Ministério do Medo

[dropcap]- S[/dropcap]e o governo compra um circo, o anão começa a crescer. Cito um antigo ministro da economia…
– És capaz de tudo, para te fazeres interessante!
– Ajusta-se a este fenómeno de acamparmos nas margens do rio Corona… Que, pelos vistos, tem novecentos metros de fundo e rápidos fragorosos…
– Estás mesmo a águas, dá-te para seres espirituoso!
– Repara na frase do ministro, quer dizer que é detectável um desfasamento permanente entre o que se consegue planear e o curso da realidade.
– Pões paninhos quentes sobre a ineficácia do sistema?
– Digo que a arte de governar é a forma como se disfarça que não estamos preparados, que nunca estivemos. O Trump reconhece-o ao desviar o assunto e afirmar que a crise do coronavírus terá um aspecto positivo: os americanos gastarão mais dinheiro em casa, em vez de viajarem para áreas afetadas pelo surto. Diante duma calamidade mundial, ele converte-a em dividendos para a economia americana…
– Tu arriscavas ir a Veneza, com o vírus?
– Parece uma inconsciência, mas arriscava, é uma questão de oportunidade. Quantas vezes poderei eu ir a Veneza?
– Quantas vezes podes tu apanhar o vírus?
– Este vírus, apesar de tudo, algumas, não faço parte de qualquer grupo de risco…
– E caías como as Bolsas…
– Cuja queda foi aproveitada pelo Trump para prometer uma baixa de impostos… a lógica que ele transmite é que com ele os americanos estão blindados; só fora de portas se encontra a Kryptonita Verde…
– Smart, mas já se sabia que o menino é imune à empatia… lembras-te do primeiro comentário público que ele fez, quando caíram as Twin Towers: O meu edifício 40 Wall Street voltou a ser o mais alto de Nova Iorque!?
– Mas agora detecta-se-lhe um padrão no comportamento: ele tem cagufa do que não domina, é o que lhe explica que só se dê bem com tiranecos que têm menor poder do que ele… Gente à altura dele, ele não aguenta… nem se ofereceu para fazer a mediação com o Putin nas negociações com a Opep… E essa cagufa dele, estranhamente, reforça o narcisismo tóxico da América…
– Chega de falar no marmanjo!
– Sim, falemos antes do “perigo amarelo” que impulsionou esta histeria associada ao vírus. Havia o tigre-de-papel, o tigre-do-bali e o tigre-de-java e agora temos o tigre-nanotecnológico, importado em fábula biológica…
– Não é justo chamar-lhe fábula, os números já são puxados, agora na Itália paralisou-se o futebol…
– É um problema, sem dúvida… Contudo, viste os números da OMS? A gripe da temporada (seasonal flu) está a causar muito mais vítimas. Registam-se 2.812 mortes por coronavírus neste ano, contra 76.537 mortos pela gripe da temporada – ou seja 2.720% mais. É difícil não relativizar…
– Estamos sempre a ser ultrapassados pelos números. Achas que a coisa foi empolada pelos media?
– Com certeza, ainda que o vírus revele uma velocidade de propagação assinalável, que exigiam de facto medidas de contenção. Porém, a malária ceifa vinte vezes mais e nos últimos anos tem acelerado o número de vítimas. Não te vou poupar: o relatório da OMS relatório mostra uma relação entre o paludismo e a anemia em crianças com menos de cinco anos – 24 milhões de crianças, só em África, foram infectadas. Em 2018, as crianças representaram 67% das mortes mundiais, devido ao paludismo. E não há todos os anos novas estirpes de gripes novas? E não se têm fechado escolas, aeroportos, estádios, ou adiado congressos, por causa disso… Esta diferença na abordagem a esta nova ameaça é que tem de ser inquirida…
– Hum, funcionará o Covid-19 como um sintoma do medo ao desconhecido?
– Tal como, a outro nível, o pânico aos refugiados – que afinal nem chegam a 200 000. Como é que esta minoriazinha microscópica poderia afectar de facto 747,182,815 habitantes europeus?
– Sim, há desproporção irrazoável do medo em relação aos dois tipos de “vírus”.
– Não digas isso aos húngaros, ou aos fanáticos das identidades. Reparaste na coincidência de ter aumentado o sentimento de insegurança na Europa na exacta proporção em que têm crescido as reivindicações e os populismos identitários?
– Achas? Não pode ser!
– Não te percebo esse tom…
– Veio-me à cabeça que provavelmente a absoluta vaga de imoralidade política patente nos novos líderes é que tornou as pessoas inseguras, ou esta nova paisagem financeira que transformou a estabilidade económica num jogo de casino…
– É algo de sistémico que anda no ar. Tal como a gula com que as pessoas opinam sobre tudo nas redes sociais. Aliás, proporcional ao pavor de reconhecerem que têm feito péssimas escolhas políticas… e à mínima tensão explodem em defesa da sua “imagem”… Viste o comentário pedagógico do Jurgen Klopp à pergunta que lhe fizeram sobre o coronavírus? Foi uma lição de humildade… Hoje a grande fatia da comunicação social lembra-me esta pergunta dos metadiálogos do Bateson: “Pai, porque é que os adultos fazem guerra, em vez de lutarem como as crianças fazem?”
– Todavia, minimizares o Corona soa-me a erro de paralaxe de quem está nos trópicos… tens sorte do vírus não se dar bem com temperaturas acima dos 26 graus…
– Estás enganado, este caldo permanente é uma chatice, e não compares as políticas de saúde pública, estás muito mais bem protegido… O que me mete espécie é como a comunicação dramatiza mais do que esclarece… Que nem sequer se tirem as ilações políticas disto tudo!? Quem ganha com isto? Quem está a lucrar com esta loucura? Fareja o rasto do dinheiro e achas o criminoso, aconselhava o Mickey Spillane… O Trump foi até transparente…
– Para acabarmos com esta conversa, é crise ou não é crise?
– Vista da lua é uma crise de ricos, e um pouco ociosa. Porque, se oferece perigos, não é a peste… antes se assemelha a uma manifestação do Turismo do Medo. Que vai ter Ministério.

12 Mar 2020

Contra os panhonhas!

[dropcap]A[/dropcap]ssim que eu for primeiro-ministro despeço-me – de panhonhas estou farto!
Este tempo promove os panhonhas e o seu reverso: os objectores-da-consciência. Como Trump e Bolsonaro e o inefável presidente indiano, Narendra Modi, que incitou o integrismo hindu e incendiou o país (cf. a carta de Arundhati Roy, aqui ). Todos eles seguem o modelo do conselheiro de Trump, Roger Stone, que no documentário do Netflix, Get me Roger Stone, dá os mandamentos para chegar ao poder e mantê-lo e que se sintetizam numa pergunta: se é preciso ser infame, qual é a sua dúvida?

O problema dos panhonhas é que nunca ousam acreditar na extensão do Mal. Já o problema com o Mal, que se expande com descaro e ganas, é que sob a sua filigrana já não respira ninguém, um outro. Não que, à semelhança de outras épocas, ele não “pareça” agressivo, implacável, corrosivo. Mas de tanto ter sido transformado em reality-show não traz já o pavor indescritível de outrora.

Já não conseguimos imaginar o Mal para além da medida que consentimos, supondo que ao deixá-lo exprimir-se um pouco estamos a retirar-lhe o gás. Descrentes da realidade, ficamos reféns das imagens, achando que o vidro do plasma nos separa e protege e que a acção dos diabretes é mensurável, como os selos que se colam nas cartas endereçadas ao bem-que-nos-pariu.

Eis-nos abarrotados até ao infinito, de cabidela, de vampiros, de zombies e de espelhos que se vingam retroactivamente, de ogres & aliens, de políticos que mentem ruidosamente – com a rede de saberem que toda a gente admira um bom vigarista -, de tiranos que florescem sob o bolor dos Hannibals desta vida, de putaria baixa & escarninha – esperem, veio-me um arroto.

Ora, o problema é mais fundo – meu caro panhonha, meu hipócrita, meu igual: desapropriam-nos. Hoje, ser sacanita, mesquinho, malicioso, espertalhão, oportuno na pequena perversão, iniciar os anjos na pederastia, engessados ou não… que raio de prazer isso agora nos traz neste clima em que os massacres se sucedem em directo, em Chicago, em Nova Deli, em Cabo Delgado e se escalpar bebés é o novo divertimento?
Lady Macbeth boceja e nós, depois de todo o bem-cariado, chegámos ao Mal sem sombra, ao mal como turismo de massas – ao império da opinião a todo o transe.

No oposto disto, em carta a um amigo japonês, Kuniich Uno, escreveu Deleuze, sobre como se sucedia a sua colaboração com Guattari:

«Pouco a pouco, um conceito tomava uma existência autónoma, de modo que por vezes nós continuávamos a compreendê-lo de maneira diferente – por exemplo, nunca compreendemos da mesma maneira o “corpo sem órgãos”. Nunca o trabalho a dois tendeu a uma uniformização, sendo mais uma proliferação, uma acumulação de bifurcações, um rizoma».

Raramente vimos manifesta uma liberdade tão grande quanto à própria opinião. Os dois pensadores colaboravam para poderem convergir e divergir, numa pulsação contínua, sem receio de se contradizer e sem apararem as linhas de fuga. Pelo gosto de multiplicar.

Nunca lhes passou pela cabeça a disputa ou a necessidade de domínio na relação; sem reservas, numa porosidade em acto, a aventura de penetrarem em espaços desconhecidos (os que “a resistência” do outro abria na escuta de cada um) tornou-se prioritária.

Simplificavam: a colaboração prescindia de negociações, porque o conflito estava de antemão desactivado, não havia confronto entre forças/opiniões polarizadas, não se tratava de uma disputa dialéctica, mas de estar aberto a um fluxo que faz das suas sombras matéria para fazer engrenar o pensamento na virtualização do múltiplo.

Eis um verdadeiro “encontro”: cada um deles superou um pensamento condicionado pela inércia das representações. O que acontece quando seguimos as linhas da água e à manifestação da “vontade” preferimos incarnar o “impoder”. Nos antípodas do que defende Bertrand de Jouvenel, no seu livro basilar sobre o Poder, para quem “um homem sente-se mais homem quando se impõe e faz dos outros um instrumento da sua vontade”, atitude que voltou a ser a única disseminada.

O “impoder” não é um signo de impotência mas um reforço da potência que nasce da liberdade a si mesmo. O que talvez explique que Michel Serres tenha dito de Deleuze que era o único caso que conhecia de um filósofo a quem o pensamento trouxera felicidade.

É desta grandeza humana que estamos necessitados, da qualidade de gente que se dispõe à luta para “não ter poder”.

Porém, para isso, precisamos de agir, de confiar de novo na astúcia que o outro nos traz, em vez de o vermos como estorvo. O que começa por simplificarmos.

Ontem, por exemplo, depois de uma boa sesta, acordei para a delicadeza da Sónia, que (quase com recato) me batia uma sarapitola (- ah, alegria dos esses!).

A Sónia tem seis dedos em cada mão, como os teve el-rei dom Sebastião, e é vão querer saber se isso lhe dá uma tactibilidade especial ou se será da fantasia que a sua anomalia provoca em nós, o certo é que depois de confiarmos na Sónia ficamos menos tolerantes aos homens infames.
 Tinha convidado a Sónia para almoçar, preparando-a para a sessão de nus que iríamos fazer no estúdio à tarde. E perguntou-me ela, como me vais pagar isso? Na brincadeira, olhando-lhe as mãos, respondi, E que tal uma pívia? Para surpresa minha, isso provocou-lhe um sorriso mais aberto que a calvície do Yul Brynner.

Adoro mostrar os meus dons, justificou.

Nunca lhe serei suficientemente grato, ela foi buscar o ouro a cinquenta metros de profundidade – sabe simplificar, é o que é.

À saída disse-me: Gostei, julgava que eras um panhonha!

Era, mas panhonha nunca mais, antes primeiro-ministro!

A quem não acreditar na bondade das coisas simples, lembro o aviso de Jim Harrison: (também) a morte tem para nós a inverosimilhança que terá a realidade da nossa viagem à lua para uma zebra.

5 Mar 2020

O pacto

[dropcap]N[/dropcap]ada do que é inumano nos é estranho!
– Como é?
– Ao contrário do que dizia Terêncio, a humanidade é uma raridade… e tem de ser provocada. Nós navegamos no inumano.
– Triste.
– Sobre isso não conjecturo. Apenas constato.
– E como chegaste a essa ideia?
– Nem é sequer uma ideia, é uma evidência. Chegou-me da odisseia pífia do americano Michael Hughes, que morreu na semana passada durante uma tentativa de demonstrar que a Terra é plana. Hughes, conhecido como “Mad Mike”, construiu um foguete movido a vapor, no seu jardim, com a ajuda de um amigo. E contou à imprensa que o seu objetivo era subir 1.500 metros acima do nível do mar para provar que a Terra não é redonda, mas tem “a forma de um disco voador”. Só que o foguetão explodiu-lhe nos braços… Bom, começo por discordar do Mad Mike no formato da Terra, apostaria no da pera-rocha, ou no das orelhas do defunto
Vasco Pulido Valente, esse pensador sempre alerta…
– Deixa-te de sarcasmos!
– Bizarro que o Mad Max confiasse nos conhecimentos tecnológicos do amigo, que se apoiava em informações extraídas da net, mas não confiasse nas fotografias tiradas por satélite: vês congruência nisto? A pobre criatura era acometida por dois males: o de má-fé quanto à plausibilidade do conhecimento que o mundo lhe poderia oferecer, só aceitando a “prova” que ele mesmo engendrasse; e duma enorme incapacidade de aprendizagem, dado que contrapunha às evidências o “modelo abstracto” que a cultura dos terraplanistas lhe implantou no cérebro. O Mike fugia da realidade como o diabo foge da cruz.
– Mas isso é estupidez, não é inumanidade…
– Olha que sim, as feridas que provocam aqueles que denegam a realidade e a deixam exangue, exilando-a, são incicatrizáveis. Esta crueldade é inumana… Não há crime maior do que negar à realidade o coração e o lume… É como pôr um recém-nascido a “chutar” absinto…
– Queres dizer que estamos rodeados de junkies?
– Duvidas? Quem nega com tamanha sanha a realidade torna-se junkie, terraplanista, fanático-abstracto…
– Os platónicos não negam a realidade?
– Não, estabelecem que esta esfera cá em baixo é menos perfeita que a ideal, mas não negam a esfericidade.

É uma questão de sobre-significação, de foco e detalhe… Já o Mad Mike escamava viciosamente qualquer mínima parcela da realidade para a classificar como um peixe. Se de uma pedra não obtinha escamas, jurava que era um peixe congelado há oito mil anos e chegado da Antártida, novo território de todos os delírios…

Digo-te, negar a realidade é o mecanismo entranhado de quem não se quer comprometer… E não só politicamente, a cobardia entrou em força nas artérias dos inumanos… Olha as igrejas…
– Não sei se te acompanho.
– Vai à Universal, a fé, neles, é o simulacro que permite o voyeurismo do demónio alheio. Ah, assistir ao demónio do outro a ser caçado! E nesta barretada, cobarde, o dízimo é o engendramento capitalista da dizimação da fé…
– Estás a fazer trocadilhos.
– É mais do que isso… Hoje a única subversão política que se mantém de pé encontramo-la no mito do Fausto…
– Tens cada uma!
– Olha que não! Depois do Marx só o Fausto. Ao pobre o que resta, se as narrativas da emancipação derrocaram como castelos de cartas? O que resta ao empreendedor com boas ideias, mas sem financiamento? Qual a hipótese para o talentoso, mas nascido na periferia da grande finança? Que melhor saída para o tipo que estudou e tem rasgo mas não tem cheta?
– És um hermético, sabias? Desembucha…
– A única coisa que lhes resta é vender a alma ao Diabo. O rico tem por si a herança e as leis que o protegem. Vender a alma é o expediente do corajoso contra a venda a conta-gotas do capitalismo. Por cada pobre que avance para o Pacto abate-se um operário explorado… Para quê passar por mais dificuldades? Sabes qual é a mensagem mais frequente dos anjos na Bíblia?
– Vais dizer-me…
– Levanta-te e apressa-te!
– Queres tirar o negócio a Deus!?
– Quero descapitalizá-lo, devolver-lhe a gratuidade! Hoje, a única missão é divulgar a disposição de Mefistófeles para nos restituir a dignidade…
– A alma contra a dignidade?
– Chega do quase-etéreo ideológico… Antes o carácter que a virtude. E ao fazeres o Pacto provas ao menos que és humano, é algo que já não te tiram: apegas-te ao real e a cada momento da tua finitude, antes da morte, a faceta mais áspera da realidade, ta tirar…
– Hum, conheces quem o tenha feito?
– O Brecht. Repara nesta tirada de 1926, tinha ele vinte e oito anos: «No dia em que já não restar mais nada para procurar na literatura, abandoná-la-ei. Quando queremos fazer um túnel, é preciso primeiro fazer a montanha. E se a tarefa de fazer a montanha é difícil, no fazer o túnel é que está o génio…», esta intuição não ocorre aos vinte e oito anos se não se fez o Pacto…
– O que é que tu fazias se, para além de te borrares, te aparecesse esta noite o Mefistófeles propondo-te a assinatura do contrato?
– Primeiro contratava o Iago e mandava-o entregar o mais belo casaco de vison do mundo à Melania Trump, em nome de um anónimo; para além de o pôr a forjar umas cartas de amor incandescentes da Melania para mafarrico, só para armar a confusão… o cornuto havia de deixar o mundo em paz por uns tempos… E depois comprava o Hoje Macau e aumentava cinco vezes o ordenado dos seus trabalhadores e o do seu director, para poderem finalmente montar um casino…
– E para a tua mulher nada?
– Ah, seria a croupier do casino e embutia-lha a alma no corpo, para que não pudesse vendê-la…

27 Fev 2020

Letras responsáveis

[dropcap]N[/dropcap]este frenesim de palavras ocas em que o mundo se tornou, consta que os castores da América do Norte se apresentam desdentados, a neve (há quem diga que por espírito de síntese) agora só cai sobre quem tem gabardina, o próprio silêncio procura o osso perdido das origens.

