A Lição do Diabo

«A musica, o luar e os sonhos são as minhas armas magicas. Mas por musica não deve entender-se só aquella que se toca, se não também aquella que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve suppor que se falla só do que vem da lua e faz as arvores grandes perfis; ha outro luar, que o mesmo sol não exclue, e obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturaes e nossos.
– Mas, se o mundo é acção, como é que o sonho faz parte do mundo?
– É que o sonho, minha senhora, é uma acção que se tornou idéa, e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a materia, que é o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?».
Eis o que disse o Diabo à desprevenida Mãe em A Hora do Diabo, de Fernando Pessoa.
Fico semanas a matutar na natureza dos sonhos em Pessoa – ‘só os sonhos são sempre o que são’ parece-me uma hipótese acabrunhante -, até que, ao navegar na Net, na leitura avulsa de uma longa entrevista com Jean Borella, vejo explícito o que me parecia útil traduzir nestas formulações do Diabo:
« …numa aula, ao ouvir uma explicação sobre a chôra do Timeu – termo que designa a substância protoplásmica universal, esse “quid” de que todas as coisas são feitas, o ‘receptáculo cósmico’ – compreendi então, tanto quanto é possível, o mistério a que a Índía chama Prakriti – princípio cosmológico análogo à matéria prima – , e, por extensão, o mistério metafísico da divina Mâyâ. Esta intuição livrou-me do encadeamento dos conceitos porque me colocou face a face com um ‘pensamento pensante’ que supera largamente a experiência do ’pensamento pensado’. Porque os conceitos transportam-nos aos objectos, cristalizam neles. Mas a chôra, a matéria-prima, não é um objecto determinado (- advertindo de antemão que esta matéria não se assemelha ao puro nada). Ela é, independente do modo, a condição de possibilidade de todo o objecto, o receptáculo onde se podem moldar/ aparecer todos os objectos, a matriz universal pela qual todos os seres podem ser concebidos. Ao intuir isto, por abandono das coagulações conceptuais e da ordem necessária que as encadeia uma nas outras, descobri o pensamento como actividade pensante. Sem dúvida que, a partir daí, como todo o homem, estava condicionado a continuar a pensar por conceitos, mas percebia gratamente um espaço supra-conceptual onde a inteligência podia verdadeiramente respirar: do mesmo modo que um homem para caminhar tem necessidade das suas pernas mas a quem só o olhar mergulha na luz inteligível.»
Recordemos agora como o Diabo detalhou a coisa: «O sonho é uma acção que se tornou idéa, e que por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a materia, que é o estar no espaço», e demos por certo que, depois de uma breve soneca em Pessoa, o Diabo espertou nas páginas de A Gravidade e a Graça, onde Simone Weil, lhe ouviu o ditado e redigiu:
«Participamos da criação do mundo decriando-nos a nós mesmos (tendo Weil, na página anterior definido deste modo o acto de decriação:«transformar o criado no incriado»)». A decriação opera a reviravolta, a inversão das hierarquias e a re-conversão do espaço em tempo, do agido em emoção, da semente em ascensão, da categoria em devir: e assim se converte em acção a ideia.
E como é que o sonho conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria?
Aqui a lição teremos de ir buscá-la ao Oriente. Os chineses, como os hindus e os japoneses, postulam a existência de uma energia constituinte de tudo o que existe no mundo físico. Os hindus chamam-lhe kundalini ou prana, os japoneses ki, os chineses chi. É uma vibração emanada por todas as coisas e seres mas não é algo que se represente e para a captar há que penetrar para lá dos aspectos superficiais e ser-se, por sua vez, possuído por esse ritmo vital do espírito. Não há observação do fenómeno exterior à implicação do observador.
Também os andaluzes têm um nome para esta energia, chamam duende a esse ritmo vital do espírito.
Já o escrevi, às vezes, a dar aulas, quando engreno, sinto o duende. Que um fio discursivo se solta e se conduz a si mesmo, usando-me como veículo de um fluxo discursivo que ultrapassa em muito os meus limites expressivos.
Para o Oriente não existem seres ou situações claramente delimitáveis, mas sim um processo de convergências e jogos de forças que vão variando de intensidade e cujas interacções potenciam a mutação de todas as coisas, sejam seres ou situações.
É essa tensão, metamórfica, de uma energia em processo (o mundo composto de mudança de Héraclito e Camões) que conserva a força do mundo enquanto lhe repudia a matéria, a identidade pré-determinada e cristalizada em objecto.
É esta a lição do Diabo, em Pessoa.

30 Dez 2021

Vamos ao Nimas?

Só hoje, pela quinta vez em que vejo “A intriga internacional”, de Hitchcock – desta para o dar a conhecer às minhas filhas mais novas – é que dou conta do que me fora ocultado, até aqui. E pasmo. Pasmo do que não conseguia ver.

A dado momento de tão intrincada intriga, Roger Thornhill (Cary Grant) chega à inesquecível casa de Vandamn/James Mason, no topo do Monte Rushmore, vivenda que se desenvolve sobre o abismo (evocando a Casa Sobre a Cascata de Frank Lloyd Wright) e que se encaixa perfeitamente no cenário, com suas linhas horizontais nítidas (até parece embutida na pedra) e os vários cantiléveres. Também o interior, veremos depois, apresenta muitos elementos naturais, incluindo madeira e calcário.

Esta casa foi construída inteiramente nos palcos da MGM em Culver City. Os interiores foram construídos como sets de filmagem em escala real. Alguns dos exteriores foram igualmente montados no plateau como as vigas de aço apoiando o cantiléver, um elemento que não teria sido usado por Wright mas necessário para fornecer a Cary Grant uma forma de escalar fisicamente o exterior da estrutura.

