provou uma visão da existência como meramente materialista quando na verdade as evidências são ambíguas. Para Hick, os seres humanos não foram concebidos num estado perfeito num ambiente idílico, mas sim num processo contínuo de criação e existência multidimensional em que o ser progride através da experiência da morte e ressurreição atravessando estados de imaturidade nas realidades inferiores, até se aperfeiçoar em dimensões sucessoras e atingir o estatuto de moralidade perfeita.

Tendo em conta a característica da potencialidade ligada à identidade passível de ser recreada noutras dimensões, Hick vai buscar uma noção de ligação corpo-mente ou corpo-espirito que se encontra em vários pontos com a concepção de Tomás de Aquino. É, no entanto, impossível não pensar nessa evolução multidimensional da alma sem pensar no que o legado do budismo no deixou. Também no budismo há uma transfiguração do ser na sua própria evolução que parte dos chamados reinos inferiores até à iluminação. Não existe, contudo, a possibilidade da manutenção do ego. Isto é, o ego cumpre a sua função de existência concebida pelo ato mas a sua abnegação torna-se parte de um desempenho essencial para a evolução da existência não material. É precisamente neste ponto do pensamento sobre a ressurreição que me apercebo de uma particularidade: a ressurreição é “praticável”. A ressurreição não é apenas um ato automático se pensarmos que podemos contribuir ativamente através da cognição e da experiência para um aperfeiçoamento do ser. A vantagem dessa prática é que esse aperfeiçoamento pode ser sentido nesta dimensão, à falta de clareza sobre a existência de outras. Estar presente e desapegar-se do ego porque perecível, é uma prática recorrente em grupos de pessoas das mais diversas áreas – da arte à ciência – que procuram viver com presença e com disciplina emocional, promovendo um maior entendimento do ato de existir e, dessa forma, facilitar a concretização de possibilidades. Esta prática da ressurreição interna torna-se assim mais concreta, um plano de trabalho, uma forma de estar. O trabalho interior vale sempre a pena mesmo que não saibamos que impacto pode ter em possíveis vidas futuras porque, mesmo que não ressuscitemos depois de morrer, podemos sempre encontrar alguém novo em nós todos os dias desta vida.

5 Mar 2021

O lugar-de-fala

Essa falácia que se chama “lugar de fala”, tal como está a ser entendida, significa, de modo caricato, que eu como branco não posso falar da injustiça cometida sobre um negro (pois sei lá eu do que falo), que a galinha não pode falar da terrível cárie do lobo, que só a mulher pode falar autenticamente do seu castigo em engomar a roupa da família e que só o monge trapista poderá falar do silêncio.

O último exemplo idiota é a situação em que se viu envolvida a jovem escritora holandesa Marieke Lucas Rijneveld, que, dada a controvérsia inflamada, desistiu de traduzir  holandês o poema recitado por Amanda Gorman na cerimónia da tomada de posse do presidente norte-americano Joe Biden. Segundo o The Guardian, Marieke Lucas Rijneveld — que já ganhou o International Booker Prize — foi escolhida pela editora Meulenhoff  para traduzir o poema Hill We Climb, escolha que a americana aceitou com regozijo. No entanto, Janice Deul, uma jornalista e activista dos Países Baixos, resolveu “falar pela outra” e reinvidicar a dor que Gorman não manifestou, levantando a polémica. Janice defendia que o tradutor de um poema destes devia ser como Gorman, “um artista local, jovem, uma mulher assumidamente Negra”.

O “lugar de fala” é tão duro de ouvido que esqueceu duas qualidades essenciais ao humano e que são anteriores à sua origem étnica ou à braguilha do seu género: a) aquilo que em sociologia se chama «compreender com» e, b) o que é fulcral ao equilíbrio interelacional no quotidiano e nas sociedades, ou seja, «a empatia».

Exclui também, quer a possibilidade de juízos universais, quer o Outro como constituinte da nossa própria identidade – isto é, abole o que é intrínseco à nossa própria formação. Mais redutor e impregnado de má-fé seria difícil.

Passou-se da “autenticidade” da cultura do Outro no Multiculturalismo (que, convenhamos, o mais das vezes não serviu senão de um álibi para a nossa falta de curiosidade quanto ao diverso) para a morte do Outro, que amputamos em nós.

Relembro que mesmo as noções de identidade mais integristas estão reféns, por incapacidade de manifestarem-se senão por constraste a outras. Uma boa fábula para esta doença seria a do homem cuja maior ambição fosse caiar a sua sombra para que ela desaparecesse e afinal descobrisse a meio da sua missão que ela agora se projecta no branco da cal.

E afinal, diga-se, o “lugar de fala” mais não é que a vigência da verosimelhança que já Aristóteles exigia à contrução dos personagem. A tolice é que agora se quer pregar como moral excludente, e assim, com o “lugar de fala” também se multiplicam os equívocos. No meio disto outra tristeza se revelou: a fragilidade com que Marieke Lucas Rijneveld cedeu à pressão. Era uma boa ocasião para as duas autoras darem a mão e darem uma bofetada na tolice que atravessa o mundo.

O filósofo brasileiro Paulo Ghriraldelli fez um magnífico vídeo sobre o que tem de erróneo o “lugar de fala”. E dá um exemplo certeiro com o hífen que toma a parte pelo todo, no afro-brasileiro. Quando a comunidade afro-descendente faz do hífen a reivindicação suprema está a fechar-se numa clausura étnica que esquece dois princípios que são anteriores à sua pertença étnica: o de que é brasileira e o de que existe uma Constituição que como brasileira devia exigir ser cumprida. E aí aliena um combate político que, para resultar em mudanças visíveis, pede um empenhamento total em vez de um interesse parcelar.

Ou seja, paradoxalmente, quem reclama a atitude exclusivista de uma pertença étnica, está a assumir um lugar de subalternidade, para desde esse palanque reclamar os seus direitos. É absurdo.

Os grandes problemas de racismo, no Brasil, nos EUA, na Europa, na Ásia, em Moçambique, são sistémicos, e não dirigidos a um estrato étnico. O racismo, na maior parte dos lugares, é sobretudo dirigido aos pobres.

O “lugar de fala” torna-se então o palanque para dar voz ao fogo de artifício da rendição. É como nos embrulhamos na retórica, para pedinchar quotas, quando há direitos consagrados numa Constituição por cumprir.

Pelas “leis” do “lugar-de-fala” eu só teria legitimidade para defender os direitos da “comunidade lgbt” se pertencesse a um dos seus segmentos, porque não poderia falar por direito próprio. Ora, posso, por conceber o amor para além dos seus géneros e considerar aviltante a mais mínima coacção sobre os direitos e dignidade que cabem ao amor, mesmo que suceda entre um periquito e um ferro de engomar.