Desde que se instalou este estado de coisas as conversas morrem a meio, as vacas e os filósofos ruminam mas não engolem (as vacas começaram a levitar, os filósofos enterram-se a prumo com o peso das escórias) e descobriu-se que o corona é a vingança do pangolim.

Muitos propõem remédio mas no melhor dos casos só se detectam paliativos. E só enxergo uma saída, a aventada por Simone Weil quando assegura que a pura observação pode ser transformadora desde que empreguemos devidamente a sua melhor arma: a atenção.

A solução não está no cultivo das identidades, na inquietude ou na competição performativa, na elaboração de listas de tarefas pendentes, no bombardeio com que somos emboscados pelo mercado, no deve e haver sobre crimes passados (como alguém que já só sabe revolver o lodo), na indulgência que obtemos da nossa tribo nas redes sociais: não. Mas, em voltando a subir os índices da nossa capacidade para ficar atentos, para permanecermos atentos, para finalmente nos concentrarmos no que fazemos, esta balbúrdia das velocidades contemporâneas que nos aturde e provoca sonolência atenua-se.

Só o desejo de luz produz luz, dizia a senhorita Weil, e esta para ser vista necessita de um esforço da atenção. Não se conte com o que não custa esforço. Será isto alguma vez reflectido?

Entretanto, num livro autobiográfico que acabei e que incide sobre a infância e os imediatos anos de aprendizagem, escrevi este parágrafo: «O meu pai, que começara por ser trolha, entrou como aprendiz de linotipista no Diário Popular e seguiu o ofício. Na época, consideravam-se os linotipistas os intelectuais do operariado, por incarnarem em chumbo os livros de outros; enfim, uma consideração abstracta, demasiado generalista, esse confronto com as ideias dependeria da qualidade do que haveria a digitar, seria diferente ser o tipógrafo de Carlos Oliveira ou do Augusto Abelaira ou sê-lo de um prestamista do regime. Todavia acreditava-se que por osmose ou circulação dos fluidos se vazava a sabedoria de uns para outros e o meu pai, lacónico até à medula, devia passar por muito profundo.»

Voltemos à frase sublinhada: os linotipistas/tipógrafos incarnavam em chumbo os livros de outros. As palavras moldavam-se em chumbo, dessas páginas em baixo relevo de chumbo resultavam as matrizes que seriam depois impressas, duplicadas, no papel. Havia um mano a mano com a densidade material, a cada palavra lida antecipava-a o seu peso, um grave e oblíquo labor responsável. Cada palavra antes de ser lida fora um artefacto material, era um fruto de um processo lento e de uma compactidade que, inesperadamente, tornava o pensamento profuso. Pergunto-me hoje se que isso não transmitiria à palavra uma qualidade, uma substância, um compromisso que a leveza, a rapidez, a facilidade de rasura e permuta do texto digital volatizam e desresponsabilizam; se quando a matriz da palavra tinha um peso não teríamos menos cobertas de croché.

Li há pouco tempo um ensaísta literário que dizia que a poesia portuguesa dos anos 90 se produzira contra a densidade de alguns poetas anteriores, como a Fiama Hasse Pais Brandão. De facto, e também na prosa, muito pouco hoje me parece estar à altura das densidades de A Noite e Riso, de Nuno Bragança, de Maina Mendes e Casas Pardas, de Maria Velho da Costa, ou de Novas Visões do Passado, Homenagemàliteratura, ou Área Branca, de Fiama, escritos na época do chumbo ou ainda sob influência do chumbo.

Quem hoje se entregaria ao entusiasmo de ler As Quibíricas ou A Arca, de João Pedro Grabato Dias?

Que tipo de eflúvios se libertaria daquele elemento químico com que se criavam as letras da tipografia e da “arte negra” – a caixa de metal em que se justapunham as letras de chumbo, linha a linha, para a composição de cada página –, como se a toxidade do chumbo fizesse o pensamento reagir, elevando-o, contrariando o desconforto da matéria?

Escreveu a Velho da Costa em O Mapa Cor de Rosa, um dos seus livros de crónicas: «Metamorfose do tempo que faz lá fora, eu sei talvez porque me assola hoje, ou mais se atiça, a retórica da melancolia e do desânimo.

A crónica é desse género que tem encruzilhadas a biografia e a escrita – só a ficção protege, em dias assim, ou a epistolografia íntima, desatada. Mas os poetas, Senhor. Ou os cronistas de reinos, desunidos.

A senhora Amália, um supor, que vivia em Montes Velhos, ai Nena, um lembrar. Vivia e nem mal, nem bem, vivia. Bateu-lhe à porta uma cigana que trazia um menino aos peitos caídos, rilhado de um porco, disse bem, rilhado. Eu disse que a ficção defende e a crónica desabriga, e só a poesia obriga a trabalhar – juro-vos que esta história é londrina, desgostos portugueses, lá iremos».

Como é que se diz tanto em tão pouco, sem nunca descurar o ritmo, o sabor da língua, ou a riqueza de vocabulário? É muito mais do que exibir a opinião: Eu disse que a ficção defende e a crónica desabriga, e só a poesia obriga a trabalhar – é conhecimento. Como é que esta estupenda autora não tem um único livro traduzido e hoje é lida somente por uma minoria?

Atravesso a noite a reler-lhe os livros de crónicas e eis-me siderado. Eu que tanto aprendi com ela, quando escrevíamos filmes juntos, continua a ensinar-me. Havia um brio em fazer melhor, em comunicar com o máximo de recursos, e hoje faz-se da preguiça norma de decência e de uma língua de trapos chave de leitura. E, mais frívolos e desatentos, deseducamos o leitor.

20 Fev 2020

Imaginação e utopia

[dropcap]D[/dropcap]iscorrer sobre Mozart seria infindável, mas uma anedota ilustra bem a sua imensa capacidade imaginativa.

Joseph Haydn e Mozart eram compinchas, e com outras pessoas fizeram uma comezaina em Viena. Durante a refeição, elogiou-se a superior capacidade interpretativa ao piano dos dois compositores. Então, Mozart desafiou, divertido: «Meus caros: vou escrever agora mesmo uma peça que nem mesmo o grande Haydn conseguirá tocar!»

Haydn apostou logo uma caixa de garrafas de vinho espumante. Mozart pegou em papel e lápis e, em poucos minutos, escreveu a peça.

Haydn sentou-se ao piano e começou a tocá-la, aparentemente sem problemas. Mas de repente, parou e comentou: «Isto não pode ser tocado: tenho a mão direita numa extremidade do teclado e a mão esquerda no outro, e aqui no meio há uma nota que deve ser tocada ao mesmo tempo. Isso é impossível!»«Ganhei! – disse o Mozart – A peça pode ser tocada perfeitamente.»

Sentou-se ao piano e quando chegou ao ponto em que Haydn foi incapaz de prosseguir, Mozart tocou a nota do meio com a ponta do nariz.

Há escritores notáveis com pouca imaginação. São muito bons observadores e inteligentes, reflectem com perícia e têm na precisão do verbo a sua melhor arma. Como Coetzee, Pavese, Martin Amis ou Cossery, de quem gosto muito, mas não pelos golpes de imaginação. Privilegiam outras qualidades, como a estrutura.

Mas Nabokov ou Camilo José Cela investem mais imaginação numa página que Coetzee num romance.
A falta de imaginação impede-nos de ver o que está diante dos olhos, no sentido que Frank Zappa esclarece neste seu dito: «A mente é como um paraquedas, só funciona quando está aberto».
Ramon Gener, um musicólogo espanhol, dá outro exemplo para ilustrar a imaginação em estado puro de Mozart: o”Dueto do Espelho”.

Trata-se de um divertimento em Sol Maior para dois violinos. A partitura está desenhada para que os dois violinos a possam tocar ao mesmo tempo, mas lendo-a no sentido inverso. Para fazê-lo deve pôr-se a partitura sobre a mesa e os violinistas terão de colocar-se um frente ao outro com a partitura no meio. Desta maneira, começando ao mesmo tempo, enquanto o primeiro violinista toca o primeiro compasso, o segundo toca o último (que para ele é o primeiro), quando o primeiro avança para o segundo compasso, o outro violinista avança para o penúltimo, e assim até ao final.

Observa Gener:«Para conceber um divertimento deste tipo, o que se necessita, em primeiro lugar e antes que nada, é de muita imaginação».

Sem dúvida, mas do que ele não deu conta é que o acto que esta partitura desencadeia é a grande metáfora do amor: duas pessoas interpretam de modo inverso a mesma partitura e onde sintonizam é no ritmo que lhes consente a ilusão de estarem ligados. Uma quebra de ritmo de ritmo ou uma aceleração do ritmo no outro e as afinidades esboroavam-se, a identidade que haviam construído perdia o nexo.

«Não concebo a inspiração como um estado de graça nem como um sopro divino, mas como uma reconciliação com o tema, à força de tenacidade e domínio… De modo que atiçamos o tema e o tema nos atiça a nós… Todos os obstáculos caem, todos os conflitos se afastam, e ocorrem-nos coisas que não tínhamos sonhado, e então não há na vida nada melhor do que escrever.», declarou entretanto um senhor cheio de imaginação, o Gabriel Garcia Márquez, e disse tudo: a imaginação é apenas a propensão para ocorrerem-nos coisas com que não tínhamos sonhado.

Esta cultiva-se, treina-se no espaldar da página, é um dispositivo engendrado por um estado de confiança que reaparece sempre que, para além de reconciliados com o tema, ficamos impregnados por ele. Aí dá-se a festa das sinapses e a “orgia” é segura.

Embora a imaginação seja individual e não se dê em todas as condições. Como aventava Auden: «A inteligência só funciona quando o animal não tem medo. Uma atmosfera de amor e confiança é essencial».

Com a imaginação é o mesmo e o outro drama que lhe é inerente é que a imaginação sem a acção não é nada, a imaginação é transformadora. Sem poder actuar, entristece.

Às vezes, dada a temperatura cínica em que mergulhámos, interrogo-me em quantos terá batido fundo o compromisso, que nos chega desde Pico della Mirandola, de que o homem não deve contentar-se com as coisas medíocres e deve aspirar às mais altas. Porque para isso é preciso que a imaginação transforme, que não haja um hiato entre o que se imagina e a acção.

É por contar com esse hiato que o Trump se dá ao luxo de dizer uma coisa no Discurso do Estado da Nação e de apresentar exactamente o contrário disso no seu Orçamento, uma semana depois. Razão tinha a sra., Pelosi em rasgar o seu exemplar do discurso à frente de todos, prevenindo aliás, Vocês verão o que vem aí.

O que é trágico hoje não é a vida (nunca vivemos tão bem, apesar de tudo), mas a tragédia da desistência do pensamento perante a vida, porque nos fizeram crer que tudo o que seja pensável será apenas a última ilusão que o mercado há-de converter em lucro, e esquecemo-nos de que há dimensões intocáveis, como, no dizer de Levi-Strauss, nos ensinam os mitos e a música: dimensões que promovem a suspensão do tempo.

É preciso voltar à utopia. Para Tillich as concepções animadas por um conato de transformação social “pervertem” o sentido da utopia por obra de uma crença cega no progresso. A seu ver, estas concepções “profanam” a aspiração legitimamente utópica, dirigida ao inatingível. Às dimensões que promovem a suspensão do tempo.

Quando o tempo se suspende, deixa de haver a necessidade de trocas, a mercadoria torna-se irrelevante, o desejo de ter volatiza-se.

É necessário voltarmos a crer com ímpeto nos efeitos da imaginação e que esta pode ser um agente para a utopia.

13 Fev 2020

Fadiga das pedras

[dropcap]A[/dropcap]lberto Manguel, o escritor argentino, conta-nos, em “No Bosque do Espelho”, o duro coice que o atingiu quando lhe disseram que o professor que mais importância tivera na sua formação e no gosto pela literatura era um bufo da ditadura argentina, o primeiro carrasco dos seus alunos.

É compreensiva a reacção de Manguel, devido ao anelo das emoções, mas labora um erro de perspectiva: a arte ensina a compaixão desde que estejamos comprometidos com ela, e, pelo contrário, funciona unicamente como mais um expediente quando dela nos servimos para outro tipo de intenções, se com ela travamos uma relação de heteronomia, de entretenimento.

O problema não está na arte, mas no tipo de “encontro” ou de “pacto” que com ela entabulámos. Manguel e o seu professor percorreram os mesmos livros de forma muito diferente, o assombro, o mistério e o diálogo com a alteridade que transformavam Alberto Manguel, parecia ter eco no teatro de efeitos do seu professor – era uma enganosa coincidência de percursos.

O Mal não abdica, não é uma privação do Bem, e aflora pela facilidade com que tendemos a desligar-nos da realidade, ou preferimos desrealizá-la, duplificando-a, a comprometer-nos no seu fluxo. Tudo começa nas modulações com que as ideologias nos alienam. Corrompidos, restam poucos recursos morais: um deles pode ser o nexo com a arte – que a espaços nos sacode e devolve a compaixão que nos desarma.

Se há quinze anos me ouvisse proferir a palavra compaixão daria uma gargalhada ou puxaria da minha pistola de esquerda. Era-me uma palavra abominável. Admitia lá coisas que não passassem pela minha decisão!? Porque a compaixão é um sentimento transindividual.

Vivo num país difícil, a muitos títulos uma farsa, e, para me manter à tona, em ouvindo a vassoura dos guardas anunciar a alba pego num livro desses poetas que incendiaram todos os horizontes, e traduzo-os, unicamente pelo amor à palavra, para manter-me em contacto com algo que me supera e catapulta acima da contingência. E quando saio à rua, a raiva com que acordei diluiu-se, a amargura cedeu o passo à alegria, a uma disposição que contamina. É essa a lição de Próspero na Tempestade: a arte encaminha-nos para a compaixão e só esta engendra o perdão.

Entretanto, há coisas imperdoáveis e a própria percepção do que seja ou não tolerável é uma fronteira flutuante.

Pensemos no escândalo francês do momento: o escritor Gabriel Matzneff, acusado de ser pedófilo. Seria hipócrita dizer que o caso não incomoda, a vários títulos. Todavia, também neste: está-se a querer regular excessivamente, de uma forma obsessiva e doentia, os limites da liberdade e do que seja ou não normal.

Lembro a histeria da pedofilia em Portugal, por causa do processo da Casa Pia: mais grave que os actos praticados por uns quantos pedófilos sobre uma dúzia de rapazes foi a barragem de medo com que os media destroçaram a confiança de uma geração de crianças que deixaram de ir brincar para a rua. Os jardins das cidades ficaram vazios, os pais estavam em pânico e incutiam isso nas crianças. Um efeito mais grave do que o risco (diminuto) que as crianças corriam até então de encontrar um pedófilo. Depois de Matzneff vai querer catar-se na história da literatura, e Dante, Almeida Garret, Sade vão ser os primeiros a serem proibidos.

Não é coincidência esta investida moralista acontecer numa época em que o Presidente do país mais poderoso do mundo é sujeito a um impeachment e poucos acharem que a democracia sofre um estupro quando Donald Trump declara, com o processo a decorrer, que o deputado democrata que lidera o processo de impeachment contra ele, Adam Schiff, “ainda não pagou o preço pelo que fez à América”, numa ameaça nada velada.

Não é coincidência poucos acharem que a democracia esteja sob estupro quando um vídeo revelado dia 25 mostra que o presidente afastou à má fila a embaixadora americana que não lhe servia as intenções, que Trump mentiu ao jurar que não conhecia o seu emissário na Ucrânia; ou quando John Bolton, republicano, acaba de confirmar que os democratas têm razão.

Que metade do mundo não veja nas acções de Trump nada de ilícito é sintoma de falência simbólica. E que enfadonho este mundo à medida que a pornografia moral cresce! Coitado do Clinton, quase caiu por causa de um charuto e da labilidade de alguns orifícios! Clinton mentiu à mulher e ao país por decoro. Trump, pelo contrário, mente compulsivamente e com descaro; mesmo se apanhado em flagrante é fake news, diz!

A mesma loucura, no Brasil. Os vazamentos da Intercept Brasil demonstraram que Moro e os procuradores da Lava Jacto tinham um projecto político de perversas intenções, mas a única coisa que metade dos brasileiros retém é a dúvida sobre se os jornalistas obtiveram as suas informações de “forma legal”, como se Sérgio Moro e companhia tivessem manipulado a seu contento a paisagem jurídico-política do país de “forma legal”.

É paradoxal que os eleitores das sociedades hiperindustriais, que se diziam saturados dos políticos reajam afinal contra os mecanismos de vigilância da política e troquem os programas políticos pelo suposto carisma dos políticos mais batoteiros. Eis o mundo cansado de si mesmo, como se houvesse uma imensa fadiga das pedras. Assim como acontecia com o professor de Alberto Manguel com a literatura, o nosso comprometimento com a realidade está a ficar espúrio, mais motivado pelo jogo das aparências e da ventriloquia do que pelo vínculo a qualquer fidelidade, a qualquer busca de dignidade.

