A inocência e a plenitude

27/01/2019

 

[dropcap]U[/dropcap]ma rede de olhares mantém unido o mundo, não o deixa cair. As palavras são forcas onde aos poucos penduro a razão. Pago em goles de sangue pela respiração. Temos sede, pressa e golpeamos com o osso de uma flor na treva. O cervo vai a beber e na água aparece o reflexo de um tigre: o cervo bebe a água e a imagem e torna-se igual ao seu inimigo; só damos vida ao que odiamos.

Todos os que têm pontos de referência no espírito, quero dizer de certo lado da cabeça, em zonas bem delimitadas do cérebro, todos os que dominam a sua linguagem, todos aqueles para quem as palavras têm sentido, quantos crêem que existem alturas na alma e correntes no pensamento, os que são o espírito da época e assim designaram essas correntes de pensamento, penso nos seus trabalhos precisos e nesses guinchos de autómato que a todos os ventos empresta o seu espírito – são uns porcos.

Esta rede de versos e estrofes de diversos poetas que traduzi e que montei acima é a minha rede de caboclo que não deixa cair o meu mundo. Durante dois ou três anos traduzi dezenas de poetas e várias línguas, só para não me exasperar e recuperar o humor nas flutuações da minha vida em Maputo: os poemas funcionam como respiradores. Um terço deles, num volume de quase duzentas páginas, onde antologio vários dos meus poetas hispânicos, vai conhecer edição, pela Letra Livre, que agora me propôs isso. Foi um bom convite.
Aqui deixo dois poemas transcriados por mim e de que gosto muito. O primeiro é de José Ángel Valente:

ÚLTIMA REPRESENTAÇÃO
A parlar d’ira, a ragionar di morte.
Rime:CCCXXXII

Os deuses/ desta Primavera/ não me foram propícios/ e cautelosamente os execro, mãe/
incógnita, blasfémia, fonte do rogo.//

Dispuseram os seus praticáveis negros/ sobre o tablado./ Começa o espectáculo,/ mas só um final se representa. //

Ao centro da cena, um homem/ ou a figura de um homem/ de macilentos zigomas ostenta/ uma pesada cornadura./ Por cada um dos cornos/ faz beber sujos detritos líquidos/ à sua exânime estirpe.//

Excremental o homem./ Nada / com ele nem nele podia/ crescer, multiplicar-se./ Nem sequer o pranto./ Povoai a terra./ Oh deuses,/ desatino sem fim, sem fundo, o deste sonho. //

Fita as lamparinas, deslumbrada,/ a mulher nua que alumia/ com uns límpidos e ofuscados olhos o nada. //

Começa a cair o pano./ A sombra/ ameaça cair outra vez sobre a sombra. //

Só eu aplaudo, na sala apinhada/ de espectadores mortos.

O segundo é de um tremendo poeta flamengo, Hugo Claus:

Sexta, 14 de Novembro, aniversário de Dante,/ laureava no meu jardim, o crepúsculo estava clemente,/ e cismava em Dante. /Sou assim feito, penso em Dante sem parar./
Tenho qualquer coisa dele, acho. Em moderado.//

Então chegaram os dogues voadores numa nuvem de enxofre/ penas e ganidos, mesmo aos meus pés. /Vazados, como num fragmento de Canto, / essa corja abateu-se sobre o meu relvado / e pôs-se a esgaravatar e a gralhar num chavascal / odioso, um verdadeiro pesadelo,/ as penas espalhavam-se ao quintal dos vizinhos/ entre os seus moinhos miniatura e os seus gnomos./ Depois, de repente, eclipsaram-se. Uma verdadeira visão de Dante.//

Escutem, eles deviam evidentemente ter-se contido./ Acreditem-me, uma fúria daquelas,/ aquela crepitação de garras e asas, mais a berraria / e o pivete que se entranhou por semanas no vestuário,/ não, como erudito, aquilo agradou-me pouco.//

Sobretudo, e é disso que se trata, que o meu móbil / tenha passado por um momento tão indigno, que digo eu,/ eles chamaram-lhe um figo – tragaram-no.//

Tinha-o construído eu mesmo, à Calder, airosa e / ingenuamente suspenso em cores primárias,/ um triângulo, um círculo e um quadrado: eis tudo,/ que era também, por acaso, o tudo/ a que eu chamava o meu “Universo”, /pois não simboliza o triângulo o corpo/ físico, oral e mental, / e não é o quadrado a água o ar e o fogo e a terra, / e não é o círculo, digo bem, o círculo, unicamente / a realidade terminal? / Aos três elementos, ligados por um esvoaçante fio de ferro,/ tinha-os pintado de rosa, a dar para o salmão, /com o seu quê de elegante.//

Como eu disse aos polícias: «Essa bicheza / comezinha e irresponsável não apenas demoliu / e se empanturrou com uma obra onde eu in-ves-ti / anos de trabalho manual,
mas também com a projecção da minha alma e da minha ética./ E quem, meus Senhores, me poderá alguma vez indemnizar?»//

«Caro Senhor», disseram os polícias, «o infinito / contém em si múltiplos elementos informes».//
Eles anotaram a minha queixa. Queixa /contra uma grandeza desconhecida /de digestão infinita. / Odeio a minha mulher e os meus rebentos./ Dante é a minha única consolação.

28/01/2019

Escreveu Paul Auster: «Aquilo que admiro em Perec é a rara combinação, na sua obra, de inocência e de plenitude. É raro encontrar estas duas qualidades juntas num mesmo autor. Cervantes possuía-as, Swift e Poe também; e há vislumbres delas em Dickens e Kafka. Por inocência entendo uma pureza de intenção absoluta. A plenitude traduzo-a por uma fé absoluta na imaginação. É uma literatura caracterizada pela efervescência, um riso demoníaco, a alegria. Não é a única experiência que podemos obter com os livros, mas é a experiência fundamental, aquela que rende possível todas as outras», e eis, aliás, o que eu gosto nos dois. E é o sentimento de termos logrado esta feliz combinação que pode tornar jubilosa a conclusão de um romance.

Foi o que me aconteceu agora com A Porta Entornada, o romance que dei por terminado, onde pela segunda vez julgo ter conseguido criar um mundo autónomo, com personagens à altura dessa dimensão “marciana”.
Estou um pouco arrombado, mas feliz.

31 Jan 2019

Ética e dignidade

[dropcap]E[/dropcap]m 2012, em Navarra (Espanha), no final de uma corrida de corta-mato, o queniano Abel Mutai, que fora medalha de ouro nos três mil metros com obstáculos numa semana anterior, em Londres, estava a pouquíssima distância da meta mas, confuso com a sinalização, parou para posar para as fotos, pensando que já a havia cortado. Mesmo atrás vinha outro corredor, o espanhol Iván Fernández Anaya. E que fez este? Gritou para que o queniano reparasse na sua falta e, como este não entendesse que não havia ainda cruzado a meta, então, o espanhol empurrou-o em direcção à vitória.

O fair-play do espanhol foi reconhecido; ninguém esperaria o que se passou depois. Um jornalista perguntou-lhe: “Por que é que o senhor fez isso?”. O espanhol não compreendeu: “Isso o quê?”. Ele não entendeu a pergunta, pois não imaginava que houvesse outra coisa a fazer além do que tinha feito. O jornalista insistiu: “Por que deixou que o queniano ganhasse?”. “Eu não o deixei ganhar. Ele ia ganhar”. O jornalista continuou: “Mas você podia ter ganho! Não estava fora das regras, ele distraiu-se…”. “Mas qual seria o mérito da minha vitória, qual seria a honra do meu título se eu deixasse que ele perdesse?”, continuando: “Se eu ganhasse desse jeito, o que ia dizer à minha mãe?”

Quem nos reporta a este episódio maravilhoso é o pensador brasileiro Mário Sérgio Cortella, que lembra que a mãe, como matriz de vida, fonte de vida, talvez seja a última pessoa que se quer envergonhar, e pergunto-me se as mães, pedagogicamente, não poderiam ser recuperadas para a tarefa de esclarecer que o foco obsessivo nos resultados pode não ser o mais correcto.

O foro da discussão ética tem sido excessivamente deslocado para a escola, como um tema que esta tem de assumir, quando a ética, antes de tudo, é da alçada da família. Os exemplos nascem em casa – e o ideal é que um dia possamos almejar um tipo de vida comunitária em que a pergunta feita pelo jornalista ao corredor espanhol não seja mesmo entendida.

Em tudo o que fazemos na vida quando a ânsia pelos resultados se sobrepõe ao prazer e à especificidade do processo há uma dimensão humana que se perde.

Há um filme italiano de 2008, Si Puo fare/ Pode fazer-se, de Giulio Manfredonia, que é muito engraçado e fala deste problema em situação. O filme incide sobre as cooperativas sociais que se organizaram em Itália – em articulação com um novo entendimento para a reforma psiquiátrica – e que integravam doentes mentais. E conta-nos a história de um sindicalista, Nello Treddi, demasiado honesto e demasiado reflexivo que está sempre envolvido em sarilhos e a quem o Sindicato propõe, como última oportunidade, a gestão de uma Cooperativa, a 180, que tem sede num hospital psiquiátrico e cujos membro são todos esquizofrénicos.

– “Mas que produz a cooperativa? – pergunta Nello ao director da instituição, o Dr. Del Vecchio.
– “O que é que você quer produzir? Para o município, eles colam selos. Para os supermercados, colocam os preços nas azeitonas.”

As coisas mudarão com a direcção de Nello. Para Del Vecchio, o director, “a doença mental isola do mundo”, Nello não concorda que os pacientes não sejam capazes de assumir as responsabilidades de um trabalho. A sua posição resume-se assim: “Eu não sou médico, eu não sou um director de hospital, eu estou aqui para executar um trabalho cooperativo, e dado que estou aqui vou tratá-los como trabalhadores.”

Nello acidentalmente descobriu que alguns pacientes têm uma capacidade especial para projectar figuras simétricas, e que essas figuras podem ser transformadas numa vantagem para o desenho dos pisos de parquet. Enquanto para o psiquiatra a produção dessas imagens tinha um valor mecânico e compensatório da desordem interna, Nello reconverte-as em desenhos artísticos exclusivos para vender. Tratando-os com dignidade, incitando-os a que tenham prazer no trabalho, Nello consegue transformar a cooperativa num caso de sucesso no ramo do “pavimento artístico”.

Em dois anos a empresa dá lucro e resolvem arranjar uma outra sede e sair da tutela do centro psiquiátrico de Del Vecchio. Os membros são instalados numa nova sede, onde agora são os “inquilinos” (e não internos) e outro psiquiatra controla a redução da medicação para 50%. E todos se comprometem em assembleia a viver exclusivamente para “satisfazer o mercado com o seu próprio trabalho, o seu próprio sacrifício e a sua própria capacidade”.

A meta da cooperativa é atender a demanda mas oferecendo as diferenças que as habilidades específicas dos “doentes” têm para oferecer ao consumidor e que rompem com os padrões normativos do mercado.

A crise começa quando, movido pelo entusiasmo, Nello decide que a cooperativa deve crescer e concorrer a um grande concurso para uma nova estação de metro de Paris. E aí, começando a olhar mais para os resultados, o sucesso no trabalho, do que para as pessoas que os produzem induz a “normatividade” no comportamento do colectivo, com saídas programadas à noite. Do que advém o enamoramento de alguns membros da cooperativa por mulheres de fora daquela pequena comunidade e a breve trecho, o desajuste fatal e o suicídio de um deles. Nello na mira dos resultados, esquecera-se da especificidade de cada um e como não estavam preparados para enfrentar uma decepção. As pessoas – a singularidade de cada uma – devem estar primeiro e ser ponderadas e não abstraídas em função dos resultados, é a lição do filme.

Contudo, a ética e a dignidade estão sempre no eixo do filme, que por isso contribui de algum modo para a reflexão sobre a relação entre a política e a subjectividade.

Este filme pode ver-se inteiro no Youtube.

24 Jan 2019

Os inadaptados

[dropcap]N[/dropcap]ão sei como passei de uma coisa a outra, é sempre inesperado o que desencadeiam as sinapses. Leio a correspondência de Artaud, aquelas missivas em que ele falava da perda de potencial e de energia do pensamento, e de como espíritos lhe esburacavam a vontade e roubavam a lucidez, drenando-lhe a capacidade para incarnar o raciocínio, e veio-me uma vontade irresistível de rever Misfits/ Os inadaptados, de John Huston. Assim, num estalar de dedos. À cabeça, que tem a boneca-de-Hollywood, Marilyn, a ver com o cabide-Artaud?

E no entanto, revisto o filme, tudo se conjuga, até o “teatro da crueldade” que se delineia na espantosa sequência da caça dos mustangs, em que um Clark Gable a cair da tripeta tem a última grande cena da sua vida.

Tem graça a trajectória de Gable, desde o começo quando Darryl F. Zanuck o testou para o papel de Little Caesar (em Alma de Lodo), de 1931, para o rejeitar, alegando: “Não serve para o cinema. As orelhas são grandes e lembra-me um macaco” (e não é que Zanuck não estava longe da verdade?), até essa sequência em que num só lançamento laça o cavalo e uma histérica Roslynd, de sensualidade détraquée.

Marilyn tinha-lhe uma admiração de morte e como detestava o guião de Misfits (assusta-a o desespero de Roslyn, o papel que lhe estava reservado), do seu então crepuscular marido Arthur Miller, só aceitou fazer o papel de Roslynd depois de Huston ter convidado Gable para o seu canto do cisne – o actor faleceria de infarto nos dias imediatos ao termo da rodagem e a viúva haveria de culpar Marilyn pelo desgaste que lhe teria causado.

E assim foi Marilyn, que de comum precisava de cabeleireiro, maquilhador, camareiro, manicure, massagista, e de Paula Strasberg, para os calores do Nevada.

Gable não percebeu nada de Marilyn e do seu comportamento na rodagem (até uma tentativa de suicídio de Marilyn – que fora rejeitada pelo seu ex-amante, Yves Montand, houve) embora esta confessasse mais tarde que quando ele a beijou ela ficou com pele de galinha, ou seja, excitada. Mais do que, hélas, ele obteve de Scarlett O’Hara/Vivien Leigh, em Tudo o Vento Levou, que era frígida. E, no entanto, Vitor Fleming filmara-o como se ele fosse um garanhão, e aí aparenta ser duas vezes mais alto do que no seu derradeiro desempenho como Gay, o intrépido vaqueiro cheio de momices faciais e que encolheu para encarnar a caricatura das suas glórias do passado, as quais só nas cenas finais se resgatam. Talvez por influência do uísque que lhe mordia as entranhas, a interpretação de Gable é toda aos sacões – resta-lhe apenas uma energia intermitente, falha, ou a reserva-a de todo para a cena em que doma o mustang e que nos faz confiar que afinal talvez ele consiga fazer um filho à rapariga?

E Roslyn? Desde o princípio que está cansada e ferida e as suas neuroses, o seu sentimento de orfandade, são certamente as da actriz. Depois, tal qual lhe diz Gay, é ensurdecedora a sua tristeza. Como foi dito, Marilyn não faz o papel de Roslyn, ela é Roslyn, e o filme «é a autópsia de uma mulher ainda não inteiramente morta».

Roslyn, a bela ex-striper, logo no início, não hesita em divorciar-se e acusa o marido de quê? De ausência. Para bom entendedor. E de ausência sofrem todos os personagens do filme, de Gay, o cowboy que ultrapassou já a meia-idade, a Guido o aviador, ao patético Perce/Montgmorey Clift, ou a Isa, a amiga mais velha: gastam a vida a tentar colmatar esse hiato, essa nostalgia irreparável.

Afinal, a que se resume Misfits? A Roslynd e a três cowboys pelo beicinho, cada um deles a procurar mostrar-lhe que é o mustang de que ela precisa? Engano, o filme trata antes, diria Artaud, da vida espectral, quando não acodem ao corpo os órgãos do discernimento.

Na primeira vez em que estão a sós, Gay pergunta-lhe pelo grau académico, e ela responde que abandonou cedo a escola, ao que ele se regozija. Ela estranha e Gay explica o que lhe aborrece nesse tipo de mulheres: “as mulheres que se formaram querem sempre saber o que estou a pensar”. Como se pensar fosse uma demasia infinita para uma conta de que não se sabe a cifra. Gay, pelo contrário, identifica-se com os mustangs que caça, imagina-se enredado em pura energia, não tendo, até encontrar Roslynd alma fora do corpo.

Estes cowboys insolentes e fora de uso, foram moídos por uma vida que pulsa, embora sem foco (não se queixa o traumatizado Guido, piloto de avião, de que na guerra “bombardeou às cegas”?) e que os obriga a rodopiar de rodeo em rodeo para medir a energia que lhes resta, são “corpos sem órgãos” porque desvitalizados do livre arbítrio que na maturidade inscreve um ganho em toda a perda – aqui, uso a expressão e não o sentido que Artaud lhe dá.

É o que o atarantamento de Roslyn acaba por transmitir a Gay, a vontade de «adquirir um sentido para a vida» e de mudar os valores. A coragem, por exemplo, em Gay deixa de ser a inclinação cega de dominar o mustang e de exibir o seu troféu, para significar, numa reviravolta, o gesto de abdicar do troféu, decidindo pela vida do mustang. Conquistar passa a ser o equivalente do seu oposto, a dádiva.

Corolariamente, metáfora do triunfo da vida terá o seu epítome na promessa de um filho com que o filme acaba, esse transcendente que dominou por fim o indomesticável.

Apesar de um pouco moralista – o sexo é, no filme, o mau estratagema para curar a solidão própria ao homem, e só o amor rompe a clausura – The Misfits é um daqueles filmes imperfeitos que tem tudo para ser imortal.

Como aliás o falho pensamento de Artaud.

17 Jan 2019

Nudez e ateísmo

06/01/2019

[dropcap]B[/dropcap]eber um café sem açúcar é como engolir um astro, raspa na garganta, explode no palato, mineraliza a língua: as primeiras impressões da dieta a que me propus para me metamorfosear de homem-livro em homem-livre, pelo intenso cuidado de si (de mim).