A poesia, a arte, a literatura, o teatro ensinam-nos precisamente a tornar porosa a sensibilidade de modo a podermos percepcionar esses outros modos de vida, auto-transformando-nos de um jeito que nos permite «compreender com» e sintonizar outras pautas culturais de seres humanos diferentes de nós.

Ao invés, o “lugar de fala”, como tem sido propagado, é uma versão doce do racialismo; a qual se resume a uma reacção simétrica do apartheid.

Na literatura moçambicana há uma guerra subterrânea entre alguns escritores e Mia Couto por considerar-se que Mia invade o território que é “deles”, e que Gungunhana, como motivo e personagem, só a “eles” pertence.
Pelos princípios do “lugar de fala”, Eurípedes não deveria ter escrito a Medeia (uma apropriação), nem Sófocles a Antígona (outra apropriação), nem Aimé Césaire a sua Tempestade (apropriação de Shakespeare), nem Joyce Carol Oates os magníficos ensaios sobre boxe. Ora, diante de tais bacoquices, só me apetece dizer como o Alfred Jarry: merdra!

Como “lugar de fala”, autêntico, só existe um: o do combate político contra os males estruturais das sociedades hodiernas, e estes não se compadecem com as distracções identitárias.

Só há um limite para a empatia: no umbral da dor estamos irrediavelmente sozinhos e, nesse sofrimento, não há nem cores de pele nem características de género.

4 Mar 2021

O cinturão invisível de Pessoa

O som do violino vinha de longe. Como se estivesses noutro lugar a tocá-lo e não onde realmente te encontravas. Acontecia-te muitas vezes esse migrar dos pulmões para fora da respiração, ou esse migrar da expressão mais íntima para fora do rosto. Existias tanto do outro lado da praça, como no fio melódico das moscas que assaltavam o vidro da janela, junto à mesa onde os teus pais te tinham levado para almoçar. O restaurante Irmãos Unidos tinha dois pisos e, na parede da frente, o quadro de Almada Negreiros dominava os olhos fechados com que o tempo insistia em parar. 
 
A curva semelhante à de uma parábola definia o rosto de Fernando Pessoa e sugeria ser uma máscara colada à testa, por baixo do chapéu de abas. A luz alaranjada cobria todo o corpo por trás, ao mesmo tempo que transpunha o tampo da mesa em forma de traço descontínuo. O cenário geométrico desafiava tudo o resto a dançar: a caneta, a chávena de café, a revista Orfeu 2, o cigarro, o lenço, o papillon e o pequeno bigode. A recta directriz com que cingia o olhar através dos óculos, duas lentes elípticas embaciadas pelo torpor, quem sabe se pela flecha vazia de um dardo. 
 
Ficaste impressionado com a vulnerabilidade do mistério, era como se ele gravitasse à volta daquelas cores e parecia até fácil agarrá-lo com a ponta dos dedos. Coisa egípcia, pensaste, pois vagueavas ainda com o talismã dos faraós na tua memória, matéria recente das aulas de história no liceu. 
 
Três anos mais tarde, em Janeiro de 1970, o quadro, executado em Bicesse no mês e no ano em que tu nasceste, viria a ser vendido no leilão do recheio do café-restaurante por mil trezentos e cinquenta contos. Algum tempo depois, Sarah Affonso revelou que a obra fora pintada no quintal, num sítio onde a luz coada pela ramagem era quase perfeita. Após mais de um século de história, os Irmãos Unidos, presentes na literatura de Camilo ou de Fialho de Almeida, passaram tristemente o testemunho à Camisaria Moderna que teve assim a possibilidade de alargar as suas instalações no Rossio. Continuaste a lutar com o bife e com o ovo estrelado, enquanto afastavas as moscas do prato e sempre a escutar os sons agudos que provinham afinal do olhar do poeta que nunca mais te largou o cinturão invisível.
 
Fernando Pessoa transformou o excessivo peso do passado numa metafísica feita de nuvens de bom tempo. Essa meia evaporação da história fez com que uma certa quantidade de mitos, espalhados em todas as direcções, se transformassem em metáforas de leitura universal. Um tal reequilíbrio não cabia na rigidez do antigo regime, mas floresceu uns cinquenta anos depois da morte do poeta que não foi apenas um poeta, mas um modo de nos lermos e de nos entendermos a nós próprios. A heteronímia serviu para mostrar que as soluções avançam por muitos carris ao mesmo tempo e que a estação de chegada, tal como todos os pontos de partida, são sempre espaços improváveis. Vivemos numa encruzilhada de proposições, em suma. 
 
Lembras-te do encontro, na Primavera de 1982, com August Willemsen, um dos grandes pioneiros das traduções de Pessoa, que teve lugar na biblioteca da universidade de Amesterdão, na altura a meia dúzia de metros da praça de Waterloo e da casa de Rembrandt (quando os turistas ainda rareavam). Comparando a Holanda com Portugal, ele disse-te uma frase que dificilmente esquecerás: “Nós naufragámos mas fomos apenas comerciantes, enquanto vocês naufragaram em Pessoa e com isso descobriram o mundo todo de uma só vez.”. 
 
Ofereceste-lhe o único livro que publicaras até então, intitulado O Fio de Prumo. Ele viu o título, sorriu, deu uma volta às estantes de poesia brasileira e apareceu-te com um livro homónimo na mão. Respiraste fundo, pois um homónimo não é propriamente um heterónimo. E concluíste que apenas existe aprendizagem, se se armar uma feira que consiga preencher a alma inteira. No fundo, foi o que Almada conseguiu com aquele quadro pintado ao ar livre em finais de Agosto de 1954: espelhar através do olhar de Fernando Pessoa um outro mundo diante daquele que nos é habitual, mas com um fio de prumo secreto a ligá-los (para que pudéssemos ver de fora aquilo que, ao mesmo tempo, somos e não somos, tal como a flecha e o dardo se entreolham sem quaisquer limites).
 