E se a prática da política já não é o sentimento da “filia” (o sentimento do nós), da necessidade de reparação (social e económica) ou da vergonha e pelo contrário se esvazia de qualquer pudor, quem nos assegura que não estamos a ficar inclusive privados de instrumentos para que ela funcione como o evitamento da guerra?

6 Fev 2020

Allen Ginsberg

[dropcap]O[/dropcap] espectáculo que os EUA dão de si neste imbróglio do impeachement é deplorável. É um espelho onde já nada se reflecte, um palco psicóptico, perverso, pasto de abutres que se servem de expedientes espúrios para manter uma refeição que não passa de um holograma, dado que o clown no poder, de tanto desdenhar regras e ética e se julgar acima da lei, já mostrou à saciedade que o rei vai nu.

Neste dia 15 houve nova revelação: um colaborador do advogado de Trump, um videirinho chamado Parnas, contou, preto no branco, que entregou em maio, a pedido de Giuliani, um ultimato ao futuro presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, no qual se declarava que nenhum representante do governo americano participaria de sua cerimônia de posse e que a ajuda militar americana seria retida se não houvesse o anúncio de uma investigação sobre Biden e seu filho, Hunter.

“Trump sabia exatamente o que estava acontecendo”, assegurou à emissora MSNBC, “Ele estava ciente de todos os meus movimentos. Eu não faria nada sem o consentimento de Rudy Giuliani ou do presidente”.
Mas os Republicanos varrem a realidade para debaixo do tapete; a defesa que apresentam para Trump é a de arvorar uma suposta inconstitucionalidade no acto dos Democratas.

O próprio Biden – o que é espantoso – não vai à luta, não gasta munições na defesa da dignidade de um cargo que anseia ocupar. Ficamos a saber que antes de dispor-se a enfrentar tiranos e opressores pensará no custo político.

O mundo ficou reduzido à conversa fiada; atendamos ao pedido de Ginsberg, no seu Hino a Kali: “ajuda-me (deusa) na impotência de todos os meus eus/ e faz-me a graça, destino manifesto/ de nunca mais renascer americano”.

À conversa fiada nunca se entregou Ginsberg, que tem vindo ao meu encontro. O ano passado, comprei na rua uma biografia sua da 10/18, depois, procurando um livro de Jacques Darras topei com outro dele, dedicado a Ginsberg, adquiri-o; em novembro reparei que Kenneth White escrevera um livro sobre ele e não resisti.

E o que é certo é que muito para além de gostar ou não da sua poesia é inegável que Ginsberg era um homem com rosto, sem um cabelo de espessura entre o que era e o que fazia. Ginsberg foi um autodidacta, como Pound, menos preocupado com as técnicas da versificação e os acentos prosódicos, menos bulímico no apetite por culturas transversais, e menos interessado na procura de uma forma poética nova do que na de uma sageza de vida autêntica. Daí que tenha sido um poço de escândalos, não porque sim, antes por ser consequente com a sua noção de liberdade.

Em 1964, Richard Newton tirou-lhe, e ao amante Peter Orlovsky, a fotografia que ilustra a crónica. Em 1970, a foto foi publicada na capa da revista Evergreen. Foi uma pedrada no charco, como foram a publicação de Uivo, as suas participações em todas as manifestações anti-Vietname, a sua militância gay. Uma vez, numa leitura de poesia alguém do público perguntou a Ginsberg o que ele entendia por poesia. “Nudez”, foi a sua resposta. “Nudez? É vago!”, escarneceu o outro, e, como resposta, Ginsberg imediatamente tirou a roupa.

Não era de conversa fiada – consequente do primeiro átomo ao último cabelo.
Esteve presente, em todas festas, em todas as lutas. Foi detido várias vezes, voltou à primeira fila das trincheiras contra as manobras da CIA e do FBI, num país em que se mata por isso, escrevendo, assinando manifestos políticos, sem nunca descuidar os seus retiros búdicos e o estudo dos seus místicos.

Hoje faz falta alguém com esta dimensão, olha-se para os States e é um marasmo.
Em 2017, lembrando-me do Uivo (que volta a estar actualíssimo) e da sua importância na minha juventude escrevi esta homenagem:

“UIVO: Se encosto a lâmina ao pulso/ e num gesto sacudido ressuscito/ na carne que gorgoleja a estupefacta/ gaguez do Titanic, o que brota do rasgão// não é mármore de Carrara/ ou a expectoração dos lírios, por isso/ peço-vos, Não evoquem Deus em vão/ se vos parecer de mau gosto// que vos pragueje: “Puta/ que vos pariu, vão mamar/ na sexta pata do cavalo!”./
À velocidade com que os dias me// tropeçam dói o lábio rebentado/ com que tento ainda amar-vos,/ e assim não pode mais a poesia/  aquietar-se na literalidade do mundo.// Também eu vi os maiores espíritos/ da minha geração destruídos pela loucura,/ esfaimados, histéricos, nus, aspirando/ à tona do asfalto o que sobrava de pólen// às veias que uma agulha vitrificara;/ vi-os, aturei-os, caricatos, e vomitei-os,/ como capitonês sem sintaxe, / desacomodados acenos, ímpios// e fraternos como ossos de cão/ sem porto; ouvi-lhes as vozes espargidas/ pelas pás encardidas das ventoinhas/ dos mais reles hotéis à margem// de rios de pez; conheci-lhes o gaio desespero/ da alma, a fibrilação dos escarros, o sémen,/ e a liberdade demencial com que,/
transidos pela agonia das ressacas,// afinal se empanturravam em delícias do mar/ e maionese; transcrevi-lhes os sonhos./ Só pretendiam, à boleia da melancolia/ dos anjos, exceder o romantismo,// ou ter encontros com Deus num peep show./ De tudo isso me fartei, de salmos,/
de haikus acompanhados de batata frita,/ de paratextos em néon e da auto-indulgência/ dos malditos. Repilo agora qualquer pena/ de mim mesmo por não ter nascido/ um santo e se encosto a lâmina/ ao pulso o meu sangue galga, ganha/ a alacridade dos virgens, o aroma/ a caca fresca que um casco ervado deflagrou,/ – conseguisse eu ainda insultar a vida,/ mas tudo aquilo que em mim se perde// faz estrume! É-me pois indiferente/ se não me perdoam que, farto/ de queixumes, de pretos e brancos,/ de colonos e corruptos, me dane// para acompanhar-vos ao futebol,/ e antes escreva, com canivete, em apneia,/ (a cerveja é sempre preta), no tampo/ da autópsia de um país que vai falir.”

26 Jan 2020

O sonho tabalha

[dropcap]A[/dropcap]cordo. Três e meia da manhã, o delicado pipilar dos pássaros sucedeu-se à chuva. Interrompe um pato, rouco, espesso, como se pusesse uma rolha na garrafa.

Olho os livros amontoados sobre a arca chinesa e em cima destes o caderno que ampara a centena de folhas soltas que resultou da triagem anual dos cadernos, reunidas como seixos para serem escamados e dactilografados. É um castigo de frases soltas, de esboços, de citações e aforismos. Transcrevo as primeiras:

«“Há o homem e há também a omelete…”, garantia Lacan.»

«Não lembro donde tirei esta frase, mas acho-a magnífica: “o que me arrepia no cristianismo é a ideia desse Deus que poderia amar-me a mim!” De facto, que pobreza de espírito!»

«“Éramos como navios que se saudavam em alto mar, cada qual baixando a sua bandeira”, escreveu Jung, com grande compreensão da alma humana. E o afecto desata-se quando num pequeno escaler os tripulantes se cumprimentam, brevemente, confirmando: a vida é a rara despistagem da vida.»

«O seu olhar de gata incandescente promete esbrasear todos os campos de trigo que a placidez duma vida amealhou, mas eu já não estou virado para escaqueirar a rotina num gesto, no gesto. Por isso quando volta a espetar os mamilos na direcção das minhas íris e insiste: “professor, se eu tiver treze dispensa-me de exame, não dispensa?”, eu atalho: “Não!”.»
«Consideram-se os ossos palustres quando acima deles ainda sonha a carne.»
«A cobra, esfolada, ainda se mexia: Guimarães Rosa.»

«Tropeçou na longa ausência da palavra framboesa.»

«Começou a deixar os dias estendidos na corda da infância.»

«Não, meu caro Bernard Noel, a página não é um espaço mental, mas um hangar, um daqueles hangares enormes e com direito a nuvens esparsas e micro-clima, o que te pode constipar, ó poeta. Foi mais sagaz o Pessoa quando dizia que com ele estava o universo constipado.»

«Nascia o lagarto da cabeça de uma criança morta com meningite.»

«Eu amava-a, mas os seus acessos de tosse matavam em mim o melómano.»

«A mais perturbadora das experiências e simultaneamente a única em que à partida queremos descuidar é a do efeito do tempo em nós.»

«Só na língua materna se pode dizer a verdade, lembrava Celan. O problema é que levamos décadas a descurar a nossa pertença a uma língua e às vezes só despertamos para ela quando ela já nos virou as costas.»

«O título de um capítulo de Michael Certeau sobre a escrita, O Lugar do Morto e o Lugar do Leitor, faz-me jorrar a hipótese de que nas sociedades tradicionais o único leitor seja o morto, o único intérprete seja o morto, e que esse terá sido o escândalo da escrita: introduz um leitor exterior ao antepassado e ao invisível.»

«De cada vez que encontrava alguém e dizia, epá, vinha a pensar em ti, a pessoa evolava-se à sua frente.»

«”Traçam-se sempre duas margens: uma margem obediente, conforme, plagiária (trata-se de copiar a língua no seu estado canónico, tal como foi fixada pela escola, pelo uso correcto, pela literatura, pela cultura) e uma outra margem, móvel, vazia (apta a tomar quaisquer contornos) que é sempre o local do seu efeito: o ponto em que se entrevê a morte da linguagem” (Barthes): Gosto da expressão plagiária atribuída ao chão e pragmático uso da língua, essa face desenrugada, imaterial, duma língua suspensa sobre si mesma para servir um trânsito que a fantasmeia e lhe esquece as derivas, as clivagens, as sombras próprias. E o que se apodera do sujeito quando para ele a linguagem nunca foi objecto de fruição, nomeando tudo com letras mudas, em deflação? De que está possesso quando nunca pode assumir-se como margem ao que foi dito?

Que é esse algo secreto, anónimo, que o condiciona ao sentido literal?

Nunca dominei a língua e sempre lhe temi a morte nesta minha incapacidade para a expandir e magnificar. A minha deficiência, a minha inconsistência no seu uso, culpabiliza-me, é em mim terreno de conflito. Trabalhá-la, procurar o seu fluxo, é a saída provisória – a única cicatriz viável. Não sei como explicar isto a quem não o sente, a quem não compreende que o prazer do texto, como dizia Barthes, é uma agramaticidade.»

«No excerto do Manifesto do Surrealismo, de Breton, que Mário Cesariny traduziu para os seus Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial há uma gralha deliciosa, que transcrevo: «… quando ia dormir, Saint-Paul-Roux mandava sempre pôr sobre a porta do seu solar de Camaret o seguinte letreiro:”O POETA TABALHA” (pág. 67). Mais correcto não há: o sonho tabalha sem parar.»

«Philippe Sollers é, há já mais de sessenta anos, um dos mais prolixos e instigantes autores franceses e entre os livros dele que prefiro estão Casanova L’Admirable, a verdadeira cartografia da insurreição que é L’Écriture et l’experience des Limites, e o seu longo diálogo sobre Dante, La Divine Comédie.

Hoje reabri o livro sobre Casanova e voltei a verificar que nunca lhe falta o desassombro, a capacidade para pensar sempre de forma politicamente incorrecta, como neste delicioso excerto: “Conhece-se o disco: se Casanova se interessa de tal forma pelas mulheres, é porque ele era, sem se confessar homossexual. De resto, essas histórias de mulheres são duvidosas. Era preciso ter a versão delas. De todas as maneiras, que procura um homem nas suas múltiplas aventuras femininas senão a imagem única da sua mãe? Don Juan, não era, no fundo, homossexual e impotente?

Fala-se muito, nomeadamente, de homofobia, mas jamais de heterofobia: é estranho.”»

«Abrir um livro ao acaso e deparar com esta exactidão, de Lope de Vega: “como no sabe de amor, piensa que todo es burlar”».

A luz da alba recorta-se como uma lâmina. O pato calou-se. Penso, chega de missa, o que me apetece agora é um sumo de laranja. Levanto-me.

16 Jan 2020

Circularidades

28/ 12/ 2019

[dropcap]L[/dropcap]i hoje a pauta de “As Orelhas de Karenin”, que a Rita Taborda Duarte interpretou a quatro mãos com o Pedro Proença, e saiu-me nas margens dos poemas este escrito:

«A minha mão é uma ilha negra que extirpa nos galos a sua semente de alvorada.
Guardo os selos mais valiosos, dois, do tempo do rei dom Carlos, na carteira de mão – herdei-os duma avó, vai para nove anos – só para confirmar matinalmente, em tomando o meu chá verde, o enxuto e espigado recorte da serrilha. Miro-os, ainda a manhã anda a monte.

Há quem lhe chame tiques, prefiro resguardos.
Com a mesma pinça que me afina as sobrancelhas puxo-os para fora e examino-os detidamente; às vezes com a ponta da língua – eriçam-se, e as estampas ganham brilho.
Depois atraio um dos galos, com grãos de bico e um segundo antes que a voz da alba lhe ascenda ondulante do papo enforco-o com a linha do horizonte.
Empalho-os e alivio-lhes as penas com um verniz.
Estão-me todos gratos, juro por Deus, que me transmitiu:
se eu capturar em cada dia novas cristas, as serrilhas dos teus selos manter-se-ão incólumes.

Por isso ele não cantam, cá em casa, não é por mal sou até pela agro e pela avicultura biológicas.
Ganhei este hábito há cinco anos quando me vi nua, no quarto, à espera do meu noivo, depois dele – acabara de pôr a tocar na sala o The touch of your lips, do Chet Baker – se ter escapulido pela janela.
Gosto muito dos meus lábios, é do que mais gosto no meu corpo. Ele também, jurava, catucando-me com o seu bico de galo.»

29/12/2019

Como de costume, trouxe para esta semana de recolhimento na praia o dobro dos livros de que serei capaz de ler; trouxemos o dobro de comida de que seremos capazes de consumir; suponho que terei trazido o dobro dos ácaros, o dobro das espectativas, o dobro da impaciência; toda a vida arrastei comigo o dobro dos filhos que os meus amigos aturavam; tive o dobro dos casamentos, o dobro de inconsciência e irresponsabilidade; bebi o dobro do que me era devido (embora agora tenha trazido metade de bebidas do costume, o corpo pede e eu obedeço); escrevo, dizem-me, o dobro do que é comum escrever-se anualmente; tenho uma temperatura corporal, em média, um grau acima da que é comum, tive uma namorada que me chamava A minha botijinha; transpiro o dobro dos comuns mortais, é um ver se te avias; durmo, de comum, metade do que as outras pessoas dormem; peço sempre, numa encomenda, o dobro do tempo que preciso para a cumprir e metade do dinheiro que merecia (houve uma mulher que me chamava O meu idiota de estimação); é-me, pelo que é dado avaliar, duas vezes mais difícil cumprir um dever, tratar de burocracias (acabo sempre por pagar multas), escrever relatórios, etc.; no entanto sinto-me a pessoa mais desocupada do mundo, tortura-me a preguiça, o meu pendor para a procrastinação (nisto, a minha mulher, que acaba de ter uma grande ideia de editora, é absolutamente igual, e por isso levámos dezasseis anos para casar), assusta-me a minha moleza. Se houvesse um epitáfio justo, seria: Quem aqui jaz não conseguiu ter a arte do caracol, apesar da pretensão!

30/12/ 2019

Deito-me um pouco a ler na rede e só ouço o mar, o trinado dos pássaros, grilagens, os espanta-espíritos, zunzum dos besouros que têm a sua casa no tronco, atrás da rede. Não sei nomear nenhum destes pássaros e também o ar me parece inominável. Se olhar detidamente o jardim, não saberei o nome de metade das flores, arbustos e árvores. Este estado lacunar, paradoxalmente, transmite-me uma grande segurança. É como estar rodeado de gente que fala uma língua que desconheço – não me causa angústia. Nem pesar. Só me dá paz aquilo que desconheço. Como adquiri esta confiança no homem, no mundo?
Fosse eu crente e consideraria esta uma das provas da existência de Deus!

30/12/2019

Com as asas de quantos milhares de anjos caídos se fez a espuma do mar? Uma imagem justa para os tempos de Rilke, hoje, para não ser pires, só se ajusta aos entardeceres, em finais de ano muito solitários, como este que viemos passar à Macaneta, só eu, a Teresa e as miúdas.
Deve ser o último ano em que a Luna de 15 não exige passar com as amigas em festas ou discotecas. Temos de o aproveitar.

A Teresa fez um arroz de cogumelos magnífico ( – com cogumelos, curgetes, um nico de bacon, azeite e alho), e fomos depois à preamar tentar apanhar ameijoas.
Da última vez que aqui passámos o “réveillon” (faz dois anos) ouvíamos Toward the sea, de Takemitsu, e eu escrevi:

«É ao fim da tarde que a praia fica dourada,/ quando amansa o coração das dunas/ e os caranguejos reaparecem, na mira / de chorões, catando os últimos pedúnculos da luz.// A noite não retrocede.// Cada dia que nasce é novo, a noite/ é uma e não retrocede./ Decanta-se, porém, a resistência,/ apura-se como o vinho e amola as lâminas/ para o intérmino combate.// Inantecipável, meu amor, a Arca ascende, / da ordenação das vinhas/ para o extático desarme da música.»