Só posso beber vinho, outra das restrições.

Voltar a incarnar o corpo, emagrecendo, para o sentir de novo, até na doença, é o fito, e aliás a percepção do corpo é um tracejamento cíclico porque a nossa vida é ondulatória – periodicamente necessitamos de uma inversão.

Entretanto, talvez o mais difícil na vida seja emendar o que calámos. Porque o silêncio, em maior ou menor medida, faz da memória um rascunho.

07/01/2019

Não deixo de ler a frase uma e outra vez: “aquele nu era um implante, mas que não se deixava reabsorver”. Fascinante, os jogos de linguagem, nomeadamente quando são involuntários: que um nu possa ser um implante.

A frase é do livro Le Nu Impossible, de François Jullien, um ensaio delicioso que questiona porque não “consentiu” a China esse género pictórico e através da análise desse tabu o estudo debruça-se igualmente sobre as condições que permitiram o nu na Europa. O que se interpôs entre a carne e a nudez, na China, tornando-a fonte de opróbrio, enquanto noutras culturas a nudez pode isentar-se de moral e nem significa necessariamente “estar nu”?

Um dos mais belos nus de que me lembro é o de Ornella Muti, na abertura dos Contos da Loucura Normal, do Marco Ferreri. Serking/Ben Gazzara é um poeta alcoólatra de tendência anarquista que vive e vagueia entre prostitutas e marginais, no submundo da cidade de Los Angeles. Um dia, conhece Cass/Ornella Muti, uma prostituta de uma espantosa beleza e um carácter auto-destrutivo. Os dois iniciam um romance que ganhará tonalidades trágicas… Quando o filme começa, dentro do quarto, Serking olha a silhueta nua de Cass à janela e vomita.

Dirão os mais prosaicos: é grande a ressaca. Eu prefiro outro tipo de explicação mais excêntrica: Serking vomita porque a beleza é um excesso irremediável, que não se absorve sem custos.

E então sobre o nu foi implantada a beleza.

Inclusive, o nu erótico, na China, continua Jullien mais adiante, como em Qui Ying, não é convincente. E falando de um rolo deste, mostra como as figuras enquanto estão vestidas são delicadas, insinuantes, e ao aparecerem despidas “os corpos parecem empilhados como sacos” desgraciosos e absolutamente desviados de qualquer sensualidade.

Todo o contrário do que se vê no Japão, em Hokusai, por exemplo, onde até tomando um polvo como amante a nudez está magnificada pela sensualidade que implanta no nu o seu desejo encantadamente polimórfico.

08/01/2019

Tinha acabado de anotar: Atrevo-me a escrever que, apesar de tudo, vivemos uma época de desencantamento muito tonificante pois acredito que os sinais de retrocesso civilizacional que por todo o lado mostram a sua cauda simiesca não correspondem a mais do que um momentâneo estertor final dos sentimentos mais arcaicos – e de repente leio no editorial da Ana Sá Lopes, no Público:

«49 pessoas, incluindo crianças, foram resgatadas por dois barcos de uma ONG alemã, mas até agora nenhum país europeu aceitou recebê-los. É verdade que se “meteu” o Natal e quando se “mete o Natal” e o Ano Novo a Europa congela.(…) Ao menos se fossem cães ou gatinhos, haveria uma opinião pública disponível para se emocionar. Como são pessoas, não têm esse benefício. Ver morrer pessoas no Mediterrâneo (em 2018 foram 2262) tornou-se um hábito e não convoca a consciência das massas.

O Papa fez ontem um apelo “do fundo do coração” para que a Europa não se mantenha congelada nas férias de Natal, mas tenha consciência do significado profundo daquilo que celebram como férias. Francisco lembrou que os barcos com os 49 migrantes esperam há dias autorização para aportar e exortou os países europeus a tomarem medidas “de solidariedade concreta com estas pessoas», e lá se vai o meu optimismo à viola.

Por outro lado, o Papa esteve bem, nesta questão, e repararam como nas homilias de entre o Natal e o Ano Novo ele declarou que era mais respeitável e digno ser ateu do que ser um cristão hipócrita e inconsequente?
Quando um gajo se sente acompanhado pelo líder da maior igreja do mundo não pode esmorecer.

09/01/2018

Um actor chinês sempre começa uma acção com o seu oposto. Para olhar para uma pessoa sentada à sua esquerda, um actor ocidental usaria um movimento directo e linear do pescoço. Mas o actor chinês, como os demais orientais (é pensar nos filmes japoneses), começaria como se quisesse olhar para o lado oposto. Se se deseja agachar o actor chinês começa por levantar-se.

Do mesmo modo, na dramaturgia, o que faz evoluir uma trama é o estorvo, o conflito, a dificuldade de se alcançar o objectivo. Ou seja, de novo, alguém começar a despir-se não implica que se queira ficar nu.

Regras simples que tenho de transmitir ao Assistente que me arranjaram na universidade. Estou contente até porque somos amigos e o Venâncio Calisto é bastamente inteligente e é de facto a grande revelação dos últimos anos no teatro em Moçambique. Mas não deixa de ser um luxo bizantino arranjarem-me um Assistente numa disciplina onde tenho dois alunos.

09/01/2019

O cartaz repete-se de cinco em cinco metros, ao longo dos tapumes que cobrem as obras do Hotel Andalucia, a 30 metros de minha casa. Anuncia o cartaz: «Proibido mijar no murro!». Era difícil ser melhor.

10 Jan 2019

Se não me puderes amar no inverno, quando?

[dropcap]P[/dropcap]alavras que sejam, elas próprias, desempenho, e, mais do que adejo, corte sob a pele.
Não há outra medida para o escritor, mentira que lhe valha.

Por isso, continuemos, venha o que vier: os pálidos gestos de ternura, as tempestades, os descalabros invisíveis da História ou o paliativo do quotidiano. Mesmo os que não nos consolam os tremores íntimos anónimos, aqueles que feriram, apesar de aparentemente irrelevantes; eu em miúdo odiei ter sabido que um bigode pode ser à Cantiflas – e, sim, o humor não resgata tudo.

Contudo, só porfiando algo se articula, um raio ou uma face arregalada pelo desarme. Só transformando a escrita em vivência ela arranca à viscosidade do caos uma repetição equiparável à buzina com que Harpo Marx inscrevia no silêncio uma nova linguagem.

Um novo ano, e nada me ocorre senão aquele começo poderosíssimo de Camilo José Cela em Ofício de Trevas 5: «es cómodo ser derrotado a los veinticinco años aún sin una sola cana en la cabeza sin una sola caries en la dentadura sin una sola nube en la conciencia con sólo dos o tres lagunas en la memoria y mirar el mundo desde el cielo desde el purgatorio desde el infierno desde más acá de los montes pirineos y la cordillera de los andes con frialdad con indiferencia con estupor».

Conheci tantos em quem vi a comodidade de serem derrotados aos vinte e cinco. Antes de, devido à intransigência que cabe aos jovens, conseguirem sequer adivinhar que afinal nada há de intransitivo na vida.

Ou melhor, que a única coisa intransitiva na vida é a idade – a única aprendizagem que se entranha. O mais é puro derrame de uma coisa noutra, contágio, intersecção, simbiose e corrupção. Só a idade nos retém e aparvalha – uma besta enfurecida – entre maxilares. E mesmo aí temos direito a momentâneos vislumbres fora da caixa palatal que nos rumina. Enquanto, merda, ficamos tardios, a congeminar que a roleta do mútuo consentimento nos abandonou e que ao selvático empenho de amar se sobrepôs o respeito, a defeção. O que quer que isso seja. Sem outro ganho que o de reconhecermos: sob a dura casca de noz que nos subjuga lateja ainda um jovem assombrado pelo tumulto das luzes que nos cegou no seio do labirinto.

A chegar aos sessenta (faltam dezoito dias) pergunto-me quantos livros li até ao fim? Necessariamente um terço dos que comecei a ler. E acima das trezentas páginas contam-se pelo dedo. O Moby Dick, Dostoievski, Tolstoi, alguns Dickens, Saul Bellow, dois ou três volumes do Proust… ou livros que tive de ler por trabalho. Fico sempre banzado, no estrangeiro, quando vejo multidões nos comboios e no metro aferrarem-se a setecentas páginas de irrelevâncias.

Li mais até ao fim Saramago do que Lobo Antunes. É-mais fácil. Há em Saramago um admirável trabalho de relojoaria, a que se segue o ronrom. Com Lobo Antunes levanta-se uma questão de densidade – prescinde da trama, abro qualquer livro e leio cinquenta páginas como se mergulhasse no mercúrio. É retemperador, mas preciso de pausas entre cada dose.

Escusam de me perguntar de quem gosto mais, sou incapaz neste caso. Já entre Eça e Camilo alinho por este último.

Demasiadas vezes interessa-me mais o processo do que a história do livro.

Há escritores a quem cheguei cedo e outros a que acostei tarde.

Ao Ruben A. cheguei temprano e ainda hoje me admira ser tão desconhecido da maioria, ao Augusto Abelaira cheguei tarde, à primeira só o Bolor me agarrou, mas trinta anos depois de não o ler comprei no metro O Triunfo da Morte e Sem Tecto, Entre Ruínas, e percebi que aquela liberdade livre é rara e só por extrema deficiência na educação dos leitores ele não é, foi, um sucesso.

É difícil a unanimidade, mas livros há que me espantam de não a terem. O Alface impingiu-me um autor francês que, orgulhoso, só fui ler depois da precipitada morte dele, o Maurice Pons e o seu As Estações. Até chorei depois da leitura do livro por não o ter lido antes, para comentarmos o livro. É extraordinário, um dos maiores exercícios da imaginação que li na vida. Contudo, já o tentei vender a meia dúzia de pessoas que não compreendem o meu entusiasmo. Há contágios que só passam de escritor para escritor, sendo necessário lidar com os limites da imaginação própria para reconhecer um acto pleno. Em França há clubes de fãs de As Estações, em Portugal foi um fracasso absoluto.

Há livros nas minhas estantes cujas edições se desfazem de tantas vezes serem relidos, dobrados e riscados, como Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, o Empresta-nos o seu marido?, de Graham Greenne ou o Mulheres e Homens, do Richard Ford; outros, apesar de lhes reconhecer a excelência, deixam-me frio e abandono-os invariavelmente a meio, como os livros do Sebald, que têm todos um ar espantosamente novo.
Agora, com um pé nos sessenta, sinto-me ejectado para o espaço. É o momento de fixar um livro de memórias. E tudo só pôde começar porque arranjei um título convincente, e desta vez não lhe mudarei uma sílaba: Se não me puderes amar no inverno, quando?

Será em três volumes, o primeiro sobre a infância, o segundo em torno dos amores e o terceiro sobre a escrita. O primeiro é o que me ocupará neste mês de Janeiro. O segundo escrevê-lo-ei em Janeiro de 2020 e assim sucessivamente.

Será o modo de atar o meu corpo ao compromisso de durar mais uns anos, viés sobre o qual às vezes tenho dúvidas.

Que as letras me catapultem e se rendam à hipótese de que existe uma realidade para além das imagens, suscita-me o desejo de toda a luz e é o projecto possível para quem não nasceu para ser discípulo do Mallarmé.

3 Jan 2019

Votos para 2019

[dropcap]E[/dropcap] de repente faço sessenta anos (sou capricórnio) e recebo a visita de um neto, antes mesmo de ter tido um béguin com a Stephanie do Mónaco. A vida é ingrata!

Esta falha horroriza-me, nem sequer consegui ser guarda-costas da filha da Grace ou segurar-lhe as maças no circo. E em que zona das omoplatas me enxertaram um neto, se as minhas células continuam a regenerar à velocidade com que os supersónicos engolem nuvens de algodão doce e, por amor, me dispunha a renunciar aos princípios republicanos, de tal modo que ambos no fim tatuaríamos no peito um Leão da Tasmânia?

«Estamos alegres. Nem rato/ porá a casa em desacato,» sentencia o Robin de Sonho de Uma Noite de Verão, que acabo de reler, e sinto que o desacato personificou no rapaz gentil e falador de 9 anos que me entrou em casa nestes festejos e me desviou o pensamento da estratégia de me aproximar do Mónaco para conhecer a alvorada na intimidade de uma mulher que, dizem as revistas cor de rosa, choca os seus súbditos por não aparecer maquilhada nem esconder as rugas. Tudo o que me convinha.

O importante é que ela não cantasse, pois eu sou um gnomo honesto e seria incapaz de mentir-lhe.

E espero que o puto não me volte a visitar antes de me apresentar à Beth Hart, a cantora de blues, e de interpretarmos os dois no duche Caught Out In The Rain, fazendo disso cicatriz do destino.

Não esperem menos de mim que do Dominguín, o toureiro que foi amante de Ava Gardner e a deixou sozinha na cama às duas da manhã; respondendo, face ao espanto dela por ele sair da cama, Desculpa lá, mas agora tenho de ir ao bar contar que ando a comer a Ava Gardner, pois para mim metade do gozo está em contá-lo.

Fui sempre um rapaz recatado, mas esta onda de pez em que o «politicamente correcto» nos promete naufragar dá-me uma vontade irredutível de vos anunciar como vai ser, em 2019.

Na primavera rumarei à Escócia para dar uma oportunidade à Ali Smith para me conhecer. Depois proponho-lhe uma viagem no tempo, recuaremos vinte e cinco anos. Após o que talvez nos despenhemos no amor. A imaginação dela convém-me muito.

No verão, não regressarei imediatamente a Portugal depois da viagem que, está estabelecido, farei a Lisboa com a mulher e as filhas. Armarei uma estratégia para elas regressarem sem mim, e ala para a Bordéus, onde se encontra a escritora galega Luísa Castro. Do mais seria indecoroso falar, mas com certeza que a interrogarei sobre Los versos del eunuco, Los hábitos del artillero ou Una patada en el culo y otros cuentos, livros dela que me agradam muito.

Em Outubro deslocar-me-ei ao Canadá para discutir alguns tópicos de Oedipal Dreams com a sua autora, Evelyn Lau. Tudo dependerá de muito, mas se averiguar que ela não teve qualquer relação com o poeta americano Charle Simic – para mim, mulher de amigo é homem -, não me farei rogado e pode sair que algo corra entre nós, por exemplo, um livro a meias e em alexandrinos.

No Inverno repousarei.

A filha de Bukovski tem-me escrito, quer vir fazer-me a receita favorita do pai: bifes com ervilhas. Mas resguardo-me de quaisquer encontros com os mitos, temo a sua senescência.

O meu neto é que a sabe, fala como já floresceram as varandas em Verona.

Nos intervalos que a visita obrigatória ao Kruger com o miúdo me deixou, li dois livros deliciosos: Retalhos do Tempo/ Um memorial de Dublin, de John Banville, absolutamente recomendável, e a comédia de Shakespeare, numa excelente tradução de Maria Cândida Zamith.

O que é extraordinário, ao ler-se esta ou outra peça de Shakespeare, é pensar como era inteligente o público que fez de O Sonho duma Noite de Verão, o maior sucesso da carreira do bardo. A peça é estruturalmente enxuta e perfeita, mas a surpresa reside no facto do ignaro povo e maioritariamente analfabeto do período isabelino aderir ao seu teatro e à sua linguagem (que hoje nos parece elitista) sem a menor reserva e aprendendo trechos de cor.

Veja-se este espantoso jogo de trocadilhos fonéticos (- que fui buscar à tradução brasileira, que li primeiro, e que é o único trecho que prefiro a esta nova tradução da Relógio D’Água):

«Demétrio

O rapaz que jaz é um ás da morte.

Lisandro

Ás que jaz é incapaz; é um zero à esquerda.

Teseu

Com a ajuda de um médico é capaz de se recuperar e voltar a ser um as-no»

Pensar que o espectador elisabethiano acolhia entusiasmado o wit, a qualidade deste humor, e reagia na hora, no timing certo, às deixas – o que não acontece com a maioria dos meus alunos – é descoroçoador.

Há uma história da recepção literária ou dramatúrgica por fazer e seria utilíssima para derrotar mitos actuais que encharcam jornalistas, agentes culturais e editores numa suficiência espasmódica e gelatinosa que os levou a interiorizar a crença de que o gosto médio não está preparado para o complexo e só compreende estruturas básicas e um nível lexical a roçar a decomposição onomatopaica, viciando completamente a literatura e o que nela é considerado aceitável e inteligível.

Hoje o Shakespeare não teria editor e seria aconselhado a aplainar os textos em nome da eficácia e da funcionalidade. John Updike teria dificuldades em arranjar editor se começasse a editar vinte anos depois, pois foi sempre acusado de escrever bem demais.

E agora deixo-vos com uma variante minha à última fala de Oberon, na peça: «Agora, até à alvorada,/ Vá pela casa cada foda/ A melhor noiva escolher,/ Sua cama abençoar;/ (…) Cada foda vá voando/ Cada quarto abençoando/ Neste palácio amoroso: /E o seu dono, venturoso,/ Sempre descanse feliz./ Que se faça o que se diz».

São os meus votos.

28 Dez 2018

A Desordem e o Ódio

[dropcap]É[/dropcap] famosa a fúria de Samora Machel quando descobriu que afinal Mutimati Barnabé João (autor de “Eu O Povo”) fora uma invenção de António Quadros e não um guerrilheiro frelimista, morto em combate.

Percebe-se mas denota a ingenuidade do líder moçambicano, nesta matéria. Não se fazem bons poemas por ordem e graça do Espírito Santo. E a poesia não brota da sageza, da espontaneidade, ratice ou boa vontade, mas do domínio, técnico, e duma feliz dosagem entre as valências da memória e da imaginação, e quando a uma certa tradição retórica se conjuga a circunstância e a oportunidade. Ademais, por gracioso que seja António Aleixo não se compara a Fernando Pessoa.

