Dos labirintos: um diálogo

[dropcap]O[/dropcap] homem foi o primeiro ready-made de Deus: eis como agora parece começar a desalentadora História da Humanidade. Mas o inesperado pode interceder e aliviar-nos, como na felicidade de ter baixado um livro de Charles Simic, O Monstro Ama o seu Labirinto (na tradução espanhola) e lê-lo de rajada. E entra assim:

«Muito tarde na noite, na rua MacDougal. Acerca-se um velho e diz: “Senhor, estou escrevendo a história da minha vida e preciso de uma moeda de dez centavos para acabá-la”. Dei-lhe um dólar.»
Com o que sobra ao centavo o velho vai ter com que reencarnar, para contar outra história de vida. O que me lembra a regra de Canetti para identificarmos a arte: quando encontramos mais do que aquilo que foi perdido.

Este é um livro de notas diarísticas, de ímpetos e aforismos, de comentários ao jogo da escrita e à esgrima desta com os seus leitores e críticos, num magma heteróclito e permeado de breves, deliciosos, flashes de infância ou doutros recantos da memória.

«Mentia um pouco? – diz Simic, sobre si mesmo – Claro. Dir-se-ia que havia vivido anos na Rive Gauche e que por hábito me senta.va nas mesas dos cafés famosos, de olho preso nos debates apaixonados dos existencialistas. O que justificava tais exageros aos meus olhos era a possibilidade real de que poderia ter vivido algo assim. Tudo na minha vida parecia o produto do acaso, encadeava uma série de eventos improváveis, então, no meu caso, a ficção não me soava mais estranha do que a verdade. Como quando eu contei à mulher no trem de Chicago que era russo. E descrevi-lhe o nosso apartamento em Leningrado, os horrores do longo cerco durante a guerra, a morte de meus pais diante de um pelotão de fuzilamento alemão, na nossa presença, os filhos, os campos de deportação na Europa. Nalgum momento daquela longa noite não tive outro remédio senão ir à casa de banho rir a bandeiras despregadas. Ela engoliu as minhas petas? Quem sabe? Na manhã seguinte, deu-me um longo beijo de despedida, que alguma coisa haveria de significar»

Para Brodsky, “a história da consciência inicia-se com a primeira mentira”, e acrescentava: “acontece que eu recordo a minha.” Não recordo a minha primeira mentira, mas adoraria mentir sobre isso, pois não me custa a acreditar que ele tenha razão. Como combinar o “direito de mentir” e a ética – é a questão que se segue.«O poema que quero escrever é um impossível. Uma pedra que flutua.»

Completamente, por isso me atrai a metamorfose. E o quotidiano só me interessa como superfície porosa, onde por trás do familiar irrompa o estranho, o neutro que antecede a intensidade, o amorfo que acicata os elementos a mudarem de natureza e figura.

Duas outras notas em que me revejo: «Se trato tudo ao mesmo tempo como uma piada e como um assunto sério, é porque honro o eterno conflito entre a vida e a arte, o absoluto e o relativo, o cérebro e estômago, etc. Nenhuma filosofia pode nos faz esquecer uma dor de dente … algo assim.»; «Impulsos contraditórios no fazer do poema: deixar as coisas como são ou voltar a imaginá-las; representar ou recriar; submeter-se ou afirmar, artifício ou natureza, e assim por diante. Como a vaca, o poeta deveria tem mais de um estômago».

Eis o que nos atraía em jovens: «”Tem imagens estupendas”, dizíamos, e o que queríamos dizer era que o poeta não nos deixava de surpreender-nos pela natureza selvagem das suas associações. O nosso ideal naquele tempo era a liberdade total da imaginação. Isto é o que amávamos e o que exigíamos da poesia que nos propúnhamos escrever.»; daí que me fatigue verificar como hoje a imaginação se tornou suspeita. Voltaram o recato e as regras. Talvez daqui a vinte anos o Michaux apenas seja lido por um grupo de fanáticos.

«O inventor da metáfora moderna, Arthur Rimbaud, considerava-se um vidente. Soube ver que a ambição secreta de uma metáfora radical é metafísica. Podia abrir novos mundos. Podia tocar o absoluto. Abandonou a poesia quando começou a duvidar desta verdade.»

Cada poeta assemelha-se ao mestre budista que em jovem pensava que as montanhas eram montanhas e os rios rios, e que depois de anos de estudo e devoção decidiu que as montanhas não eram montanhas nem os rios rios, para no fim da vida, já era mais velho e sábio, ter logrado compreender que as montanhas são montanhas e os rios rios. O Rimbaud só compreendeu pela metade, nem pressentiu o que monge budista calou: que depois da última travessia do deserto talvez voltem os símbolos a ser «deidades momentâneas».

Outra nota espantosa: «Nietzsche: “Um pequeno animal exausto com os dias contados” propõe “o objeto do seu amor”. Disto se ocupam os meus poemas.» De como dotar de dignidade os perecíveis, portanto – é difícil achar melhor projecto.

«A forma é “sentido do ritmo”, essa medida exacta de silêncio entre palavras e imagens que as torne significativas. Os cómicos sabem muito bem de que falo.»

Também me palpita que, amiúde, a forma é apenas a sábia exploração de um irrepetível sentido do timing entre os elementos da relação que o texto aflora, coloca em presença. Por isso quando me perguntam o que ocupa mais na escrita de um romance eu invariavelmente respondo: o ritmo.

«O que a esquerda e a direita políticas têm em comum é o seu ódio à literatura e à arte modernas. Agora que o penso, todas as Igrejas compartilham esse ódio, o que nos deixa sem muitos apoios. Por um lado, temos o rico imbecil que colecciona latas de sopa de Andy Warhol, e por outro o pobre rapaz enamorado dos poemas de Russell Edson e Sylvia Plath. Deus nos valha!»

E aonde isto nos conduz? Talvez a este estado merencório da actualidade: «”Ela fingia um orgasmo de cada vez que se masturbava”, escreve um gracioso anónimo num tabloide.”

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