Todas as cenas ocorreram ao fim de dia noite, para que os efeitos ficassem mais realistas.

O que nunca havia conseguido ver e que agora se me enfiou à primeira olhos dentro, como um argueiro que incomoda e não sai, é que a casa de Vandemn mais não é que a representação estilizada do Dragão, os cantiléveres são a maxila do monstro, e toda a cena afinal evoca a acção de S. Jorge, que também se meteu no insensato duelo com a criatura demoníaca para salvar uma pobre rapariga, a filha do rei da Líbia. Neste caso trata-se de salvar Eve Kendall/ Eva Marie Saint, a sensualíssima e misteriosa espia que só nesta cena se comprovará que não tem uma língua bífida (como os lagartos e dragões) e estar do lado de Thornhil, um filho de sua mãe América.

Em concomitância, as irregularidades da pedra nas paredes do exterior da casa, por onde Thornhil trepa, figuram as escamas do dragão, e toda a sequência adquire uma cândida, mas resoluta leitura política. Toda a aventura neste thriller, não nos podemos esquecer, evoca a Guerra Fria e o filme (lua de mel no comboio à parte) praticamente termina com Cary Grant pendurado no nariz da figura de George Washington, nesse encaixe simbólico que é o Monte Rushmore. Lembremos, a vitória de São Jorge sobre o dragão metaforizava a vitória sobre as hostes islâmicas na época das Cruzadas, e neste caso temos de um lado uma mitologia arcaica e telúrica (o dragão do comunismo) contra a benigna racionalidade de quem molda as energias selvagens da natureza num talhe antropomórfico, regulado. E eis Eve, que desde a primeira cena se comportou sempre como uma verdadeira Lilith, convertida ao “humanismo”: domada e adestrada para a lida da casa, como senhora Thornhill.

Desta vez, não precisando mais de estar atento à história, não fui transportado pelo transe da acção e vi o que lá estava. E o engenho do filme está em ser simultaneamente um filme de acção e uma “séria” alegoria política.

Vi também o que não gostava de ter visto em “The Thomas Crow Affair”, de Norman Jewinson, o original, de 1968. Não o revia desde que fora fascinado em miúdo (devo ter visto o filme com doze, treze anos) pelo modo de recrutamento para o assalto, com os faróis no apartamento a encadearem quem responde ao anúncio e impedindo assim que o cérebro do golpe seja identificado. A inteligência do processo fascinara-me (na minha memória durava imensos minutos, quando na realidade a cena é breve) a tal ponto que não me recordava da cena do jogo de xadrez entre Thomas Crow/Steve Mcqueen e Vicky/ Faye Dunaway, e que é verdadeiramente a cena antológica do filme.

O que hoje se retém do filme é menos a inteligência com que o crime (o assalto ao banco) é cometido como a inteligência prenhe de erotismo da investigadora dos seguros, Vicki Anderson. Personagem que aliás tem o mesmo desplante de Eve Kendall, a mesma abrupta honestidade que faz do jogo da verdade um trunfo sensual e uma idêntica vocação para desfrutar, apesar de todos os riscos, da promessa do sexo. Duas Liliths.

Revendo agora o filme, não me lembro de outro com a Faye Dunaway em que funcione tão bem a química entre as personagens e de alguma vez a ter achado tão atraente. E onde há bela vem o senão.

Na cena do jogo de xadrez, excelente na arquitectura da decoupage, há um contraste desconcertante entre os grandes planos de rosto dela (de um desenho e delicadeza ímpares) e os grandes planos das mãos, que movem as peças e vão revelando em vários meneios inadvertidos a geometria do desejo que se instala. Porquê? Não pela natureza dos gestos, que rimam com a situação, mas por causa de um adorno que marcará talvez uma época mas que quando o vemos fora do seu tempo devém vulgar e contrastante com o resto da figura. Falo das unhas postiças de Vicki, que de repente é uma deusa com adereços de manicure comprados no Centro Comercial da Mouraria. O que faz com que não bata a bota com a perdigota, a sofisticação do resto torna imperdoável a vulgaridade. No sugestivo plano em que Vicki “masturba” o bispo, aquelas unhas são cascos grosseiros e adivinha-se ali uma circuncisão sem anestesia em vez do deleite prometido. E nos pormenores está Deus e a Arte.
Quanto a Faye Dunaway, minha Nossa Senhora – que pena eu ser ateu.

9 Dez 2021

A poesia e a sageza

A imprevisível Hilda Hilst, que depois de escrever cinco extraordinários livros de prosa que ninguém lia se entreteve durante anos a tentar gravar (literalmente) as vozes dos mortos, declarou assim nesse bendito livro de entrevistas que se intitula Fico Besta Quando me Entendem:

«Minha relação com Deus é uma relação muito especial; fica muito difícil de explicar isso. Considero a literatura uma coisa essencial e acho que, se ela não é essencial, não deve ser manifestada. Mas isto de “Deus”, como costumam chamar, não sei. Eu chamo Deus de tantos nomes: Obscuro, Grande Obscuro, Sorvete Almiscarado… Cada um dá um nome ao seu Deus. Existem algumas coisas que o seu ser essencial deseja, mas que, na verdade, na vida física, cotidiana, não deseja. Um exemplo disso é o primeiro poema do meu livro Sobre a tua grande face. É um desejo do meu eu mais profundo, mas, na verdade, não desejo isso, aliás prefiro que nunca aconteça isso. A minha parte mais verdadeira, essa parte melhor de mim é que deseja. Esse primeiro poema é de despojamento absoluto, onde digo: “Honra-me com teus nadas. / Traduz meu passo / De maneira que eu nunca me compreenda… “.

