Calo-me quando morrer

O escritor Enzo Rossi, nascido em Palermo em 1956, escreveu vários romances ao longo de quase cinco décadas, mas nenhum deles superou o êxito de crítica e de vendas de «A Aldeia», publicado em 1984. Independentemente da qualidade do romance, não é este que me traz hoje aqui, mas uma entrevista que ele deu a um jornal português em 1989, aquando da sua passagem pela Feira do Livro de Lisboa. De modo a compreendermos aquilo que está em causa na entrevista, precisamos de ter pelo menos uma vista panorâmica da narrativa de «A Aldeia». O romance é narrado por um jovem professor que vai visitar os avós à aldeia onde o pai nasceu. Roberto nunca tinha visitado os avós sozinho e a última visita acontecera quando tinha dez anos. Agora chega sozinho, de carro, e ao entrar na aldeia depara-se com uma septuagenária curiosa que lhe acena. Como não sabia bem aonde ficava a casa dos avós, resolveu parar e perguntar se a senhora conhecia o sapateiro Rossi, adiantando que era seu neto e vinha visitá-lo. Assim que a senhora começa a falar, a narrativa do livro passa a ser feita por ela: «E você é o filho do Benedito ou da Rosália? […]

Ah, do Benedito, aquele que foi pra Palermo. Também vive em Palermo? […] Olhe, filho, a casa do seu avô?… não tem nada que enganar. Você segue por esta rua a direito e quando chegar lá ao fundo, há-de ver do lado direito a loja de rações do Senhor Luigi, aquele que tem um filho que anda na droga. Uma desgraça, nem queira saber. Coitados dos pais, tanto têm trabalhado, tanto têm gastado com esse filho, que lhes dá cabo do dinheiro e da saúde. Imagine que até rouba aos pais. Sim, sim. Rouba. É uma desgraça.

E o senhor Luigi, que é tão boa pessoa! E a mulher, tão religiosa, tão decente. Não é que não sejam careiros, porque são, mas também não os podemos culpar por isso, não é? A verdade é que quem não sabe vender, o melhor é fechar a loja. Pois claro. Tenho muita pena deles. Olhe, só para ter uma ideia, o filho já estoirou três ou quatro carros ao pai. Tudo por causa da droga e da bebida. Enfim. Eu nem gosto de falar da vida das pessoas. Seja como for, meu filho, assim que vir a loja do senhor Luigi à sua direita já sabe que vai virar na próxima à esquerda. Assim que virar, vê logo ao fundo, em frente, uma padaria. É da dona Mommina, uma peste, até bate no marido! E não é pouco, coitado. Está bem que o Alfredo se mete nos copos, é verdade, mas também com uma mulher daquelas… E apesar disso é bom trabalhador. Um bom pedreiro. É verdade que também tem a fraqueza das saias. É verdade, sim. Não pode ver uma burra de saias, que não descansa enquanto não se meter em trabalhos. Se quer saber, eu acho que não está certo, mas compreende-se. É homem, apessoado… e, depois se não é feliz em casa, não vamos ser nós a julgar o que deve e não deve ser feito, não é? Não se casaram por amor. Nem por amor nem por respeito. Diz-se, e olhe que eu acredito, que ela se casou com ele por ruindade. Os pais dele deviam uns dinheiros ao pai dela e foi assim. Ela sabia bem que ele não gostava dela, e sabia bem que ele rondava tudo o que era aldeia atrás de raparigas. Mas o que é que quer? Foi por vaidade. Para dizer que podia. E assim casou. Casou e foi o desastre que se vê. Enfim. Quando vir a padaria siga à esquerda até ao posto dos correios, que se vê logo. A esta hora a Rita já deve ter fechado…»