As circularidades não nos cercam, bicefalam-nos, no amor, na música, no eterno retorno do dia, no regurgito com que cada final de ano deixa emergir da sua matéria suja o broto de uma nova era – nesta crónica.
Segundo o Youtube, uma profecia muito seguida dava o fim do mundo para 28 de Dezembro de 2019. Escapamo-nos de mais essa, meu amor.
Caiu-me bem o gin desta tarde.

10 Jan 2020

Leitura de Hölderlin

[dropcap]«E[/dropcap]l dios tiene sus propias medidas,/ él es solo un instante/ rozando apenas las moradas de los hombres,/ y estos, de hecho,/ no saben lo que es,/ y no pueden saberlo porque permanecen prisioneiros/ del género de saber con el que habitualmente/ conocen las cosas y las circunstancias y a sí mismos.» leio este trecho de Hölderlin em epígrafe, num ensaio do argentino Hugo Mujica. Comentemos:
… com o que habitualmente os homens conhecem as coisas e as circunstâncias e a si mesmos: mesmo que ligadas pela copulativa e parecem os termos de relação descosidos, pois não se apresentam ainda organicamente fundidos num nexo.

São os deuses quem lhes dá a medida, quem lhes empresta o viés inesperado que os colocará em relação, na sincronia de um exercício respiratório que os transitará para um nível diferente de significação. Contudo esse discernimento – um relâmpago tão afim a Heraclito, Hölderlin e Gonzalo Rojas -, eis a desgraça do homem, só dura um instante. O que coincide com esses raros momentos em que os deuses fazem morada nos homens e permitem que estes acedam ou ascendam ao modo de relação que harmoniza momentaneamente o caos e elucida uma unidade até aí fora do conceito.

Não admira que o homem aspire à embriaguez, como diria Nietzsche, um plinto para a intensificação da potência, e que Platão lhe associe o entusiasmo. Sem esse súbito dom que areja a coagulação de um sentido as coisas estarão desligadas das circunstâncias, e o homem delas e de si mesmo, posto que a sua plenitude só se cumpre no âmbito da relação. Mas esta, se organiza os liames, permanece na sombra e antes do engendramento que a ilumina é vivenciada como obliteração, impotência, mistério, até que incarna e se faz presença.

Talvez ajude a pensar esta asserção de Hugo Mujica:

«Para o conhecimento funcional, para o olhar cativo da utilidade, as coisas não se manifestam, não são na sua liberdade, são o que eu delas capturo, não o que têm de dom. Elas são apenas o que são para mim. Elas não são em e desde si, elas são desde e para mim. Elas são o preço, não a gratuidade.»

O preço corresponde ao que é mensurável no “meu” interesse, de ente isolado.
Nós capturamos as coisas, as circunstâncias, uma iludida auto-percepção de nós, utilizamo-las, mas numa perspectiva utilitária e parcial – não as captamos. Isto só acontece em deixando que elas se manifestem na sua liberdade, na dança da alteridade. O dom é esse abrir-se à música da relação, abertos os poros à ressonância, à gratuidade que lhes restitui a virtualidade dos possíveis. Antes disso o mundo dorme, as coisas estão lá mas não estão presentes, padecemos das circunstâncias sem as libertarmos, e somos o sonâmbulo de entorpecentes automatismos.

A presença é afinal o alheamento de si numa floração para o outro, que o jogo activa, tornando o homem palustre e precariamente despertado para o fragor das imagens que o impelem à escuta.
Este é um outro nome para a poesia.

Para quem recebe uma vez a visita de um deus, difícil é depois separar-se. Quem conseguiu ler uma vez o padrão que dava uma unidade ao que parecia separado não esquece mais, quer a irradiação que ganhava cada coisa singular, magnificada, quer o fluxo da relação. Mesmo que essa indivisibilidade se manifeste de forma invisível, como no poema de Alberto Pucheu, Incapturáveis: «Desde criança, no Socavão, alguns dos sons que mais me impressionam/ são os dos bugios no alto das árvores das montanhas./ Dizem que eles emitem esses sons reverberantemente graves/quando se aproximam para encontrar água, quando a água falta/ nas distâncias em que vivem. Não sei se é isso mesmo./ Sei, entretanto, que, apesar de frequentar o vale desde que nasci,/ nunca os vi, que, mesmo que já os tenha escutado em bando muito de perto/ quando, uma tarde, caminhava pela mata,/ eles jamais se ofereceram ao meu olhar demasiadamente humano para eles./ Talvez eles estejam me ensinando um outro modo de conviver com eles/ desde o ponto de vista deles: que eu os ouça, mas não os veja./ É mais provável, entretanto, que eles não estejam me ensinando nada,/ que eles apenas estejam lá, vivendo a vida deles,/ res-guardando o afastamento necessário para suas sobrevivências/ em modos minimamente possíveis, pacíficos, incapturáveis./ É mais provável ainda que, incapturáveis,/ não seja nada disso do que digo o que ocorra com eles/ enquanto, mais uma vez, escuto seus urros sobrepostos/ zoando pela floresta dentro de mim.»

Mesmo nascido do invisível é a escuta o penhor da confiança, o seu albor. O que pede o retorno a uma certa nudez, a um desencapsulamento dos graus de atenção na palavra; que nos aliviemos de afunilar o olhar como o lenhador que o Tolstoi evocava ao lastimar que há quem atravesse o bosque e nele só veja lenha para o fogo.

Mujica corrobora-o, escreve:

«Pode-se olhar ou, valha a redundância, fitar com o olhar. O recém-nascido – os olhos que ainda não nomeiam – olha com os olhos ainda corpo, ainda tacto, com a carne inteira; o adulto já não olha, fita, não já com os olhos mas com a intenção, o adulto, como adulto adultera: antecipa… Não conhece, reconhece; não sente, pressente.

No olhar descuidado de si, em atenção aberta, em vez de perceber a realidade regida ou/e de a reger pelos nossos interesses e desejos, o olhar libera os laços que a ligam à vontade e também à simples razão e abre-se para acolher o mundo, quase se diria que nasce nele. Calam-se as distinções e suspendem-se as apropriações: expande-se a percepção no acolhimento.»

Que medidas tem, pois, o deus? As que a sua visita arma em nós, quando impele nos vasos a abertura das corolas e nós lhe emprestamos o perfume.

19 Dez 2019

Um poeta esquecido

[dropcap]O[/dropcap] Raul de Carvalho (1920-1984), pessoalmente, era um chato. Comprava-me sobretudos e telefonava-me às sete e meia da manhã a contar-me, quando o telefone lá em casa estava no quarto paterno e o meu pai havia chegado do serviço às quatro e meia da madrugada. Irritado, este agredia com o nó dos dedos a porta do meu quarto e gritava, Telefone. Meio minuto depois, muito estremunhado, encostava o alto-falante ao ouvido e enfrentava aquela voz grossa e espessa de quem tem crude na língua: António, é o Raul, o teu pai é muito simpático, comprei-te um sobretudo… E eu, embaraçado, na mira do meu pai, A que propósito, Raul? Vai-te fazer falta… Bom, encontramo-nos logo às dezassete no Monte Carlo e então explicas-me… Estávamos em Agosto. Às cinco da tarde lá lhe rejeitava a prenda, pela enésima vez, porque no carinho dele cabia uma ponta de venalidade.

Na semana seguinte voltava ao mesmo, mas como a ansiedade ia crescendo telefonava meia-hora mais cedo: António, comprei-te uma gabardina… É Agosto!, respondia eu. Vai-te fazer falta…

Era assim desde que, saído da Escola de Cinema, lhe telefonara a sugerir um documentário sobre ele. Projecto para o qual não consegui financiamento mas que me faria objecto de um assédio ininterrupto durante dois anos: o Raul cria firmemente que quem não fosse homossexual acabaria por vir a sê-lo, inapelavelmente. E o facto de ter sido publicado pelo Al Berto – aos olhos dele – só o confirmava: esse gesto não poderia ter acontecido sem uma cama de permeio.

Em nova tentativa de lhe inibir as intenções levei a minha noiva (uma jovem arquitecta e tão bonita que eu costumava dizer que a cantora Sade era a irmã feia dela) a uma festa em casa dele. Recebeu-nos à porta. Tomou-me a mão e olhou-a de alto a baixo, circunspecto, para no fim soltar a sua estentórea sentença (ele era surdo e falava sempre cinco decibéis acima): Ó António, ela não te merece!

De outra vez combinei ir ao lançamento de Mágico Novembro, obra que seria apresentada pela Natália Correia. Ele levar-me-ia uns materiais de que eu precisava para acabar o guião. Quando chegou passou-me um saco e pediu-me, António, se não te importas aí no saco vão também uns livros para dar a um amigo, depois peço-tos…

Foi nesse lançamento, coberto pela RTP, que ele assumiu a sua homossexualidade com uma franqueza desassombrada: Eu sou homossexual porque gosto de rapazinhos, não é verdade? Ainda ecoava a sua declaração quando uma cabeça assomou na porta, e ele tergiversou: Joaquim, ainda bem que vieste, trouxe os livros para ti, importas-te António de dar já os livros ao meu amigo? E a câmara da reportagem galgou o anfiteatro para dar um grande-plano do jovem infante, esbelto e escanhoado, que tanto podia ter dezassete como vinte e dois, a retirar do saco os livros pedidos. Não sei se na reportagem aproveitaram esse plano em que fui o centro das atenções mas durante anos passei por ter sido o rapazinho do sessentão Raul de Carvalho.

Duas anedotas, de entre as muitas que poderia contar e que rechearam o nosso relacionamento.
Estava-me nas tintas para a minha reputação e quando ele se esquecia dos objectivos últimos tínhamos encontros e conversas de alguma voltagem, tendo aprendido com essa amizade – obrigatoriamente, de convívio sazonal.

Há trinta anos que não o relia. Descobri que a biblioteca do Camões, em Maputo, tinha o volume onde se reúne toda a sua obra editada, um tomo com mil páginas (- o segundo volume com a obra inédita seria igual, mas nunca saiu), e requisitei-o.

Reli-o de fio a pavio. Mantem-se a opinião que já tinha: é um poeta muito irregular mas com picos extraordinários, e não merecia ser conhecido só por causa de Vem, serenidade, és minha… Estas mil páginas reduzidas a duzentos e cinquenta dava um livro de assombros.

E, no entanto, este é o paradoxo que o mina, isso seria traí-lo.
O Raul escrevia todos os dias das seis às nove, dez horas, e a sua obra seguia uma pulsão diarística, de preferência e gradualmente imersa no que ele professava como estética da banalidade (assim chegou a intitular um livro), atitude que nos anos noventa teria o seu avatar nos poetas sem qualidade, epíteto com que provocatoriamente Manuel de Freitas imporia uma geração. No seu projecto, muito pasoliniano, o sujo, o quotidiano, a vida, infiltravam o artifício e as sublimidades a que “a poesia” propende: em vez da maturação alquímica, Raul perseguia o fulgor do imanente, num desapego crescente e de enorme coragem, que preteria à obra a vida. E nisso estava à frente do seu tempo. Inexplicavelmente, não terá sido entendido cabalmente nem reivindicado, o que é tanto mais estranho quanto nele as euforias e disforias associadas ao corpo, ao desejo e à sua (homos)sexualidade estão presentes desde muito cedo: «Aos morenos marcianos com olhos cor de oiro/ dedico este poema/ feito no intervalo dum beijo ou dum crime.», lê-se num poema editado em 55.

Dois poemas dos últimos anos, ambos de 1983: DAMIARDO: «Damiardo, um anjo que para ser ladrão/ foi roubar às vindimas cachos de uvas, /aciduladas uvas que o rodeiam na cela./ Cheiram ao perfume das claras serras, dos claros vales/ adornados de perdizes, rolas, pedras/ velhas, covas rubras, cobras bravas,/ limoeiros, rebeldia./ Damiardo deita-se de rastos, tarde acorda./ De bruços Damiardo se deita./ Beija com alguma doçura./ Coitado do Damiardo, jovem cão./ Todos se riem dele, à sucapa./ Todos lhe vão ao cu./ Damiardo se deita e se levanta com a sua cruz: /Ser, ter sido, uma criança amaldiçoada.» E já que estamos em Macau: CLEPSIDRA: Mastigando ossinhos, pedacinhos de ossos./ Transitivamente. / Um copo de vinho. Uma laranja./ A paz do olvido.”

12 Dez 2019

Dos labirintos: um diálogo

[dropcap]O[/dropcap] homem foi o primeiro ready-made de Deus: eis como agora parece começar a desalentadora História da Humanidade. Mas o inesperado pode interceder e aliviar-nos, como na felicidade de ter baixado um livro de Charles Simic, O Monstro Ama o seu Labirinto (na tradução espanhola) e lê-lo de rajada. E entra assim:

«Muito tarde na noite, na rua MacDougal. Acerca-se um velho e diz: “Senhor, estou escrevendo a história da minha vida e preciso de uma moeda de dez centavos para acabá-la”. Dei-lhe um dólar.»
Com o que sobra ao centavo o velho vai ter com que reencarnar, para contar outra história de vida. O que me lembra a regra de Canetti para identificarmos a arte: quando encontramos mais do que aquilo que foi perdido.

Este é um livro de notas diarísticas, de ímpetos e aforismos, de comentários ao jogo da escrita e à esgrima desta com os seus leitores e críticos, num magma heteróclito e permeado de breves, deliciosos, flashes de infância ou doutros recantos da memória.

«Mentia um pouco? – diz Simic, sobre si mesmo – Claro. Dir-se-ia que havia vivido anos na Rive Gauche e que por hábito me senta.va nas mesas dos cafés famosos, de olho preso nos debates apaixonados dos existencialistas. O que justificava tais exageros aos meus olhos era a possibilidade real de que poderia ter vivido algo assim. Tudo na minha vida parecia o produto do acaso, encadeava uma série de eventos improváveis, então, no meu caso, a ficção não me soava mais estranha do que a verdade. Como quando eu contei à mulher no trem de Chicago que era russo. E descrevi-lhe o nosso apartamento em Leningrado, os horrores do longo cerco durante a guerra, a morte de meus pais diante de um pelotão de fuzilamento alemão, na nossa presença, os filhos, os campos de deportação na Europa. Nalgum momento daquela longa noite não tive outro remédio senão ir à casa de banho rir a bandeiras despregadas. Ela engoliu as minhas petas? Quem sabe? Na manhã seguinte, deu-me um longo beijo de despedida, que alguma coisa haveria de significar»

Para Brodsky, “a história da consciência inicia-se com a primeira mentira”, e acrescentava: “acontece que eu recordo a minha.” Não recordo a minha primeira mentira, mas adoraria mentir sobre isso, pois não me custa a acreditar que ele tenha razão. Como combinar o “direito de mentir” e a ética – é a questão que se segue.«O poema que quero escrever é um impossível. Uma pedra que flutua.»

Completamente, por isso me atrai a metamorfose. E o quotidiano só me interessa como superfície porosa, onde por trás do familiar irrompa o estranho, o neutro que antecede a intensidade, o amorfo que acicata os elementos a mudarem de natureza e figura.

Duas outras notas em que me revejo: «Se trato tudo ao mesmo tempo como uma piada e como um assunto sério, é porque honro o eterno conflito entre a vida e a arte, o absoluto e o relativo, o cérebro e estômago, etc. Nenhuma filosofia pode nos faz esquecer uma dor de dente … algo assim.»; «Impulsos contraditórios no fazer do poema: deixar as coisas como são ou voltar a imaginá-las; representar ou recriar; submeter-se ou afirmar, artifício ou natureza, e assim por diante. Como a vaca, o poeta deveria tem mais de um estômago».

Eis o que nos atraía em jovens: «”Tem imagens estupendas”, dizíamos, e o que queríamos dizer era que o poeta não nos deixava de surpreender-nos pela natureza selvagem das suas associações. O nosso ideal naquele tempo era a liberdade total da imaginação. Isto é o que amávamos e o que exigíamos da poesia que nos propúnhamos escrever.»; daí que me fatigue verificar como hoje a imaginação se tornou suspeita. Voltaram o recato e as regras. Talvez daqui a vinte anos o Michaux apenas seja lido por um grupo de fanáticos.

«O inventor da metáfora moderna, Arthur Rimbaud, considerava-se um vidente. Soube ver que a ambição secreta de uma metáfora radical é metafísica. Podia abrir novos mundos. Podia tocar o absoluto. Abandonou a poesia quando começou a duvidar desta verdade.»

Cada poeta assemelha-se ao mestre budista que em jovem pensava que as montanhas eram montanhas e os rios rios, e que depois de anos de estudo e devoção decidiu que as montanhas não eram montanhas nem os rios rios, para no fim da vida, já era mais velho e sábio, ter logrado compreender que as montanhas são montanhas e os rios rios. O Rimbaud só compreendeu pela metade, nem pressentiu o que monge budista calou: que depois da última travessia do deserto talvez voltem os símbolos a ser «deidades momentâneas».

Outra nota espantosa: «Nietzsche: “Um pequeno animal exausto com os dias contados” propõe “o objeto do seu amor”. Disto se ocupam os meus poemas.» De como dotar de dignidade os perecíveis, portanto – é difícil achar melhor projecto.