(texto extraído de ‘Órbita-I: Visão Aproximada’ – título de obra de longo curso ainda em trânsito)
 

4 Mar 2021

Ceci n’est pas une cronique

Santa Bárbara, Lisboa, 2 Março

 

Assim não sucedeu, embora esteja bem entalado entre o plausível e o possível (escolha o incauto leitor no que se segue onde aplicar a afirmação). Estou a minutos da linha morta para a entrega da crónica. E os assuntos alinhavados entediam-me mais que as urgências movediças das quais não consigo erguer-me sem me afundar mais. Considero-me portanto bastante morto. Nisso terá o leitor pouco interesse, deve acontecer a todos, a prostração de boneco de trapos disponível para que a vida brinque de vudu a espetar as suas agulhas reluzentes nos órgãos onde dói mais, olho aqui, coração além, entre unha e dedo, nas partes ou na coluna, enfim convergindo tudo cheio de nervos na massa guardada na caveira. [A entrada ilustra-se com o suspense afogueado pela cavalgada dos passos dedilhados de «La Calavera», um dos instrumentais Elliot Goldenthal para a banda sonora de «Frida»: https://www.last.fm/music/Elliot+Goldenthal/_/La+Calavera]

É a vida que nos mata. Andava às voltas há dias com conto para o qual mandei chamar a Velha, que trataria de fazer o que bem faz. Teria, pelo menos para mim, o rosto que Posada deu a Catrina, entre nuvens de pó, de talco, de terra batida ou outros activadores de memória. Chapéu de largo espectro, continente de ponta a ponta, sobre cabelos há muito esquecidos até do branco mas enlaçados, acolhendo plumas e rendas, luxúrias vegetais e enigmas do aprazimento, abrigando o tremendo sorriso. Um jogo de contornos a armadilhar com sombras e ocos a luz. Natureza morta escavada nos ocos da tinta, recordação do peso no papel. [Nota a desenvolver, dizem os camones que na natureza aprisionada pelas telas há ainda vida, «still life».]

Estava armadilhado a pensar no óbvio com que a cena se me apresentava, mesmo a preto e branco, quando chegou a estapafúrdia diva Astrid Hadad, coberta pelas cores mais populares, no seu álbum extraordinário «Vivir Muriendo», a cantar a plenas vozes Fernando Rivera Calderón [https://youtu.be/c31Euk7dQpI]: «Al verla cerré mis ojitos/ Y tieso yo me quede/ Desnuda y un poco uraña/ Dejo a un lado su guadaña/ Se metió conmigo a la cama y yo solo pude asentir/ Y entonces que llega la vida/ Y me descubre en la movida y se siente tan herida que yo me quise morir/ Y es que estaba tan despechada, tan furiosa y confundida/ La muerte ni me hizo nada/ A mi me mato la vida/ Y es que estaba tan despechada/ Tan furiosa y confundida/ La muerte ni me hizo nada, a mi me mato la vida».

Vá lá um desgraçado acabar na cama a dança com esqueletos, esse querido mínimo denominador comum, a ruína que fica da carne que passou, a memória que certas tradições encheram de alma! A vida apanha-nos em pleno comércio de seduções e mata-o, atirando-a para os braços da Outra. Ironias do fadestino. Copos ao alto.

Na perspectiva cubista, para mim a de Juan Gris, soma-se recorte de jornal, caixas de medicamentos, chamadas insistentes, envelopes por abrir e umas linhas que são cordas e, de novo, afiadas e firmes de espetar. Toca o telefone.

Não costumo, mas a este companheiro atenderei sempre. Diz que a morte do Ferlinghetti lhe interrompeu a audição do «Le Grand Macabre», do Ligetti, e não distingui a causa da aflição, se o apagamento do velho sábio, se a paragem forçada. «The world is a beautiful place/ to be born into/ if you don’t mind happiness/not always being /so very much fun/ if you don’t mind a touch of hell/ now and then/ just when everything is fine/ because even in heaven/ they don’t sing/ all the time// The world is a beautiful place/ to be born into/ if you don’t mind some people dying/ all the time/ or maybe only starving/ some of the time/ which isn’t half so bad/ if it isn’t you.» Só que a morte dos outros, portanto a vida, também nos mata.

A cada penoso acordar, nunca o entorno pareceu tanto argumento e cenário espremido entre o gongórico e o operático, versão tragicomédia de trazer por casa e sair só para desafiar confinamento. Hesito entre a farpela de maestro surdo ou na de encenador cego, mas opto pelo fato-de-macaco e continuo a esbracejar sem alcançar as mil ferramentas suspensas contra o próprio contorno colorido. A vida espeta-nos contra a própria sombra. No «Macabre» do György conseguem matar não apenas a sede de sangue mas a própria morte com vinho, «esse elixir da vida, que do sangue só tem a cor», diz Topor, que criou versão daquele universo apocalíptico e vestiu os seus habitantes. Os ajudantes da morte, sempre de caveira posta, são seres de múltiplos tentáculos, com patas de lagosta, cruzamentos genéticos de insectos e outros delírios fantásticos, que se sentaram agora aqui à minha beira fazendo desaparecer o gato. Contas feitas, a visão torporiana do macabro que mais me impressiona surge com alguma pacatez: uma criança está aprisionada pelas costelas e clavículas do esqueleto sorridente. O esgar da criança não é sorriso. Frida Khalo deu vida também a uma «Niña con máscara de la muerte», na qual a dita máscara parece continuação das nuvens no céu. Nem nessa, nem na outra posta no chão o fácies diz alegria. Só na flor que a miúda tem na mão, embora cortada.

Assim não se terá passado, mas não estranho encontrá-lo encaixado entre o dito e o feito. Oiço um roçagar de transparências e deduzo que seja o gato a voltar para confirmar que ainda há vida para cá da janela. Era apenas mais um fantasma, mas para atacar o ilusionista. Para que me tomem por sério, ainda que não seja crónica para tanto, apenso prova de Eugène Thiébault.

3 Mar 2021

Do gosto

Para quem sofre de uma terna misantropia, como é o caso deste vosso escravo, ficar em casa compulsivamente tem o seu lado positivo. Um deles é podermo-nos entregar aos pequenos nadas que formam o nosso cosmos de prazer, algo impossível de praticar no meio da multidão.

Assim, entre algumas outras coisas, existe uma actividade em particular de que não me canso: a procura e descoberta de acontecimentos exóticos na música popular. Trivialidades, factoides, bijuteria diversa que ficam alojadas no entulho dos anos e que quando expostas à superfície têm um brilho efémero que é fascinante e que muitas vezes diz mais de nós próprios do que do mundo onde nasceram. E foi numa dessas incursões que descobri a fantástica história das The Shaggs, a mais improvável banda de sempre e que foi considerada a pior de todos os tempos. Conhecem? Pois, lá está.

Acompanhem-me enquanto resumo a sua história quase inverosímil e com um final surpreendente. A banda The Shaggs nasceu em 1968 e era formada por três irmãs adolescentes: Dorothy “Dot”, Betty e Helen Wiggin. Até aqui nada de extraordinário, direis. Oh, mas há isto, logo para começo de conversa: a banda nasceu de uma profecia feita a Austin Wiggin, Jr (pai das raparigas) pela sua mãe ao ler-lhe as mãos. Terá dito ao filho então criança que quando crescesse iria casar-se com uma loira de cabelo ligeiramente avermelhado (“strawberry blonde”) e que desse casamento iriam nascer três filhas que iriam formar uma banda. Austin casou-se de facto com uma mulher que correspondia à profecia materna mas começou por ter dois filhos. Foi quando as raparigas nasceram que decidiu: a profecia está a cumprir-se.