“Honra-me com teus nadas…” Estou lendo, para vocês, para verem como existe uma diferença entre o que você realmente quer e o que o seu espírito mais profundo deseja. E, na vida, o que você pode viver, no seu cotidiano, pode não ter nada a ver com essa verdade mais profunda. Aqui, eu me coloco como um ser humano.
Noutro poema escrevi: “E de ti, Sem Nome,/ Não desejo alívio./ Apenas estreitez e fardo./ Talvez assim me ames:/ desnudo até o osso/ Igual a um morto”.

Isso é meu espírito, em que acredito. Acredito na alma imortal. O meu espírito mais profundo deseja isso, mas, na realidade, na minha verdade de todo dia, eu não desejo a pobreza, nem a fealdade, nem o medo. Aliás tenho horror da pobreza, tenho um pânico medonho. O meu ser-verdade é que tem vontade disso tudo. Essa outra e esses outros que nós somos no dia a dia são máscaras que a gente coloca o tempo todo. Talvez o desejo da santidade seja uma nostalgia do homem. A maior vontade do homem, talvez, seja a santidade, a bondade absoluta, a generosidade, a perfeição, uma luz muito perfeita. Um dia, em algum lugar, nós conhecemos essa luz. Acho que toda a nossa vida, aqui, parece ser a busca dessa luz que não conseguimos reaver. É isso. Mas acho que o tom está se tornando muito sério. Eu preferia que fosse mais leve, porque ninguém vai ficar meu amigo, assim. Gostaria que se desse uma abertura para o que vocês quisessem perguntar, mas nada de tão grave. Acho que isso é bom para quando se escreve.»

O que me faz lembrar, a seguinte entrada do meu diário:

«Escrevi este poema: “Tapar todos os buracos de uma vida/ Pode custar-nos a vida/ E desligar-nos dos breves lampejos/ De silêncio em que sob a laje a erva se empolga./ Voltar atrás, fazer entalhes/ No remo ao invés de o meter na água,/ Torna inúteis as sementes de cravinho/ Enfiadas pela criança na fechadura da porta do castelo”.

Escrevi este poema, ou pelo menos esta pronunciação em forma de verso e hesito no modo de avaliá-lo. Julgo que esta minha hesitação resume todas as minhas dúvidas sobre a sageza. Adoro os sages, leio-os, cito-os, trago-os no bolso, não vivo sem eles. Mas desejo profundamente estar aquém ou além, não na sageza.

A sageza é muitas vezes apenas a forma redonda de acomodar o mundo num espaço de concordâncias e analogias que o tornam mais confortável. Aí a sageza funciona como uma espécie de plaina sobre as farpas e irregularidades da madeira – dá-nos uma âncora no meio do ciclone. Ora, julgo que as âncoras só na água não são decoração, o que lhes acontece no ar, ou na terra, por exemplo.

Dito isto, desconfio que a sageza tenda a fazer da parte apostasia, evadindo-se então de frequentar as partes fronteiriças que o real sempre detona e revela. Há um excesso de sentido na sageza, como se houvesse mais acessos do que limites.

Este poema por exemplo é redondo. Chegar a esta “sageza” – passe a soma de ignorâncias que tal supõe – levou anos, muitos.

O que lhe é que lhe falta, para além da eventual carência de expressão poética? A exterioridade do mundo, o curto-circuito, uma ventania que abra um poro e escancare uma vista para algo maior – enigmático, inapreensível à minha auto-complacência.

Os orientais preveniam contra isto. Lembravam que todo o itinerário de Buda era irreproduzível e imitar-lhe a santidade só traria consigo o risco da idolatria. Cada um está condenado a desenhar a sua própria cartografia e um entrelaçamento próprio num padrão cujo objectivo não é repetir-se mas desenvolver-se. É pura perda de tempo imitar seja o que for, seja o Herberto, seja um patamar mínimo de competência que nos permita exigir uma resposta ou uma certa visão das coisas que nos distinga. Quando chegamos aqui atravessamos como um alfinete o tecido da sageza mas o fito é romper e não sossegar nesse pequeno furo/ âmbito que nos serve momentaneamente de patamar.

Talvez por isso Mircea Eliade, nos seus diários, quis contar como foi surpreendido por Alan Watts, na visita que este lhe fez a casa e que face à oferta de um chá lhe terá respondido que preferia um bagaço, se acaso houvesse.

O sage trocava-lhe as voltas, expunha a face de um homem chão, lembrava ao historiador das religiões que o corpo é para gastar e não para ser poupado.”

25 Nov 2021

Efeitos de vida

01/11/21

Estou imensamente agradecido por o Super-Homem ter mudado a sua orientação sexual. Ele era um entrave na minha até aqui estoica paixonite por Lois Lane, a intrépida repórter que achava o Clark Kent um banana – isto na Terra 1, antes de inventarem uma Terra 2 na série televisiva e de os terem casado só para minar a minha confiança numa hipotética abordagem. Outras hipóteses se abrem agora. E esta viragem só corrobora o que sempre pensara: que ele não era homem suficiente para ela. Já aumentei a carga horária no Pilates.

02/11/22

Leio no “Livro do Desassossego”: «Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro dia um amigo, sócio de uma firma que é próspera por negócios em todo o Estado: “Você é explorado, Soares.” Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos todos de ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade, pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossível. Há os que Deus mesmo explora, e são profetas e santos na vacuidade do mundo.»