Durante o regime socialista, como aconteceu nos outros países da mesma feição política, Moçambique foi habitado pelo dogma de que toda a gente era poeta ou artista. O que é confundir os iguais direitos que a todos cabe a montante com o que cada um faz disso a jusante.

Do mesmo modo que não me tornei cientista atómico nem escultor, a poesia não é para todos. Embora continue a haver muitos mais imitadores de poetas do que poetas.

O Cartier-Bresson fez dos mais notáveis enquadramentos da fotografia do século xx porque tinha atrás de si um curso de pintura – arte a qual abdicou, depois de ter interiorizado toda a história da disciplina. Não nasceu do nada aquele “vício natural” de enquadrar as fotos como se cristalizasse num clic a harmonia condensada de um universo.

Sim, o desejo é capaz de produzir objectos ou acções que transmutam o saber em novas formulações ou relações, mas para isso é necessário sublimar algo já existente, seja da ordem da sexualidade, duma crença ou de qualquer repertório técnico-discursivo.

Vale o mesmo para a rebeldia política, como movimento capilar, se por um lado fascina o apelo romântico da luta hoje é um crime abstrairmo-nos da história política dos últimos cem anos, pois esta destruiu a idade da inocência, e não foi só para os militantes.

Já estes caracterizam-se por presumirem uma unidade formal para a luta por via de uma transcendência – personificada no comité central do partido, ou nos dogmas da ideologia ou do nacionalismo, como realidades superiores. Depois, com mais ferocidade acrescida exercem as suas tarefas de organização e de exterminação. E os fins valem sempre os meios.

Sempre preferi os rebeldes, aquele que actualizam uma potência sem o filtro de uma filiação, que a uma necessidade visceral de justiça ou de mudança aliam uma causa concreta ou uma reavaliação dos valores. O que por vezes deu mudança de paradigmas, como em Maio de 68.

Mas isso assusta. Daí que Carvalho da Silva, o antigo dirigente sindical, tenha dito sobre os “coletes amarelos”:

“Não há democracia sem estruturas de mediação, os sindicatos, como muitas outras organizações, existem para representar interesses específicos, e a quem a sociedade pode responsabilizar; nestes movimentos inorgânicos perante a ausência de estruturas de mediação, isso torna-se uma bagunça e nega a democracia”.
É uma evidência que a democracia pode ser a primeira vítima do seu próprio sucesso mas esta será uma forma simplista de colocar as questões.

Como não simpatizar com os “coletes amarelos”?

Ainda que a sua força seja a sua fraqueza: a sua recusa de líderes e porta-vozes é eficaz (já foi) numa acção pontual, em prolongando-se pode cair na indistinção e na instrumentalização por grupos radicais.

Macron começou arrogantemente e afinal a sua inflexão neo-liberal dobrou como o junco diante da violência da realidade. Agora, dada a capilaridade da comunicação hoje em dia e os contágios que daí advêm é de perguntar se a reivindicação de que Macron abdique não terá já uma dedada da extrema-direita.

Em Portugal o movimento tem a sua primeira manifestação marcada para esta semana. O poder está apreensivo – foi de cem euros, a cedência de Macron no aumento do ordenado mínimo – e curiosamente a UGT e a CGTP já se colocaram de fora das reivindicações. Não querem estar “fora do sistema”, serem considerados arruaceiros.

Entretanto, o que mais desconcerta e ninguém quer pensar é a atmosfera de uma crispação latente que borbulha quer nas redes sociais, quer no descontrole com que num ápice os comentários dos leitores nos jornais se aproximam da arbitrariedade do ódio. É um sintoma acabrunhante.

O ódio toma conta das sociedades. Com profetas eleitos: Trump e Bolsonaro, que elevaram à legitimidade a arbitrariedade, o espírito arruaceiro e a impunidade. Tudo o que é arcaico, as pulsões mais retrógadas têm agora uma âncora para se assumirem sem vergonha.

A notícia mais simples e anódina é trampolim para exercícios de picardia e de desqualificação mútua entre os comentadores, o objecto da notícia não passa de um pretexto.

Na semana passada, António Lobo Antunes deu uma entrevista em que se afirmava a favor de uma só nação ibérica. Com raras excepções não se trocaram argumentos nos comentários que se lhe seguiram, não se discutiu uma ideia; antes se amontoaram as notas denegridoras sobre o escritor, as sentenças e a condenação sem freio que roça o ódio.

Todavia, há vinte anos, se um Virgílio Ferreira, um Eduardo Lourenço, um Prado Coelho, uma Agustina ou o Abelaira, manifestavam uma ideia considerada controversa havia em primeiro lugar uma suspensão da opinião. Se aquela criatura dizia tal, ponderava-se, porque a autoridade de milhares de páginas escritas por aquele autor pesava.

Agora há uma manifesta falta de humildade e a sentença de um mecânico de automóveis, de um marceneiro, de um polícia, de uma empregada doméstica, de um trolha, de um enfermeiro, parece equivaler-se à de um escritor consagrado. Também as democracias liberais caíram na distorção do socialismo e confundem o justo direito à igualdade a montante com a propriedade da opinião a jusante. Todos pensadores de primeira água, todos são poetas e artistas.

E entretanto esconde-se um fascista não declarado entre cada três comentadores.

20 Dez 2018

Lisboa-Porto

[dropcap]N[/dropcap]a plataforma dos comboios da estação do Pragal, a vassourinha da mulher da limpeza empurra heroicamente a beata para a pá de plástico. O pé direito segue o ritmo da canção popular que um aparelhómetro enganchado no bolso da bata emite a plenos pulmões, ainda que roufenhos: Milho verde milho verde, ai à sombra do milho verde namorei uma cachopa.

A senhora tem o ar empanado de não lhe sobrarem ilusões numa única das células e as rugas, só no queixo – cinquenta anos incrustados em setenta e oito de aparência -, desenham-lhe o mapa do metro de Londres. Porém, o pé não se alheia do ritmo, enquanto a pá, focada, atrai as beatas, os recibos, bilhetes, os invólucros dos sugos, e os lábios mimam a música, dando um semblante de vida à sua irrelevância. Muda a cantiga (brega, piorou muito), que ela continua a partilhar com os passageiros: é o seu ponto de equilíbrio.

No átrio da estação, ao balcão do Café Delta, aquele jovem mulato continua a servir bicas. Com o cabelo rapado até à linha da trepanação, de onde desponta um tufo com pretensões a ser onda, num stile japónico mas em carapinha. Ressalta o seu olhar vivo na face macilenta, acostumada a ver repetidos os gestos de uma existência tartamuda. Sem dúvida que o penteado é o que lhe dá ainda um arremedo de identidade, a ilusão de que tem uma ponte para a vida, apesar da merda que ganha, das varizes que lhe ameaçam as pernas.
O nosso ponto de equilíbrio é tão frágil e imaterial. Não vos digo o meu.

Escrevo: «Que dia penumbroso/ e perlado de verde, compreendo/ porque hibernam as abelhas/ enquanto os pés se me enregelam e aqui e ali// reluz o dourado dos olmos. / Belíssima a paisagem,/ paira como um solo de John Surman,/ ou o porfiar da cegonha que perfura/ o mais espesso da melancolia. //Começa a ser tarde/ na minha vida/ e pela primeira vez intuo quem sou:/ o macio intervalo/ entre os pinheiros.»
Seriam olmos, interrogo-me? A impropriedade com que designo a natureza desgosta-me, mas que fazer se sou um rapaz da cidade?

O Camus, nos seus Cahiers refere a nossa inabilidade para designarmos os viventes e os processos na natureza e define-a como um dos cancros do século (XX). Piorou, entretanto.
E recordo um verso do poeta e cineasta António Reis que nunca mais esqueci: “Soletrar olmo como quem ouve um trovão distante”. Que invejável exactidão.

As sílabas do cansaço são mais extensas e friáveis. É o que se sente quando a insónia nos visita, no comboio.
As palavras, que também necessitam de dormir, desprendem-se do corpo, autonomizam-se e impedem que nos acostemos em quietação.

Quem viu os olhos de um insone percebe-os fugitivos e luminescentes como os comboios que cruzam a noite. Por muito que isso torture a vítima, os seus olhos nessa altura não são enjoadamente neutros.
Fui demasiadas vezes atravessado por períodos de insónia e tempos houve em que andava muito de comboio, de Lisboa para o Porto, ou para Coimbra, em viagens semanais a que obrigavam o trabalho.

Pelo menos metade das viagens fazia-as de noite e gastava-as lendo e escrevendo. Escrevia para evitar ser cavalgado pela insónia, imprimindo eu as pausas, os ritmos e os temas às palavras para não ter de enfrentar o nó corredio das frases ininterruptas. E enchia os cadernos de anotações variadas, de ideias volantes e anotações à leitura, de esboços de contos, poemas ou artigos, de crónicas e registos de coisas que ouvia no comboio, etc. Durou três anos esse meu período de viagens consecutivas de comboio.

A esses cadernos julgava-os ter perdido quando me mudei para Moçambique. Afinal deixara-os em casa de um familiar que mos devolveu dez anos depois de me ter tornado emigrante. Guardados numa caixa, dezassete cadernos cartonados de capa preta de linho, que acabaram por se revelar um viveiro.
Os argumentos da maior parte dos meus contos, desde então, nasceram dessas anotações apressadas e até muitos diálogos neles limitei-me a deslocá-los e transcrevê-los, correspondendo a registos de conversas avulsas ouvidas na viagem.

Como agora vivo noutro território desloquei o lugar da acção nalguns deles, como em Cabriolices das catatuas ou em O Triunfo do Amor, cujos enredos no essencial foram-me dados nesses trajectos.

A Arca (publicado na revista Caliban) nasceu de uma converseta anotada entre um pai e um filho, e ocorrida no troço entre o Entroncamento e Santarém, segundo a anotação apensa ao texto. A criança, de uns seis anos, começou por perguntar ao pai o significado da palavra «lotado», para depois passar à dúvida excruciante:

Pai, o Céu nunca fica lotado?

Esse breve diálogo anotado em dez linhas, impeliu-me ao conto quinze anos depois e escrito de jacto.

Este vaivém dos comboios leva-me a um dos títulos que vou apresentar agora ao editor a quem proporei reeditar todos os contos em dois volumes: Comboios Astrologicamente Vigiados.

Rio-me a bom rir quando ouço a avó perguntar às duas garotas gémeas que foram aos lavabos: Então, as meninas fizeram xixi? Sim, responderam as miúdas. E puxaram as “iáguas”, pergunta ansiosa a avó.
Rio-me por dentro, a pensar na Francisca do Oliveira, onde se ouve aquela bela frase, “a ialma é um vício!”, e a lembrar-me que depois um “chato” numa crítica quis explicar que “a fórmula” não passava de um efeito inane de estilo, tendo invertido a frase, para demonstrar a sua insubstancia: “um vício é uma ialma!”.
E não é que todos tinham razão, até esta avó que nunca confundiria iáguas com águias!? E como explicar esta diferença às duas belas ucranianas que viajam no banco ao lado?

Devia sair com elas agora, em Aveiro, para, pelo menos, me banquetear com um dos meus pratos: ensopado de enguias. Despeço-me de tudo.

13 Dez 2018

Sujata Bhatt

[dropcap]S[/dropcap]ujata Bhatt (1956) é uma poeta indiana que descobri em Nova Deli. Atarantado, esbracejando no escuro com o meu parco inglês, fossei uma tarde nas estantes das livrarias e, sem uma referência confiável de antemão, confiei no faro e apostei em quatro poetas, de quem comprei vários livros: a Sujata, o Vikram Seth, o Aga Shahid Ali e a Eunice Moraes .

Tive sorte, são todos extraordinários, e, entretanto, Vikram e Sujata tornaram-se figuras cimeiras da literatura internacional. A Sujata é aquela a que mais regresso e mais vontade me dá de “transcriar”, como diria o Herberto Helder.


UDAYLEE

Apenas papel e madeira são imunes
ao toque de uma mulher menstruada.
Então, eles construíram este quarto
para nós, ao lado do estábulo.
Aqui, estamos autorizadas a escrever
cartas, a ler, e este recolhimento dá azo
a que se cauterizem as nossas cicatrizes de cozinha.

À noite, não posso deixar as estrelas sozinhas.
E quando não consigo dormir, desato a marchar
ou sonho que marcho, neste quarto minúsculo,
de minha estreita rede para a estante
aboletada de jornais, empoeirados,
e de búzios castanhos brilhantes e uma concha,
que fazem de pisa-papéis.
Quando não consigo dormir, pego na concha
e encosto-a à orelha
só para ouvir a torrente do meu sangue,
o latejar de uma canção, o rufar
lento, dentro da minha cabeça, dos quadris.
Esta dor é o meu sangue a fluir contra,
apressando-se contra alguma coisa –
as ancas nodosas do meu sangue,
é assim que me lembro: punhados de algas rasgadas
levantavam-se com a espuma,
subiam. Em seguida, caindo, caindo na areia
abafavam os ovos de tartaruga recém-postos.

AS VOZES

Primeiro, o som de um animal
que tu nunca imaginaste.

Depois: o restolhar do insecto, o mutismo do peixe.

E então as vozes tornam-se berrantes.

A voz de um anjo falecido recentemente.
A voz de uma criança que recusa
terminantemente tornar-se um anjo com asas.

A voz dos tamarindos.
A voz da cor azul.
A voz da cor verde.
A voz dos vermes.
A voz das rosas brancas.
A voz das folhas arrancadas pelas cabras.
A voz da cobra da mina.
A voz da placenta.
A voz do couro cabeludo de uma caveira
cujo cabelo cai atrás do vidro
num museu.

Costumava pensar que eram
só uma voz.
Costumava esperar
pacientemente que uma voz regressasse
e começasse o seu ditado.

Estava enganada.

Não consigo acabar de contá-las desde agora.
Não consigo deixar
de escrever tudo o que tem para dizer.

A voz do fantasma que deseja
morrer de novo, mas desta vez
num quarto brilhante com flores fragrantes
e diferentes parentes.
A voz de um lago congelado.
A voz do nevoeiro.
A voz do ar enquanto neva.
A voz da rapariga
que continua a ver unicórnios
e fala com os anjos que conhece pelos nomes.
A voz da seiva dos pinheiros.

E então as vozes tornam-se berrantes.

Às vezes ouço-as
Rindo da minha confusão.

E cada uma das vozes insiste
E cada uma das vozes sabe
que isto é a verdade mesmo.

E cada voz diz: segue-me
segue-me e eu levo-te …

CIÚMES

Vou para a cama e então aquele homem
senta-se no quarto ao lado e continua
rindo, dos seus próprios escritos.
E então eu bato na porta
e digo, ‘agora Jim,
pára de escrever ou pára de rir!
Nora Joyce

Uma mulher come o seu coração exposto
e a janela de perto de sua cama é muito pequena
e não vai fechar
correctamente — o seu coração tem um gosto
doce, muito, é um muito agradável despiste para a amargura –
mas a lua quer lá saber
de qualquer maneira a lua parou
há muito de ajudá-la.

A ópera acabou
e uma multidão de passos lépidos,
tantos saltos altos, tamborila
rente à sua janela.

Não há estrelas esta noite.
Somente nuvens que se movem
muito rapidamente para a porem tonta.

Ela vai fechar os olhos
mas não vai dormir
vai continuar a comer o seu coração
exposto a noite toda –

e de manhã há-de pensar numa maneira
de encaixar a janela.

O ESCRITOR

A melhor história, é claro,
é aquela que não podes escrever,
a que não vais escrever.
Eis algo que só pode viver
no teu coração,
não no papel.

O papel é seco, liso.
Onde está a terra
para as raízes, e como faço para levantar aí
árvores inteiras, a imensidão da floresta
chegada do coração do espírito –
transumância no papel,
sem perturbar as aves?

E o que dizer da montanha
em que esta floresta cresce?
Das cataratas
tecendo rios,
rios com multidões de árvores
acotovelando cada uma a do seu lado
para lançar um relance
ao peixe.

Abaixo do peixe
flutuam nuvens.
Aqui, o céu ondula,
encrespa no rio os trovões.
Como se movem as coisas no papel?

Agora observa a maneira
como os tigres andam
e rasgam o papel.

SHÉRDI*

E deste modo aprendi
a comer cana-de-açúcar em Sanosra:
rasga-se com os dentes
a espessa bainha da folha
depois, às dentadas, arranco as tiras
do branco coração fibroso
— e raspo, chupo intensamente com os dentes,
aspiro até me aflorar na língua o caldo.

Manhãs de Janeiro,
o agricultor corta a tenra cana verde
e vem depositá-la à nossa porta.
Às tardes, logo que vemos que os anciãos cochilam,
esgueiramo-nos com as longas e leves varas.
O sol aquece-nos, os cães bocejam,
os nossos dentes crescem vigorosos
e deixam os nossos queixos dormentes,
por tantas horas a sugar o russ, o caldo
que gruda na mão.

Por isso esta noite
quando me dizes que use os meus dentes
para chupar com força, intensamente,
vem-me do teu cabelo o cheiro
a cana de açúcar
e imagino como gostarias de ser
shérdi shérdi ali nos campos
ali os longos talos se mexem
abrindo sendas à nossa frente.
*cana-de-açucar

OLHAR FIXO

E há aquele momento
em que a criança humana
fixa
a cria de macaco,
que olha para trás –
inocência partilhada
inocência no espaço
onde o jovem primata
não está em cativeiro.

Raia aí a pureza
orbita uma transparência
neste olhar fixo
que dura muito tempo…
olhos de água
olhos de céu
tem ainda tempo a alma de cair
porque o macaco
tem de aprender o medo –
e ao humano
cabe igualmente aprender o temor
e amenizar a arrogância.

Testemunhando tudo
agora
podem-se contar os cílios,
contem-se os caracóis
na relva,
enquanto se espera
que os olhos pisquem
ou para ver quem
primeiro desviará o olhar para longe.
Ainda o macaco não olha
o humano da mesma maneira
que olharia para as folhas
ou para os seus próprios irmãos.