«A forma é “sentido do ritmo”, essa medida exacta de silêncio entre palavras e imagens que as torne significativas. Os cómicos sabem muito bem de que falo.»

Também me palpita que, amiúde, a forma é apenas a sábia exploração de um irrepetível sentido do timing entre os elementos da relação que o texto aflora, coloca em presença. Por isso quando me perguntam o que ocupa mais na escrita de um romance eu invariavelmente respondo: o ritmo.

«O que a esquerda e a direita políticas têm em comum é o seu ódio à literatura e à arte modernas. Agora que o penso, todas as Igrejas compartilham esse ódio, o que nos deixa sem muitos apoios. Por um lado, temos o rico imbecil que colecciona latas de sopa de Andy Warhol, e por outro o pobre rapaz enamorado dos poemas de Russell Edson e Sylvia Plath. Deus nos valha!»

E aonde isto nos conduz? Talvez a este estado merencório da actualidade: «”Ela fingia um orgasmo de cada vez que se masturbava”, escreve um gracioso anónimo num tabloide.”

5 Dez 2019

Os fantasmas da língua

[dropcap]B[/dropcap]aixei uma nova antologia de Nicanor Parra e leio o primeiro poema, o que me transporta às dúvidas sobre uma tradução possível para “angelorum”, que em castelhano corresponde ao genitivo plural de anjo.

Como me é absolutamente adversa a relação com a gramática resolvo certificar-me e eis o enunciado: «O caso genitivo é um caso gramatical que indica uma relação, principalmente de posse, entre o nome no caso genitivo e outro nome. Em um sentido mais geral, pode-se pensar esta relação de genitivo como uma coisa que pertence a algo, que é criada a partir de algo, ou de outra maneira derivando de alguma outra coisa. (A relação é normalmente expressa pela preposição de em português.) Já o termo caso possessivo refere-se a um caso semelhante, embora normalmente de uso mais restrito.» Felizmente, as crianças aprendem a falar antes de lhe ser impingida a gramática, de contrário redundaria num “descaso”, numa pleurisia.

Voltemos ao angelorum. No dicionário de português online só encontro a sugestão de que significará algo próximo de “angelizar”, embora se adiante uma hipótese esquisita, apresentada como norma brasileira: “Ângelo rum”.

Mergulho no Aurélio, que tem muita cachaça, mas nada encontro. Interrogo-me se seria lícito usar angelorum no mesmo sentido em que se diria: o mangano empregou todo o seu “latinório”! – embora isto não nos dispense de encontrar o símil para anjo.

Mas, curioso (ou disruptivo?), no dicionário online, é o que se faz seguir a angelorum, imediatamente colado: Dúvidas linguísticas para “par”: o correcto é “um par de meia” ou “um par de meias”?

Será difícil a partir de agora resistir à tentação de ver todos os anjos de peúgas. Eis-me a experimentar o problema que tinham os actores do Peter Brook quando ele os mandava para um canto da sala de ensaio, com a recomendação: Deixa-te estar aí meia-hora e não penses no urso branco!
Anjos de peúgas: uma imagem francamente obscena, kitch e digna de um Jeff Koons, que acrescentaria um rebordo dourado. Foi-me infiltrada.

Há cinquenta anos atrás seria difícil encontrarmos justapostos num dicionário anjos e meias, só o desuso e a desvalorização simbólica dos anjos o autoriza.

Também nunca me passou pela cabeça que fosse possível chegarmos a um momento em que uma palavra tão carregada como angústia se afigure volatizada, desaparecida de todas as pautas – os químicos varreram-na com a facilidade com que se desactiva o alarme no telemóvel?

Não sei como está a situação no que se refere ao português, mas no prólogo do dicionário etimológico da Língua Espanhola, de Corominas, diz este académico que em nenhuma outra língua são tantas as palavras fantasmas como na castelhana. E observa Octavio Paz, que nos dá esta informação: Eu estremeço só de pensar que há palavras que perderam o seu corpo, palavras que flutuam e que não sabemos já o que querem dizer.

As palavras têm um talo histórico que as alimenta e que depois perdem, secando ou fenecendo, ainda que, ao jeito das estrelas, durem com fantasmas. Sabia-o. Mas chocar com as evidências faz-nos abanar.

Em Moçambique é essa a impressão que tenho quanto ao uso do português: há um fantasma na grelha que (à força de o virarmos para não esturricar?) se decompõe à vista desarmada. Claro que há, paralelamente, um fluxo de recriação da língua, dado que um rio se faz de muitas correntes desencontradas que se vão compensando a montante e a jusante, porém, se as dinâmicas colectivas têm sempre um lado de sombra, escamoteá-lo parece-me desonesto.

Tenho uma idêntica sensação ao assistir a alguns programas populares nos canais de tv brasileira: às vezes coincide o português com o linguajar que ali se exprime, mas, em fundo, borbulha outra coisa.

Não digo que seja bom ou mau, só constato que por vezes se burla a língua em nome da comunicação, e que nesta batota nem tudo me parece saudavelmente transgressivo. Transformar substantivos em verbos pode ser enriquecedor, mas que ao mesmo tempo só se saiba empregar os verbos no infinitivo soa-me a amputação.

É natural que as línguas sofram recriações morfo-sintáticas, mas já me traz apreensão o laxismo que lhes avoluma os fantasmas.

Em quantas palavras se vertebra a letra no comboio, quando o espírito já saltou fora? Ou perdão, o corpo. Palavras que já só servem para ready-mades, esvaziadas de outro significado que não seja o rasto do seu travestimento, da deslocação. Em Moçambique, por exemplo, todo o estuário semântico associado à palavra democracia está moribundo, apesar das aparências.

E num pântano, não só proliferam os miasmas e doenças do catano, nas suas águas insalubres ficam certos talos impossibilitados de se desenvolver, volvem impensáveis.

Não sei se as palavras não se assemelharão às pessoas: a partir de determinado mau-estado mostra-se inútil a respiração boca-a-boca, qualquer tentativa de reanimação.

Porque tudo se distorce com o tempo, sem que demos conta. Surpreendente, por exemplo, o que se passa com a nossa concepção de oração, ao arrepio da original, como nos esclarece o poeta José Angel Valente em El Angel de la Creacion: «Vulgarmente a oração foi definida como um estado em que se fala a Deus (…)

Ora, dentro da tradição cristã, que é uma das tradições mais desvirtuadas do Ocidente e, é claro, em quase todos os contextos religiosos, do zen aos ritos afro-cubanos, os estados superiores de oração são descritos não como um discurso e menos como um pedido, mas como o ponto de uma cessação do discurso, como o estado em que alguém parou de falar para abrir caminho para a palavra», ou seja, para a Palavra poder emergir a partir do silêncio que finalmente se fez. Talvez com mais silêncio os fantasmas tomassem corpo. Eu, como ateu, acredito nisso.

28 Nov 2019

Regressar a quê

20/11/2019: sete da manhã

 

[dropcap]D[/dropcap]efinitivamente, em Moçambique não se deseja a visita do estrangeiro. Há um ano e picos, um paquete atracou a duzentos metros de Maputo e cerca de 500 turistas pediram vistos para visitar a cidade. Sem explicação, foram corridos com uma nega, e assim se impediu também que o comércio local tivesse um dia mais feliz. Autorizar que tantos estrangeiros, de uma vez só, se inteirassem sobre a floração vermelha das acácias, a escassez do comércio, os escaninhos, as grades, e as capulanas made in Taiwan da cidade, não interessava às autoridades; menos ainda que os turistas solteiros alegrassem as putas da ex-rua Araújo.

Maputo é uma bela e pacata cidade, apesar da decadência, assim classificada por um amigo meu que chegou com a mulher de jipe, desde o Cairo, depois de ter atravessado África inteira: mas isto é Paris, é aqui que ficamos! Tem, portanto, algum encanto. Mas as autoridades detestam as brisas do cosmopolitismo, mesmo que com prejuízo do turismo.

É uma das coisas que explica o absurdo de se ter aumentado os vistos de visita ao país para 200 euros – isto depois da solidariedade internacional que o país recebeu por causa do Ciclone Idai, que devastou um terço do país.

A minha filha mais velha, para me visitar, tem de escolher entre comprar um pacote de uma semana de visita a Puerto Rico, para ela, marido e filhos, por mil euros, ou vir a Moçambique gastar oitocentos euros só nos vistos de entrada.

É isto que me vem ao sair do avião e ao entrar na sala de controle das entradas no país, onde se têm de preencher formulários à mão com a mesma exacta informação que depois ao balcão a digitalização dos documentos introduz no sistema, e onde diante das enormes filas de visitantes se deixam mais de metade das cabinas que podiam acolher funcionários da alfândega vazias, de modo a tornar mais árdua a entrada no país. Depois de dez horas de avião, no meu caso, eis-nos escamados de modo maneirinho neste peditório, numa banca ao sol (também o ar condicionado se mostra arredio), no mínimo uma hora, para aprendermos de imediato que aqui só a resiliência pode germinar.

Finalmente entramos no país, como se um tremendo favor nos tivesse sido concedido.

20/11/2019: dez da manhã

Arrumo na estante os livros que trouxe de Portugal e constato que a grande percentagem dos autores que comprei são mulheres: Olga Tokarczuk, Ali Smith, Linda Lê, Hélia Correia, Anne Carson, Nathalie Heinich, Luísa Freire, Isabel Nogueira, Annie Ernaux. Mesmo os oferecidos, como o último da Rita Taborda Duarte, ou os que planeava comprar, como o livro com que a Tatiana Faia ganhou agora o Prémio Pen, ou os últimos da Dulce Maria Cardoso, e que o problema com o peso da minha carga adiou para uma próxima, são igualmente de mulheres. Definitivamente, há na literatura deste momento ou no pensamento uma vaga que se pronuncia no feminino e que me parece mais fecunda do que aquilo que os criadores masculinos andam a fazer.
Outra coisa constato, a avaliar pela explosão capilar de livrarias de livros de fundo em Portugal: a indústria do livro está em profunda agonia, embora não veja ninguém a querer reflectir sobre isso.

20/11/2019: 13 h

Não faço a menor ideia a que país regresso. As notícias abafam-se. O que realmente se passa no norte ou no centro de Moçambique é filtrado e vivemos numa bolha alheada da “verdadeira realidade” que nos acena lá fora, à espera de oportunidade para entrar.

Num livro intitulado Um Espião na Casa do Amor e da Morte (Lisboa, Arranha-Céus, 2015) escrevi: «Só na Beira, o livro de ocorrências do Gabinete de Apoio à Mulher e Criança Vítima de Violência Doméstica, registava cento e sete casos de crianças “perdidas e achadas” para o período de Janeiro a Maio de 2010. Imagine‑se este número multiplicado pelas cidades e pelos distritos do país – milhares de crianças desprovidas, famintas, que adquirem cedo a morfologia da sobrevivência e se movem na sombra como a lava de um vulcão iminente.

Não nos parece que este exército na sombra sucumba inteiro à gadanha da malária e admitimos, com alguma apreensão, que aquilo que Moçambique neste momento produz com maior vigor industrial sejam batalhões de moluenes (os miúdos rua), que um dia, como os gafanhotos das pragas do Nilo, marcharão rumo às cidades.

E uma situação da qual toda a gente parece alheada: ninguém ousa imaginar o suficiente. Entretanto, muitos desses moluenes serão com certeza recrutados para as fileiras militares da Renamo, um partido que, apesar de ter assento na Assembleia da República, não desmobiliza o seu exército… », ou, diria agora, para quaisquer bandos de insurgentes, como os que actualmente tornam Cabo Delgado um pasto para decapitações, a cobro de ainda não se sabe que reivindicações políticas.

É a este país que se esconde sob o tapete, no gesto suicida de fugir a quaisquer esforço de análise das condições com que compromete o seu futuro, que regresso, o que me faz citar a Rita Taborda Duarte: «Eu regressado a ti pela garganta/ por um fio esgarçado de vida/ e tu sorrindo sempre – cabra – do eufemismo/ com que chamam fio/ à corda que entrançaste no meu pescoço».

21 Nov 2019

O encontro

[dropcap]C[/dropcap]ircundou-me sentando-se à minha mesa, num gesto felino, sem pedir licença. Ela e a sua canadiana. Olhei-a de soslaio. Fiquei surpreendido, era o retrato da minha avó materna aos quarenta e picos. O meu olhar dividia-se entre o ecrã, onde o Liverpool fulminava o City, e aquela efígie de nariz em gancho, o cabelo preso noutros dois ganchos, e a mirada compassiva que visava a cadela enorme que começou a ladrar nas minhas costas: Estrela deita!, ordenou. No que foi obedecida.

Olhei a bisarma, a sua cor impossível, de madrepérola. Ela sossegou-me, Muito meiga, catorze anos. Fixei-lhe o rosto, via como a minha avó fora bonita, um sorriso solto enfeixado no brilho dos olhos. Fez um aceno com a canadiana e diz-me, como se encantada, Oito anos, um AVC. Dizia-o e sorria.

Colou-se-me um ar espantado, perguntei, Que fazia antes? Pegou sem cerimónia na minha lapiseira, pousada no caderno aberto, e começou a redigir uma palavra com dificuldade, letra a letra. A meio adivinhei: Socióloga. Isso, acrescentou, sublinhando com o indicador, na amabilidade que se oferece límpida. Oito anos, AVC, repetiu. Mas muito feliz, esclareceu, rindo, antes de rematar, É a vida! Era impossível não acreditar, irradiava. Tive cadeira de rodas, agora canadiana, orgulhava-se. E consegue ler? Lia muito, hoje difícil, escrever difícil, ler difícil… É um problema de concentração, anui. Isso, apontou a cabeça, desenhando com a mão o lóbulo, Muito afectado!, antes de lhe sobrevir um novo sorriso traquinas e de voltar: Sou feliz! E com tal condão o afirmava que era impossível descrer, mesmo imaginando como teria perdido a fala e a conquista que fora aceder de novo à palavra. É a vida!, repeti eu.

Conversámos durante vinte minutos. Entendia tudo, rápida e sagaz, apesar das dificuldades na fala e de tropeçar nalgumas sílabas que lhe pedalavam no vazio. Tinha um filho de dezasseis anos, que agora vivia com o pai. Tiveram de ir embora… impossível, com isto… mas visita-me! – acentuava, com o ar de quem recebe uma graça! Reformada por invalidez!, gaguejou, espreitando-me os livros, sobre a mesa, curiosa. Mas muito feliz!, repetia e o seu sorriso não autorizava pena, antes contagiava.

Depois a cadela começou a ficar impaciente. Quer ir embora… farta! É a sua guardiã, mede-lhe os tempos de tolerância… – brinquei. Isso! E ri muito. Estrela, espera!
Saiu pouco depois, aquela mulher (onde se sobrepunha o retrato da minha avó paterna, também ela espontânea) que fora tu cá tu lá com o Pierre Bourdieu, mas agora se conformava a um expressão afásica, castigada, embora serena, de uma tão nítida alegria de viver com o seu poucochinho, que me perturbou; foi mesmo o encontro que mais me impressionou nesta visita a Lisboa.

Acabou o jogo, emborco o vodka e rumo a casa, rememorando aquele sorriso que me tamborila no crânio. Recosto-me no sofá, abro a net e leio esta notícia:
«As autoridades russas detiveram este sábado um conhecido professor e historiador suspeito do homicídio de uma aluna de 24 anos, com quem colaborara em vários trabalhos.

Oleg Sokolov, professor na Universidade de São Petersburgo e condecorado com a Legião de Honra da França, foi apanhado pela polícia local depois de ter caído ao rio Moika, na mesma cidade, enquanto tentava desfazer-se do corpo desmembrado da jovem. Estaria bêbado.
Ao ser resgatado, a polícia encontrou dois braços humanos dentro da mochila que carregava. Na habitação do historiador estavam as restantes partes do corpo de Anastasia Yeshchenko, a aluna com quem Sokolov colaborou em diversos trabalhos.

Alexander Pochuyev, advogado do suspeito, confirmou à AFP que este já confessou o crime e que está a colaborar com as autoridades. Disse que matou a jovem, com quem alegadamente mantinha uma relação amorosa, depois de uma discussão.

O homem terá dito ainda que tinha planeado desfazer-se do corpo para depois cometer suicídio em público, vestido de Napoleão. Sublinhe-se que foi consultor em vários filmes históricos e escreveu vários livros sobre Napoleão Bonaparte.»

Que contraste, entre a nobreza daquela mulher incapacitada, cuja inteligência correra outrora a alta velocidade até à hemorragia que a estancou, e que vive de poucos acordes e das dádivas de um presente amarrado à difícil artesania das palavras e ao pontilhado das sensações, mas ancorada num evidente equilíbrio emocional, e este grosseiro Napoleão de pacotilha, a quem a cultura e as honras só perverteram, uma besta de pomposa fatuidade! E tantos conheço iguais!

Lembro-me de Transtromer, do poeta sueco a quem em Novembro de 1990 um derrame cerebral atirou para uma afasia profunda e para o silêncio de três décadas, entregando-se à sua grande paixão: ouvir música. E lembro-me sobretudo deste seu poema, de que fiz uma versão: «Farto dos que chegam atulhados/ em palavras e nomes – uma algazarra / mas nada de linguagem – //parto para a ilha coberta de neve. // O indomável não tem nomes. // Brancas, as suas páginas/ encadeiam em todos os sentidos.// Dou de caras com as pegadas/ de um cervo na neve:/ nada de palavras mas uma linguagem.»