Faltou a Karl Marx este entendimento das entrelinhas entre os humanos para perceber que a exploração do homem não é de facto só económica mas se alarga ao espectro mais amplo da antropologia e do comportamento interpessoal. Com mais este instrumento de análise, talvez as revoluções falhassem melhor, ou deixassem menos sequelas. Entregar tudo na crença acéfala da neutralidade das “estruturas”, sem regras que considerem a provável pequenez do homem que as instrumentaliza foi o erro da esquerda desde sempre. Neste item valia a pena fazer uso de algumas análises de René Girard (que explica como a imitação e a inveja comandam as relações humanas), mas como este se converteu ao cristianismo, canhestramente, oblitera-se.

03/11/22

Mais adiante, escreve Bernardo Soares: «A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.», e fico abismado, porque aqui Pessoa mais não diz do que aquilo que Marc-Mathieu Münch defende ferverosamente desde 1991, isto é com setenta anos de atraso.

Este professor de literatura comparada cujas ideias eu descobri por grosso num livro sobre Estética redigido por um homem de 96 anos, Edgar Morin, defende, contra o relativismo que lançou no pântano a possibilidade de qualquer juízo estético ou literário, que existem «invariantes planetárias» que nos permitem estabelecer alguns «corolários», seis, na verdade, e que esta base legitima retomar a questão fundamental da natureza da arte literária.

Dos seis corolários, sobressai «o efeito de vida», fulguração que está presente no seio das obras mais profícuas, aquelas que, como diria o poeta Robert Juarroz «ampliam as escalas do real». Resgatar pela arte o real do seu confinamento e sensibilizar-lhe novas estrias, de modo a que “os campos sejam mais verdes” e o perfume das flores mais extenso é forcejar no caminho que leva o homem a ser mais consciente de que não passa de um “morto transfronteiriço”, sendo o seu dever despertar os sentidos e a realidade que eles semeiam.  Aliás, na esteira de Susan Sontag, que em “Contra a Interpretação” assim se pronunciava: «Rilke descreveu o artista como aquele que trabalha “para uma ampliação das regiões dos sentidos individuais”; McLuhan chama os artistas de “especialistas em consciência sensorial”. E as obras de arte contemporânea mais interessantes (pode-se começar pelo menos desde a poesia simbolista francesa) são aventuras entre as sensações, novas “misturas sensoriais” (…) O importante agora é recuperar os nossos sentidos. Precisamos aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais.»

04/11/21

Explicava Eliot, “quando a mente do poeta está perfeitamente equipada para o seu trabalho, está constantemente amalgamando experiências díspares”, as quais formam novas totalidades. A estas afluem todos os recursos e não apenas uns ou outros — oponhamo-nos a todas as modalidades redutoras. Não há poemas simples.

Mas este conflito emerge periodicamente, com vários nomes, no território da poesia, reacendendo uma guerra antiga: a que se trava entre a memória e a imaginação, i.é, entre o velho e o novo, como se não pudessem e devessem conviver.

Sempre achei um mistério esta interdição de um trânsito nas duas direcções, na medida em que uma sem a outra propendem a coagular. Nem a inteligência que as imbrica e as torna operatórias consegue actuar sem recorrer a uma e a outra à vez, ou simultaneamente, pois a memória inclusive só se actualiza pela recriação. E nesta há uma parcela de imaginação.

05/11/21

A arrumar materiais para compor um livro redescubro este brinquinho:

«PHODER LEVA EM SI MESMO A CONSOANTE MUDA QUE BATE AS CLARAS EM CASTELO!»

Um slogan que escrevi contra o Acordo Ortográfico.

Não percebo porque nunca fui convidado por nenhuma agência publicitária, alguma mazela terei…

11 Nov 2021

Penélope: Crónica de um encontro

Creio que inventámos o amor para que Deus não se suicide. Não te importas que tudo isto seja ao contrário? Acredita, o que perdemos melhora-nos. Sim, é uma espécie de felicidade para náufragos. Hei-de ser capaz de explicar-te. Espera, tenho de me desconectar, preciso de ir à farmácia comprar um remédio para as miúdas, ligo-te mais logo.

Perguntavas, Como é que se agarra a primeira frase, numa narrativa? É ela quem nos bica duma vez só, como o pombo ao grão-de-bico, ou o gavião que faz um looping sobre a pequena lebre para a arrebatar num ápice, respondo-te, e olho-te as mãos.

Sondo nelas uma réstia de sombra, a mais miniatural, das minhas. Quantas vezes as tuas mãos seguraram as minhas no cinema?

Não se esquece o beijo que foi pasto de chamas na última fila da plateia do Incrível Almadense, um desses beijos que o Doisneau prontamente imitaria, numa urgência de fim-do-mundo. Porém, na verdade, nunca nos faltou lugar e ocasião para namorarmos e, por isso, era-nos mais comum, mais do que com os nossos amigos, seguir as fitas até ao fim e embrenharmo-nos nelas e no sentido que tivessem, num entreolhado cúmplice, sem que a cadela do desejo desencaminhasse da retina as bobinas.

Lembro-me, isso sim, em sendo a fita pavorosa, de te tocar, no escuro, a tua camisola de lã, larga e comprida escondendo a incursão no vértice desapertado das tuas calças; aí desencadeávamos uma nova montagem para o tempo. Tínhamos dezassete, dezoito anos, e lá fora o mundo mudava, tanto que eu queria ser escritor e tu psicóloga.
Decerto que milhentas vezes as tuas mãos desaprenderam as minhas, essas mãos com que tacteias agora no teu ventre a cicatriz da cesariana de um filho que não é meu.