E o humano fixa
o macaco adivinhando-o
um ser totalmente diferente de si mesmo.
E, contudo, é tanta a boa vontade
brilha uma tal curiosidade
nos seus semblantes.

Gostaria de escorregar para dentro
daquele olhar fixo, saber
o que a criança pensa
o que o macaquito ajuiza
naquele exato momento.

Esclareço que o garoto
está naquela idade
em que começa a usar o poder
das palavras
embora ainda sem a distância
dos alfabetos, de abstrações.
À menção de pão
ele pede
uma fatia, com manteiga e mel –
imediatamente.
Menciona-se o gato
e ele apressa-se a correr
para despertá-la.
Uma palavra
é a própria coisa.
A linguagem é simplesmente
uma música necessária
de repente conectada
ao batimento cardíaco da criança.

Enquanto o macaquito
cresce num âmbito diferente,
olha uma árvore, um arbusto,
a criança humana
e pensa …
Sabe-se lá o quê!?
O que continua a relampejar
é esse momento
de enlace:
as duas cabeças recém-formadas
equilibradas em tão frágeis pescoços
inclinando-se uma para a outro,
a cara do macaco
e a cara do garoto,
absorvendo cada uma a outra
com uma magnífica gentileza …

6 Dez 2018

Um acto solitário

[dropcap]A[/dropcap]terrei em Lisboa. Que amigos vou rever, que livros vou comprar – são sempre as questões que se impõem.

Abro a mala em casa de familiares e antes de qualquer outro movimento os meus olhos embatem na lombada da última edição do tomo que reúne toda a poesia do Herberto Helder. Imediatamente me estico na cama, num relance sobre os últimos livros do poeta os Poemas Canhotos e A Morte sem Mestre, que faltam no meu volume, efeito de ser emigrante há década e meia.

E relembro um texto que escrevi no Facebook em defesa do poeta:
«Várias vezes escrevi sobre o Herberto, nenhuma bem. Também não será desta que melhorarei a minha performance. Porque não basta ter vontade e parafrasear o que nos escapa, nem isso traz consolo à evidência duma inteligência lacunar.

Não admira que me espante o carácter peremptório do que leio.

Rebato um texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto Helder, saído no I e replicado no seu blogue, crónica de execução, eivada de um tom com que não posso estar mais em desacordo.

Não li ainda A Morte sem Mestre e, apesar da curiosidade, não sofro de ansiedade. Acho que quase todos os livros são dispensáveis e creio, com Robert Lowell, que foi um dia feliz para Satã quando Mallarmé declarou que o mundo cabia num livro. Isto deixa-me mais à vontade para dizer que acho impossível que Herberto tenha escrito um “mau” livro, um livro “desprovido de magia”.

Há é vários tipos e graus de magia.

Um homem envelhece e tem os gestos represos de quem é ultrapassado aos vinte metros por qualquer pintainho zarolho, percebendo finalmente que na sua retorta alquímica fabricou tinta dourada mas não ouro. E di-lo, com toda a honestidade que acarreta o seu verbo magnificado por um uso onde nunca defraudou.

Agora, não é plausível que face à sua nova condição lhe exijam que repita o seu reportório ou que seja estanque à experiência de estar acossado pela morte. É um livro rude, direto? Sigamos a sugestão fonética que o remete para Le Marteau sans Maître, de René Char, para entender: desta vez, como um furibundo Nietzsche, o velho vate, resolveu ser intempestivo, fazer poesia à martelada.

Golpe contra golpe, jogando contra a noite a insónia, contra a anestesia da sageza a ferocidade da dor. A mim parece-me uma indagação radical, da base e do cimo, uma forma de neutralizar a atracção dos ímanes, e depois vida é isso mesmo: mudança, sob um capitoso desprendimento.

As três coisas que me entristecem no texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto:
– que ele confunda tão precipitadamente a opinião com o conhecimento – esquecido de que lhe estão ainda vedados os cinquenta anos que o separam do vate e que as modulações inesperadas que a vida inocula na escrita, lhe desenganarão todas as teses;
– depois, que, numa projecção algo heróica, exija ao livro que cumpra uma “via correcta” em vez de escutar no livro a sua respiração fanhosa, a materialidade com que é ali exposta uma particular vulnerabilidade;
– por fim, o que no Diogo tem sido infelizmente recorrente, que olhe para o mundo a partir da perspectiva de um entomologista – altaneiro, superior, investido pela missão de manter a piolheira sob vigilância e à mercê da lente com que foca o «asco».

Eis que o Herberto, coitado, sucumbiu a esta nova zona categorial – encontrou a sua “ascuidade”.
Custa-me engolir que, ainda que o livro fosse menor (não sei, não o li), falte ao Diogo a sensibilidade para perceber que o Herberto não merecerá, aos oitenta e picos, que um jovem lhe cuspa na fronha que ele já não passa de um eunuco, de um ouro convertido em lata.

Faltou talvez à sua leitura aquilo que, pelo que li sobre ele, é mato no livro: a humildade de reconhecer os limites, que não somos só urdidura, estilo, abstracção, distância, alquimia e acabamento, mas desequilíbrio, pathos, diarreia, carne viva, dor, inacabamento, e por isso palha demasiado humana.

Detecta-se no seu texto, para além duma falta de urbanidade, uma ingratidão profunda, mesquinha.
Não estará o livro à altura do estatuto do velho leão e do seu lugar na história da literatura? Talvez. Não li. Presumo que o Herberto se deixou de poses e depôs a máscara: é um ser falho e carecido de amor, como todos.

E di-lo: até a merda da poesia o trai, a ele que tanto traiu em seu nome.

Uma vez perguntaram ao Picasso o que faria se fosse metido na cadeia. Desenharia com a merda que fizesse, disse. Quem não tem cão caça com gato. O importante é o acto de caçar. Quando se fez isso toda a vida, capturar a presa ou não é irrelevante, o alvo é interior e não exterior. Daí que os arqueiros zen, nos seus exercícios, visassem alvos que se situavam a três metros de distância: o fito não era demonstrar a pontaria, mas tornar una a respiração e o acto.

O que faria Picasso ao pintar com a própria merda, é o que faz Herberto ao escrever com os recursos que lhe são próprios à lucidez consentânea ao seu actual estado. A merda só dá castanho, mas a expressão no traço não faltaria ao Picasso e isso é que seria preciso captar e não acusá-lo de uniformidade cromática… ou do aroma.

O Herberto foi sempre um dos nossos “homens dignos”. Isso merece decoro e nunca que o tomemos como objecto de repreensão e desdém. Nenhuma vaca é sagrada, mas a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur, acusando, imagine-se, o mar de entrar no Amazonas.

O irónico é que, inadvertidamente, Diogo serviu o último intento do velho cisne: sacudir, aos 83 anos, o manto da unanimidade.

O Herberto deve estar contentíssimo. E eu com ele.»

O crítico não tinha razão, o livro do Herberto é um magnífico acto solitário.

29 Nov 2018

Ars moriendi

[dropcap]U[/dropcap]m produtor americano, depois de visionar o material da primeira semana de rodagem, levou as mãos à cabeça, impotente, e disse ao realizador: “Nos primeiros cinco minutos dás-nos dezanove mortos. Não vejo o que possa acontecer mais no resto do filme!”

O número de armas que pululam nos filmes extenua o folego de qualquer maratonista etíope. Ninguém dissuade ninguém, atirando-lhe à mona a Suma Teológica do S. Tomás de Aquino, é de balázio para cima, e ficamos convencidos do que me dizia o Gilinho, amigo do meu prédio de infância: “só matam as balas que não querem enferrujar!”

Faço zapping e colecciono os mortos: uma doçaria excelsa, é um verdadeiro “mil-mortes” com uma barra de diabetes por cima.

Nem persuasão, nem perdão: ninguém ouve o Unchain my Heart, do Joe Cocker? Quando muito a morte adia-se pagando, sendo a vida outro modo de designar o juro – sempre a acumular.

O que afinal não difere do modo platónico de encarar o corpo como o túmulo da alma; o cinema devolveu-nos ao ponto de onde nunca saímos. Admira que o Sloterdijk nos esclareça que, para esta tradição, pensador que se preze é uma espécie de morto em férias? É bem-apanhado e próximo do que dizia o Godard quando adiantava que o cinema é o aparato que “filma a morte no trabalho”.

Uma morta em férias: a mulher de Michel Piccolli, no fantástico Dillinger Morreu, do Marco Ferreri, que exasperava os espectadores por ser todo em tempos reais. Era assim:

Glauco, um desenhador industrial, chega a casa e encontra a sua mulher já a dormir e uma refeição fria. Resolve confeccionar qualquer coisa e comer sozinho, vendo a televisão. Depois projecta vários filmes de férias e mima idiotamente alguns momentos. Por acaso, encontra na dispensa um revólver embrulhado numa velha reportagem sobre a morte do gansgster americano Dillinger. Pinta a arma de vermelho com bolinhas brancas. Depois da tinta secar sobe ao quarto, mete uma almofada sobre o rosto da mulher e dispara dois tiros. Sai, guia até ao porto e vê que num iate um marinheiro morto é lançado à água. Nada então até ao iate e pergunta quem morreu, respondem-lhe que o cozinheiro e ele oferece-se para ocupar o lugar.
Volto a fazer zapping. Para o cinema mais comercial, que encharca os canais do meu pacote televisivo, a vida é uma retrete abandonada, um epitáfio inacabado.

Conheço um livro brilhante de epitáfios dum poeta italiano, Giorgio Bassani, Epitafio, talvez na esteira do americano Edgar Lee Masters, mas preferia o livro do transalpino, que infelizmente extraviei. Há pouco tempo também escrevi um epitáfio. Reza assim (o verbo não podia ser mais justo):
“Meu querido, enquanto não me enviares os teus pulmões em encomenda registada eu não abro mão da tua laje no jazigo da família!”.

Deve-se a outro poeta, o checo Miroslav Holub, esta Breve reflexão sobre a morte: «Agitam-se alguns/ como se ainda não tivessem nascido./ Entretanto um dia/ Williams Burroughs, intimado por um estudante a dar/ opinião sobre uma/ eventual vida póstuma, replicou:/ – Mas quem lhe disse que você não está já morto?»
Holub foi um poeta e eminente imunologista checo, a quem a especialidade não resguardou da crua pergunta de Burroughs, feita pela própria morte em 1998.

Sugere o poema que estamos sempre desconectados, num estado de extenso sonambulismo, e pouco nos é dado fazer, para além de nos agitarmos demais ou de colocarmos perguntas desnecessárias, ie., rebarbativas: póstumas. Talvez consigamos aceder momentaneamente à consciência que nos cede o poema, num breve interregno, ao flagrante de uma sintonia, mas estou certo de que Holub, ainda para mais com a sua especialidade, não declinou num assédio de consciência: terá sido mais à má fila, por um efeito adverso, que a morte o visitou.

Há várias formas de partir da vida e de chegar ao último apeadeiro. Vitorino Nemésio no hospital, conta-se, tinha um medo que se pelava.

Para os indianos a morte é apenas o lambril de um palácio cuja planta está por desenhar.

Desconsidero-me um arquitecto a tal altura. E seria preciso a energia de imaginar a experiência da morte multiplicada por éne, labirinto em que me vejo mais escamado do que a barracuda na banca de Neptuno.
Contento-me com uma morte que o poeta moçambicano Heliodoro Baptista definiu bem, deste modo: “Antes da merda obnóxia me exaurir de todo”.

Todavia, reconheço-o, surpreendem-se várias faces para a morte, como esta que achei nos meus diários:
«O livro olhava para mim, da estante. Bebi o café e comi a torrada, repimpado na cama, mas o livro não desarmava. Fitava-me, de esguelha (ou de lombada), na estante. Depois da última golada de café decidi-me, fui buscá-lo. Uma antologia (em espanhol) alentada do poeta polaco Tadeus Rózewicz, nascido em 1921 e uma das vozes mais autênticas da “anti-poesia” universal. Como o chileno Nicanor Parra, ou, das Balcãs, Vasko Popa.

Abro o livro ao calha e sai-me isto:

CORREÇÃO/ A morte não corrigirá/ nem uma linha de um verso/ não é uma correctora/ não é uma benevolente/ redactora// uma má metáfora é imortal//o mau poeta que morreu/ é um mau poeta morto// o aborrecido trás a morte aborrece/ o estúpido vomita cretinices/ desde a própria tumba.
Estupidificado na própria cama, abala-me o susto. Uma má metáfora é imortal. De quantas já fui responsável, de quantos milhares? Imortal? Como os vírus, afinal?

Há uma ecologia para o verbo a que de facto não ligamos. Devíamos ser mais parcos, posto que na verdade não ressuscitaremos para corrigir qualquer coisinha, enquanto o ranço das más metáforas é imortal.
Alguém tem por aí um aparador de relva que me empreste?»

Aparador não tenho, mas tenho à mão este verso do Heliodoro: “Já alguém deu de comer ao vento?”. Refrigeração.

22 Nov 2018

Carta ao artista Jeff Koons

Meu caro amigo,

[dropcap]o[/dropcap] filósofo polaco Laszek Kolakowski inicia assim o seu livro Horreur Méthaphysique: “um filósofo moderno que nunca se sentiu um charlatão demonstra uma tal ligeireza intelectual que a sua obra não merece a pena ser lida”. Como isto se aplica a um poeta pós-moderno! É o meu caso. Aquele que nunca se sentiu um charlatão é vítima de insuficiência ou de cinismo.

Quem não me parece ter dúvidas é o amigo Jeff Koons, mas já lá iremos. Escreveu John Cage que imaginava facilmente um mundo sem arte. Aqui para nós, a coisa sempre me soou a bazófia: que lhe faltou para abandonar a arte e tornar-se mecânico de automóveis? Já o Claes Oldenburg – suponho que conheceu – dizia preferir uma loja de ferragens a um museu – e é mais entendível, aceitando a afirmação como sucedânea do que confidenciou Duchamp sobre a impossibilidade da arte superar a perfeição formal da hélice de avião.

Todavia, e suponho que aqui não concordará comigo, o que se produziu a partir de tais configurações havia-se mostrado até hoje manifestamente chocho e roçava a irrelevância. A estetização do quotidiano condicionou a criatividade, conformou-a, à medida que o gosto médio se mostrou impositivo e a arte volveu “o espelho” que o Jeff se propôs refinar.

Desta vez, chapeau, o Jeff Koons elevou a irrelevância a um supremo acto de tauromaquia de salon. Parabéns. É a terceira vez que uma peça sua, da série Banality, peças feitas a partir de fotos de publicidade, é acusada de plágio. A justiça deu razão a Franck Davidovici, o autor do anúncio publicitário da marca de roupa francesa Naf-naf.

Cito o Diário de Notícias, para não me enganar: “o anúncio de Davidovici, intitulado Fait D’Hiver, mostrava um leitão, que era a mascote da marca Naf Naf, com um barril ao pescoço, muito parecido àquele que os cães São Bernardo usam nas suas ações de socorro na neve, ajudando uma jovem morena. A obra de Jeff Koons não é uma fotografia a preto e branco. É uma escultura colorida que também se chama Fait D’Hiver e que mostra uma mulher deitada na neve e a ser ajudada por um porco com um barril e uma coroa de flores ao pescoço. Ao lado estão dois pinguins”.

O fulcro, a verdadeira essência da arte, mostrou-a o Jeff agora: a sua escultura foi leiloada em 2007 pela Christie’s de Nova Iorque por mais de quatro milhões de dólares e agora, o tribunal condenou-os, a si e ao Centro Pompidou, a pagar a Davidovici, em conjunto, a quantia de 148 mil euros. Realce-se que o juiz não ordenou que a obra de arte fosse confiscada, outro dos pedidos do publicitário, e que agora, dada a publicidade de que a sua peça beneficiou, ela vai ter um reforço de valor.

Esta desproporção terá sido devidamente calculada pelo Koons, que fez aquela série para ser acusado de plágio. As esculturas eram o simulacro para favorecer o que importa: a operação financeira.
Só lhe falta, meu amigo, realizar o acto de síntese, a sua obra magna – aquele haiku do samurai no acto da harakiri: reproduzir num friso escultural um leilão da Christie’s.

Não sou invejoso, escrevo-lhe, saudando-lhe a inteligência, para lhe propor ser plagiado por si. É nesta intenção que aqui divulgo a minha fotografia O Banho da Musa Intermitente.
A foto tecnicamente é mazita, mas o que importa é o teor, o teor, O TEOR (- peço-lhe, imagine esta frase dita pelo Brando).

Saberá, meu caro Jeff, as culturas dividem-se entre as que querem conversar com os mortos e aquelas que querem conversar com os vivos. Uns querem aplainar o mundo, os outros aceitam as suas rugosidades. Eu, e imagino que o meu amigo também, bandeio para o lado dos que aceitam as rugosidades e entendo que o plágio possa ser apenas mais uma dobra da arte, quando o fito é outro. Nisto estou por si, por nós.
Estou certo que o nosso trato lhe convém – encontramo-nos depois nas barras do tribunal. Verá que exporei o meu dorso a uma das suas bandarilhas.

Não pense que só me move o interesse e por isso conto-lhe uma história. Passa-se em Nampula. Daniel conseguiu penhorar todos os seus mortos. Com uma pistola na cabeça do penhorista, que frequentava o mesmo culto que o seu, da igreja Zione. “Tanta cerimónia aos espíritos, tanta saudações aos antepassados”, censurava, Daniel, puxando o cão da pistola, “e agora não os aceita como penhor, para si valem menos que uma torradeira!”

Só não o liquidou ali porque o penhorista, na aflição, antecipou o equivalente a quatro gerações de antepassados. Embora isso não o tivesse livrado da coronhada.

Vê, meu caro Jeff Koons, andamos todos ao mesmo.