É isto mesmo, a Ana Cristina – perguntei o nome da socióloga ao empregado de balcão, depois dela ter saído – perdeu as palavras mas tem uma linguagem, ganhou o seu combate, ao douto macacão Sokolof só lhe resta o papagueamento das palavras de outros e a cagança das honrarias com que caricatura a vida que nunca lhe pertenceu.

14 Nov 2019

Os muros

[dropcap]A[/dropcap] vida contemporânea começa a estar cheia de muros. Os muros do politicamente correcto, os muros de Trump, os muros com que Bolsonaro pretende encerrar a Globo, como ameaçou numa comunicação ao país de uma exaltação inusitada. Vale a pena ver os vinte e cinco minutos daquele deboche de impropérios para se perceber como Nelson Rodrigues tinha razão: só a estupidez é eterna.

Trump, prometeu na semana passada construir um muro no Estado do Colorado, argumentando que era uma prioridade do combate à imigração clandestina. “Nós construímos um muro na fronteira do Novo México e vamos construir um muro no Colorado”, continuou, prometendo: “um muro magnífico, um grande muro que funcione verdadeiramente, onde não se possa passar nem por cima, nem por baixo”.

O problema é que este Estado do centro dos EUA, situado entre o Utah e o Kansas, não tem fronteira com o México.

Mais tarde veio desmentir a coisa, ou antes, dizer que brincava. O que interessa relevar é o padrão.
Há um ano e picos atrás, guardei esta informação: Josep Borrell, ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, “revelou que Donald Trump lhe sugeriu que fosse construído um muro no deserto do Saara, para impedir que os imigrantes e refugiados continuem a chegar à Europa.”É um padrão. Eu interrogo-me seriamente se o homem não está a enlouquecer.

Entretanto, como ontem comprei na rua Os Novos Contos do Gin Tónico, do Mário Henrique Leiria, por cem meticais (um euro e vinte), depois de o reler e de matutar nos muros de Trump saiu-me este pastiche:

«Vi um muro de 4500 km a ser sugado / por uma miragem / um muro inconsolável por não ser o primogénito /e ter nascido antes dele a muralha da China.// Flanava um muro já maduro de bicicleta/ por prostíbulos e campos de golfe/ discretamente de peúgas riscadas e cueca larga e master card/ por aqui e por ali/ quando veio a lua nova/ entortar-lhe o guiador. //

A aba do chapéu / do olvido/ é um muro de polpa azul.// Tinha uma razão sempre áurea/ aquele imperador de dedo em riste/ mas nas suas gengivas irrompiam muros entre as palavras.// No deserto da Namíbia erra/ um imenso muro circuncidado/

– procura prepúcio,/ saudoso de andar à chuva /com mais confiança,/ por favor não contem
ao homem do Colorado.// Repetem os altifalantes na praia de Biarritz: / Encontrou-se um muro menor de idade/ (vê-se que faltou às aulas de geografia!)/ perdido dos pais e banhado /em lágrimas de crocodilo!/ Quem tiver informações/ contacte a polícia marítima.// Aqui para nós, um muro em lágrimas/ seria o ideal para estancar no Saara/ as enxaquecas e os calores. // Terá alguém compreendido: um muro/ (não um escopo de muro mas) O MURO/ faz-se descascando um mosquito?// Enquanto o muro que procura

pela sua teia continua à nora/ pode-se ao menos instalar no Saara um semáforo/ que refreie o tráfego de refugiados?// Não contem ao homem do Colorado// Pixou-se naquele muro em Detroit: “A sonâmbula eslovena / que se imaginava numa gôndola/ a meio do tráfego de Nova Iorque/ vive hoje na Casa Branca.// Há um muro que pulsa/ nas omoplatas que se submetem/ a um encarniçamento das vespas,/ não contem ao homem do Colorado.// O jornal El Confidencial/ assegura que um muro de colarinho branco/ afamado por se dar às bravatas/ se enforcou numa gravata jurássica.»

Diante da declaração de Bolsonaro não me sai nada, aquele Flintstone da ira deixou cair todas as máscaras e ficou à beira de decretar aquilo que o seu guru, Olavo de Carvalho, pediu há uma semana: ditadura.

Eu suponho que a sua comunicação tão destemperada – excede tudo o que se imaginava – tenha aberto todas as caixas de Pandora e que agora alguma da direita liberal se virará definitivamente contra aquele aprendiz de Nero, finalmente ciente de que o tonto não tem o equilíbrio necessário ao cargo.

O pretexto da comunicação foi a reportagem da Globo onde se relacionam o suspeito do assassínio de Marielle com Bolsonaro. Duas coisas retive da comunicação. Para repudiar a ideia de que pudesse ter estado por trás do homicídio da activista, Bolsonaro não evocou qualquer argumento legal ou humanitário, fez uso desta inexplicável frase: «Não tinha motivo para matar ninguém do Rio de Janeiro!». Extraordinária declaração que nos faz perguntar: ok, e de S. Paulo?

O segundo momento pertence à recta final da comunicação e é da ordem da linguagem não verbal. A dado momento, Bolsonaro deixa escapar por um segundo uma cara de satisfação, já não está indignado, está no desfrute de sentir que engana toda a gente – é o actor em auto-admiração, tão em acto, que ousa formular, repetidamente: «o vosso orgasmo (da comunicação social) é derrubar-me?»

Esta comunicação tão ao pêlo, tão emocional, de ursa defendendo a família contra as ameaças exteriores, é capaz de colher ainda adesões na camada da população que cognitivamente está condicionada aos lugares-comuns e às ideias feitas e que não está preparada para a subtileza e a análise, mas crispará o país ainda mais e de tal forma que novos muros se vão erguer entre a população.

Os muros físicos do país rico em cima são replicados pelos muros psíquicos do país remediado, em baixo.

Que triste desdita, ser hoje brasileiro.

31 Out 2019

Universos intransferíveis

[dropcap]C[/dropcap]ristiano Reinaldo, és o meu maior fã!”, lia-se num cartaz exibido na bancada do Portugal-Luxemburgo. Percebe-se nesta frase como nas experiências performáticas o activo e o observador fazem um, é uma mera questão de transferência, neste caso assumida. Não actua Ronaldo “para” a bancada?

De igual modo se explica o êxito da autoficção nos últimos anos. Segundo Régine Robin, vinga nela um desejo de Proteu, o desejo de “ocupar todos os lugares”, desempenhando todos os papéis: “Representar todos os outros que estão em mim, me transformar em outro, dar livre curso a todo processo de virar outro, virar seu próprio ser de ficção ou, mais exatamente, esforçar-se para experimentar no texto a ficção da identidade; tantas tentações fortes, quase a nosso alcance e que saem atualmente do domínio da ficção”. Precisamente, o sujeito narrado é um sujeito fictício na medida em que se transformou num ser de linguagem. Para nós, filhos de Pessoa, isto é uma banalidade de base. A diferença é que Pessoa foi pioneiro. Foi pioneiro da estética da banalidade que se projectou com tais premissas, sem culpa própria ou retroactiva.

Em 39 houve o caso extraordinário de Idade do Homem, de Michel Leiris, seguido de perto pelo furacão Henry Miller, e no declinar dos setenta há um caso muito interessante de autoficção, Le Roman Vécu, de Alain Jouffroy, um poeta francês que merecia ser mais lido. Em Espanha fez furor o Francisco Umbral, e em Portugal também deveria tê-lo feito o Ruben A., era o país demasiado triste. Todos os demais casos de autoficção que vingaram, Bukovski ou o cubano Gutierrez parecem-me francamente menores em relação aos primeiros exemplos, e só a vulgaridade que se emula pela identificação, no plinto para a transferência, explica o sucesso.

Hoje, a autoficção satura, porque, entretanto, se premiaram a trivialidade e a arte de não ter talento. Basta figurar que a todos nos parecemos, para isso ser sinónimo de êxito pois o mecanismo da transferência é também expediente da psicologia dos carneiros.

Também andei por essas águas, metade dos meus livros narrativos, nomeadamente As Cinzas de Maria Callas, Tormentas de Mandrake e Tintin no Congo, A Maldição de Ondina e Éter – sulcam esse território.

Com os dois últimos livros, A Paixão Segundo João de Deus, e agora, Fotografar Contra o Vento, estou nos antípodas. Construo um universo paralelo e avanço fantasia dentro. E há (desde as Tormentas…) um trabalho sobre a linguagem, só me apanharão em descrições do tipo “a marquesa saiu de casa às cinco da tarde” se o relógio da marquesa estiver menstruado. Aos lugares comuns, uso-os, aconselhava o Hitchcock, para os desconstruir.

Fotografar Contra o Vento é uma “valsa de inadaptados”. Um romance de personagens, não exactamente “ratés”, mas que simplesmente procedem segundo uma lógica muito diversa.

Hoje, ao calcorrear a caminho do pão, pensando na frase do cartaz, percebi porquê. Quando procedemos segundo o bom senso e temos um comportamento “normal” situamo-nos numa dimensão de permutabilidade. Temos um valor situacional mas somos substituíveis na dinâmica do grupo. Pertencemos a algo maior que nós, e neste sentido aquele fã de futebol é facilmente substituível por outro, é apenas uma parcela momentânea na equação. As personagens dos livros/filmes realistas são habitualmente criaturas que atravessam uma crise, após o que voltam a ser “normais”.

Os meus personagens são peões de universos intransferíveis. Com eles não há clonagem, só têm a diferença para oferecer, não são convertíveis à troca. Como Quixote, como Bartebly, como o Capitão MacWhirr, do Tufão, de Conrad, como João de Deus, perdoem-me a pretensão.

Eis a contracapa: «Madrid, 22 de Maio de 2004. Após o desfile dos noivos Felipe de Bourbon e Letícia Ortiz pela cidade, os madrilenos seguem fascinados a cerimónia do casamento pela televisão. A esplanada do bar Katmandu, em Lavapiés, está à pinha e quando à pergunta do arcebispo se seguiu o juramento de Letízia Ortiz, que não gaguejou, parecia ler um teleponto, o gáudio encheu a esplanada de saúdes.

De repente, um homem vestido de toureiro sai numa corrida de dentro de bar, aos gritos de “terrorista”, e, com o capote aberto, aplaca a jovem que atravessara a esplanada e se preparava para se fazer explodir.

Como chegou ali Tomás Pinto Lume – aquele português bizarramente em traje de luces e com um ar combalido, que, logo a seguir a ter abortado o atentado, se retirou discretamente, furtando-se aos louros para mergulhar no mais enigmático anonimato?

Fotografar Contra o Vento segue o rasto deste anti-herói, um homem com sonhos e, sobretudo, uma ideia de dignidade um pouco entorpecente para qualquer trajectória de sucesso.

E quem é aquela figura, Cosmo, o aragonês – ex-jornalista internacional no Afeganistão, de onde regressou a pé para expiar uma culpa e se tornar vagabundo -, que por toda a parte se move como a sombra daquele falho toureiro, como se fossem dois palhaços fugidos ao cirque du soleil?

É confiável quem assegura ter por ideia fixa a mania de que Cervantes terá inutilizado a mão direita (e não a esquerda) na batalha de Lepanto, ou é um lunático, um aproveitador inescrupuloso? Como se encontraram as duas criaturas, tão diferentes entre si?

Pode um mundo mergulhado no cinismo ser ainda resgatado por uma história de amor, no trânsito entre um decadente bar de alterne (que há vinte anos abre com Life on Mars, a canção de Bowie) e a pensão Assis, tendo aos pés da cama um galgo afegão que dá pelo estranho nome de Beverly Hills? E como raio se relacionam estes personagens com o rapto daquela criança numa quinta dos arredores de Madrid?»

Alguma vez Pinto Lume fará uma faena? Nunca se tratou da tauromaquia. É apenas um homem que persegue um sonho e que rapidamente se entediaria se este se realizasse. O direito ao sonho é que o move. E no encalce deste direito paga todos os preços.

24 Out 2019

Esferas

[dropcap]N[/dropcap]o primeiro volume da trilogia das “Esferas”, de Peter Sloterdijk, o filósofo alemão explana a sua “teoria do espaço diádico” (uma ontologia que não começa no Um mas no Dois e face à qual a concepção do indivíduo enquanto substância unitária e isolada é uma visão falida, que já nem como prótese pode subsistir).

Tudo começa no útero e na ressonância entre dois pólos, o interior do vaso amniótico, e o exterior que se joga no espaço intersubjectivo da mãe e que chega ao feto através do ouvido. E assim se cria a primeira esfera inicial, o primeiro aparato imunológico.

O bebé cresce dentro de uma câmara de ecos, ouve o que lhe é invisível. Mais tarde, com o corte do cordão umbilical, e à falta dessa relação de protecção configurada pelo útero, o invisível será suprido pela imaginação e os “seus” elementos subjectivos reinventam-no, projectando-o noutra esfera completada pelas figuras do anjo da guarda, do daimon, a do amigo imaginário, ou a do génio, etc.

Contra Lacan, que deu relevo ao estádio do espelho, Sloterdijk promove o ouvido como premissa fundadora da auto-percepção e reflecte nas consequências disso nas duas mil e cem páginas da sua trilogia, absolutamente persuasivas.

E ao fazer o elogio da esfera, como explica Paulo Ghiraldelli, faz-se o elogio do “entre”, o elogio do poroso, campo “em que nada existe que não seja relacional.”

O que os orientais já haviam dito há muito, mas importa realçar que este novo paradigma, duma penada, salva-nos do isolamento do cogito e da dualidade, que clivava o mundo em sujeito e objecto, e devolve-nos por outro lado a dimensão do sagrado, na medida em que faz-nos perceber que “a retirada de Deus” é distinta de uma “morte de Deus” (esta apenas traduziria um recalcamento do universo simbólico que constitui o próprio tecido da nossa propensão esferológica, o que acarreta mais patologias que benefícios), e em que arruma de vez os pressupostos hierárquicos restituindo-nos a “epifania” como um não-lugar evasivo a todas as formas de lucro (- e hoje, neste amorfo e desvitalizado reino do signo saturado pelo cálculo, este é o verdadeiro escândalo e uma coisa mais difícil de aceitar que o incesto, entretanto convertido em subplot cinematográfico).

Afinal, o que foi sempre exasperadamente equívoco na relação de Deus? A imagem que os braços políticos das igrejas quiseram cristalizar, a feição patriarcal e autoritária atribuída a Deus nas Religiões do Livro – quando o relacionamento com o divino pode adoptar uma via mais libertadora, ecológica e reguladora, tão somente, a de uma tomada de consciência do “sentido das proporções”.

Numa intuição extraordinária, Sloterdijk comenta que a metafísica começa como uma metacerâmica. Deus, na criação, teria usado da mais avançada tecnologia da época, a do oleiro, a do fazedor de vasos. Esta interpenetração, lembra Ghiraldelli, seria imprescindível à ressonância entre dois polos que, assim vibrando juntos, criam uma esfera, um campo de autoimunização.

Mas, o recurso à olaria, realça igualmente, acrescento eu, a dimensão histórica de Deus – e isso muda muito.

Pensemos nesta proposição de Martin Buber – filósofo reivindicado por Sloterdijk : «Não conheço outra revelação para além da do encontro do divino e do humano, no que o humano colabora com a mesma medida do divino. O divino aparenta-se a um fogo que derrete o mineral humano.

Mas o que resulta daí não é algo que estivesse na natureza do fogo.»
Deus seria então o que nos melhora, mas o que Ele É também depende da nossa contribuição. Ou seja, também podemos degradar Deus.

É aliás disto que, como ateu intermitente, acuso a grande massa dos fiéis – merda para a grande massa dos fiéis, ignara, que faz tábua rasa do que Kant evidenciou há três séculos: que se é “tão cómodo ser menor”, só em conseguindo dobrar a preguiça e a covardia acedemos ao nosso próprio entendimento e sairemos finalmente da condição infantil; sendo esse o lema do Esclarecimento.

O que Sartre repisará dois séculos depois: a necessidade de os homens serem responsáveis pelos seus actos, sem álibis ou entidades transcendentes que os alheiem de assumir-se como a verdadeira mola das suas escolhas. É uma evidência que os homens fazem tanto mais alarde das supostas consciência e identidade, quanto mais querem enjeitar a autonomia. Adquirir uma pauta de valores e ser activo na responsabilidade social, devia ser uma ressonância natural da necessidade de espiritualidade, para quem sinta o apego; seria esse o passo normal na constituição de uma esfera. Mas primeiro, propunha ele, devíamos arrumar a casa. Enquanto colocarmos toda a nossa segurança no airbag de Deus, pela frente e nas costas, não cresceremos o suficiente como pessoas para dedicar espontaneamente amor e respeito aos demais.

Na Índia, Deus é «uma criança eterna jogando um jogo eterno, num jardim sem fim» e nós humildemente somos os dados – a liberdade relativa dos dados – na sua mão. E contudo, desse caprichoso lance de dados depende também a “sorte” de Deus. O que volta a situar-nos na responsabilidade dos nossos actos.

Assim, procurar em Deus uma ordem, uma harmonia, para o caos do mundo é o mesmo que confundir uma decalcomania com a pele. A crer em Deus, há que aceitar a fé “apesar” do caos que se incrusta na rugosidade do real, mas o apelo deve levar-nos à insatisfação que antecipe a decisão e a autonomia.

Os Budistas não falam em Deus, dizem antes que os rios procuram o mar. De facto parece mais justo realçar que talvez nos espere o oceano fragoroso que antecede as calamidades, sendo nosso dever não fugir ao repto.

A esferologia de Sloterdijk ajuda-nos a regular as miras e não por acaso o filósofo concebe a filosofia como uma “medicina da alma”.