Sobressalto – assalta-me aquele filho que nós não tivemos, desmanchado por enfermeira especializada. Está em que grampo, na tua cicatriz? Nunca lhe demos nome, mas, sei, chamar-se-ia David.

Como é que se agarra a primeira frase de uma narrativa, insistes. Digo, quando algo se põe em movimento a partir de um lugar que não é o do reconhecimento.

Interrompe-nos o velho Meireles, O meu amigo, vai desejar outro jarrinho? Anuo, De um quarto de litro… Observas, antes mesmo do jarro de vinho ter chegado, A Mena ia-me dando conta dos teus filhos, olha nasceu mais um… Cinco, sorris… Pressinto os comentários sobre a minha leviandade: Do que te livraste, ironizo.

Sirvo os copos. Seria o tempo para lastimar, Nós não chegámos ao primeiro, não tivemos a coragem e resolvemos o assunto, no mesmo despacho com que na época nos críamos imunes ao tempo, ao destrambelho da morte… Limito-me a declarar, Talvez não chegue, o jarrinho… Fixo-te, deve incomodar-te que o meu olhar te perfure, quero perguntar-te, Alguma vez pensaste naquele filho que não nasceu, mas calo. Ao fim de trinta anos, teremos de reconquistar a espontaneidade. O que teria mudado das nossas vidas se o tivéssemos deixado nascer? Seria eu escritor e tu uma pintora brutalista que derrama vida pelas telas?

E um quotidiano em comum, as rotinas que ensurdecem o mundo, compensaria este momento de nos reencontrarmos trinta anos depois, pudicamente, com a minha emoção fixa nos seus olhos, que se dão e fogem?

Compreendo, avalia ainda o que pode partilhar, quem serei, três décadas depois. E eu, sugado por uma aleatória esquina do tempo para um sentimento que julgava desalojado, quem te fui?

Disse-te, na rua Cândido dos Reis, se vieres comigo cinco minutos a minha casa dou-te o meu último romance. E tu aceitaste.

Tomámos chá, eu olhando as mãos dela pela primeira vez, desde há trinta anos. Não me ocorria mais nada senão aquele trecho de Cortázar: «Põe a mão em cima da mão de Michèle. Michèle põe a mão em cima da de Pierre. Pierre põe a outra mão em cima da de Michèle. Michèle tira a mão de baixo da dele e põe-na em cima. Pierre tira a mão debaixo da dela e põe-na em cima. Michèle tira a mão de baixo e apoia a palma contra o nariz de Pierre.»

Ou talvez fosse mais acertado dizer: face a mim estavam as mãos de Penélope, a que tece e desfaz as tapeçarias. Isto, se as mãos dela não enxotassem quaisquer insatisfatórias semelhanças.

28 Out 2021

Uma dispersão do diabo

Eis-me numa dispersão do diabo, igual à da senhora australiana que, como foi noticiado esta semana, descobriu já tarde que tinha duas vaginas, quando, num assomo de curiosidade, perguntou à mãe (que pelos vistos nunca lhe mudara a fralda) se costumava meter primeiro o tampão na da esquerda ou na direita. Há vidas santas!

Excertos de três livros em curso:

Excerto 1
A minha vida? Feita de restos, de ingratos desencontros. Entra aquela mulher atraente no café, dá-me a espertina e ponho os óculos: é o casamento feliz de Joni Mitchell e da Suzanne Vega. Tirando a dentuça.
Paira, nesse esplendor condoído da metade dos quarenta.
Que pena não ter nove vidas como o meu gato Sebastião (faz hoje anos) para poder cantar com ela o Blue e o Luka.
Ainda teríamos filhos, dois, e numa visita ao Etna, falar-lhe ia de Empédocles, com cuidado, pra não tropeçar em arbusto incandescente.
(Mete-se a minha mulher, E eu, também não vivo de restos, não tenho os mais vivazes desencontros? Já não estamos sós nem na escrita! Tranquilizo-a: tens sim, meu amor, por isso não cometo o risco que te defraudaria: Viste, acabei de cair no Etna!).
Não te esqueceste dos bróculos, pergunta-me da cozinha (- mudei de parágrafo e de geografia!).
A Jade canta A Pedra Filosofal, a Luna ensaia pela nonagésima vez o Dangerously, de Charlie Puth (quem é?) eu faço o print de duas antologias de Emily Dickinson, roubadas ao amorfo manto da net.
“Tão fugitivo como o poente na neve”, diz a poeta. Fala da mente, digo eu: nenhum de nós tem razão. Para quê dar nome àquela bela miragem?
Na varanda, os jacarandás despem já o seu enxoval. Onde se meteu o noivo?