Não hesitou: em 1967 comprou instrumentos para as meninas, retirou-as da escola e fez com que as raparigas seguissem um escrupuloso horário doméstico: estudo de manhã, ensaios durante a tarde e exercício físico antes de deitar. Desprovidas de vida social e com uma formação musical exclusivamente auto-didacta, as moças de The Shaggs apresentaram-se pela primeira vez em público num concurso de talentos em 1968. Foram recebidas com vaias e uma chuva de latas de refrigerante. Austin, apesar da vergonha das filhas, não desanimou: não só as manteve a, hum, tocar em vários bailes – com resultados semelhantes aos da estreia – como em 1969 decidiu que estava na altura da banda gravar o seu primeiro álbum. Nascia assim o extraordinário Philosophy Of The World, uma colecção de canções com música dissonante, ritmos delirantes e vocalização alegremente fora de tom ou desafinada. As letras reflectiam, de maneira inocente e desempoeirada, as preocupações das adolescentes, com destaque para o fabuloso My Pal Foot Foot, uma ode ao gato duas vezes amputado de uma das irmãs. Quem quiser pode aventurar-se em Philosophy Of The Worl, já que se encontra na íntegra no YouTube.

As reacções críticas da época foram devastadoras para as moças. Mas eis que a história muda de figura quando em 1970 o álbum começa a ser passado com insistência numa rádio. Frank Zappa vem nessa altura dizer para quem o quis ouvir que as The Shaggs eram “melhores do que os Beatles”. Philosophy Of The World tornava-se então num disco de culto, com os cem exemplares originais de uma tiragem de mil (900 terão sido roubados pelo engenheiro de som) a atingir preços colossais em leilões. De repente aqueles sons desencontrados já não eram cacofonia triste: eram um exemplo máximo de art brut, que fascinou nomes como Kurt Cobain, que incluiu Philosophy numa lista dos melhores discos de sempre.

As The Shaggs, já sem a formação original, ainda existem e tocam. Várias remasterizações e outtakes do seu álbum bizarro e incensado foram feitos para gáudio dos coleccionadores. Se existe algo que esta história ensina é a volatilidade do gosto. John Ruskin, um dos mais influentes críticos do século XIX, dizia que o verdadeiramente mau tem aspectos de genialidade. E mais: que o gosto é a única moralidade. Diz-me o que gostas, dir-te-ei não só quem és mas no que acreditas. É por isso que o culto da pior banda de sempre me oferece, ao final do dia, uma levíssima luz sobre o futuro da humanidade. Assim continue.

3 Mar 2021

Novas dos icebergs – 2

Não há novas nítidas das fissuras a evoluir. Não chegam aqui os estertores do rasgo na carta dos gelos. E dos icebergues suicidas, que me emocionam desde que vieram notícias. Que se desprendem sem querer da mão gelada de que são parte e derivam para paragens estranhas, como elefantes para morrer sós. Mas nunca tão sós que não sejam espiados pelo voyeurismo satélite, das agências internacionais, a ver morrer. Alguém, na televisão, aproxima-se numa vertigem, da janela. E recua. Eles não têm caminho de volta. São como crianças enormes, sem culpa da força que têm. Mil quilómetros quadrados, a libertarem-se sem querer. A quebrar numa linha de fronteira, de desenho inédito e silenciosa nele, a configuração de um mapa. Gelo de ninguém. Para degelo futuro.

Deixar o mapa em cinzas azulados e voltar a Marte. Um pouco como ir e voltar. Ou como sonhar e acordar, sonhar e acordar. Olhares, como aquele que distraidamente se lança de manhã ao aquário de peixes exóticos para verificar que tudo está como na véspera, cintilante, movimentado, colorido e indeterminável. Hipnótico. Eles, nos seus circuitos fechados e sem saída, senão para a morte. Uma predestinação que já vem da loja.

E as florestas húmidas, de chuva tropical, de um planeta com estações e uma natureza de cortar a respiração, por momentos esquecidas quando sonhamos com os monitores virados para Marte. Aquelas de que todos dependemos, a ser depauperadas por interesses privados. A precisar de um lirismo de sustentabilidade, a dar o nome a um brinquedo qualquer que voe e faça esquecer a ganância e o lucro. E milhares de milhões em qualquer moeda forte, como nos programas espaciais. Para criar miríades de satélites, a nova moda em constelações. Monitorizar. Pouco evoluímos em termos civilizacionais, com este voyeurismo científico. Podia pensar, por analogia, na moda do “birdwatching” que veio substituir para alguns predadores a cultura da caça. Mas não consigo deixar de pensar que de tanto se observar, nunca chega o tempo de actuar. E ficaremos, lá mais para a Primavera, de olhar embevecido a contemplar a evolução do pequeno helicóptero, um brinquedo que vai ensaiar o primeiro vôo durante um mês marciano de trinta dias. E cujo único desígnio será sobreviver. A sua alma de brinquedo não o sabe – e por isso o nome – mas não tem outra missão de vida. Como a verdadeira ingenuidade. Que pode ser uma forma de avançar, mas em que a verdadeira questão secreta, será sempre se consegue resistir à manipulação, à maldade ou ao cinismo.

Talvez o pequeno helicóptero tenha mais hipóteses, com a sua sofisticação tecnológica. Mais preparação do que nós que tão pouco investimos nisso e na sustentabilidade do planeta, dos valores. Mas a ingenuidade, diz José Luís Peixoto: “(…) faz o sangue circular com mais fluidez do que o cinismo. A ingenuidade desconhece o colesterol. O cinismo é hipertenso.”. Não sei se tem razão porque às vezes dói tudo. A taxa de mortalidade é grande e pode ter outras razões. Livros cheios de nomes possíveis para as coisas. O contrário de inocência. É terrível nomear.

Deixamos para trás os icebergues deprimidos e desistentes e esta terra em colapso lento e visível. Esta poética em cinzentos azulados ou em verdes húmidos e ricos.

E Marte, esta curiosidade com tanto de subliminar porque o espaço é alheamento. A crença do inabalável que parece tapar-nos os olhos. O presente a que queremos fechar os olhos e Marte, a adivinhação do futuro.