Antes pensava, coitada da arte que é apenas combinatória, pois acosta rapidamente ao reino das quantidades, quando a vulcanologia e a formação dos vulcões nos ensinam que há estados que nascem por dentro, com mínima contribuição do exterior – e com um furor que pelo contrário vai, ele sim, mudar a paisagem exterior

Contudo, agora que estou doente, começo a pensar com os tomates, com o coração e os pulmões. Não enxergo modo de pensar que não seja um inquilino do meu corpo (ainda que admita um por outro clandestino). E comecei a entender Parménides, para quem ser e pensar eram o mesmo, pois “raciocino” primeiro com a natural sintaxe do meu corpo o que depois as palavras traduzirão; daí que alinhe com Michel Barat quando ele aventa que a boa nova dos Evangelhos é anunciar não a imortalidade da alma, mas antes a ressurreição do corpo. O que aqui para nós, convém admitir: fica cara.

O seu gesto esclareceu-me: há que aprender a arte dos toreros de salon. São esses quem,
no fim, mais lucra.

Impaciente pelo seu plágio, sem cerimónias, o seu
António Cabrita

15 Nov 2018

Dos jornais

[dropcap]T[/dropcap]omé não planeou enfiar-se no chapa e raspar-se com a viatura quando a viu estacionar à frente da barraca Trinitá e topou o motorista a esgueirar-se – torcido pelo gotejar de uma mija – para as traseiras. O apagão que logo a seguir, com artes de cleptómano, fez desaparecer a cidade é que lhe ondulou na cabeça e aí limitou-se a obedecer ao impulso.

Entrou na cabina, rodou a chave na ignição. A carrinha deslizou suavemente por entre os volumes enegrecidos (experimentou os óculos Ray-Ban que se encontravam no tablier), e só no fim da rua acelerou. Estava no papo.

Não havia mais que quatro ou cinco passageiros mergulhados no breu, mansas criaturas amodorradas, e ninguém dera pela troca do motorista. Deixou-se seguir sem acender as luzes interiores, sem o tinir duma sílaba – gado bom de ordenhar.

Era estranha a música que o leitor de dvds emitia, uma toada electrónica que parecia velha como o mundo. Ouvia-a e vinha-lhe à cabeça um refrão: há quantos anos deixei de usar ganga? Vacilava, se achava mais bizarro o gosto musical daquele motorista se o modo como as frases lhe despontavam na mente, cometas chegados de nenhures para um destino inadivinhável. Há quantos anos deixara de usar ganga? Deixou a música fluir, a ver onde aquilo ia.

Conhecia a rota como a palma da mão e levou a viatura sem custo até ao seu término. Aí encheu o carro de people, botões que se acotovelavam na gana de aninharem em casa. Aproveitou para descobrir que música era aquela. Neu! Hallogallo. Quase gala-gala, mas não conhecia. Voltou a pisar o play. Algas com ferrugem num mar electrónico – como vira uma vez na Costa do Sol. Já apinhado o carro, deu conta que aquele chapa andava sem cobrador – melhor, cobrou ele logo à cabeça.

Era vinte e duas horas em ponto e o apagão alastrara a sua tinta de polvo por toda a cidade.

Ladeava o muro da lixeira do Zimpeto quando sacou da pistola com silenciador que havia comprado ao china e, sem se virar, atirou ao acaso por detrás do pescoço, visando duas vezes à esquerda e três à direita. O silenciador funcionava, não fazia mais ruído que um peido de formiga. O escuro, a surpresa, a sua rapidez – ajudaram.

O alarido só rebentou quando numa guinada parou o chapa à beira do muro e, gozando o prato, acendeu as luzes virando-se para trás, de pistola em riste. Os passageiros, no calado de um navio de muitos quilates, miravam as vítimas de cabeça pendida. Atingira um olho, um coração, uma testa, um cotovelo que guinchava e um pescoço gorgolejante. Uma mulher gritou, pela última vez na sua vida. Remédio santo para os demais.

Disse-lhes:
– Bradas, passem tudo o que têm nos bolsos.

Depositaram tudo no lugar do morto. Moedas, notas, telemóveis, porta-chaves. Até camisinhas. Encheu os bolsos. Depois fechou as luzes do chapa e articulou, pausadamente:
– Zuca lá para fora mas easy, relax, vamos pôr os mortos onde devem estar…

Aos ouvidos dos seus acagaçados passageiros a sua voz soava metálica, não se apercebia. Desceram do chapa retardando o passo, mais enfiados que o esterco no rabo do cabrito.

Veio-lhe ao nariz a certeza de que um gordo se borrara. Depois do gordo desceu um madala com umas calças de ganga. Há quantos anos deixara de usar ganga? Desligou a música. Alinhou-os contra o muro. Aproveitando-lhes o estupor, na rapidez que lhe dera o treino de comandos, mudou o carregador da arma. Contou-os, eram treze. Abateu o gordo:
– Crazy, não gosto do treze e o camone fedia…

Uma mulher soluçou. Baixinho. Grossas bátegas de calafrio entrechocavam-se como seixos na testa dos homens. Ao redor, os grilos faziam de segundos violinos. Vivalma. Noite de trevas, muito ao longe acenava o farol dum carro, mais solitário que o lenço de mulher esquecido. O gordo gemia. Um balázio na cabeça serenou-o. Tomé suspirou, entediado e observou:

– Black é assim mesmo, vive da bacela do medo. Vamos ao que interessa. Quatro a quatro, peguem nos corpos e atirem-nos por cima do muro. Sempre que falharem abato um dos quatro…

Os homens superam-se. Os cadáveres rebolavam sobre si mesmo, impulsionados à justa. O quarto corpo elevou-se um pouco mais, somou uma reviravolta ao trajecto e pairou no ar antes do ombro esquerdo ir embater no topo do muro fazendo-o girar para o outro lado. Suspiros. Não ficaria mal aqui a ratonice dum corvo, se um corvo fosse capaz de se interrogar, Há quantos anos deixei eu de usar ganga. Porém, Tomé congelara a música dos alemães Neu!

Ao baque do último corpo no outro lado do muro, Tomé gabou:
– Somos melhores que os mambas… os moçambicanos só precisam de uma motivação… – e atirou para o ar – Alguém guia?

Um rapaz novo, receoso, levantou a mão. Tomé – deu-lhe um súbito cansaço – deixou cair a arma, olhou para ele e sugeriu, atencioso:
– Leva-os daqui… – após o que sorriu, antegozando a ideia – Para os jornais digam que foi um comando da Renamo, e largou uma gargalhada.

Num ápice, desapareceram. Foram no encalço de um velho Mercedes que passou, tossicando.

Tudo correra pelo melhor. O apagão, a hora, a pouca afluência de carros, não ter havido um passageiro que se julgasse com estofo de herói… até a piada final lhe saíra a primor. Além disso, Tomé que, como o seu xará bíblico, gostava de ver para crer, era obrigado a reconhecer que os chineses, afinal, não têm à venda só a fancaria das lojas de trezentos, tinham do bom.

Encaminhou-se para casa, ali perto. A mulher esperava-o. No dia seguinte podia comprar-lhe um micro-ondas, tão prático para durante a noite se aquecer o biberão do bebé. Os óculos Ray-Ban ficavam-lhe a matar.

Glossário: madala, cinquentão; bacela, brinde; mambas, equipa moçambicana de futebol

8 Nov 2018

As varreduras

[dropcap]V[/dropcap]arrem e varrem – ad eternum – e nesse gesto dactilografam as manhãs. Nenhum povo varre tanto desde O Outono do Patriarca, de Garcia Marquéz, como o povo moçambicano.

Pianíssimo num repertório monocórdico, interminável. Ruge-ruge em surdina, como uma nuvem de mosquitos enredada nas micaias.

É incalculável o apego colocado na mão que abraçaa cintura da vassoura e lhe comanda a dança, o desenho das parábolas ou de outras figuras geométricas na varredura – embora nem sempre se conjugue o tanto que foi varridocom o que haveria a varrer.

Ainda a alba se espreguiçae assoma aquele arrumo ou raspagemfugida à insonorização da noite; furtiva, antes de ser um mantoe do som das cerdas -nas placas de cimento,à diante dos portões,das portas, dos túneis, dos degraus,em redor da caldeira das figueiras-da-índia -,do seu raspar, se elevar acima do passodos guardas, cobrindo a cidadede uma redoma sem nome.

Varrem, varrem, varrem – escavam uma fonte? Num frenesim que fosforesce na mais inexplicável mansidão.

Terá sido a noite a levedurade uma culpa que anseiam agora apagar,extinguir, sem deixar rasto -amortalhada no ar?

Maputo não desperta, Maputo varre-se para debaixo de um tapete inexistente até à madrugada seguinte quando os guardas, unânimes no hipnotismo da sua insónia, repegam na vassoura.

Quatro horas depois, no bulício, já a urbe se enovela em babugem e lixo e voltou aos ritmos do desconcerto e à intimorata prioridade aos chapas, enquanto se ouvem ao longe as goteiras do impasse e fungos nascem à sombra dos ”works in regress” da política.

Mas volta a chegar a noite; cansados de frango, de xima, da matapa, de esmolas, do calor brutal dentro dos chapas, do uísque martelado, vem a noite sem aplausos, envolta na dor que se sente pelo demente que se arma em chefe. E a quietude impõe-se como baforadas de cego, arcando os desejos de um milagre impossível.

O vento encostado ao escuro tubula, sonda a ferrugem dos fusos horários, ou cai a chuva num alarde de praga.

Raramente, contudo, mesmo em corda, a chuva ultrapassa o dealbar da alba, e aí, parecendo nascer directamente das axilas de todos os anjos caídos,recomeça o ruge-rugedas vassouras, alastram-se as cerdase o seu vaivém, fazendo-se uno, espesso,contínuo,  como se a madrugadanão passasse do sonho intempestivo de milhões de limpa-chaminés.

Embora o como eles varrem, o que varrem, o quanto varrem –  buscam afanosamente o bíblico buraco da agulha? – raramente se ajuste ao que haveria de ser varrido.

Nenhum povo varre tanto desde O Outono do Patriarca, de Garcia Marquéz, como o povo moçambicano. Julgava eu, até este domingo vinte e oito ter visto a varredura que correu no Brasil.

Vão agora ser varridas, de lés a lés, as instituições do estado brasileiro. Tudo o que cheirar a lula – canetas, contratos, funcionários, directores, subsídios e expedientes de coitadismos -, vai ser varrido e substituído por chocos, mais redondos e de tinta preta como as falanges direitistas.

Vai ser varrida a Amazónia, para dar lugar às manadas de bois.

Vai ser varrida a preguiça dos indígenas e quilombolas, depois os próprios índios; as onças, as anacondas e piranhas serão esquartejadas e amontoadas no bojo de grandes betoneiras eléctricas para o fabrico das rações para os bois.

Os peixes-boi, tão ternos, irão ser varridos para as piscinas das esposas dos grandes diplomatas dos países latino-americanos “sem viés ideológico”, homens imensamente ocupados em rápidas de xadrez e leituras do Levítico.

Os botos da Amazónia (os seus golfinhos) irão ser varridos para dentro dos selos comemorativos do complexo de campos de golfe que o amigo Trump irá fazer depois de resgatar da selvática floresta os arredores de Manaus.

Vão ser varridos os homossexuais, que irão conhecer as provações que Job não teve.

Vão agora ser varridas, de lés a lés, as instituições do estado brasileiro. Tudo o que cheirar a lula – canetas, contratos, funcionários, directores, subsídios e expedientes de coitadismos -, vai ser varrido e substituído por chocos, mais redondos e de tinta preta como as falanges direitistas

Vão ser varridos os morros onde se acumulam as favelas, ou melhor terraplanados, e a nuvem de coca que se adensar sobre os escombros será aproveitada para melhorar os records de todas as modalidades desportivas, catapultando o Brasil para a elite do desporto.

Vão ser varridos para o Atlântico todos os remédios que não sejam placebo, porque na terra do Corcovado homens não têm fracalhadas.

Vão ser varridas todas as ex-criaturas humanas que não cerrem as pálpebras, devotamente, para rezar o Padre Nosso com o seu presidente.

Fora com os depravados, Chico Buarque, Caetano, Gil, e Jó Soares, varridos para Cuba.

Varridas serão as pistolas de plástico das crianças e substituídas por verdadeiras, com balas de borracha até aos dezasseis anos e, após, de aço; para usarem em legítima defesa.

Varridas também as cotas raciais na universidade, até porque os negros serão convertidos em varredores – os melhores do mundo.

Teses universitárias que se debrucem sobre Drummond ou Villa-Lobos serão varridas, doravante só interessa o conhecimento aplicado: como transformar o bafo de onça em sabonete ou introduzir o sincronismo das bailarinas do Bolshoi em relógios de quartzo.

Varrida a educação sexual das escolas, substituída pelas prenhezes prematuras e as ladainhas do Círio de Nazaré!

Bom, nem tudo será mau nesta varredura:  o candidato eleito prometeu ainda que vai procurar “relações com países que possam agregar valor económico e tecnológico aos produtos brasileiros” e isto pode ser um “negoçião” para Moçambique, se quiser exportar milhares de cerdas – que a oportunidade não se malogre.

2 Nov 2018

Braco, a alegria do espargo

[dropcap]D[/dropcap]obra quase um século sobre o que o poeta T. S. Eliot escreveu «Onde está a sabedoria,/ que se perdeu com o conhecimento?/ Onde está o conhecimento/ que se perdeu com a informação?»

Vivemos sob a orbe de uma sociedade da informação cujos fluxos são disparados, com consentimento ou não, e quantas vezes basta conectarmo-nos à Internet para colher os frutos de um maravilhoso pomar de dados, embora tema que estejamos mais isolados e intolerantes.

E talvez o mais vital não se situe na comunicação, mas no conhecimento. Que é? Temos demasiada pressa para o identificarmos enquanto nos lambuzamos nos novos hábitos de recolectores da informação. Radicará nesta falsa aurora, como um remix de fragmentos chegados de fora de nós, a facilidade para nos julgarmos com opinião sobre tudo, presumindo que agora a esfera pública está confinada às irrelevâncias que nos permitimos em privado? Morreu a esfera pública, ou emudeceu, como a crítica.

Entretanto, enquanto o velório prossegue, faço meu um dito de Ezra Pound: «Quero dizer que há ideias, factos, noções, que podeis procurar numa lista telefónica ou numa biblioteca e outras que estão dentro de nós, como o estômago ou o fígado.» A comunicação é tudo que está exterior a nós, na horizontal, já o conhecimento atinge-nos como uma reminiscência, abrindo horizontes na vertical como se raiasse de dentro. O que só acontece pela duração e não na instantaneidade da comunicação porque o tempo é suado e denso e não superficial e rápido, como o mercado ou as redes sociais afirmam.

E isto ocorre no rasto da mudança de paradigma na nossa relação com a palavra. A tendência niilista que se manifesta nesta reviravolta política para uma direita populista advém entre outros factores de uma desvalorização da palavra e de um descarrilamento na trivialização.

Aparentemente estamos mais conectados, contudo ao ser-nos repetido que tudo se mercantiliza descremos do valor da palavra e caímos no cinismo.

É sintomático que o actual guru de maior sucesso na Europa seja Braco, o Mudo. Braco o Contemplador, que cura as pessoas olhando-as por alguns minutos. Centenas afirmam que os seus padecimentos desapareceram por completo após terem fitado os seus olhos pacíficos. Parece que também funciona em animais, que provoca látegos de ternura nos frangos congelados e orgasmos nas ervilhas. O croata de 46 anos é popularíssimo na Europa e já é um fenómeno crescente nos EUA.

Ele não fala em público nem dá entrevistas; só se ouve a sua voz “amorosa” através de seu DVD. Consta que perderia os seus poderes especiais se falasse.

Um jornal americano chamou-lhe «o guru de uma nova era sem nada para dizer». Explicitamente, o seu silêncio é uma inscrição oracular onde cada um vê, encontra, o que julga precisar. Ressalta daí que já não se busca nem se acredita numa experiência partilhável pela mediação da palavra, que seja comum, pública: estar a sós com a mudez do olhar de guru basta.

Hoje, morta a esfera pública, as convicções e crenças pessoais repudiam os factos. Um dia, em 2007, na universidade em Maputo, cheguei à aula e os meus planos foram furados por uma reportagem televisiva que urgia, diziam os alunos, ser debatida. Nos subúrbios, uma rapariga parira um bule e duas chávenas. Metade da turma rejeitava a hipótese, alguns hesitavam e outros defendiam a sua possibilidade. Foi inútil explicar-lhes as leis da biologia e o que fosse o ADN.

Contra convicções não há factos: faça-se silêncio sobre séculos de ciência. O olhar de Braco desautoriza Einstein.

Igualmente, o inexplicável no fenómeno das fake news (que “industrializou” uma prática que se ocultava) é que face à sua motivação política tão descarada a sua implaubilidade concite afinal adesões tão maciças, sem que o crédulo interrogue os efeitos de se institucionalizar a mentira. O militante crê, afasta qualquer crivo de análise: basta-lhe o olhar bovino do candidato, daquele que prescindiu de debates, e tudo devém credível.

É absurdo que no fito de exprimirmos a insatisfação contra um sistema estabelecido aceitemos um conservador autoritário que usa processos desonestos e nem cumpre as regras do jogo, alheando-nos de que ele nos está a avisar que não tem valores e o seu programa viverá da vantagem, do oportunismo e da violência; para ele o passado não é uma inscrição na memória mas narrativa morta, que qualquer alusão revisionista desmancha, reverte e desclassifica.

As pessoas sérias da direita democrática não separam o trigo do joio? O ensaísta Bruno Carvalho, professor de Harvard, mete o dedo na ferida: «O facto de o eleitorado mais de direita optar por um radical, ao invés de outros candidatos da direita mais comprometidos com a democracia, indica uma necessidade urgente de autocrítica entre elites conservadoras e liberais».

A confirmar-se a eleição de Bolsonaro a hecatombe não é só para a esquerda, a direita democrática fica sem legitimidade ou recuo moral.

Reagia Bolsonaro às acusações sobre a Caixa 2: embora reconheça a ilegalidade do acto, no fundo é uma vítima da liberdade das pessoas que se organizam para divulgar mensagens em massa em seu benefício, sejam militantes ou empresários… pelo que é inocente. Há alguma coisa de que este homem se sinta responsável?