É este o tom do romance, que acaba por ser quase todo narrado pela fala da septuagenária a dar as direcções até à casa do avô do narrador, enquanto descreve a vida dos habitantes da aldeia. Quando a jornalista, em Lisboa, perguntou a Enzo Rossi de onde lhe veio a ideia do livro, se tinha sido algo a que ele assistiu ou que lhe contaram, respondeu: «A ideia veio simplesmente de ver nas tabernas, nas lojas e nas praças de Palermo as pessoas a falarem da vida dos outros e de todos os acontecimentos do dia anterior, por mais insignificantes que fossem. Alguns mais velhos chegavam a repetir as mesmas histórias dias seguidos. As pessoas só se calam quando morrem. Custa-lhes mais o silêncio do que a fome, se esta não for prolongada.» Na altura em que li esta entrevista, tinha 24 anos, ainda não tinha lido o romance, e fiquei muito impressionado com aquela frase «as pessoas só se calam quando morrem». Mais impressionado ainda, porque já a tinha ouvido na primeira pessoa, quando era criança, por uma senhora num lugarejo perto de Sines: «calo-me quando morrer». Nesse tempo, ia muito para Sines, nas férias da escola, pois o meu pai, o meu avô e o meu tio-avô trabalhavam juntos e tinham lá uma casa. Aquela frase, que ouvi tantas vezes aquela senhora dizer, anos atrás, só agora me fazia sentido, ao ler aquela entrevista de Enzo Rossi. Nós temos uma relação estranha com a linguagem. Não falamos para dizer alguma coisa, mas para não estar calados, para não nos escutarmos no silêncio. Calar, só quando se morre. Quando já não nos é possível amordaçar o que podíamos pensar, o que podíamos contemplar.

Depois, e por causa daquela entrevista – na verdade por causa daquela frase – fui ler «A Aldeia». Evidentemente, quando cheguei às páginas do livro, já ia com esta frase e com tudo o que ela me tinha feito pensar e, talvez por isso, gostei muito do romance. Mas tenho a certeza de que a minha leitura sem aquela frase prévia, sem a entrevista do escritor, não teria sido a mesma. Sem «as pessoas só se calam quando morrem», que me levou à senhora da minha infância que dizia constantemente «calo-me quando morrer», teria lido o livro na superficialidade da sua narrativa. A frase que Enzo Rossi diz na entrevista nunca aparece no romance. Sem dúvida, sem essa frase anterior, seria capaz de reconhecer o engenho do escritor, quer pela ideia quer pela capacidade narrativa, mas pouco mais do que isso. O que me faz pensar: o que é que lemos quando lemos? Ou seja, do mesmo modo que aquela frase dita pelo escritor numa entrevista me fez ler o livro completamente fascinado, com «calo-me quando morrer» no horizonte de cada página, sem essa frase, de que maneira teria lido o livro? Numa neutralidade como a de quem ouve alguém contar uma história engraçada? Ou pior, deposto no preconceito de estar a ler uma historinha bem contada? Mesmo sem um pensar filosófico, não podemos deixar de ver que a linguagem encerra em si um enorme mistério: não se sabe o que ela nos diz. Nunca sabemos o que alguém lê quando está a ler. Nunca sabemos o que alguém ouve, quando está a ouvir. Este mistério é a própria linguagem, que nos faz falar até à morte. De tal modo, que preferimos não nos ouvir a nós mesmos a deixar de usá-la. Preferimos falar sem saber o que dizemos ou sem sequer nos perguntarmos sobre o que falamos, do que deixar de falar. Preferimos até falar da vida dos outros, de que não fazemos a mínima ideia, a não ser de vagos contornos, a ficar calados. Preferimos falar a não falar.

Assim, mais de trinta anos atrás, quando li «A Aldeia», estava fascinado pela entrevista que Enzo Rossi deu, por aquela frase que nunca escreveu no seu romance e sem a qual a minha leitura não seria aquilo que foi. E o que é que leva um escritor a dar entrevistas? «Calo-me quando morrer»? Infelizmente não é algo de tão interessante, apenas a necessidade de promover o livro.

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