Ficámos naquela pergunta ingénua centrada numa camada poética da realidade dos nomes. Bonitos, concordámos. A dar que imaginar, impregnados de inevitabilidade. Ingenuity. O pequeno helicóptero, que vai soltar-se do ventre tecnológico do rover Perceverance e cujo desígnio é, somente, sobreviver. Testar as possibilidades de sobreviver à temperatura drástica e negativa. Engenho pequenino, de menos de dois quilogramas com patinhas delicadas de insecto e umas hélices para redemoinhar sobre a cabeça, fará justiça ao seu nome de baptismo. Não saber mas acreditar ou o contrário, quer tenha sucesso quer não o tenha. Porque o grande desafio da ingenuidade em si, é sempre: não onde chega, mas até que ponto sobrevive.

Fico a pensar na perversidade do nome mesmo para um objecto. Um anjo tecnológico que vai voar. Ou é animismo, questionar a razão de se fabricarem anjos. Estas coisas de sonhar. Asas de desejo, que são as coisas terríveis da infância e as únicas que vale a pena não desistir de sonhar, realizar e deixar chegar a adultas como nascidas aí. E de novo sentidas, sonhadas, vividas e realizadas. Ir a Marte. E voltar. Sonhar em companhia. Na idade dos mapas. Depois da solidão desfocada ou impensada, da infância.

“Que me sinta, ainda hoje, ingênuo e imaturo (quer dizer, somente com os defeitos da juventude e quase nenhuma de suas virtudes) não significa que eu tenha o direito de exibir essa ingenuidade e essa imaturidade.”. Diz Mário Benedetti a fazer-me pensar na inutilidade de todas estas palavras.

Lindo, isto dos nomes Ingenuity e Perceverance, concordamos. Mas é o do helicóptero e talvez porque voa e traz devaneios, em que me detenho mais. Se a ingenuidade é perigosa, quando é matéria pura de sonho. Quando assestamos o olhar para mais longe, sem saber mas a acreditar. Como nos verões da infância para papagaios de papel e aviões pequeninos de precário motor. Nesta fuga em frente e para o espaço longínquo deixando para trás o que assim se assume irremediável. Este planeta preterido em função de uma fuga futuramente possível. A realização de um sonho qualquer.

Se eram lindos. Os nomes. Sim. Diz um de nós. Não importa qual. Mesmo se discordamos. O que é relevante: esses dois monitores diante do olhar, dois olhares. Que num momento qualquer se cruzam. Pensamentos que se encontram por dentro, nesse infinito e infinitamente intangível, para ambos os lados da interface dos olhos. Neste silencioso ir a Marte.

2 Mar 2021

Medicina preventiva

O rosto é o espelho por onde os mestres conseguem ver o que se passa no interior do corpo e nas plantas dos pés situam-se as zonas correspondentes a todos os órgãos e vísceras, a porta directa para com massagens preventivas e terapêuticas activar a circulação da energia e restabelecer o equilíbrio energético do corpo.

Basta a mente estar doente, logo o corpo o denota e vice-versa. Nessa balança, um corpo protegido por boa saúde [pela prática de algumas antigas terapias referidas no último artigo] tem capacidade para internamente o próprio organismo activar os ingredientes, deslocando-os para fortalecer e regular o destabilizado, até o equilibrar.

O bom médico ajuda as pessoas a prevenir as doenças ainda antes destas aparecerem. As doenças só existem quando o corpo está instável e enfraquecido, pois se forte e nutrido, mesmo os vírus não têm lugar para entrar no organismo. Daí, na Medicina Tradicional refere-se não haver doenças, mas apenas doentes e, como medicina preventiva, ao entender pelos sinais da face as queixas do corpo, revitaliza pressionando determinados pontos a desobstruir os meridianos por onde circula a energia vital Qi.

Os alimentos que ingerimos e o ar que respiramos são os ingredientes a estimular a saúde do Corpo, cuja terapia do canto o purifica ao criar ondas de vibrações que em ressonância o sintonizam com o som da Natureza.

Actualmente ocorre o que há dez mil anos aconteceu com a Revolução Agrícola, a qualidade nutricional da maior parte dos alimentos reduziu-se e para compensar os valores existentes nos ingredientes (sais minerais, proteínas, vitaminas) de há pouco mais de quarenta anos é necessário comer uma maior quantidade. Como o remédio está nos alimentos que ingerimos e a qualidade deles falhou, desmoronou-se a via natural da terra ao desaparecerem os produtos alimentícios maturados pela Natureza que nutriam o corpo pelos sentidos, dando-lhe um bem-estar físico, psíquico, mental e espiritual. Osmose perdida pela industrialização e essa falha de nutrientes é agora por produção de laboratório substituída por fármacos, suplementos e medicamentos, a dar ao corpo as necessidades que já não consegue dos alimentos extrair e sintetizar.

A vida desregulada, sem cumprir os horários de repouso para o corpo e uma deficiente alimentação, leva a duração da vida humana a decair e se o nosso corpo esteve preparado para atingir os 120 anos, agora essa esperança vem diminuindo devido aos maus alimentos consumidos, ao ar poluído que respiramos, aos estragos feitos por excessos e bebidas frias ingeridas. Aliada à notória falta de qualidade do não se querer saber e isso deve-se ao desregular de quem pelas partes (os especialistas) pretende fazer o todo. Não sendo o fluxo da circulação de energia suficiente, ou estando bloqueada no organismo, os humanos rompendo o equilíbrio adoecem.

O horário do corpo

Com dois conceitos se explica a lei natural que rege e dá ordem ao Universo: a Teoria do movimento das compensações entre yin (receptivo) e yang (activo) e a Teoria dos Cinco Elementos (Madeira, Fogo, Terra, Metal e Água), a base da composição de todas as coisas.

“Na Natureza, yin yang manifestam-se através dos Cinco Elementos”. A Teoria dos Cinco Elementos conjugada com a teoria dialéctica do Yin e Yang e dos 8 Trigramas, na qual o Universo é uno e a sua ordem é regida por yang, a simbolizar o princípio masculino, e yin, o princípio feminino, tendo cada um dentro de si um ponto do outro, não entrando em conflito, mas complementando-se, representa a ligação do Ser ao Céu (10 Tian Gan 天干). Estas leis servem para disciplinas como Astronomia, Medicina, Climatologia, Cronobiologia (estudo dos ritmos biológicos), Meteorologia e todas as que trazem a gramática definida no Todo infinito, a espelhar na Terra a Geometria do Céu.