É uma resposta tão cínica e destituída do factor humano como a reacção de Trump à queda das Twin Towers: «A Trump Tower voltou a ser a mais alta!»

Por que é que se fica cego a estas evidências, achando que são apenas minudências de um orador desastrado, um mal menor? Porque na generalidade as pessoas vêm preferindo a trivialização da comunicação ao conhecimento, que exige outro comprometimento e a manutenção duma esfera pública: ou seja, de critérios fora de nós.

Há décadas que Bauman preveniu que a paulatina primazia que se dá à segurança sobre a liberdade pode resultar na paranoia que anseia por liquidar o exterior, o espaço público. Que São Braco, Deus dos espargos, nos acuda!

25 Out 2018

Um milhão resto zero

[dropcap]E[/dropcap]stou realmente divertido e explico-vos: foi dada ao camarada Trump uma oportunidade para se rir com a sua ignorância.

Lembram-se do famoso milhão que o pai lhe havia dado, um milhão conta redonda; afinal subtraído dos impostos? Sei de onde picou a lenda, foi do primeiro vigarista que aparece a Lemuel Pitkin, a cândida personagem de Nathanael West, no comboio para New York – da curta e delirante farsa Um Milhão Conta Redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, que Trump há-de ter lido a pensar que versava sobre casinos. Mr. Mape, penteava os cabelos no reflexo dos seus sapatos de janota e contou a Lemuel: «O meu pai deixou-me um milhão, conta redonda, e por isso não preciso de trabalhar». Claro que endrominava Lemuel para lhe esmifrar os parcos trinta dólares que ele tinha no bolso.

Todavia, devido ao vício com que Trump pinta as suas histórias, abana com um milhão conta redonda à esquerda e à direita, entre promessas, astúcias e gracejos. Agora, morreu pela boca. Há uns meses, partira os pratos com a senadora democrata Elizabeth Warren porque a loura criatura reivindicava uma origem índia. Trump dobrou o riso e chamou-lhe Pocahontas. O que acintosamente repetiu em várias ocasiões, como quem aponta A Louca da Casa. E num comício em Julho, a infabilidade do seu feeling levou-o ao temerário desafio:”Darei um milhão de dólares, conta redonda, à sua organização de caridade favorita, se ela fizer um exame e demonstrar que é indígena. Tenho a impressão de que ela dirá que não!”, sentenciou.

Tivesse o incauto como eu uma filha absolutamente sueca parida por uma mãe indiana e teria pressentido que a genética presta boas partidas. Foi o que lhe sucedeu. A Pocahontas provou a veracidade de sua origem indígena depois de submetida a um teste de DNA que apresenta “forte evidência” de que tem ancestrais nativos. Os resultados confirmam “a existência de um ancestral nativo americano puro”, informa o jornal The Boston Globe.

Vai arder o presidente com um milhão, conta redonda.

Estou realmente deprimido com o que se passa no Brasil e são dispensáveis as explicações.

A irracionalidade e a desinformação galopam para uma calamidade que representará um retrocesso civilizacional. Não se trata unicamente da derrota de um partido ou da repulsa contra o PT, a vitória de Bolsonaro institucionalizará a violência: os comportamentos irracionais que já instalaram o medo e o ódio no país multiplicar-se-ão num “estado de excepção” protegido pelo poder do voto. É presumível que se seguirá um clima de guerra civil e uma repressão geral em nome da segurança, e só tarde demais os ingénuos que queriam sobretudo castigar o PT ao votar contra Haddad descobrirão que há portas que não se devem abrir; de antemão as que permitem que a «besta negra» e o impensado penetrem no nosso condomínio.

Vejo duas motivações erróneas para tal descalabro.

A primeira prende-se a um aspecto que as democracias se alheiam de discutir e que só uma aposta intensiva no domínio da educação poderá eventualmente atenuar. O relativo desenvolvimento das democracias e o incremento dos media como “quarto poder” foi disfarçando até ao fim do século XX o que o poder das redes sociais destapou e tornou visível: é que não vivemos todos no mesmo tempo histórico.

Aquilo que para Walter Benjamin era um sinal de esperança: a saber, que a cada momento se colocaria a hipótese de que a face do presente surpreendesse porque afinal recuperava pontos de vista “derrotados” no passado e reemergidos ao arrepio de uma concepção linear e previsível da História, desencadeando uma lógica do reverso que transmitiria aos movimentos sociais uma maior complexidade e arejava a saturada polarização das narrativas oficiais; essas “anacronias” que segundo Benjamin injectariam na actualidade do presente um factor mais humano – posto que a perspectiva do passado deixa de ser um facto objectivo para passar a ser uma cunha da memória, menos técnica e mais emocional -, essas “anacronias” mostram que podem padecer igualmente de um lado negro.

O Brasil é uma sociedade clivada por diversos e inconciliáveis níveis de consciência da realidade e sem um desígnio transpessoal que apazigue as tensões no rasgado tecido da memória histórica. O que separa um votante de Bolsonaro do de um Haddad não é uma mera diferença de opiniões: vivem isolados por antagónicas percepções do seu tempo histórico.

O que se observa, por entretenimento, nos risíveis e delirantes grupos no FB que defendem a Terra Plana, toma no plano político perspectivas sombrias e traz à tona anacronismos perigosos para uma época de “relativismo”, de perda de universais e de pensamento débil. Quando não se reforça a educação é o que acontece.

A segunda motivação ao lado prende-se com a crédula fulanização com que se associa a corrupção ao PT. O PT ficou evidentemente refém na armadilha do polvo e julgou que só podia fazer passar algumas leis contra o atavismo dos costumes alimentando o monstro, em vez de ter intentado mudar o sistema. Porém, o problema da corrupção é mais endémico do que se julga e continuará com Bolsonaro; o seu governo, que há-de ser fortemente corporativo, só aumentará o problema.

Faz anos que Alain Badiou diagnosticou de que modo a corrupção se tornou a lei íntima das sociedades actuais, a sua fissura invisível, e que é para dissimular essa corrupção sistémica que o escândalo aponta aquilo ou aquele que, no fim de contas, não passam de bodes expiatórios. Numa sociedade que tem no lucro o único motor viável para fazer funcionar a sociedade, a corrupção é um seu efeito capilar.

O problema prende-se com a orfandade dos valores e é gravíssimo mas não nasce com o PT e julgo aliás que muitos votantes do Bolsonaro não serão contra a corrupção, sentiam-se apenas excluídos da rede.

O que tornará mais violento o despertar.

18 Out 2018

A educação sentimental

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro objecto que recordo é um avião de lata. O primeiro toque de que me lembro não é o de uma pele mas o da lata. Havia intrusa em casa, reclamada de mão em mão, armada de fraldas, pulmões, vagidos de aço e com regurgitos múltiplos. A minha irmã. Levei dias a lançar o avião de lata sobre o berço, num pretenso bombardeio. E não é que falhei, na mira e na aviação?

Aos cinco anos, apanhando a minha avó a urinar de porta aberta, eu, no corredor, fiz o pino para ver se lhe via o… O quê, espicaçou uma vez o Piruças. O ouriço, respondi-lhe pronto.

Aos seis anos tive o primeiro sonho erótico e percebi que me marimbava para o Édipo. Caminhava de mãos dadas com uma miúda ao longo de um socalco estreito, a meio de uma falésia ilimitada para cima e inacabável para baixo. O dia nascia, e cheirava a acetona. Andávamos aos espargos e sorríamos com a lâmina do caminho, no leve tremor dos afortunados.

Aos nove, à nonagésima oitava vez em que me masturbei, cismei que uma coisa tão boa só podia acontecer cem vezes na vida. Guardei as duas últimas para quando casasse. Aguentei-me três semanas, num desespero, até que me enfiei na casa de banho e meia hora depois ia na cento e quatro, enquanto a minha mãe perguntava, Caíste da pia?

Entrava-se na oficina por uma rampa. Aí, dois homens deitaram a primeira chapa de alumínio, com círculos perfeitos desenhados de alto a baixo; tendo-me depois um deles passado a tesoura para a mão. Eram para cima de 50 círculos, sem espinhas.

Tinha doze anos e tinha querido experimentar ser operário, numa serralharia.

Fiquei surpreendido pela facilidade com que a tesoura cortava o alumínio. E animei-me. Apesar do segundo círculo me ter parecido mais bicudo. Mas continuei a sorrir até ao sétimo círculo.

Ao almoço, o encarregado despediu-me com uma palmada nas costas, amarfanhando-me uma nota de vinte na mão. “É uma foda, mas talvez nunca venhas a ser operário, rapaz!”. E ofereceu-me um dos quadrados de alumínio que tão arduamente recortara. Aprendi aí a ambivalência da linguagem.

Os manos Ginga moravam ao lado dos meus tios-avós, na Azinhaga dos Besouros, na Pontinha. Três compinchas de Verão com uma pontinha de queques (os primeiros humanos que conheci atascados em polos e pulôveres) mas que não regateavam palmilhar o extenso vale de zínias e girassóis que nos separava da colina onde se empoleirava, clandestina, a Brandoa.

Uma tarde, nesse vale, a meio de um canavial descobrimos uma conduta de esgotos, relativamente seca e com tamanho suficiente para avançarmos agachados em fila indiana até misteriosos meandros. A conduta atravessava à Colina da Luz e desembocava num canal de drenagem, mesmo ao lado de uma boutique para senhora onde trabalhavam dois mimos de raparigas que inquietaram os nossos plácidos sonhos de Verão. Foi a conduta que me levou ao primeiro beijo.

Veio o 25 de Abril e os irmãos Ginga puseram-se ao fresco: o pai era da Pide.

Acordei tarde para os primeiros mortos, aos quinze anos. Já tinha visto amigos meus fecharem a cancela sobre o rosto e um deles, gémeo do falecido, cortou os pulsos. Nada me calhava, uma infância feliz, capciosa, sem fios de prumo.

Primeiro, uma avó, duma leucemia que apenas lhe carregou nos olhos a sombra chinesa que fora a sua vida. Depois o luto da namorada que me corneou.

Eu tinha-a acariciado a tarde inteira de sábado por cima dos collants. No domingo ela foi a uma festa com uma amiga onde um marmanjo a massajou por dentro.

Decidi vingar-me. Não fui um libertino, mas não me queixo.

Um dia engatou-me uma miúda no Estádio, ao Bairro Alto. Já estava aviadita mas, em casa, emborcou uma zurrapa de litro quase de um gole, empurrou-me para a cama e pediu bate-me. E eu lá fui fazendo muito pouco conforme o que podia. Na manhã seguinte foi franca: fora uma noite desenxabida pois, justificava-se, com o antigo namorado jogavam à roleta russa durante o coito. Retirei-me, desejando-lhe “boa sorte e bons danos!”.

E bom, mortifiquei de enfado uma dúzia de namoradas, quatro esposas, desiludi meia dúzia de amantes em encontros ocasionais e, no afã de me re-ligar aos libertinos, escrevi uma versão de Don Juan, um Don Juan cego que chegava às mil conquistas, até que em Sevilha o Papa fazia o primeiro milagre do seu pontifício e punha-o a ver. E ele perdia o dom, baratinado pela diferença que pela primeira vez descobria entre as mulheres.

Há vinte e dois anos encontrei a minha mulher actual. Farto-me de a trair, com as personagens femininas dos livros que leio, ou com as que escrevo. E mais não posso contar. Dizem porém que as personagens femininas dos meus livros são mais fortes que os meus homens: é porque as conheço biblicamente.

Contudo, nunca até hoje me tinha acontecido uma coisa tão grave.

Bebia uma cerveja no Mimmos, em Maputo, e vejo uma miúda expressiva, loquaz, com uma sensualidade exultante. Conversa divertidíssima com o namorado e vejo com raiva que não o invejo, renuncio a atrair um meteorito que lhe caia em cima neste momento, não desejo estar no seu lugar; apanho-me mesmo a pensar no quanto gostaria que ela fosse minha filha e no prazer que me daria tê-la ajudado a tornar-se no que é.

Deve ser isto a maldita maturidade, já não me deprime conceder que a minha apropriação do mundo não tenha de passar primeiro pelo sexo.

E, afinal, pedi para ser maduro, eu? Não me consola o desabafo do cineasta Luís Buñuel, ao chegar aos sessenta: “finalmente, vou libertar-me da tirania do sexo!”.

Francamente, meu caro Buñuel, envergonha-te: não passamos de duas bestas desemparelhadas da sã genealogia dos ursos, dois moles que preferem o desejo e a sedução ao estupro.   

11 Out 2018

Há limites nocivos para o patriotismo?

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om certeza e vemo-los, à escala global, na “tentação” de Trump para destruir o multilateralismo, a qual ameaça a manutenção da própria ONU.

Segundo Angela Merkel “O actual Presidente dos Estados Unidos pensa que o multilateralismo não é a resposta aos problemas, e julga que apenas pode haver um vencedor, não acreditando em situações em que ambas as partes possam vencer. Ora, destruir um sistema de consenso internacional é perigosíssimo”, concluiu.

Tem inteira razão e todo o patriotismo doentio surge por se acreditar que só pode haver um vencedor. É uma mentalidade desastrosa, ditada ora pela pecha da insegurança, ou, o outro polo do problema, por camuflados interesses económicos que escavam a vantagem na debilidade do outro.

Ora o homem é sobretudo o único animal que sabe antecipadamente que vai perder. Em nenhum cemitério se ouvem proclamar vitórias. É inapelavelmente democrática a terra que acolhe e transforma em estrume todas as caganças. As patrióticas, as da patranha económica, as de casta. E constata-se: nenhum crânio tem os olhos em bico, ou os lábios grossos, ou um nariz caucasiano. Face à morte somos todos igualmente perdedores.

Por isso sustentamos que o homem é por natureza um refugiado. E que o seu valor moral não está tanto nos traços da sua identidade como na dimensão da sua hospitalidade. A identidade é aliás inúmeras vezes um princípio de inconsistência que pode fazer germinar o Mal, ao esquecer que todos os seres humanos são criaturas transfronteiriças e pertencem a uma comunidade de diálogo. Porque somos mais semelhantes do que pensaríamos ou desejaríamos. Vou mostrar quanto.

Observo com espanto a mania dos moçambicanos para se julgarem originais. O que decorre de “falta de mundo” e da carência de estudo das “culturas comparadas”; pois até aquilo que antropologicamente consideram irredutível é afinal uma variante de tendências universais.

Por exemplo, a cerimónia do Mapiko é uma Catábase (uma descida ao inferno e volta) invertida (é a figura tectónica que é convocada a visitar os humanos), deslocada da sua função, e fixada por simetria aos ritos da catábase mediterrânea, ou vice-versa – a técnica de inverter especularmente o que recebemos da “vizinhança” é, demonstrou-o Levi-Strauss, o mecanismo comum para a criação das narrativas identitárias e uma das características que estrutura os mitos.

Por exemplo, as relação dos intelectuais com o poder e a “tradição”, o primado do colectivo sobre o individual, o evitamento da crítica e de qualquer pauta de mérito preteridos pela fidelidade política, os processos de ostracismo e os não-ditos, que se verificam em Moçambique, são afinal práticas comuns a todos os países que tiveram revoluções ou abraçaram o socialismo – tão similares nos seus processos que arrepiam, posto julgarmos que as supostas diferenças geográficas e culturais as diferiria. Não.

O primeiro livro que me ajudou a compreender a sociedade moçambicano é de um iraniano, Daryush Shayegan, exilado em Paris por causa dos Ayatollas. Intitula-se O Olhar Mutilado/Esquizofrenia Cultural: países tradicionais face à modernidade e o exame que faz sobre o comportamento dos intelectuais, das classes médias e da burocracia no seu país na década da revolução decalca o que se observa em Moçambique. Fica-se estarrecido, é só mudar os nomes, os comportamentos são idênticos.

Depois li o Pensamento Cativo, do poeta polaco Czeslaw Milosz, que radiografa os “intelectuais orgânicos” na Polónia durante o fechamento do regime. Quem imaginaria que seria outro livro vital para quem quiser conhecer, a partir de uma aparente e absoluta exterioridade, esse tecido social moçambicano?

Também o livro de José Gil, Portugal – o Medo a Existir, elucida aspectos da “alma” moçambicana. Vários conceitos que José Gil ali explana, entre os quais o da «falta de inscrição» como um fatídico corte entre a especulação e a prática, o vínculo e a realidade, conhecem uma clara correspondência na clivada paisagem moçambicana.

Li agora Itinerário de Octavio Paz, e o que ele diz sobre o México permite fazer uma autorreflexão mediatizada em Moçambique, sem estar inquinado pela emocionalidade. E foi neste livro que encontrei esmiuçado um hábito que se aplica como uma luva ao chão moçambicano: a suspicácia, a marca de carácter de quem vive corroído pela suspeita. Define Paz: «o fundo psicológico desta propensão a suspeitar é a suspicácia», a qual é, evidentemente, a expressão de um sentimento de insegurança.

Quando cheguei ouvia dizer, «Ah, esse gajo é muito desconfiado, é da Zambézia!». Em Moçambique vive-se rodeado de gente da Zambézia! Depois reparamos que tudo se justifica com a «mão externa», e que a acusação chega de gente de todas as províncias contra todos os outros, portanto ou inferimos que afinal macuas, macondes ou rongas são zambezianos disfarçados ou então concluímos que a suspicácia está espalhada.

Refere Paz, a suspicácia é uma irmã da malícia e ambas são servidoras da inveja. Não quero chegar tão longe. Todavia, já me preocupa o que diz a seguir: «todas estas más paixões tornam-se cúmplices das inquisições e das repressões.»

Tenho dificuldade em achar a utilidade para a persistência da suspicácia num país novo, se afinal o sentido da história somos nós quem o produzimos e se o fazemos podemos desfazê-lo. Desconfiar da própria sombra, se ganharíamos mais em conviver com ela? Todavia, é um facto que, em todos esses países que os livros retratam, a suspicácia é um instrumento patológico para a manutenção do poder e a mania de “cadastrar” os outros é um seu (d)efeito.