Excerto 2
De todos os livros sugeridos pelo bibliotecário, o único cujo tema me interessou logo e de que já tinha ouvido falar era o Moby Dick. Por um daqueles acasos felizes com que a vida nos trama, numa tarde de cata-caracol no Camponesa do Alva, assistira a uma conversa em que o primo açoriano de alguém, de visita ao bairro, enquanto chupava os gastrópodes, se entretivera a fascinar a plateia com um assunto absolutamente inesperado: a degola do cachalote.
A sua narrativa, brutal, foi tão arrebatadora que o dono do café, no fim, ofereceu à mesa uma travessa de amêijoas, pois, repetia, naquele dia “tinha-se fartado de aprender”. E como remate da conversa o primo açoriano recomendara a leitura do Moby Dick: “É um livro que sabe mais de baleias que a Bíblia sabe de anjos”.
Ainda hoje me pergunto o que me teria fascinado em Moby Dick, um livro de uma densidade excessiva para a capacidade de absorção de um rapazola de onze anos. Já não falo do vocabulário, que tiraria eu das «enxárcias lassas do sobrejoanete de proa», ou que poderia deduzir ao ler que «dos assuntos úberes medram os capítulos»? Ter-me-iam atraído os vários afluentes de curso fantástico que o Melville vai largando como quem não quer a coisa, ao jeito de ganchos narrativos: «Dizem que os pais de New Bedford oferecem às filhas baleias como dotes», «em Nantucket as pessoas plantam cogumelos diante das casas para conseguirem um pouco de sombra de Verão», «Hossea Hussea mandara encadernar os seus livros de contas com pele de tubarão de superior qualidade», «a alma é uma espécie de quinta roda numa carroça», «aquela mãe egípcia que deu à luz filhas já grávidas à nascença»? Seria da lenda que Melville relata sobre um lago da Serra da Estrela onde apareceriam misteriosamente carcaças de velhos baleeiros? Seria de ter intuído a absoluta precisão vocabular de Melville: «Foi portanto numa noite silenciosa que se avistou um jacto prateado», «empoleirado a desoras no alto do mastro», ou, como se lê num dito do Capitão Ahab: «foi Moby Dick que me desarvorou»?
Tudo isso mais o contraste deste genial romance de inabalável pulsação digressiva com as narrativas correctas, antisépticas e arrumadinhas de hoje. Hoje, na maioria dos livros, está tudo certo, o que lhes falta é a vertigem. A vertigem que nos assalta à leitura das primeiras páginas de Trópico de Capricórnio, a vertigem em que nos submerge o narrador quântico de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou a que nos imprime a loucura descabelada de A Música do Acaso, de A Noite e o Riso, de Partes de África ou a que é patente em muitos momentos de Manuel da Silva Ramos; esta sensação de torvelinho que transmite Melville e o absoluto domínio com que apesar do caos que pletoricamente parece invadir tudo nos tatua com uma impressão de irrefutável unidade.

Excerto 3
A arte é um reino da poligamia ou um estado do polígono? Continuo indeciso. Há lugar para a indecisão na mise en âbime? Nos sonhos sou visitado pela imagem de um homem que envelhece, sentado à janela do comboio. Furta-se a descer nas estações e apeadeiros, a ir lá para fora, como a mosca que se embriaga com os capitosos vapores da sopa mas receia cair na panela, o ruído fragoroso de cada cicatriz. Envelhece na janela do comboio, pois foi seu destino vaguear, como outros viveram indefinidamente em hotéis a ele coube-lhe a velocidade dos cometas, entre carris.
Uma noite, eram três da manhã e escrevia um artigo que me tinham encomendado, senti que metiam uma chave na ranhura de minha porta. Eh! – gritei. Fez-se silêncio. Seguido por uma corrida de retirada, célere como o fósforo que aprende a arder. Quem tem uma chave de minha casa e se apresta a visitar-me, sem avisar, às três da manhã, com intenções enviesadas? Esta noite não voltará. E amanhã terei de trocar a fechadura, pensei.
Mas não troquei. Para me sentir seguro, apanhei o comboio. O primeiro comboio da manhã para o Porto.

21 Out 2021

Desabafos do cantineiro

11/10/2021

 

Não é o melhor da Uma Thurman, os pés. Num deles ameaça o joanete e as unhas, “piquininas”, mate, velejam a custo num mar de carne, despontam ridículas como os narizes redondos dos anões da Branca de Neve recortados contra aqueles gorros inomináveis. A elegância do corpo, do rosto, daquele olhar malicioso como o gume de um sabre, tropeçam-lhe naqueles trambolhos – que custava ao Tarantino ter-lhe arranjado um duplo para aquele plano de “Kill Bill”, penso.

Contudo, aquilo que vejo na tela não é o Tarantino, mas “Nhanguitimo”, de Licínio de Azevedo, o último filme do cineasta moçambicano, onde ele adapta um conto de Luís Bernardo Howana e eu faço mais do que uma perninha, dado ser um dos dois protagonistas. É isso, faço de mau da fita.

É a vigésima vez que vejo o filme, nesta apresentação pública para algumas entidades oficiais (como a ministra da cultura e o presidente da república, os patrocinadores, e algumas figuras), em que em solidariedade com o realizador tive de cumprir agenda pública. Eu é que já não suporto ver-me e já só vejo os defeitos. E zás, introduz-se-me num insert, os joanetes de Uma Thurman, com que adormecera de véspera.

De qualquer maneira, os ecos do filme na imprensa moçambicana extirpam qualquer hipótese de cultivar um grama de narcisismo: procurando na net fotos do filme para ilustrar estar crónica, constato que os jornalistas só deram realce à presença do presidente Nyusi na sessão, nem uma só imagem do filme. Critérios.
E afinal como é a cereja?