“Segundo a Filosofia do Dao: . Desta lei resultam dois ciclos de funcionamento que regem e determinam a relação de interdependência dos Cinco Elementos: Ciclo de Criação e Ciclo de Dominação.” Retirado do livro Espiral da Vida escrito por Cristina Rocha Leiria e Helena Bessac, edição do Centro Ecuménico Kun Iam de Macau e ICM, e nele seguimos usando as suas informações. Sendo o Corpo uma unidade, sabe-se sobre os cinco órgãos do corpo humano no Ciclo de Criação e no Ciclo de Dominação que: O fígado (Madeira) complementa o coração (Fogo) e opõem-se ao baço/pâncreas (Terra). O coração (Fogo) ajuda o baço/pâncreas (Terra) e perturba os pulmões (Metal). O baço/pâncreas (Terra) complementa os pulmões (Metal) e opõem-se aos rins (Água). Os pulmões (Metal) ajudam os rins (Água) e opõem-se ao fígado (Madeira). Os rins (Água) complementam o fígado (Madeira) e perturbam o coração (Fogo).

Logo, para tratar do corpo é importante conhecer o horário biológico diário dos períodos de hiperactividade energética dos meridianos a tonificar os órgãos e vísceras, regenerando-os e nutrindo-os de energia. Refere Francisco Costa Silva, “O ritmo do dia e da noite, nictemera, ou ritmo circadiano, faz parte da cronobiologia e estuda os ritmos biológicos e as variações fisiológicas do organismo em função das horas do dia. Em Medicina Tradicional Chinesa, cada ciclo biológico é constituído por doze horas”, os 12 shichen que compunham o dia na dinastia Ming. Daí, a divisão do dia por os 12 ramos terrestres (12 Di Zhi 地支) corresponde: o primeiro, entre as 23 h e a 1 da manhã (Zi Shi, hora do Rato), período de actividade do meridiano Dan da Vesícula Biliar, víscera yang; o segundo, entre a 1h-3h (Chou Shi, hora do Búfalo), período para restabelecer Ganqi, a energia do Fígado, órgão yin; o terceiro, entre as 3h e as 5h (Yin Shi, hora do Tigre) a trabalhar durante o sono o Pulmão, víscera yang, abastecendo a energia pulmonar Feiqi; o quarto, 5h-7h (Mao Shi, hora do Coelho) a regenerar Dachangqi, energia do Intestino Grosso, víscera yang; o quinto, 7h-9h (Chen Shi, hora do Dragão) restabelece Weiqi, a energia do Estômago, órgão yin; o sexto, 9h-11h (Si Shi, hora do Serpente) trabalha Piqi, a energia do Baço, órgão yin; o sétimo, 11h-13h (Wu Shi, hora do Cavalo) trabalha Xinqi, a energia do Coração, órgão yin; o oitavo, 13h-15h (Wei Shi, hora do Cabra) de máxima energia no meridiano Xiaochang do Intestino Delgado, víscera yang; o nono, 15h-17h (Shen Shi, hora do Macaco) trabalha Pangguangjing, o meridiano da Bexiga, víscera yang; o décimo 17h-19h (You Shi, hora do Galo) trata os Rins, órgão yin, restabelecendo a energia renal Shenqi; o décimo primeiro 19h-21h (Xu Shi, hora do Cão) trabalha Xinbaoqi, energia do Pericárdio (Governador do Coração), órgão yin; e o décimo segundo, 21h-23h (Hai Shi, hora do Porco) a activar Sanjiaojing, o meridiano do Triplo Aquecedor, víscera yang, que regula a qualidade de energia da respiração e da nutrição e a eliminação de excreções e secreções.

Com atenção ao horário em que ocorre a perturbação no corpo entende-se qual o sistema disfuncional e assim, advertido, procure ajuda.
Boa Saúde.

2 Mar 2021

Rock Reflection 2

Na semana passada comecei por vos falar do livro de Louise Stanley «O Futuro de Ontem» e ao mesmo tempo acerca da nova corrente literária «rock reflection». Começámos a ver que a ligação que a escritora faz entre o disco e uma revolução ou bocado de futuro prende-se com a questão musical em si e não com as letras. Stanley escreve:

«Na música, qualquer que seja a sua expressão, não há revoluções que não sejam musicais.» Disse-vos também que esta nova corrente literária, se assim podemos chamar, escrevem acerca do mundo pop-rock (mais rock que pop) e os seus intervenientes como até aqui se tem escrito acerca de livros e de escritores. Reflectem sobre muitas questões do humano, do ponto de vista ontológico e social, não a partir de textos, mas de discos, não de escritores, mas de cantores, guitarristas, bandas. Por esta razão, são raros os livros de ficção e muito mais aquilo a que poderíamos chamar ensaios, como é o caso deste livro. Ensaios livres, poéticos. Começámos também por ver que Louise Stanley se opõe completamente a James Goodman, no modo como este entende a «rock reflection». Segundo James Goodman, a «rock reflection» não deve ter limites, tanto pode explorar a filosofia quanto a música, partindo dos discos, dos vídeos, dos músicos. Para Louise Stanley isso é absurdo. A «rock reflection» só faz sentido se a reflexão for essencialmente musical e cultural, abstendo-se de incursões na filosofia. No fundo, é como se cada um deles atribui-se mais importância a um dos termos que ao outro que define o movimento. James Goodman põe enfase na reflexão, Louise Stanley enfatiza a parte musical. Por conseguinte, este livro de Louise Stanley é uma viagem muito mais carismática e sui generis para o leitor comum do que o livro de Goodman. Louise Stanley começa por ir às origens do desencontro entre a música branca e a música negra nos Estados Unidos da América, até que chega a 1979 e a um disco que lhe parece fundamental, como que o início da revolução, da «fusão entre o mais negro e o mais branco».

