Segundo acto – Cena 4

Os dois militares ficam em silêncio, nada mais há para dizer a propósito do assunto Os Panteras vs Os Pantufas. O Major volta a cruzar os pés em cima do tampo da secretária e reacende o seu canhão Cubano. O Capitão acende um cigarro. Os dois fumam em silêncio. Gonçalo continua a articular o seu discurso, inaudível, mexendo a boca, e só a boca, incessantemente. O Major olha-o, intrigado.

Major
[indicando Gonçalo]
E agora temos ali aquele peixe fora d’água… raios m’ partam! De onde é que ele apareceu?

Capitão
[suspira]
Está cá desde ontem… ninguém o viu entrar. Não se sabe como é que ele entrou.

Major
Mas ele… surgiu… apenas? Isto é uma base militar altamente secreta… Ou pensávamos nós que era! Está a dizer-me que aquele indivíduo, com roupas estranhas – será uma farda militar desconhecida? – passou despercebido por todos os portões e todas as portas, sem dar cavaco a ninguém e deitou-se aqui para dar à guelra?

Capitão
Meu Major, parece-me impossível que alguém possa chegar aqui sem ser identificado, pelo menos, em três pontos: o portão principal, o portão intermédio – antes de começarmos a descer aos pisos subterrâneos – e a porta azul, antes desta sala onde nos encontramos agora. E isto é num dia calmo… eu já cheguei a ser identificado sete vezes antes de aqui chegar.

Major
[interrompendo]
E muito bem!

Capitão
E muito bem, sim, meu Major!

Major
[rindo]
Ó homem, relaxe.

Capitão
[sorrindo, atrapalhado]
Sim, meu Major…

Major
O som do coro bem melado nada tinha de meloso…

Capitão
[confuso]
Perdão?

Major
[rindo]
O som do coro bem melado nada tinha de meloso.

Capitão
[a medo]
Não percebo.

Major
Pois não… Mas a culpa não é sua. [pausa] Nem minha…! O som do coro bem melado nada tinha de meloso… [pausa] Coisas minhas… Gosto de poesia, sabe. [pausa] Significa que o som do coro, o que quer que cantavam, fosse a letra ou a melodia, era doce, mas não era piegas… que era suave, mas não era insípido.

Capitão
Compreendo…

Major
[indica Gonçalo]
Bem pode ser isto o que aquele pobre peixe está para ali a borbulhar. O som do coro bem melado nada tinha de meloso…

Capitão
Já sabemos o que ele está a dizer, meu Major.

Major
[surpreendido]
Desde quando?

Capitão
[hesitante]
Desde hoje de manhã?

Major
E falava de quê?

Capitão
Balbuciava… sobre vícios. Fumar, roer as unhas… vícios de boca, dizia ele.

Major
[olha desconfiado para Gonçalo]
Vícios de boca… será algum código?

Capitão
[baralhado]
Código, meu Major…?

Major
[humilhado]
Sim, código, porra… sabe o que é um código?! A águia aterrou!? [pausa] A marreta está no ar?! Dêem-lhes música?!

Capitão
Sim, meu Major!

Major
E ENTÃO?!

Capitão
Não nos parece ser um código…

Major
[desconfiado]
E como é que souberam o que ele estava a dizer?

Capitão
Um dos oficiais tem um filho surdo-mudo e aprendeu leitura labial e língua gestual portuguesa…

Major
Língua quê!?

Capitão
Língua gestual portuguesa, meu Major.

Major
Certo… e sabe ler lábios?

Capitão
Sei, meu Ma… SABE, MEU MAJOR!

Major
Não grite!

Capitão
Perdão, meu Major!

Major
Mas, afinal, quem é que sabe ler os lábios e falar não-sei-quê Portuguesa… é você?!

Capitão
[inseguro]
Eh…

O Major levanta-se, pousa os punhos no tampo da secretária e continua a falar com o canhão Cubano entredentes.

Major
Sabe quem é que lê muito bem lábios?

Capitão
[apanicando]
Não, meu Major…

Major
[sorrindo, malicioso]
SÃO AS PUTAS E OS PANELEIROS!

O Major desata a rir alarvemente até se engasgar num pedacito de tabaco mais maroto que saiu do charuto em direcção ao seu goto. Tosse tanto que às tantas começa a ficar muito vermelho e a bater com os punhos no tampo da mesa. O Capitão aproxima-se para o auxiliar, preocupado, e dá-lhe uma pancada nas costas para o desengasgar. O Major responde com um socão no queixo do pobre coitado que veio em seu auxilio, deixando-o estendido no chão. O Major recompõe-se, bebendo água do seu cantil. Depois, despeja o resto da água na cara do Capitão. Este acorda em pânico, como se tivesse sido arrancado das portas do inferno. Levanta-se a custo e recompõe a farda.

Major
Mas o que é que ele estará a dizer agora?

Capitão
[assustado]
Ele fala… [pausa] É muito lento, demora duas a três horas para completar uma frase. É quase como se estivesse… [hesita]… como se estivesse…

Major
Desembuche!

Capitão
Como se estivesse desfasado…

Major
Desfasado?!

Capitão
Sim, meu Major?

Major
De quê?

Capitão
Dele mesmo, meu Major. [pausa] Tudo nele indica estar numa normalidade, perdoe-me a expressão. O discurso é lógico, embora irrelevante. Não há razão para acreditar que se trate de um código… os peritos assim o disseram. Não encontram um padrão reconhecível ou disfarçado, nada… Além de que não há ninguém para o ouvir, ou ler, neste caso, apenas o meu Major e eu.

Major
Certo… [pausa] Mas, afinal, quem é o oficial que sabe ler os lábios e a gestual-não sei-quê?

Capitão
[a medo]
Sou eu, meu Major.

Major
Já desconfiava! [pausa] Perdoe-me a insensibilidade de há pouco… das putas e não sei que mais… às vezes sou um porco.

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