Sendo a equação a mesma: quanto mais patriótico mais paranóico.

Pode, entretanto, a falência do “multilateralismo” ser igualmente interna, se desconseguimos de aceitar o outro como um enriquecimento nosso. Cresce aí a idiotice e violência étnicas. Porque, repito, na verdade não há estrangeiros no mundo, somos todos refugiados.

E mais do que ser nacional ou não, o que interessa é avaliar o que cada um faz para melhorar o sítio em que vive.

4 Out 2018

Modesta proposta política

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] chega de bordados metafísicos, vamos à política.

O senador Bernie Sanders, dos EUA, publicou um manifesto, no The Guardian. O objectivo é barrar a ascensão do eixo autoritário no planeta. Diz Sanders que os novos populistas compartilham ideais comuns como “a hostilidade às normas democráticas, antagonismo em relação à liberdade de imprensa, intolerância em relação às minorias étnicas e religiosas e a crença de que o governo deve beneficiar a si próprio e a interesses financeiros egoístas.” E contrapõe: “É hora de os democratas de todo o mundo, diz o Manifesto, formarem uma Internacional Progressista”.

Então, terá de meter-se em questão a orgânica do sistema que permitiu a “profissionalização da política” e tornou a corrupção endémica.

Há duas ideias fulcrais nos ensaios de Vladimir Safatle. A primeira: “O líder democrático é aquele que nos ensina como a contingência pode habitar o cerne do poder.” A segunda: “(…) devemos insistir em que a esquerda não pode permitir que desapareça do horizonte da acção uma exigência profunda de modernização política que vise à reforma, não apenas de instituições, mas do processo decisório e de partilha do poder. Ela não pode ser indiferente àqueles que exigem a criatividade política em direcção a uma democracia real”.

A Esquerda tem sido indiferente, e isto não é inocente: é por compromisso.

Hoje confundimos solicitações do mercado com informação e progresso com poder de consumo. Tudo nos fascina no consumo, sobretudo o aparato tecnológico. Até o Derrida acreditava na transformação tecnológica como um dos factores de aceleração política.

Talvez, mas há um lado de sombra, inescamoteável, na tecnologia e antes que os algoritmos contornem a confiabilidade no eixo da política democrática, urge repensar o sistema democrático.

É esta a modesta proposta, que reedito, porque não foi lida nem discutida.

Talvez não seja digna de Swift, mas de criados e mordomos da política estamos fartos:

1. A detenção do poder será sempre contingente e rotativa. Cada movimento político ou instituição partidária terá direito a dois mandatos (três anos x dois) seguidos, embora de três em três anos haja eleições e um referendo;

2. Pelo referendo afere-se a confiança no governo e se o executivo necessita de mudança. Não é vinculativo mas corresponde a um cartão verde, amarelo ou vermelho.

3. Nas eleições, mediante a apresentação e discussão de programas (mais importantes neste caso do que quem personifica as ideias) apura-se quem terá o direito a ser oposição na legislatura seguinte;

4. Cada Partido deverá apresentar nas suas listas 30 % de independentes;

5. Quem ganhe o direito a ser oposição (o que implicaria um reforço qualitativo do trabalho dos partidos) subirá automaticamente ao poder daí a três anos, após o fim do mandato do poder cessante.

6. O parlamento nacional deve ser reduzido e funcionar, na prática, como um Conselho do Estado alargado.

7. Cada país organiza-se em regiões com os respectivos parlamentos. Este parlamento regional é composto por elementos dos partidos, mas reserva-se um terço dos lugares do hemiciclo a elementos espontâneos, ou representantes de outros movimentos e sensibilidades sociais, que queiram participar directamente na identificação dos problemas e na defesa dos interesses das suas regiões (- de modo a reflectir-se a ideia de que há questões que são indelegáveis);

8. O voto é obrigatório.

9. Emanará dos Parlamentos regionais a maioria dos pacotes legislativos, que serão regulamentados no Parlamento Nacional, tendo o Governo meras tarefas executivas, ou de regulação, dado poderem surgir conflitos de interesse entre regiões;

11. Cabe inteiramente ao Governo a orientação das políticas de caráter político-internacionais; estando, no entanto, as decisões mais graves sujeitas a referendo;

12. Sem burguesia não há democracia. Fala-se de uma burguesia ilustrada e produtiva. Pelo que, de força a garantir-se que o empenho sobre a qualidade técnica da educação seja maior do que a sua feição ideológica, cabe, por inerência ao partido da oposição a administração de duas pastas: o sector de Educação (será obrigatória desde a Primária a disciplina de Filosofia para Crianças) e o Ministério do Património Intangível. O que deve ser acompanhado de um pacto de regime que assegure um orçamento confortável para esses dois ministérios.

12. Não são permitidas as organizações de Juventude dos Partidos;

13. Será interdita a entrada na política activa aos cidadãos com menos de trinta anos e tal só poderá acontecer depois de dez anos de vida profissional activa e de se demonstrar que se atingiu certos patamares de competência ou o pleno da autonomia sócio-profissional;

14. Ninguém poderá estar no palanque da política activa mais do que um período de dez anos; podendo, a partir de então pode unicamente participar no concerto das opiniões, ou fazer parte de movimentos cívicos, mas sem ocupar lugares públicos;

15. Quem quiser entrar para a política activa terá de cumprir um ano em regime de voluntariado em qualquer parte do mundo;

16. O regime das tabelas salariais não pode, em todas as empresas, apresentar mais do que uma disparidade de um para cinco;

17. Dado que vivemos num mundo de recursos finitos e pós-mitos-do-progresso, onde até por ecologia política se deverá impor uma redistribuição as riquezas, a riqueza individual será permitida mas dentro do quadro de uma espécie de «economia-bonsai»; a partir de determinado nível a riqueza reverterá para a comunidade.

Restaurará este modelo um equilíbrio entre Democracia e Participação Cívica, fazendo da dignidade da política um exercício menos dúbio e amortecendo as atracções pelos engodos do Poder?  Talvez pelo menos iniba as profissionalizações na política.

Muito para além da “arte do possível”, creio antes que só o impossível é desejável e acontece. Só o impossível tempera a dignidade do homem. É preciso desejar o impossível para que algo aconteça e a política passe a ser um exercício laico e não uma actividade dependente de uma predatória lógica religiosa.

Consciente de que atirei o barro a uma parede que prefere o silêncio, passemos agora à sala e falemos de literatura.

27 Set 2018

El duende

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]xperimentei no meu quase afogamento da semana transacta um estado prostrador de isolamento e de separação, instrumentos com que a morte pode actuar. Afinal, morre-se em comunhão ou contra ela: até a morte tem estas duas faces.

Levei demasiado tempo a combater contra a água sem me lembrar de que a água nos sustém. A minha consciência estava dividida. Naquele momento, seria uma morte macaca por causa das sensações despoletadas que acrescentariam agonia e desespero aos últimos instantes, ou melhor: um estado de orfandade.

Seria o contrário de morrer, por exemplo, numa trincheira, ao serviço de uma causa redentora, o que nos faz superar o medo e a eclosão da iminência, porque na verdade estamos fora de nós, envolvidos em algo que nos ultrapassa: aí «o corpo – como bem descreveu Ruy Belo – entra por engano morte»; ou de morrer mergulhado – a linguagem é tramada – num sentimento de unicidade, como o rio que penetra no mar, numa reminiscência que o exalta. Julgo ser disto que falam os místicos quando mencionam a importância da palavra Deus ser a última palavra. Julgo até que nomear Deus é outra forma de designar uma experiência que se localiza além das palavras e nos devolve a um estado de não-dualidade.

Só que esta experiência é concreta, não tem nada de “metafísica”.

A este sentimento de unicidade – como muita gente – já o experimentei. Algumas vezes nas aulas, ou numa por outra palestra, quando engreno na palavra e solta-se um fio discursivo que se conduz a si mesmo, num fluxo que ultrapassa as minhas capacidades expressivas. Aquela limpeza de raciocínio não é pauta que me pertença. Não me é habitual afluírem as palavras com o recorte, a nitidez, de quem lê um teletipo invisível, interior. Sou mais trapalhão, menos ordenado, menos inteligível. Contudo, nesse transe que me ocorre sulcar há um momento em que sou, à vez, actor, espectador e encenador, na medida em que observo os efeitos que a minha emprestada eloquência – num tempo dilatado, que não é o dos relógios – produz nos alunos.

Quando sou transportado por esta inominada energia verbal, embora não seja propriamente o ‘autor’ do texto, controlo a cadência rítmica, a respiração das frases, a melodia. Os alunos ou a plateia reagem consoante as virtualidades do instrumento cognitivo, a sua capacidade de escuta, mas claramente naquele momento somos um, como num cardume ou orquestra – enovelados na espécie de inteligência não circunscrita que nos abarca. O mais surpreendente é que ao mesmo tempo que as palavras me conduzem me sinto um ponto atento aos meandros, às minudências da enunciação – não separado da experiência mas numa dobra da mesma.

Inesperada aptidão e talvez similar à que Pere Gimferrer atribui ao poeta: ver o acto de ver, dobra na qual a consciência se reconhece a si mesma e as palavras se conciliam com o mundo que designam – em confluência.

Será esta a experiência do self-remembering a que aludem certos mestres budistas? Sinto que aquele fluxo discursivo se resgata ali, e a si mesmo, do esquecimento, expondo a sua face inteira, a sua amplitude, e que ressoa em mim uma maravilhosa não-identidade; a qual me consente encarnar aquela presença a si-mesmo, sem me fundir nela.

O que me surpreende nesta experiência não é tanto o fluido encadeamento dos conceitos como a sua liquidificação, a sensação de experimentar um pensamento pensante que transborda largamente a represa do pensamento pensado e se apresenta como a condição de possibilidade que emerge após o desaparecimento do sujeito que, paradoxalmente, incubou e expandiu.

Será raro esse estado de não-dualidade.

Nunca ouvi nenhum professor falar desta ocorrência e que sei comum ao que experimentam alguns actores durante a actuação. É como um despertar dentro da palavra e uma navegação no seu leito: basta seguir o ponto-da-vela, prenhe por uma lucidez diáfana.

E nesse estado tudo parece a um tempo simples e novo, como a resposta que o bailarino Nijinsky deu à senhora que no bar do teatro lhe perguntou:

«como é que faz?
perdão?
a maior parte das pessoas quando salta no ar vem imediatamente para baixo…
porque hão-de vir logo para baixo… – replicou Nijinsky – demorem-se no ar um bocadinho, antes de descerem…».

Agora leio no último e maravilhoso livro do John Berger, Confabulações, este naco sobre El Duende:

«Os artistas de flamenco falam muitas vezes de el duende. O duende é uma qualidade, uma ressonância que torna uma actuação inesquecível. Ocorre quando um artista é possuído, habitado por uma força ou um conjunto de compulsões vindas do exterior de si mesmo. O duende é um fantasma do passado e é inesquecível porque visita o presente para se dirigir ao futuro.

No ano de 1933, o espanhol Garcia Lorca proferiu uma palestra em Buenos Aires relativa à natureza do el duende. (…) “todas as artes”, declarou ele na sua palestra, “são capazes de duende, mas onde ele naturalmente encontra mais espaço é na música, na dança e na poesia declamada, uma vez que elas necessitam de um corpo vivo que as interprete, porque são formas que nascem e morrem de um modo perpétuo e elevam os seus contornos sobre um presente exacto. El duende actua sobre o corpo da bailarina como o vento sobre a areia”»

um mundo em estado de dador: imagens à procura de um relator, pensamentos que buscam o seu pensador, ritmos que procuram o seu canal (as configurações do duende) e calha-nos ser o transporte para o tempo dessas ”doações” mas só o corpo as intercepta e traduz.

Isso nota-se muito em quem recita: há quem só dê o conteúdo, aí captamos com a inteligência, e quem consiga o regresso do poema a um estado pré-verbal, que a performance do corpo, daquela voz, naquela expressividade, volta a fazer nascer.

Aí emocionamo-nos e o contacto com o recitador levanta o vento sobre a areia: então “vemos” o que ouvimos.

20 Set 2018

O afogado mais formoso

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]ntem, 7 de Setembro, estive prestes a afogar-me na praia do Tofo, em Inhambane. Havia um fundão e muito vento e marés em redemoinho e nas minhas costas o meu amigo (que nada muito melhor que eu) foi ao fundo por duas vezes antes de desenvencilhar-se, enquanto eu patinava no turbilhão, sem quaisquer resultados à vista.

Rapidamente fiquei ofegante; era batido por ondas desencontradas e já me faltava o fôlego para gritar. Piorou porque o tentáculo ácido de uma garrafa azul se enrolou no meu braço, lacerando-o; à sensação de que aquela massa de águas furibundas era superior às minhas forças juntou-se a dor e aí comecei a entrar em pânico.

Sentia-me um idiota a apagar-se a trinta metros da praia. E vi a minha mulher a sair da água com a minha filha mais nova, ambas pálidas, mais magras do que me recordava, como se um susto as alfinetasse – percebi que se tinham safado a custo. Ainda lhes acenei, mas não me viram no âmago do meu inferno.

Há um momento em que as perspectivas se invertem: o céu fica em baixo e a água em cima. E o peso daquela abóbada densa e líquida ameaça desabar sobre nós: é quando se deflagrou o sentimento de iminência. Aí sentimos o Opaco de que fala Michaux, a propósito da mãe a caminho da morte: a água deixa de ser fria, é apenas uma grande massa glacial, de algodão, que nos atravessa, poro a poro. Um cansaço geriátrico drenava o meu corpo, varrido pela inabalável densidade das águas. Num último assomo de espírito resolvi inverter de novo as perspectivas, pôr-me a boiar e deixar-me arrastar.

O coração explodia-me no céu da boca quando o nadador-salvador veio pelas minhas costas, a reboque de uma prancha. Não o vi chegar, tomo-o agora por um anjo no sentido que lhe deu García Márquez: o anjo é a única criatura do universo que não tem consciência do seu acontecimento.

A caminho da praia quase desfaleci por uma súbita baixa de tensão e ele teve de me segurar. Enfim, um descalabro que durou cinco minutos mas que nos faz perceber a fragilidade que nos tolera, a nossa profunda inaptidão.

Escrevo no dia seguinte, oito; voltei a entrar na água sem vacilar, para depois recuar porque fiquei com palpitações cardíacas. Retirei-me para a esplanada, onde releio o Justine, de Durrell, e penso como seremos sempre estranhos à vida e não íntimos dela.

E eis que tropeço nesta passagem lancinante: «a indiferença das forças naturais para com o mundo da Arte – uma indiferença que eu começo a partilhar. No final de contas, que interesse tem para Melissa uma bonita metáfora, quando se encontra agora profundamente enterrada, como uma múmia, na areia tépida e sombria do negro estuário?»

Acode-me então o belíssimo conto do Garcia Márquez O Afogado Mais Formoso do Mundo.

Conta-se nele que, num dia luminoso, se avistou um afogado no mar, do alto da falésia onde se incrusta a aldeia. Os homens desceram até à praia para recuperar das águas o infortunado.

Está tão coberto de algas, musgos, lapas, escamas e restos de conchas, que é irreconhecível. E a aldeia manda emissários às aldeias próximas para sondar se alguém desapareceu por lá. Ninguém reclama o corpo. Resolvem limpá-lo, querem ver-lhe os traços antes de lhe darem um enterro condigno.

Quando o seu rosto aparece a nu, é uma visão que espanta. É claramente o afogado mais formoso do mundo. É tão formoso que resolvem mudar as genealogias na aldeia para cada família ficar ligada àquele antepassado, porque todos querem fazer parte do lampejo da sua memória.

Até isso me seria roubado, no meu afogamento. Não me coube tal formosura. Nem como afogados há direitos que possamos reclamar, tudo depende das circunstâncias.

Para Dostoievski que só a beleza salvaria o mundo. Não sei se ele tem razão. Mas no meu caso funciona – depois de algo tremendo que me tenha acontecido costumo recuperar por via de algo que porte uma significação especial, por um fogacho de beleza.

Talvez por isso, enquanto lia Durrell, desceu sobre mim este poema, que dedico aos meus amigos:

«O coração tem uma pálpebra fechada/ parece uma capa viscosa e plúmbea/até que o amor o visita/ e então ela abre-se afogando o mundo/ com a fragância dos limoeiros. // Aí um fragmento de canção/ vivificou o teu silêncio. /E repetes, repetes aquele acorde/ por se assemelhar ao relento/ dos seus lábios quando sobre/ o teu corpo espalhavam a cal viva.//

Não confundas a carne acordada/ com a tua sombra, só na dela/ se refaz a luz, só na dela/ se apraz o teu ligeiro embaraço./ Olhas da esplanada a baía –/ lembra uma melancia/ pois já o poente vos abraça.//

Ela lê o Auster, tu manténs os dedos/ entrecruzados, em vigília, esperas/ que uma palavra se solte no ecrã/ do laptop, vibrante como o urso/ que acabou de despertar do longo inverno.//

Desde que se conheceram nunca mais/ cerraram as persianas (omito aquela tarde/ do ciclone em que até as oleosas varejeiras/ do porto se colavam às janelas,/ aí na respiração do medo correram//

as persianas) para que o perfume/ dos limões nos terraços da cidade/ vos reponha os cambiantes/ que trouxeram à doce anarquia/ dos vossos corpos nus um valor:/ ouro, fósforo, magnésio,//

todos os credos que consolam/ a nossa vida portátil e breve/ por ser sempre tarde o armistício,/ de ser sempre maior a sede/ que o golfo do desejo recíproco.//

Olho-vos e narrador me confesso:/ invejo-vos, na curva do seu braço/ que envolve o teu, no vosso riso/ na escolha de um postal, ao balcão,/ da imagem justa, invejo-vos/ na felicidade intocável de quem ainda/ não foi corrompido por segredos:/ a pálpebra aberta no seu máximo esplendor. »

12 Set 2018

Ardem as línguas

 

01/09/2018

Colava-se na sua testa, estreita mas com sobreloja, uma inteira colecção de selos, talvez os das aves de Moçambique, estampados em… (fosse o meu sogro vivo e eu despacharia esta data com a limpeza de quem lava os olhos no copo do oftalmologista).