Por conseguinte, é fundamental citar esta longa passagem que faz justiça a um dos mais injustiçados guitarristas da história popular e que tem uma importância fulcral nesta história. Escreve: «Os Talking Heads, Brian Eno e Adrian Belew não estavam apenas atentos ao futuro [refere-se às inúmeras inovações sonoras] e aos ritmos mais ancestrais [influencias dos ritmos tribais africanos], a canção “Houses in Motion” mostra que também estavam muito atentos ao que de mais contemporâneo se fazia, com a magnífica guitarra de Adrian Belew a lembrar bastante o trabalho de um dos melhores guitarristas da época, Ricky Wilson, que viria a morrer de sida cinco anos depois do lançamento de “Remain in Light”. Ricky Wilson era irmão de Cindy Wilson, e ambos eram membros fundadores dos B-52’s, banda da Georgia, que gravara o primeiro disco no início de 1979, álbum com o mesmo nome da banda, e o segundo no início de 1980, «Wild Planet», portanto discos anteriores a “Remain in Light”. Ricky Wilson tocava guitarra de um modo muito peculiar, apenas com quatro cordas, as duas primeiras e as duas últimas; as suas guitarras não tinham as cordas do meio, a sol e a ré. Aliado a isto, usava várias afinações completamente fora da normal, sendo a mais usual afinada do seguinte modo: DA-BB (Ré, Lá-Si, Si). Isto implicava necessariamente um som original, que era amplificado por um Fender Silverface Deluxe e por uma palhetada percussiva, muito ritmada, por vezes como se fosse um baixo. E este som bastante percussivo e ritmado é precisamente o que Adrian Belew faz em “Houses in Motion”, como homenagem não apenas ao guitarrista dos B-52’s, mas como forma de sublinhar o que de melhor se fazia no final dos anos 70 e princípios de 80. Aliás, não terá sido por acaso que no ano seguinte, em 1981, os B-52’s tentaram fazer o terceiro disco, ainda com Ricky na guitarra, tendo David Byrne como produtor. Infelizmente, os desentendimentos foram tantos que o projecto não chegou a concretizar-se.» Outra das peculiaridades que contribuíam para o som característico de Ricky Wilson e que Louise Stanley não menciona era o uso de cordas muito mais grossas do que a maioria dos guitarristas usava: 0.13 (a maioria usava e usa 0.09 ou 0.10). E concordo em absoluto quando Louise Stanley escreve «Ricky Wilson é um dos guitarristas mais subvalorizado da música popular, que Adrian Belew reconhece e a quem presta homenagem.» Para não falar que o modo como fazia uso dos harmónicos irá influenciar directamente The Edge, guitarrista dos U2. Louise Stanley escreve: «Assim, sem dúvida que “Houses in Motion” é uma canção em que Adrian Belew presta uma homenagem justa e em tempo real não apenas a um dos mais originais guitarristas do seu tempo, mas também àquele que estava adiante do seu tempo, no tocante à amálgama entre música branca e música negra. Era uma forma de trazer para dentro do disco mais revolucionário da história – pelo menos ao tempo é – uma banda e um guitarrista que contribuíram para que isto fosse possível.» Repita-se a passagem de Louise Stanley: «Na música, qualquer que seja a sua expressão, não há revoluções que não sejam musicais.»

Stanley vai mais longe, afirmando que sem os primeiros dois discos dos B-52’s não teria existido «Remain in Light» dos Talking Heads. «O uso dos sintetizadores por Kate Pierson e Fred Schneider, a guitarra original e ritmada de Ricky Wilson, o som marcadamente dançante, e sublinhado pelas percussões, desfazia as barreiras entre música branca e negra. E era esta ideia que os Talking Heads levaram às últimas consequências em “Remain in Light”, com a ajuda de Brian Eno e Adrian Belew, de um modo que seria impossível os B-52’s alcançarem. Há nesta perfeição a faísca da banda da Georgia.»

O livro de Stanley também nos mostra como podemos pensar a música para além do óbvio. Como por mais que se oiça um disco, discos, podemos ter sempre sons ou sentidos que nos escapam, como acontece na leitura de um texto. Escreve Louise Stanley: «A música, mesmo a popular, quando composta por grandes músicos está sempre inserida numa tradição e num contexto cultural que é preciso ter em conta. Sem isso, não estamos a ouvir verdadeiramente um disco.»

Contrariando respeitosamente Louise Stanley, termino esta leitura do seu livro com a citação livre de um excerto de uma das letras do disco, mais propriamente da canção «Crosseyed and Painless»: «[…] Os factos distorcem a verdade / […]».

2 Mar 2021

Bandeira

Já não nos interessará muito içar a bandeira aos ventos maus que varrem agora o mundo, pois que ela pode até rasgar-se no topo dos edifícios onde drapeia sem verdadeiro sentido. Se esse mundo é agora um só – ele não tardará a ter a sua própria -, talvez uma manta de retalhos com todas as outras configuradas em pontos e com meia dúzia de iridescentes marcas a salientar quem o comanda. Pensar agora nos imensos e outrora países embandeirados, é como estar a observar os quintais anexados pelo poder da grande tribulação. Tanto quisemos os nossos territórios que nos caíram os dons imediatos da defesa. As bandeiras, essas, serão sempre mais para o futebol que chegam bem para lembrar a última honra das Nações.

Mas falamos de Bandeira, Manuel Bandeira propriamente dito; Bandeira que honrou a nossa língua comum como brasileiro e como poeta, e que hoje estaria irremediavelmente envergonhado enquanto cidadão. Manuel Bandeira foi um poeta extraordinário! Pertence ao modernismo brasileiro, à geração de 1922, em parte, e foi a vida inteira um homem de saúde frágil, mas teve uma vida tão preenchida e culturalmente tão intensa, que só nos damos conta disso quando olhamos a sua imagem, que mesmo assim, é cheia de tenacidade! E as inúmeras influências que sempre relevam a qualidade literária, tinha-as ele em abundância, Bandeira não escrevia “poesia” Bandeira era um poeta: foi também inspector geral do ensino, professor de literatura e membro da Academia das Letras, tradutor, suas crónicas são também lendárias e dadas por uma perspectiva de ternura com uma audaz capacidade critica que fazem do seu estilo ensaístico o nunca vigorar como perspectiva de romance, o que só por si lhe dá um muito maior interesse. Era um espírito arguto, e sem sombra de dúvidas que a sua elegância era um elevado dom. Estas pessoas desapareceram do nosso pensamento como se fossem espectros, e o mundo tornou-se uma massa inorgânica incapaz de reconhecer nas lides humanas a sua função civilizadora.

O nosso poeta fora também alguém povoado de juventude, o que o norteia para a lide da renovação, ele o afirma «não é que eu tenha em tempo algum procurado os novos; jamais procurei ninguém o que da minha parte era timidez, não orgulho» o que o situa inegavelmente num homem cheio de futuro, e como bem vê a ciência hoje, o ser mais inteligente não é o que consegue procurar soluções de sobrevivência, mas aquele que vê e está sempre mais perto do futuro. A geração onde se iniciou, ainda não era a sua( não o será nunca para um poeta da estatura de Bandeira) estará troncado na geração de 45, e aí, ainda há-de dizer que há uma meia dúzia que não o toleram nem como poeta nem como homem. O que menos interessa a um poeta é o amor do próximo! Ele também diz não gostar de si, e achar irremediavelmente impossíveis os que dele não gostam.

O grande poema como o idolatrado «Parságada» não deve ser lido na correnteza das emoções desencontradas e desejos arbitrários- Parságada, campo dos persas- um país de delícias, será mais um arrebatamento absolutamente civilizacional, e é aqui que os poetas acontecem. Não há rotas geográficas que os definam, mas há caminhos por onde têm de passar. Nós já demos a volta ao mundo, mas há lugares no mundo que ainda oram aos poetas, é lá, com os antigos persas, e orar dessa maneira será sempre a mais elevada manifestação poética.