É uma curta de vinte e cinco minutos destinada a fazer uma bela carreira nos festivais de cinema; um daqueles exemplos felizes de um magote de boa gente que se junta para remar tudo para o mesmo lado. Costumo dizer a brincar que só não ganho o Óscar de melhor actor porque o meu antagonista me papa as cenas todas, e é verdade, o Antonio Sitoe veste de uma forma superlativa a pele do “indígena” a quem o cantineiro Rodrigues (moi) tem de lixar (para lhe ficar com as terras de cultivo). No filme ganho eu mas na vida real faz-se justiça. Eu não vou mal como colonialista façanhudo (aliás, aproveitei as autoridades presentes na sessão para pedir uma “escolta vitalícia” assim que o filme passar nas televisões moçambicanas), e sou um convincente salazarista de uma ambição sem escrúpulos, mas o puto, que protagoniza já a revolta que incendiará a colónia poucos anos depois, come-me as papas na barriga.

E surpreenderá a câmara exímia (tanto nos enquadramentos como na luminotecnia, num preto e branco “agarrado”) do “Pipas” Forjaz e a música do João Carlos Schwalbach. Assim como o bom ritmo da edição. O resultado final é gratificante.

Aprendi bastante, sobretudo que o “overacting” só fica bem ao Gene Hackman.
Pessoalmente, acabrunha ver o cabelo que perdi com a covid (a rodagem do filme teve lugar duas semanas antes de ter sido contagiado). Face a isso até os joanetes da Uma Thurman são desculpáveis.

12/10/2021

Uma livraria perto de casa anda a fazer saldos com o que definitivamente não vendeu ao cabo de vinte anos e que já só atravancava o armazém. Numa semana comprei o volume onde se reuniu toda a obra édita do Raul de Carvalho por três euros, igual preço que paguei pela obra compilada do M.S. Lourenço, o livro do Viriato Teles sobre o José Afonso, por um euro e vinte, todas “As Tisanas”, da Ana Harteley, e o “Do Extermínio”, do Jaime Rocha, por idêntico dispêndio, o “Terra Nostra”, do João Miguel Fernandes Jorge, por oitenta centavos, dois volumes da Irene Lisboa por um euro e vinte, um volume de ensaios de homenagem ao Virgílio Ferreira, por dois euros… e continuarei atento às novidades que se forem depositando naquela mesa de refugo. Eis-me muito egoisticamente grato a que só eu saiba quem é aquela gente e a mais que sobre aquele tampo pingar.

Quarenta anos depois da independência a literatura portuguesa em Moçambique é um fantasma sem tripas nem leitores.

13/10/2021

Esperam que os clientes chamem. Mas vão afeiçoando o corpo, os quadris, os joelhos, o balanço dos pés, ao jeito da música. Não é ensaiado nem instruído, são apenas incapazes de não o fazerem. Os colegas homens, procuram ser mais sóbrios, mas o movimento do queixo sob a máscara denuncia-os: acompanham o ritmo da batida.

Vê-los em perspectiva, nesta ampla cervejaria de Maputo, é engraçado e contrasta com a pose hirta dos empregados de mesa das cervejarias da minha memória, a norte, que tinham a postura de pinguins petrificados e saudosos de que o frio os obrigasse a mexer.

Eu degusto lentamente a cerveja e folheio, pela décima vez na semana, um livro de João Pedro Grabato Dias; incubo para o prefácio da antologia dele que terei de escrever e que sairá em Lisboa até ao fim do ano, numa iniciativa do Pedro Mexia e da “Tinta da China”.

Um cheirinho: «Chegámos. / O meu morto é o primeiro do dia/ e é bonito isto de ser o primeiro em qualquer coisa/ algo que tanta gente pode verificar num balancear aprovador/ de perfis quási dignos, quási belos. / Passa mais fresca uma aragem de estádio/ um não sei quê de desportivo de goal de meta/ sem o cronómetro da metafísica, de pódio olímpico/ de alegres cem metros planos, de veloz velocipédico estrelato/ o da frente, o primeiro, o ás, o melhor o maior/ o maior morto do dia, o maior morto da semana/ o maior do mês, do ano, do biénio, do triénio/ do lustro, da década, da centúria/ do milénio, da era, da história, do universo…/ Em toda a simplicidade, o morto da minha vida/ o meu morto.» Excerto de “O Morto/ Ode Didáctica”, 1971

15 Out 2021

Por que não fugiu Monty?

Como lhe sugere o pai, por que não foge Monty? Cumprirá sete anos por narcotráfico, consciente de que tendo rejeitado continuar no “esquema” mafioso dentro da cadeia ou tornar-se informador da polícia ficará mais desprotegido e sujeito à violência e à arbitrariedade. Contudo, Monty escolhe a “via recta” num labirinto de solicitações e de emboscadas – e a sua escolha insólita eleva-o a um plano ético insustentável, embora, dada a dificuldade, digníssimo.

Falo de “A 25ªHora”, de Spike Lee, que revi agora porque preparo um pequeno ciclo do cineasta.

Aos sete anos, Monty tem pouca esperança de sobreviver. A narrativa segue as suas últimas horas de soltura (fora alguns flash-backs de contextualização); vemo-lo abrir mão dos privilégios que conquistou como traficante: uma boa casa, a entrada VIP em boates, a fama e a prosperidade económica. E despede-se do pai, um comerciante alcoólatra a quem o filho foi safando as dívidas, da sua namorada Naturelle (Rosario Dawson), que o ama apesar das desconfianças dele, e dos seus melhores amigos de infância, Jacob (Philip Seymour Hoffman), um tímido professor do liceu apaixonado por uma aluna, e Slaughtery (Barry Pepper), um corrector de sucesso em Walt Street. Os quatro passam a última noite livre de Monty, enquanto se adensa a questão de saber quem o terá denunciado à polícia (- terá sido Naturelle?).

