Platero

De forma a esconjurar este ambiente triste em volta – e à volta do mundo – lembrar os seres em vias de extinção e o seu legado amoroso na vida das culturas a que pertenceram, Platero, um burro, leva-nos a revisitar o sul ibérico, Andaluzia, terra de mouros e ciganos, de laranjas e de flores, de tudo o que é bom nesta parte do mundo terra de antigos califados.

Jimenez, andaluz, traz-nos a atmosfera que também podemos encontrar em Lorca para percorrer esse salão grande da memória meridional. Jimenez – Juan Ramón Jimenez – levou-a para o mundo e dele recebeu um Nobel de Literatura na qualidade de Poesia, e a Andaluzia em peso está ali plasmada como que a dizer que uma certa grandeza se alcança quando levamos o solo natal inalterável e alheio às influências que o modificam. Num tempo tão urgentemente ecológico, havia ele lembrar os conhecimentos imprescindíveis que educam a sensibilidade para que se faça em harmonia com o chão dos sonhos, mais importante que fazer neófitos que declaram sem filtro novas formas de totalitarismo. É nesta componente que a preservação se dá, não por dogma, mas por uma doçura ambiental que as ideias nunca alcançam.

Não iremos encontrar aqui nenhum antropomorfismo, não é uma fábula, nem tem conteúdo moral, também o autor rejeitou que apelidassem de uma obra para crianças, e entende-se bem porquê, a entrincheirada escrita juvenil não é muito do agrado dos poetas, mas só eles sabem como fazer para que o maravilhoso fique intacto para todos, e as crianças serão as primeiras a saber desse efeito: a actual literatura infantil está ainda a abarrotar de componentes estéreis que podem estar a afectar os dons oníricos das próximas gerações.

As crianças conhecem dinossauros, mas suspeitamos se conheçam burros, a velocidade a que foram rasurados os nossos amigos próximos, pode ter criado efeitos mentais não muito explícitos para que se possam já analisar.

Amigos! Sim, a obra é a de uma amizade, e ela dá-se entre várias formas de vida, de espécies vivas, e porque, e sobretudo, nós os mamíferos temos um profundo sentimento de empatia uns pelos outros, esse encontro de vidas é certamente a mais viva componente de respeito por ela que aqui o poeta nos traz. Ele fala de, e, com Platero, com a narrativa limpa, o respeito intacto, e o carinho mais intenso, ele percorre então todas as rondas dos caminhos e são ainda os seus olhos de água que dão fôlego à narrativa e nos lavam a alma sujeita a tanto estilhaço de divisão colectiva.

Teremos de interpretar tal obra como uma consolidação do poder narrativo do seu autor que não poderia no entanto ter feito outra coisa que prosa poética « o poema em prosa existiu desde sempre, como o conto, e o poema em verso ou o ensaio» editado pela primeira vez em 1914 a reedição de 1917 seria aumentada, esta, já com componentes de crítica social tendo cento e trinta e oito capítulos que desejou estender sem sucesso até aos cento e noventa.

A primeira edição é por isso mesmo a mais indicada para a leitura das novas gerações, que no entender do poeta, as crianças deviam ler o que lêem os adultos, dependendo das escolhas, evidentemente. Ao prosseguir esta jornada damo-nos conta do impressionante efeito visual, como se lêssemos uma pintura descritiva e cheirássemos ainda aquelas rosas com que cobriu Platero ao mencionar-lhe que caiam, e esta vastidão de encanto é toda ela uma vitória dos sentidos. Não precisamos de construir a nossa própria atmosfera dentro da narrativa, entregamo-nos a ela como fazem os amantes, e tudo isto é ainda melhor que os seus desejos (componentes do outro que por excesso nos recria) é uma lembrança muito boa da maneira maravilhosa de gostar. Também há dor, Platero morre, e não há espaço livre no coração que o descreve para a esperança imediata. O luto é entendido como uma paragem recomendada no processo da separação, e de lá saem as sombras negras das mulheres viúvas que o sul tão solar sabe fazer azeviche, como se esse processo, todo ele fechado e só, fosse uma dádiva, a única liturgia para dizer adeus.

 

Platero, tu vês-nos, não é ?
Verdade que vês as crianças correndo…
Levando mariposas brancas….
Sim, tu vês-me.
Creio agora ouvir …. a tua voz tão minha.

A alma de Platero não é mais pequena que a de qualquer um de nós, e a saudade que deixa, menos importante que uma outra saudade. Mas isso, só quem ama – esse que abarca o todo em todas as criaturas- o poderá compreender.

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