18 Out 2019

A presença e o sentido

[dropcap]A[/dropcap] gente lê a ameaça e não acredita: “Como disse antes, e apenas para reiterar, caso a Turquia faça algo que eu, na minha grande e inigualável sabedoria, considere que está fora dos limites, destruirei e aniquilarei totalmente a economia da Turquia”.

Quem fala é Mao Tsé Tung, Deng Xiaoping, Kim Jong-un? Não, foi um republicano, Donald Trump, e um imemorial cansaço abate-se sobre qualquer linha de discernimento, na tentativa de reconhecer a partir de que momento se aceitou esta retórica política como legítima e indelével.

É o mesmo senhor que está destrambelhado e numa fuga para a frente, em jeito de paródia, já pede publicamente às outras nações que investiguem os seus adversários políticos.

Há uma ténia que rói a democracia, que a enfraquece por dentro e me faz lembrar um poema do mexicano José Emílo Pacheco, que incide sobre a bicha Solitária: «No jardim-de-infância nenhuma história /me impressionou como o relato de Pedro./ Durante anos / levou no seu ventre Pedro uma ténia, / uma serpente branca, uma solitária,/ albina e cega — a qual também era Pedro. /

Assim levamos todos muito cá dentro a morte / sem lhe conhecermos a forma até que um dia /ela sai do seu esconderijo e diz: vamo-nos?».

O drama é que quem aceita que os líderes políticos cheguem a este nível de auto-maravilhamento sedativo esquece o que outro poema do Pacheco prenuncia, Às térmitas: «Às térmitas, diz o seu Senhor:/ Derrubai essa casa! /E esfalfam-se não sei quantas gerações/ a perfurar, a verrumar sem sossego. /Formigas brancas como o Mal inocente,/escravas cegas e de sombra incógnita,/dá-lhe que dá-lhe em nome do dever,/ muito por baixo da alfombra /sem exigir aplauso nem recompensa /e cada qual conforme o seu minúsculo troço. /Milhões de térmitas que se afanarão/até que chegue o dia em que de repente/caia o edifício, feito pó./ Então as térmitas perecerão /sepultadas na obra da sua vida.»

Não serve de consolo verificar que hoje os media expõem tudo e que, como na pornografia, a partir do instante em que se mete o pau na boca não, há como querer enganar a vista a dizer que é o de selfie – não há consolo.

O pior é que não tenho nenhum aluno que faça a menor menção a esta anormalidade, que mostre sinal de ter entendido como a cavilosa afirmação de Trump, que aqui tenta forçar os limites do seu poder hipnótico, é uma colher envenenada a mexer o caldeirão do seu futuro; perdidos entre o rap e a miséria do seu quotidianozinho alheiam-se. Estamos lixados.

Alheiam-se dos assuntos de fora e de dentro: nenhum aluno me comenta o assassinato de Anastácio Matavel, director executivo do Fórum das Organizações da Sociedade Civil na Província de Gaza e como esta acção macabra confirma as ameaças de que são alvos os observadores eleitorais nacionais, em Moçambique; crime cuja contundência (dez tiros), no dizer de Carlos Mhula, da Liga dos Direitos Humanos em Gaza, “é uma clara intimidação à participação na vida política em Moçambique e também uma ameaça à democracia”. O medo está instalado e com isso esvaída a possibilidade de que os meus alunos queiram debater assertivamente eleições livres, justas e transparentes: é um balão furado.

Hoje, quarta-feira nove, darei uma palestra com o tema Culturas do Sentido/ Culturas da Presença, onde apresentarei a tipologia que, para esse lugar transfronteiriço, traçou o alemão Hans Ulrich Gumbrecht, um filósofo que soube contornar o beco para onde fomos atirados pelo demónio da interpretação e da febre analítica. Sem negar nada da pertinência das suas habilidades, Gumbrecht apenas nos lembra que há outros modos da experiência; que há culturas em que os exercícios intelectuais ganharam preponderância e outras em que a tónica foi colocada no corpo, no jogo, na performance, e em que nem todos os “discursos” se reduzem à tirania do texto interpretativo; mais, que, em havendo formas de inteligência, de fluxos, e de relação cujos processos passam antes pelo corpo e as suas interacções, há ainda esperança para o mundo como presença tangível ser tocado por nós e não meramente interpretado.

Tudo isto é complicado para explicar em dez linhas, mas, do ponto de vista das consequências sociais, numa cultura de sentido sucedem-se as permanentes e constantes tentativas de transformar o mundo, pois esta tem por base a interpretação (crítica) das coisas e a projecção dos desejos humanos no futuro; enquanto, este impulso no sentido da mudança e da transformação está arredado nas culturas da presença, nas quais os seres humanos propendem a inscrever o seu comportamento no que consideram ser as estruturas e regras de uma dada cosmologia ou tradição social.

E esta diferença pode às vezes ser fulcral, por exemplo, em nenhuma cultura de sentido se aceitaria como aceitável que um partido político continuasse a apresentar o mesmo cartaz em todos os pleitos eleitorais durante trinta anos, tal como acontece com a Frelimo com os seus eternos tambores e maçarocas, porque pareceriam símbolos já deslocados da realidade nem se consideraria sério que um partido apenas quisesse transmitir que sejam quais forem as circunstâncias e o tempo histórico tudo permanece igual. O que em Moçambique valida um “reforço da presença”, noutra cultura de maior pendor crítico este cartaz seria interpretado como um sinal de absoluta indiferença às marcas e aos desafios da actualidade.

10 Out 2019

Greta

[dropcap]F[/dropcap]iquei espantado com o fácies de Greta Thurnberg no seu discurso na ONU, porém em vez de tirar conclusões precipitadas reflecti.

Lembrei-me da primeira vez que fui à televisão, a um programa da Clara Ferreira Alves, e como a minha prestação foi um desastre tão grande que nunca mais me convidaram. De repente pensei, estão quinhentos mil gajos a olhar para mim, e, sendo tímido, entrei em pane e a minha tendência para a hiperidrose disparou, dobrando-me o embaraço; foi um pesadelo estratosférico. Topou-o o Henrique Fialho, que no seu blogue se apiedou da minha triste figurinha. Quem me viu só pôde concluir que eu era um verdadeiro idiota. Foi preciso, dez anos depois, numa entrevista televisiva no Brasil, que um câmara viesse ter comigo e me segredasse estas palavrinhas tranquilizadoras,

«Não se esqueça de que atrás da câmara só está um homem!» (que era ele), para a pressão se dissipar e eu hoje encarar as câmaras descontraidamente.

Imagino a pressão sobre aquela miúda de dezasseis anos, na ONU ao dar-se conta de que o mundo inteiro, literalmente, olhava para ela. Aí cedeu e, numa fuga para a frente, como ela não transpirava, só fez o que lhe era possível: actuar em overacting.

Um outro flagrante das câmaras com Greta ajudou-me a compreender: o momento em que o rosto da jovem se transfigura quando ela vê Trump e o asco transparece nela. Presumo que a síndrome de Asperger a deixe sem filtro e as emoções lhe aflorem ao rosto sem a atenuação de uma máscara conveniente. O que só a torna mais confiável.

Depois, vi uma maravilhosa entrevista dela no Intercept que me dissipou todas as dúvidas. Tratava-se menos do que ela dizia, mas do seu modo sereno. Postei-a no fb e houve um amigo meu, um conservador confesso, que lhe chamou todos os nomes e que esgrimiu: «O que se está a passar em relação ao clima é uma histeria. Não há urgência nenhuma.», e adiante, «A Greta Thurnberg daquela entrevista pareceu-me uma miúda frágil a debitar mentiras, o que só confirma a minha opinião: ela não devia estar ali.»

Ao contrário do que argumenta o meu amigo, ali Greta não está nada frágil, é o avesso da tensão na ONU.

Entretanto, o mundo está povoado de Vascos, que proferem, «Era bem feito que o planeta explodisse e atirasse com a menina Greta para Saturno a ver se ela aprendia a não faltar à escola.»

Se o planeta explodisse, também Vasco Pulido Valente seria atirado para o éter, voltava a ser um estudante aplicado e investigaria finalmente sobre a influência da tauromaquia e o alvor cornúpeto no bigode de D. Carlos I. Cuspindo contra o vento, Pulido Valente não sobrevive ao fulgor da sua elucubração. Há uma espécie de terrorismo suicida nos iluminados de direita, que foram rebeldes e faltaram à escola no seu tempo, para quem o mundo é apenas o palco para a oportunidade de rogarem o direito à eutanásia, que combatem. É um mundo de hipocrisias e contradições.

Verificou-se nestas últimas semanas uma fractura no mundo entre os que aceitam Greta como arauto de uma emergência ecológica e os que colocam em dúvida os dados científicos que ela veicula e lhe condenam o papel de Cassandra; levantando lebres sobre uma suposta manipulação de que a jovem seja alvo.

Não tenho informações para rebater tais suspeitas, contudo não creio que o assunto deva colocar-se como uma disputa entre crenças. Além disso, numa coincidência danada, deram-se hoje, dia 26 de Setembro, dois acontecimentos funestos que foram noticiados e nos deviam fazer reflectir.

O primeiro reporta à foto desta crónica e aos 163 golfinhos que encalharam na terça-feira na ilha da Boa Vista, em Cabo Verde, e morreram na praia. Segundo o ambientalista Samir Martins este será o caso do género mais grave em Cabo Verde desde 2007, quando mais de 200 golfinhos da mesma espécie encalhou na praia de Chaves, também na Boa Vista.

Não consta que ao longo dos séculos bandos de golfinhos, periodicamente, resolvam ir suicidar-se a Cabo Verde – só ultimamente é que esta anomalia tem acontecido. Uma explicação mágica seria a de que isto acontece porque Greta não tem ido à escola.

A segunda notícia, no mesmo dia, relata que o Monte Branco, a montanha mais alta da Europa, está em risco de desabar e as estradas foram fechadas e as casas evacuadas nesta região dos Alpes italianos. «O glaciar», lê-se, «é o Planpincieux, que fica no lado italiano do Monte Branco, e o iminente colapso tem a ver com o aquecimento global, alertam os especialistas. Os cientistas, que pertencem à Fundação Montanha Segura, adiantam que são cerca de 250 mil metros cúbicos do glaciar que estão em perigo e derretem entre 50 a 60 centímetros de gelo por dia.»

Será isto apenas histeria, como diz o meu amigo, ou ele, comporta-se como um negacionista? É tão legítima esta pergunta como o reparo (que ele me faria) sobre o vício de sobrinterpretar as coincidências. Só que me parece tão grave o tique de relacionar demais como o de abstermo-nos de todo de relacionar x com z, quando afinal pertencem ao mesmo sistema alfabético.

Em tudo isto impõe-se uma terceira equação, e mais ainda depois de Putin ter aderido ao Acordo de Paris: estamos do lado de Trump e Bolsonaro ou de Greta. Podem dois vigaristas ter razão científica? É muito difícil escapar à presunção da aparência e estar com eles num aspecto para rejeitar os outros, pois tanto pragmatismo é inconciliável com o mais elementar trajecto ético. Não há dicotomia quando um dos lados da polarização joga na mesa, e invariavelmente, toda a sujidade dos seus interesses egoístas (veja-se o caso agora de Trump com o seu homólogo ucraniano), o que torna a diabolização de Greta uma cruzada ainda mais absurda.

3 Out 2019

A minha noite com Ava Gardner

[dropcap]J[/dropcap]á vos contei a minha noite com a Ava Gardner? Foi na noite de fim de ano na praia da Macaneta em que arrombámos seis garrafas de champanhe, depois de cinco garrafas de vinho. Normalmente, quando bebo muito não recordo os sonhos, mas daquela vez não foi assim. E mesmo tendo dormido apenas entre as duas e trinta da manhã e as seis da manhã, mas foi o suficiente, para que acontecesse.

Actuei sob disfarce, embora ela soubesse que era eu – os algoritmos nos sonhos são transparentes como água. Peço condescendência e compreensão: a beleza de Ava Gardner galvanizou entre os deuses um desejo de antropomorfização e carregava consigo, além do temperamento de Lillith, o desbocamento de Pandora; para além disso, ela havia-me confiado sobre o Sinatra, “tinha um pinto com a solidez de uma igreja românica” (não sei porquê, as legendas dos meus sonhos são muitas vezes brasileiras) e denegrido o John Kennedy deste modo: “Nunca me deitei com ele porque era um homem ordinário e prepotente que estendia ao mundo e às mulheres o seu olhar de putanheiro” – perceberão as reticências em mostrar-lhe o meu fuste e a minha técnica de artesão.

Desde miúdo que ela me obceca. Tenho em casa uma estante onde só se arrumam os filmes que ela protagonizou, os livros sobre ela ou aqueles em que é mencionada, que, diga-se, são inúmeros, sempre a renovarem-se. A Eva – habituei-me a chamar-lhe Eva, como se eu próprio fosse um Adão putativo – ocupa-me todos os pedaços que a minha vida tem livres. É mais do que um hobby, e já me divorciei uma vez por causa disso, juro. Ela excita-me de um modo incondensável, ponto, desejo-a com a urgência que materializam as viagens num transatlântico (quem já viajou assim sabe), mas receava que depois de consumado o acto ela fosse pôr o morrão noutros cinzeiros de mármore, e jamais idêntico a mim mesmo eu me condenasse aos melancólicos abismos das Fossas Marianas, deprimindo.

Este sonho trouxe-me uma solução de compromisso. Eu entrava com ela no Hotel Santa Cruz, em Maputo, aonde normalmente se hospedam os futebolistas na visita à cidade. Num hotel de futebolistas não se colocava o risco dela encontrar toureiros.

Alugámos uma suite. Na recepção deu-se a primeira surpresa. Ao identificar-me, reparei que estendera ao recepcionista o passaporte de Liév Tolstoi. Olhei-me no espelho que se dispunha nas costas do recepcionista e confirmei: crescera dez centímetros, os meus ombros abriam-se ao mundo, majestosos, e cofiava a barba de um anarquista de resoluto brilho. Era Tolstoi. Chamar-lhe-ão cobardia, eu vejo aí uma tonicidade exaltante, a prudente identificação que Freud descortinava no mecanismo dos sonhos. O Tolstoi não precisaria de viagras, como Kadhafi, por exemplo. Um segundo depois de me ter reconhecido como Tolstoi, o carisma e o dom do mago de Guerra e Paz manavam de mim com a energia de um tsunami ou, vá lá, com o volume de uma onda gigante da Nazaré. Estava superlativado o meu desempenho naquele pleito. E Ava mostrava-se encantada pois, entredentes, Tolstoi (moi, quem mais?) prometera-lhe o desempenho de Anne Karenine num filme. No seu olhar estava dissipado o mínimo traço do demónio ambíguo que amiúde a possui e lhe dá à pele aquele verniz que envenena. Sorria em corpo inteiro, num nexo por uma vez estável.

Elipse. Enrolávamo-nos na cama, sob o dossel medieval que a suite oferecia. A cama, confesso, era a mesma em que eu passei a seco várias noites na Ilha de Moçambique – os sonhos engendram estas colagens. Mas a diva, inesperadamente inibida pela presença bruta do colosso que com ela partilhava o leito e desculpando-se com um sinal informe na coxa direita que à viva força não queria que o mestre russo contemplasse, interpusera entre os dois corpos o lençol de seda, no qual aprontara com a sua tesoura de unhas um orifício. Oferecia-se, porém com entreposto. Embora o seu desejo, maior nitidez era impossível, lhe incendiasse o olhar. Bom, há oportunidades que evocam um tempo primeiro, quando não havia oposições nem contrários, e apesar daquele intervalo de seda entre as nossas peles, a saliva enchia-me a boca. Ela ajeitava o corpo, arqueava as costas, alçando as nádegas, de modo a fazer coincidir as suas humidades com o buraco no lençol. O desejo de acertar com o buraco sugava-lhe a rata. Perdoem-me a linguagem, mas o olhar de tesão da dama pede-o. Resolvi espreitar o meu pinto, verificar quem dobraria aquele cabo, se o meu ou o de Tolstoi. Levantei uma ponta do lençol e espreitei a opulência da haste. Uau, era a do mestre russo. Que conveniente identificação se inscrevera nas metamorfoses daquele sonho. Penetrei-a com a confiança cega do pangolim.

Como foi? Olhem, Helena foi a causa da guerra de Troia, ao suscitar a lascívia de Páris que arrastou milhares de nobres varões para a morte. Pois Helena merecia isso e muito mais.

Literalmente, o que naquele caso estava errado era que o volúvel Páris tivesse ocupado o meu lugar. O mesmo diria com Salomé, Jezabel, ou Messalina, que encontraram homens muito mais débeis do que eu. Também a Cleópatra sofreu o desprestígio que lhe foi montado por séculos de misoginia, quando tudo na sua vida teria sido mais simples e diferente num sonho em que coincidíssemos na mesma estação de comboios. Mas imaginem todo este desejo, que acicatou a vivacidade de tantas máscaras, congelado por milénios, este fluxo canalizado para um único acto de fusão carnavalesco em que Tolstoi me veste a pele para eu finalmente gozar do esplendor de Ava Gardner com o meu brônzeo pénis de cavalo nipónico e compreender-se-á a sintonia em que o céu ficou comigo, assim como com os animais e as plantas, a terra, os metais, as estalactites ou as tempestades.

E chega de indiscrições.