Bandeira é um caminho a seguir nas inusitadas manifestações que atravancam de desdém a Língua Portuguesa numa incapacidade onírica que explode de insucesso. Se não os reabilitarmos, este e outros, estaremos a atraiçoar a alma das fontes vivas que deram o melhor da consciência de uma língua, que falada por muitos, é cuspida por muitos mais, num insuportável desdém onde no cimo só jorram as ideias feitas. E para criá-la, quantas vezes perto, a morte ronda! Não teve filhos. Os poetas não devem ter filhos que para anátemas chegam os sortilégios daqueles outros que jamais serão dignos das suas presenças.
E agora, vamos embora para Parságada.

«…em Parságada tem tudo. É outra civilização. Tem um processo seguro de impedir a concepção…
…e quando eu estiver triste, mais triste de não ter jeito, quando de noite me der vontade de me matar
lá sou amigo do rei – terei a mulher que quero na cama que escolherei».

Ele deve ter vindo ainda dos antigos bandeirantes.

1 Mar 2021

Marte e a agência barata

19/02/2021

Dantes só encontrava números de telefone nas últimas páginas dos livros, muitos deles estranhos e de novo anónimos ao fim de pouco tempo. Nesta época desavinda, sempre que revisito um livro, dou conta de só ter anotado nessas páginas, números de táxis, horários de comboios ou de Expressos, modos de trânsito. O isolamento estreita-se e estreita-nos e eis-nos, como os caranguejos, em andamento oblíquo e reticente, a pau com a própria sombra.

20/02/2021

É espantosa a nossa (minha) ignorância. Em 1926, quando Robert Goddard lançou o primeiro foguete movido a combustível líquido à respeitável “altitude” de 12,5 metros, quem se consentiria a imaginar que o rover Perseverance pousaria em Marte 95 anos mais tarde, 54 milhões de quilómetros de distância?

Não me fez mal tanta leitura de Rilke mas devia ter alternado com mais leituras científicas. A ciência, a poesia e a música: os pilares em que devia assentar qualquer educação que se preze.

O salto que se deu em menos de cem anos!
Melhor, foram três os países que se dispuseram a uma “amartagem” e para além da colheita de poeiras cósmicas ser desta vez partilhada colapsaram-se de uma vez as teorias da conspiração que defendiam nunca o homem ter ido à lua, a não ser que os chineses e os emissários de Alá se hajam rendido a Hollywood.
Em homenagem a Marte, durante um mês só se deviam usar palavras pressurizadas.

22/02/2021

Não é o caso destas.
Há um livrinho colectivo de 2013, que se chama O QUE É UM POVO? Quem o abre é Alain Badiou com um texto intitulado Vinte e quatro notas sobre os usos da palavra “povo”, e na nota final lê-se: «A palavra “povo” só tem um significado positivo quando subentende uma possível inexistência do Estado, seja porque se trata de um Estado interdito cuja criação é ansiada ou de um estado oficial cujo desaparecimento é desejado. “Povo” é uma palavra que assume todo o seu valor na forma, transitória, duma guerra de libertação nacional, ou, em níveis bem mais baixos, sob aquelas formas definitivas das políticas comunistas».

Leio isto e não consigo deixar de pensar em Moçambique e na sorte lamentável que tem, a todos os níveis. Há povos que nascem para a provação. Num estalar de dedos morre Daviz Simango, líder do MDM, e o competente presidente da câmara da Beira. Com 57 anos, de um AVC, com “recaída”. Mais do que Dahklama, que só conhecia a linguagem das armas, Daviz é que introduziu verdadeiramente a oposição parlamentar e democrática em Moçambique e o seu relevo vinha-lhe, além disso, da qualidade da sua gestão à frente de uma cidade fustigada quer por calamidades físicas, quer pelo contínuo boicote do poder central. Apesar dos limites dos recursos com que contava, conseguiu imprimir uma dinâmica e uma credibilidade à sua gestão que o tornou confiável, interna e externamente. Com este desaparecimento, contam-se agora pelos dedos de uma mão as figuras de oposição com um verdadeiro capital político e competência técnica para governar, só que nenhum deles é líder e tem carisma. É uma verdadeira desgraça, num momento de realidade soturna, onde à política restritiva do covid se junta um blackout informativo (sobretudo no que às guerras diz respeito), e quando o poder se sustenta num partido que institucionalmente já colonizou tudo, só restando que o soalho apodreça sob os seus pés à vagarosa velocidade do muchém e que o empobrecimento se acentue. Enfim, cada vez mais este é um povo com muitos recursos mas a quem furtam a esperança.

23/02/2021

Encontro, escrito pelo crítico de arte Bernard Berenson, algo que me parece vital: «Uma vida completa talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não-eu que não resta um eu para morrer».
Vagabundagem ao sabor da pele, como a do o matreiro sorriso de Pessoa quando a morte o convidou a jogar xadrez?
Mesmo políticamente, Pessoa apostou sempre nesse tabuleiro.

Em 1917 é publicado no Portugal futurista o «Ultimatum», pela pena de Álvaro de Campos. É um libelo político fortíssimo que apela à regeneração da Europa, mergulhada numa guerra fratricida. O heterónimo de Pessoa propõe uma intervenção cirúrgica anti-cristã, o que compreendia:

a) A abolição do dogma da personalidade; b) a abolição do preconceito da individualidade; c) a abolição do Objectivismo pessoal.

O seu projecto corresponderia a uma revolução coperniciana, com os devidos nexos políticos traduzidos num novo sistema em que cada cidadão teria direito a X votos, consoante o mérito pessoal. Pessoa, como era um Sindicato, teria direito a, no mínimo, 6 votos: ele mesmo, ortónimo, 4 heterónimos (contando com o António Mora), e o semi-heterónimo Bernardo Soares.

Isto é mais do que curioso (ainda que perigoso e manipulável), sobretudo como pretexto para uma discussão quanto aos deficitários valores em uso na preguiçosa e dolente democracia hodierna e nunca esquecendo que Pessoa visava sobretudo um sistema que premiasse o mérito, um sistema antitradicionalista e anti-hereditário, e ao arrepio de interesses corporativos.

Eis um dos poucos democratas genuínos no século XX, um homem que vai ao cerne receptor da ideologia, o sujeito, e o esvazia, substituindo-o por uma pensamento que não se move por antagonismo dialéctico mas no trânsito entre polarizações. O que à partida torna impossíveis pulsões hegemónicas, autoritarismos e dogmas. Mais democrático é difícil.

Em 1936, quando morreu Fernando Pessoa, os serviços fúnebres ficaram a cargo da “Agência Barata”. É um simples pormenor, mas no caso de Pessoa nenhuma coincidência é um acaso. Sinaliza o despojamento de a quem já não resta um eu para morrer.

26 Fev 2021