Infelizmente para ele, mais valia estar à la page, a sua testa voraz – os olhos sumiam-se abaixo da metade do crânio – curva-se em altitude como os ovos, numa indesmentível aproximação à redondez vilipendiada pelos partidários da terra plana; fanáticos que não enxergam que só em espelhos ovais sobressairão as cabeças quadradas, e mesmo aí raramente, exprimindo casos particulares que não chegam a neutralizar a sensação das cabeças serem primordialmente esféricas como Gaia, como as cerejas, como as prenhuras e as líchias; aliás como o plano de corte de uma veia: imperativo da agulha, dizem.

Mas falava da criatura que à minha frente rói até ao tutano a galinha e mexe os maxilares num crânio assustadoramente estreito – ah, Giacommeti, envia-me a tua morada e vais desmaiar de inveja! – e tão oblongo, que consegue ser a sua própria figuração.

E mesmo quando na sua testa se esplendem as luzes do tecto a sua luz natural cria outras linhas e cores no ébano, como se eclodissem desse planisfério ovóide as ostras do tempo.

04/09/2018

O que ressalta da negligência a que foi votado o Museu Nacional do Rio de Janeiro e que levou ao incêndio que o destruiu é a constatação de que chamar país ao Brasil é uma calúnia. Como aliás se podia dizer o mesmo depois dos desastres de Pedrogão e de Monchique, em Portugal.

Enviou-me o Luís Carlos Patraquim o email de um poeta do Rio, e amigo comum, o Alexei Bueno, que dá a dimensão trágica do ocorrido:

«Muito obrigado Reinaldo,
chorei muito ontem, passei inúmeros dias da minha infância nesse museu, lá levei meu filho, e assim por diante. Além do que era visto, pouca gente avalia o valor do que não estava exposto, era o que havia de mais importante no Brasil, seguido pela Biblioteca Nacional. Além da coleção egípcia, na verdade a maior do Hemisfério Sul, e da coleção grega – da Magna Grécia -, etrusca e romana da Imperatriz Teresa Cristina (que era de Nápoles), lá estava guardada toda a história de etnologia e arqueologia brasileiras, as urnas marajoaras e tapajônicas, os fósseis, a Coleção da Comissão Rondon e a Coleção Roquette-Pinto (filmes, fotos, registros sonoros, não sei se algo foi copiado), os papéis do Curt Nimuendaju (um alemão que foi o maior etnólogo do Brasil), a magnífica coleção de taxidermia (quantos taxidermistas deve haver hoje, e com aquela qualidade?), os fósseis, os ossos de dinossauros, a sala do trono, onde havia a célebre cerimônia do beija-mão, milhares de peças de tribos já extintas, um trono que o rei do Daomé deu para D. João VI em 1811, sem similar nem no Quai Branly, tudo destruído. Duzentos anos de coleta, escavações e estudos etnológicos dum país que tem o quarto território contínuo do mundo transformados em pó. Havia quatro vigias para um prédio de 13 mil m2, obviamente sem qualquer recurso, que viram o início do fogo e fugiram, os hidrantes sem água, etc… Exatamente 40 anos depois do incêndio do MAM. E tentavam conseguir vinte milhões (quatro milhões de euros!!!) para o prédio! Mais do que o dobro disso havia no apartamento de Geddel Viera Lima, um deputado corrupto, em Salvador. Gastaram dois bilhões para demolir e adulterar o Maracanã, uma construção classificada federalmente, e queriam resolver o problema dum prédio daquele tamanho e mais do que bicentenário com vinte milhões!!! Nem o interior do prédio conseguirão recuperar, todos os pisos originais, com as imensas tábuas de velhas madeiras brasileiras hoje indisponíveis, os tetos estucados e pintados… Não há o que falar.
Um grande abraço, extensivo aos amigos.»

E estes são apenas os incêndios visíveis.
Ocorre o desastre ao mesmo tempo em que um candidato às eleições brasileiras, o inefável Bolsonaro, num comício, simula uma metralhadora e diz o que fará aos do PT, caso ganhe, sem que qualquer Comissão Nacional de Eleições o torne imediatamente ilegível.

Há algo de profundamente corrosivo nos tecidos da vida activa dos países de língua portuguesa, como se padecessem de uma sintaxe infernal que atoleima os seus falantes e conecta os seus destinos às variações de um naufrágio repetitivo e sem remissão. Uma espécie de maldição de Naufrágio de Sepúlveda, reactualizada através de todos os elementos, formas e coordenadas, sendo executada em todas as dobras do tempo.
Respondia Hannah Arendt numa entrevista, sobre ter continuado a praticar o alemão a níveis mais profundos, depois de ter enfrentado os horrores do Holocausto. “Mesmo nos tempos mais amargos?”, pergunta o entrevistador. E responde ela: “Eu interrogava-me: o que fazer? De qualquer maneira não foi a língua alemã que enlouqueceu!”. Já Derrida, num livro muito interessante, O Monolinguismo do Outro, levanta a suspeita de que as línguas possam enlouquecer e contaminar com a sua demência as comunidades que as usam, e até as instituições.

Se olharmos para o que se passa no Brasil e em Moçambique, países numa combustão descontrolada, e os impasses em Portugal, Guiné e Angola, é difícil não concluirmos que seria difícil correr pior e como a inaptidão de cooperar e de operacionalizarmos algo de útil, sistémico, e de mútuo interesse, deixa cada país sozinho com as suas orgulhosas infeções internas. Há uma subcutânea maldade nesta incapacidade para, em todos os quadrantes, ultrapassar os irreais; nesta irresponsabilidade com que deixamos arder os valores e a cultura; nesta desagregação de vínculos, que prefere o egoísmo da má consciência à mutualidade de uma comunidade de língua que pudesse ser melhor em conjunto e erguer um carácter que relevasse por sobre os defeitos individuais.

Não somos capazes. Será preciso deixar arder a língua, para darmos conta de que urge uma terapia?

 

5 Set 2018

O Viajante do Tempo

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]edido o café e um bom bocado, dispunha o livro e o caderno e abria o computador quando o tipo da mesa ao lado me abordou: É o senhor, não é? Se for para pagar dívidas, estou no Alasca, respondi. O que escreve no Savana, voltou ele. Ah, ok, ya. Desculpe meter-me consigo, mas sou um viajante do futuro, e tenho quinze minutos para lhe contar… Um viajante do futuro, atalhei, desconfiado. Sim, nasci no ano 2237; no ano de 2125 foi inventada a máquina do tempo. Eu vim prevenir sobre os seus perigos. Se só tem mesmo quinze minutos, tem toda a minha atenção… E pensava, pode ser que este doido dê crónica.

Que data é a de hoje?, e apontava o jornal. Diz, aqui, dia 23 de agosto. Daqui a 3 dias, a 26 de agosto na Alemanha, na cidade de Chemnitz, cerca de 1000 neo-nazis percorrerão as ruas da cidade, declarando caça a imigrantes e refugiados e atacando quem não pareça suficientemente alemão. O levantamento de mil neo-nazis descarados, a céu aberto, só numa cidade da Alemanha, escarneci, não está a pedir demais? Se acontecer, prova que venho do futuro. Olhei o tipo, era negro, não podia estar por dentro do conluio neo-nazi. Está bem, anui eu, matutando, Estás doido e não vou contrariar-te. Continuou ele: será a primeira de mil manifestações pela Europa toda, o que trará a violência e o caos. As redes sociais ajudarão a semear o caos. E como lutar contra isso, perguntei? Só pela educação, continuou. Embora os instigadores venham do futuro. Como é, indaguei intrigado.

Um pigarro precedeu a revelação: No futuro é tudo mecanizado e as pessoas vivem entediadas e então organizam expedições turísticas ao passado para voltarem a sentir-se no fulcro das emoções. E as agências turísticas das viagens no tempo organizam estes eventos, aproveitando-se da insatisfação e da ignorância dos jovens da época que visitam. Manipulam-nos. Continue, pedi, num nervoso piscar de olhos. Todos os jovens precisam de acreditar em desígnios superiores, em lendas, em mitologias, se essa tendência mitificadora não for compensada pela educação geram-se monstros; só pelo conhecimento profundo do horror que essas mitologias causaram na história dos povos é que combatemos o lado insano da irracionalidade. Compreendo e concordo, redargui, resolvendo testar-lhe a cultura: A linguagem intoxica-nos porque nos faz ceder ao seu gosto para o estereotipo, é a sua doença – e quando repetimos as fórmulas e referências que nos enganam fundamos os mitos. Já o dizia o velho Roland Barthes: vivemos uma guerra de linguagens e o mito é um produto da naturalização do signo. O que traduzido por miúdos é querer fazer passar uma situação história (e por isso transformável) por uma situação natural (como se fosse uma lei perene e irrevogável), por exemplo: o mito que sustenta a discriminação arbitrária entre os géneros com a ideia de que o homem seja superior à mulher, ou aquele que liga a terra aos laços de sangue. Cortou-me a palavra: O Barthes, é um dos fundadores do que chamamos a Arqueologia das Ilusões, mas não seja professoral, não temos tempo.

Diga, então. O assunto é sério, continuou. E só o reforço da educação impedirá o caos. Mesmo viajar no tempo deu vazão a toda a pornografia moral, muitos viajam para conhecer a Helena de Tróia nua, ou a Cleópatra. Marco António era um dos nossos. Ah, boquiabri a boca. Há mais casos de ingerência do futuro no passado, indaguei? A revolução de outubro de 1917 foi organizada por uma das nossas agências de turismo. Então isto está tudo fodido, reagi eu, incrédulo. Ainda não, mas está quase.

E aqui, em África, diga-me: Mondlane veio do futuro? Quer saber de mais, mas se os antigos libertadores acabam em tiranos é porque não tiveram uma educação para a democracia e querem impedir o que se faça nesse sentido – tornaram-se iguais aos seus opressores. As falcatruas são mais possíveis com massas ignaras. Não há futuro para África, perguntei aflito? Talvez, se as mulheres conseguirem tomar o comando das coisas, se não África vai para o cano, mergulhada em sangue, petróleo e cemitérios de elefantes… A mentalidade de confrontação dos movimentos de libertação entrincheirou-se numa cultura política autoritária que se baseia na afirmação de que os libertadores têm o direito de governar dentro de um novo projeto de elite, e assim capturam o estado, explicou, continuando, mas isto sequer é novo: desde a Revolução Francesa que é comum os libertadores transformaram-se em opressores, as vítimas em perpetradores. Olhe Ortega, na Nicarágua. Os novos regimes tornam-se o inimigo íntimo… O despotismo é, com o futebol, o mais aclamado desporto de massas. Há solução para o homem, perguntei aflito.

Suspendeu a fala e o olhar; levantou-se, abrupto, Desculpe, tenho de ir. Antes de eu dizer Vai água!, retirou-se. Seria um cyborg, ficou-me a dúvida.

O resto vocês sabem, em 26 de Agosto mil skinheads e neonazis invadiram a cidade de Chemnitz. Que dizer sobre isto? Foi para o galheiro o cliché de que o europeu é um mártir da racionalidade. Somos bárbaros, iguais a todos. É um estúpido frenesim, vivido à vez. Aliás, o movimento artístico mais duradouro e influente no século XX foi o Surrealismo e preconizava o cultivo da “irracionalidade” e do onirismo; todo o cinema e a publicidade – dois baluartes da modernidade ocidental – vivem do desejo, que é uma festa dos sentidos, da inteligência subordinada às formas do sentir; em todo o ocidente é confrangedora a atracção pueril por filmes de zombies, de vampiros e de horror da mais descabelada e sangrenta irracionalidade. Só a face das falácias dos mitos – invariavelmente, de inspiração política – separam as culturas.

Com o retorno do fascismo teremos de voltar a enxergar as modalidades sadias das funestas, na onda de irracionalidade que promete sufragar-nos. Para que consigamos surfar e safar-nos da época autoritária e sombria que em tempos globais se adivinha.

30 Ago 2018

O Complexo de Marco Polo

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omprei hoje na rua As Viagens de Marco Polo, que não relia há uma década. O que me recordou um conceito que criei para um artigo científico: o complexo de Marco Polo.
O Marco Polo, um aventureiro e navegador de Veneza, fez a mais espantosa viagem europeia do século XIII e viajou para o Oriente, tendo estado na China 20 anos. Foi tal a sua integração que foi embaixador do Imperador da china, gozando de prestígio e poder.
Regressado a Itália, com 41 anos, foi feito prisioneiro dos Genoveses, numa batalha. E na prisão encontrou o cronista Rustichello da Pisa, a quem relatou as suas viagens e os reinos do Oriente.
Só que o relato do veneziano era cru e de antemão jornalístico e destituído dos seres fabulosos, lendas e maravilhamentos que recheavam as crónicas da época. E Rustichello, para tornar o relato credível, acrescentou gordura “mitológica” ao que Marco Polo contara, fantasias comuns ao imaginário da época e que compusessem um certo “efeito de real”.
A esta necessidade de irreais para tornar um discurso verosímil é que eu chamei o Complexo de Marco Polo.
Sem adivinhar que no século XXI este modo patológico de ler a realidade se tornaria uma constante da paisagem política.
As fake news, na sua inversão da realidade, representam esta patologia investida de modo imperial.
O que evidentemente só acontece em períodos de mutação civilizacional, quando os valores antigos se diluem e os novos ainda não se firmaram.
Estado límbico em que assomam os oportunistas destituídos da qualidade maior dos verdadeiros líderes: a grandeza humana.
O poder tem muitos inquilinos, já a grandeza é habitada por poucos.
Grandeza: tinha-a o presidente Mujica do Uruguai, que podia ter comido, como os outros, no poleiro do poder e renunciou, optando por uma pobreza essencial, franciscana. Paradoxalmente pode assim ser generoso para com o seu povo, servindo-o e deixando-o melhor do que estava antes.
Também paradoxalmente, no cárcere, se apossou Mandela da sua nobreza. Em vez de alimentar o ressentimento e o ódio, Mandela adquiriu na relação com o seu carcereiro bóer as propriedades do perdão que o tornaram grande, porque aprendeu a pensar contra si mesmo e os primeiros impulsos.
No fim da vida apareceu uma biografia que lhe debotava a imagem; referia-se a um comportamento repreensível com as primeiras mulheres que amou, mas Mandela não usou do seu poder para abafar a revelação – que com certeza o incomodava – e com esse gesto quis demonstrar que mesmo os líderes são humanos e falíveis mas que o que importa é aquilo em que nos tornamos. Grandeza.
Grandeza teve Kofi Annan quando percebeu que a comunidade à qual tinha de dedicar a sua vida não era a ganense mas outra mais alargada, a da humanidade, e se tornou um líder da paz e um reconciliador que só falhou – como na Síria – quando não lhe deram os meios para isso. De resto, mesmo quando desautorizado, como na invasão do Iraque, era ele quem tinha razão.
E entre outras coisas deixou como legado o princípio da “responsabilidade de proteger”, o qual redefiniu durante algum tempo os rumos da diplomacia e da intervenção humanitária. Segundo esta ideia a opressão de um povo pelo seu governo é também uma ameaça à estabilidade dos outros países. Ideia de uma co-responsabilidade que, por egoísmo e cinismo da onda neo-liberal, infelizmente tem conhecido retrocessos.
Grandeza tinha Edward Said que mesmo confessando «ainda não fui capaz de compreender o que significa amar um país», dedicou décadas à causa palestiniana, embora sem ter abdicado um grama de espírito crítico.
Falta grandeza aos líderes políticos da actualidade – impreparados, falhos de energia, privilegiam os golpes de bastidores. A um bom adversário que os ajude a superarem-se e melhorar preferem não tê-lo; e confundem “maquilhagem” com comunicação.
Quando é assim é precisamente pela comunicação que tudo começa a patear. Como em Trump que já não comunica, agride e grunhe, à medida que lhe vão caindo as máscaras.
Que uma potencia mundial tenha como líder um homem que é um hipopótamo numa loja de loiças, de um capricho que só se conhece dos mais loucos dos Césares, seria da ordem do mistério não fora isso provar simplesmente que os povos não tiram lições da História, ou que pelo menos a experiencia humana só é reconhecida como tal se for incarnada – chegando através do exemplo alheio não é encarada devidamente dado que cada povo se julga portador de um destino de excepção.
Infere-se aqui outra norma atordoadora: cada país dispensa as lições da História e tem de passar pela provação do erro e de errar cega e voluntariamente, para se convencer a si mesmo de ter uma identidade que vale a pena, sacrificando tudo e todos. Cada povo cresce assim mais pelo bordo e a soma dos seus desastres do que como efeito de boas políticas de desenvolvimento. Há uma degradante atracção pela entropia na prática política quando se considera que uma má escolha é uma boa escolha apenas por ter sido uma escolha nossa.
Talvez porque o poder, violência física mesclada na violência simbólica, não sabe “unificar” senão enveredando pelo padrão da desordem. O dividir para reinar. Como é um padrão parece ser uma ortopedia racional: não é, é apenas o efeito do complexo de Marco Polo, que irrealiza de tal forma a realidade que até simula a verdade com uma mentira de grande aparato técnico.
Simultaneamente à perda de grandeza no universo da ética política, a este mergulho na insignificância que tudo relativiza no quotidiano, constatamos que o mal na sua suprema manifestação tradicional – o demoníaco – desapareceu. Ou é reificado, transformado em espectáculo, como na recente série televisiva Lucifer. Manifestação da loucura normal.
Entretanto, como dizia Popper é mais fácil falsear que verificar uma hipótese, para que não se quebrem as rotinas, o que Marco Polo aprendeu à sua custa quando viu na sua sombra um desvio de direcção.

 

23 Ago 2018