26 Set 2019

Combater a insónia

10/09/2019

 

[dropcap]S[/dropcap]alvaguardei-me da insónia desta noite com dois dos meus hits, Nabokov e Cioran. Do romancista, o impagável «Pnin», que me devolveu uma palavra: «rododendro» – dá-me cem gramas de rododendro mal passado, por favor? – e me fulminou com um adjectivo: «toucinho opalescente.»

Mas depois de excursionar cinquenta páginas pelo russo-americano fui navegar nas águas do franco-romeno Emil Cioran. Um pequeno livro de aforismos, de título Sillogismes de l’amerture/Silogismos da amargura. Normalmente passamos pelas palavras numa pressa atabalhoada, com o Cioran isso não é possível, e vai-se sentindo o terreno como o cego apostado numa corrida de cem metros obstáculos: sentindo o risco não só em certas partes mas em todas as partes, e sofrendo o embate dos seus aforismos lapidares.

«Que não nos falem mais de povos submetidos, nem de seu gosto pela liberdade; os tiranos são sempre assassinados demasiado tarde: essa é a sua grande desculpa.», ou:

«Dizer: “prefiro este regime a tal outro” é flutuar no vago; seria mais exacto dizer “prefiro esta polícia à outra”. Pois a história, com efeito, reduz-se a uma classificação de polícias; pois de que trata o historiador se não da concepção do policiamento que o homem foi perpetrando através dos tempos?».

E às tantas, dou de caras com o capítulo Sobre a Música. Como também eu, apesar de intermitente, sou um melómano opalescente (hum, será que funciona?) entretive-me a traduzir:

SOBRE A MÚSICA

Nascido com uma alma normal, pedi outra à música: foi o começo do desconcerto, de desastres maravilhosos…

Sem o imperialismo do conceito, a música teria substituído a filosofia: teria sido então o paraíso da evidência inexpressável, uma epidemia de êxtase.

Beethoven viciou a música: introduziu nela as mudanças de humor, deixou que nela penetrasse a cólera.

Sem Bach, a teologia careceria de objecto, a Criação seria fictícia, o Nada peremptório.
Se alguém deve tudo a Bach é sem dúvida Deus.

Que são todas as melodias ao lado da que afoga em nós a dupla impossibilidade de viver e morrer?

Para quê reler Platão quando um saxofone pode igualmente fazer-nos entrever outro mundo?

Sem meios de defesa contra a música, estou obrigado a sofrer o seu despotismo e, segundo o seu capricho, a ser deus ou maltrapilho.

Houve um tempo em que, não logrando conceber uma eternidade que pudesse separar-me de Mozart não temia a morte. O mesmo me sucedeu com cada música, com toda a música.

Chopin elevou o piano ao esplendor da tísica.

O universo sonoro: onomatopeia do inefável, enigma desdobrado, infinito percebido e inacessível… Quando se sofre a sua sedução, já só se concebe o projecto de fazer-se embalsamar num suspiro.

A música é o refúgio das almas ulceradas pela dita.

Toda a música verdadeira nos faz palpar o tempo.

O infinito actual, paródia para a filosofia, é a realidade, a essência mesma da música.

Se tivesse sucumbido às meiguices da música, às suas chamadas, a todos os lugares que ela suscitou e destruiu em mim, há muito tempo que, por orgulho, teria perdido a razão.

A propensão do Norte para idear outro céu engendrou a música alemã – geometria de Outonos, álcool de conceitos, ebriedade metafísica.

À Itália do século passado – um bazar de sons – faltou-lhe a dimensão da noite, a arte de exprimir as sombras para extrair a sua essência.
Há que escolher entre Brahms ou o Sol…

A música, sistema de adeuses, evoca uma física cujo ponto de partida não seriam os átomos mas as lágrimas.

Talvez tivesse esperado demasiado da música e não tomei as precauções necessárias contra as acrobacias do sublime, contra o charlatanismo do inefável…

De alguns andamentos de Mozart desprende-se uma desolação etérea, como um sonho de funerais na outra vida.

Quando nem sequer a música é capaz de salvar-nos, um punhal brilha nos nossos olhos; já nada nos sustém, a não ser a fascinação do crime.

Como gostaria de morrer pela música, como castigo por haver duvidado da soberania dos seus feitiços.

12/09/2019

De novo insone, releio. Não apenas para ficar surpreendido pelo que sublinhei então, à vista de outras passagens que ganharam com o tempo, mas também pelo que anotei nas margens. Aqui deixo algumas três notas:

Conta Joni Mitchell: um dia na primária copiei uma casota de cachorro mais direitinha do que a dos meus colegas e então pensei vou ser artista. Eu sempre me julguei o cão de uma casota demasiado perfeitinha, que só desarrumada poderia salvar uma alma.

E só aceitei que era escritor aos quarenta e cinco quando intui que me condenara à pobreza e que aí mais valia enveredar por alguma forma de dignidade.

Desde então não minto e à noite apedrejo os semáforos.

Kafka desejava saber em que momento e quantas vezes, estando oito pessoas a conversar, convém tomar a palavra para não passar por calado. E estando trinta pessoas a conversar? Ou oitocentas na palheta? E estando um tigre e um galo?

“Todo o decoro que sustém o turbilhão”, escreveu Sílvia Plath – e mais nenhuma ramagem precisaria de assombrar para adivinharmos a sua silhueta, invisível, no meio dos flamingos que grasnam, garimpando o branco, na líquida púrpura do poente.

Entretanto, lastima-se uma rouca voz feminina atrás de mim (“à minha atrás”, se diria em escorreito moçambicanês): “O meu telefone inventou de tomar banho!”. Melhor, só se alguém entrasse para anunciar, Foda-se, numas escavações do Peloponeso, achou-se a gravata do Aristóteles.

19 Set 2019

O Homem Novo

[dropcap]O[/dropcap] Papa esteve em Moçambique. No seu discurso evocou Eusébio e Lourdes Mutola como dois resilientes e apontou-os como exemplo a ser seguido pelos jovens. Há uma ironia que verruma aqui, embora involuntária, pois o Papa não o saberia: o poder moçambicano gostaria muito de rasurar a memória desses dois “heróis evocados”, na leitura instrumentalista que faz da história, a Eusébio por ser um “traidor-não declarado”, ao preferir continuar a ser português, a Lourdes Mutola porque, de olhos abertos, lhes chamou ingratos e foi viver para a África do Sul com a sua “esposa”. Embora de grande notoriedade, e são uma história de sucesso popular, politicamente são bastardos.

Dois anos depois de ter chegado a Maputo, mudei de casa e no outro lado da rua havia um bar que passei a frequentar. Eu e o Mário Coluna, o mítico médio do Benfica no tempo do Eusébio, que fez a escolha contrária à do atacante e voltou para Moçambique depois da carreira, abraçando o país novo. E foi treinador de clubes, e da selecção. Após o que, pela surra, foi colocado na prateleira e passou a ser um reformado de luxo. Quando o conheci, invariavelmente pelas cinco da tarde, estacionava o seu Mercedes diante do bar e aí se sentava emborcando uns sobre os outros, uísques, em conversas que não me pareciam defensivas nem ofensivas.

Um dia recebo a encomenda para fazer uma sinopse para um possível filme sobre o Coluna, que teria, diziam-me, um empurrão para a produção do Carlos Queirós, e para apoio deram-me um álbum sobre o futebolista, em que se contava a história da sua vida, e que se chamava O Colosso. Soube então que era assim que ele era chamado em Moçambique: O Colosso.

Entreguei o trabalhinho sobre o qual não obtive nem uma palavrinha nem a prebenda, como se nada me tivesse sido encomendado – experiência que, aliás se repetiu. E continuei a ver O Colosso por ali, eu no meu canto com os livrinhos e um uísquinho para duas horas, ele na sua sede escancarada.

Um dia sentei-me na mesa ao lado da dele e ao cabo de uma hora de me ver concentrado em letras miúdas não resistiu a meter conversa comigo. E diz-me O Colosso: “Estes pobres, se não fossem os portugueses ainda estavam nas árvores!”, e ao mesmo tempo metia o cartão dele num canto da mesa. Era um ataque forte e pedia contenção na defesa. “Como?”. “…deram cabo de tudo e esqueceram que se não fossem os portugueses ainda viviam nas árvores! O Salazar é que…etc.” Vi-me no papel de fazer a defesa do diabo, “Olhe que os portugueses deixaram noventa por cento de analfabetos…”, ripostei, tentando amenizar-lhe o tom azedo, mesmo que sussurrado. Quando viu que defendia o seu objecto de desgosto, retirou o cartão da mesa, devolvendo-o ao seu bolso, e remeteu-se ao calado de mais um duplo.

Eu fiquei desconcertado, por desconhecimento. O Colosso, afinal, sentira-se usado, descartado e de expectativas desiludidas, e até apesar da excelente reforma que lhe dava o estado moçambicano, de ter visto o seu nome atribuído a uma rua e da Fifa ter apoiado financeiramente a sua Academia de Futebol na vila da Namaacha, a sessenta km de Maputo.

Não sei o que se teria passado para que ele – que fora um colaborador das forças que lutavam pela independência do país, antes do 25 de Abril, dando cobertura e tecto a clandestinos que passavam por Portugal no desforço da luta -, trinta anos depois da independência, à primeira oportunidade denunciasse uma tão entranhada nostalgia.

A dignidade de O Colosso, que agiu correctamente no seu devido tempo, não fica beliscada, da situação só ressalta a tremenda contradição entre as expectativas individuais e aquilo que o omnívoro processo dos Estados arma – é inevitável que o Estado se sirva das “suas” figuras; depois ou corrompe-as (não terá sido o caso de nenhum deles) ou as desilude porque rapidamente as faz sentir que foram úteis no “seu” momento mas não providenciais. Pode a “frustração narcísica” – para mais num país que pugnava pelo “Homem Novo” – ser acompanhada de uma declarada rejeição moral sobre os processos políticos, mas, até pela desproporção de forças, é mais raro, sendo mais comum uma conversão religiosa ou a defesa do álcool. O Colosso, nos derradeiros anos da sua vida, passara de médio atacante a defesa central.

Recentemente, assisti a alguns filmes realizados por moçambicanos que foram alunos da Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV), entre os quais um ironicamente chamado El Hombre Nuevo, de Lara de Sousa. O “Homem Novo” foi um conceito doutrinário comum aos países socialistas, para significar o “segundo nascimento” dos que são membros e co-criadores da nova sociedade socialista. Nesse filme que se passa numa barbearia cubana, el “hombre nuevo” aplica-se a um novo tipo de penteado que apraz muito aos jovens, que nas conversas argumentavam pela “naturalidade” do machismo e do papel viril do homem – apesar do penteado, aquilo pareceu-me muito velho, para lá de idoso, e consterna pensar que depois de 60 anos de revolução cubana e de uma “nueva educacion” tudo está apenas mais “castiço”, tal como constrange constatar que, trinta anos depois da independência, o Papa não teve outros valores moçambicanos para referenciar que o de dois desportistas – um impulsionado pelo Estado Novo e outro fruto da carolice individual. São demasiadas gerações desbaratadas para tão pouco.

Fazia parte das premissas das sociedades que promoviam o “Homem Novo” um “Esquecimento Consecutivo”, o que justificará o rol de omissões e o esforço para abafamento dos meritórios que continua a vingar nos países que abraçaram o “socialismo”, onde só o colectivo importa e as personalidades, num momento ou noutro, se tornam incómodas, personas non gratas. Neste sentido, a visita do Papa acabou por ser salutar, mesmo que involuntariamente.

12 Set 2019

Das capelinhas

[dropcap]D[/dropcap]eixa-me sempre boquiaberto a maldade dos escritores. A maledicência é um passarito sazonal, refiro-me à maldade. Talvez por ser criatura carcomido pelas dúvidas e por, num erro de geografia amorosa, ter decidido viver num país com verdadeiros problemas, fiquei com o saco curto para esse efeito da rivalidade mimética que faz o gozo das capelinhas.

A escrita de um prefácio para Relatório Sobre os Cegos, de Ernesto Sabato, obrigou-me a mergulhar nos meandros da literatura argentina. E constatei que a sua obra concita grandes admiradores, sobretudo fora de portas, e veredictos implacáveis, principalmente de argentinos.

Numa passagem de 1956, Borges menciona a proximidade das eleições para a presidência da Academia Argentina de Letras e, criticando a instituição, comenta: “Deveriam levar energúmenos: o Sabato ou o [Ezequiel] Martínez Estrada”, conta Bioy Casares, no seu diário Descanso de Caminantes.

Mas a acidez não emana apenas de escritos íntimos de autores mortos. Representantes da ficção contemporânea, como César Aira desancam publicamente a obra do escritor. No seu Diccionario de autores latinoamericanos, Aira, diz que Sabato tem um “robusto senso comum” e “ideias convencionais e politicamente corretas” que o transformaram no gagá favorito da mídia. Bom, é uma daquelas ”verdades” que convinha ser relativizadas.

A tal ponto chegou a situação que o crítico e escritor Abelardo Castillo disse que bater em Sabato se transformara num desporto nacional para os argentinos. Tudo por factores extraliterários, porque ter escrito Sobre Heróis e Túmulos e dois ou três mais do que estimáveis livros de ensaio ninguém lhos tira.

O rei da cacetada é o Bioy Casares que, entre múltiplas alfinetadas, inventa este sonho:
«Sueño. Alguien tenía el poder de convertir a cualquiera en sapo. Lo convirtió a Sabato, que esa mañana, ante el espejo, se llevó la consiguiente sorpresa. Matilde llamó a un médico.
—Estas cosas, tratadas a tiempo, no son nada —explicó.

Sabato estaba furioso con ella. No quería que nadie, ni siquiera el médico, lo viera. No salía de la casa; tenía la esperanza, desde luego sin fundamento, de que se curaría solo. A la espera de algún signo de esa mejoría, que no llegaba, dejó de concurrir a los lugares que frecuentaba habitualmente.»

Este mesmo Bioy Casares que aparece num diário de Saramago a concordar com as diatribes do autor de Memorial do Convento contra Octavio Paz – suponho que por motivos políticos – à falta de poder morder em Sabato, pois neste caso Saramago coloca-o nos píncaros.

Bom, no livro em que Orlando Barone exuma uma série de diálogos entre Borges e Sabato, cava-se fundo no que separa os dois criadores. Repare-se neste trecho:

«SABATO
Mas, como a morte nos espera no futuro, há pesadelos que só podem ser visões do inferno em que participaremos.

BORGES (sério)
Mas você não acredita, Sabato, que o Céu e Inferno são invenções verbais?
SABATO
Eu acho que são realidades, embora isso não queira dizer que sejam realidades tão ingénuas quanto as que se ensinam os meninos nas igrejas. Os pesadelos, as visões das pessoas loucas que “se colocam fora de si ” (repare como é significativa essa antiga expressão antiga), as visões dos poetas são realidades, não são amontoamentos de palavras. Quem via Dante passar pelas ruas de Ravenna, esquálido e silencioso, comentava em voz baixa, com uma espécie de temor sagrado:

“Lá vai aquele que esteve no inferno!”. Eu acredito que Dante viu, como todo o grande poeta, com terror e uma nitidez afiada, o que as pessoas comuns apenas entreveem. O que o homem comum confusa e penosamente consegue ver naquela pequena morte transitória que é o sonho.

BORGES (que o ouviu com suave descrença)
Fico confortável pensando que o céu e o inferno são hipérboles.
SABATO

Noutras palavras, você, às suas próprias histórias, considera-as como meras invenções verbais e não como descobertas de uma realidade… (ele muda a sua expressão e comenta para Barone). Embora ele resista a isso, ele é um descobridor de outras realidades. (pp. 128-129)»

Um, aposta tudo no lúdico – as hipérboles, no dizer de Borges, que é um armador de jogos -, o outro debate-se – como o seu personagem Castel, em O Túnel – contra a trivialidade. É a velha discussão entre Crátilo e Sócrates, que continua a provocar irritações e encarniçamentos, sem se ver que, à vez, ambos têm razão, há momentos em que estamos com César e outros com Deus¸ havendo ainda outros momentos para azucrinar os poderes e a gramática.

Daí que não veja a necessidade de escolher entre a Alexandra Lucas Coelho e a Ana Margarida de Carvalho, uma solista na secção dos sopros, outra na das cordas, as “novas” que mais me interessam. Nem descortino motivo para a sanha contra o Valter Hugo Mãe (onde até uma história truncada, como a do seu falhado encontro com Herberto, serve de anedota), um tipo que arrisca e tem livros e páginas superlativas (- bastava o capítulo O Poço, de Homens Imprudentemente Poéticos, para estar na história da literatura). Mais triste ainda, a capacidade do Diogo Vaz Pinto em ser o seu pior inimigo quando pode escrever livros notáveis como Manifesto; tão insensato como abrir a mais mortífera trincheira do mundo para conseguir dar corda ao relógio.

E quando agora leio Anti-Prefácios, do Alberto Velho Nogueira (que me foi oferecido pelo sempre atento Levi Condinho), e encontro, nas seiscentas páginas do seu alentado volume, algumas das páginas mais inteligentes e luminosas sobre a literatura portuguesa que li desde sempre, sabendo que o Velho Nogueira é absolutamente menosprezado por dar trabalho a sua leitura, e que nem aqueles que zurzem no Valter o reivindicam, só me apetece ir para a Nova Zelândia e voltar ao doce anonimato que foi o meu durante anos em Moçambique.

Ah, entretanto, ontem, finalmente, encontrei o título definitivo do meu romance (coitado, já teve dez títulos), que sairá neste inverno: Fotografar contra o vento. Podem começar a denegrir, a gerência agradece.

5 Set 2019