Monty extrai as devidas consequências dos seus actos e aceita estoicamente a ida para a prisão. Monty não é um rebelde sem causa, alguém a quem o instinto da liberdade, à visão do castigo, faz espernear; vibra nele uma espécie de diapasão que lhe tempera o tom certo a cada momento da sua vida. Houve necessidade, para resolver certas coisas, de entrar nos negócios ilícitos, e fê-lo convictamente, com eficácia, desfrutando o que pôde da situação. Depois conheceu o amor e entregou-se-lhe, sem reservas nem cinismo – sinal de que o seu carácter não fora corrompido. Com a mesma naturalidade e a mesma lucidez face às circunstâncias, aceita o custo da redenção.

O carácter de Monty clarifica-se logo de início quando, contra a opinião de Kostya (o ucraniano que o denunciará), resolve salvar o cão que encontraram abandonado e ferido, em vez de matá-lo num “gesto de misericórdia”.  É um homem decente que face a certas circunstâncias teve necessidade de enveredar por más escolhas.

A sua índole conhece um contraste em Slaughtery, o corrector. Que vive duma actividade lícita onde só a lógica entra, arredia à natureza do escrúpulo.

Jacob vai a casa de Slaughtery, definido num ápice pelo que há sobre a mesa de trabalho – o Financial Times, revistas de gajas nuas, garrafas de vinho: é um hedonista empedernido. As janelas do apartamento dão para o Ground Zero, o espaço vago das Twin Towers (o filme é de 2002). Dá-se aí uma conversa desconcertante, sintomática. Jacob refere que segundo as informações o “ar daquela zona é irrespirável” e pergunta-lhe se não pensa em mudar. Slaughtery insinua-lhe que ainda espera ganhar muito com a inflação imobiliária e por isso, mesmo que tivesse como vizinho o Bin Laden, não tenciona mudar de poiso.

Slaughtery não tirou as devidas consequências do desastre de 11 de Setembro, a que pôde assistir “nas primeiras filas”; para ele quando se vive na selva há que seguir as regras e aproveitar as oportunidades: é um puro caçador-colector.

Monty/ Edward Norton é de outra índole, mesmo que pleno de contradições. Fez o que havia a fazer na sua oportunidade, agora tem necessidade de redimir-se e rejeita as possibilidades flagrantes de fuga, preferindo uma “reparação” quase irrespirável. Apesar das tentações que o pai enumera pelo caminho, o filme termina sem mercê (- sendo incerto que Monty resista ao inferno da prisão).

A dado momento, Monty, que almoça com o pai, vai à casa de banho do restaurante e um “Fuck You” que alguém escreveu a marcador no espelho atira-o para uma longa diatribe sobre os tipos humanos e étnicos que compõem a cidade, uma massa diversa de comportamentos anómicos que segundo o discurso transformam a urbe numa pauta de irresgatáveis dilaceramentos morais; como se se confessasse filho de um determinismo inescapável. E nada fica de fora desse discurso, da manhosa “inocência” das minorias e do assistencialismo a que se encostam à cupidez dos judeus ou à torpeza dos que impõem a lei. É um segmento que parece desgarrado no filme, uma espécie de manifesto. Que, contudo, se integra e se elucida na sequência final quando no percurso para a cadeia, o rosto condoído e desfigurado de Monty dentro do carro vê como aqueles de quem ele disse mal lhe acenam dos transportes públicos, num gesto de empatia, que lhe antecipa o perdão.

“25th Hour”, que só ganhou com o tempo, feito ainda no rescaldo do 11 de Setembro, é um magnífico manifesto sobre a necessidade do perdão.

O segmento do filme com o Ground Zero, que Spike Lee acrescentou ao romance adaptado, deu uma outra densidade à narrativa e um segundo nível de leitura que o tempo trouxe à tona.

O perdão teria de começar por um “encarceramento” interno, especular, da América, que a fizesse reflectir e reconhecer os seus crimes, antes de se estender de forma incondicional, gratuita, infinita aos terroristas.

Só a força da “resposta paradoxal” introduz mudanças radicais nos comportamentos culturais: foi assim com o oferecimento da outra face, em Cristo, com a inesperada inflexão para a reconciliação de Mandela, que salvou a África do Sul de um banho de sangue, com o pacifismo de Ghandi face ao imperialismo britânico.

Spike Lee intuiu-o, mas a América não esteve à altura da sua lucidez nem teve a grandeza de o seguir. E escolhendo depois a mentira como modo-de-uso imperial a América pôs-se de costas voltadas para o mundo. Começou então o regime de um mundo pós-verdade.

11 Out 2021

Bestiário

27/09/2021

Todos os dias há pequenos sinais da sua presença. Não é algo que se insinua mas algo que já lá está. Como o novo costume de numa tremura involutária derrubar a chávena, entornando a bica, o que me tem acontecido demasiado frequentemente; escaparem-se-me os nomes e ter dificuldade em concentrar-me, ou sentir-me prensado num silêncio sem bordos. E o pior talvez seja a sensação de uma agonia subcutânea, que de vez em quando aflora, como se houvesse um complot da carne contra a mansuetude dos dias. A covid continua a rondar-me e dois meses e meio depois de ter alta é-me mais fácil namorar sem tibiezas nem receios do que escrever cinco páginas seguidas.

Talvez por isso me tenha tocado tanto aquele poema breve de Louise Gluck: «Tal como tínhamos sido todos carne/ éramos agora névoa./ Tal como antes tínhamos sido objectos com sombras,/ éramos agora substância sem forma, como químicos destilados./ Cedo, cedo, dizia-me o tropel do coração,/ ou talvez medo, medo – era difícil de perceber.» (in Noite Virtuosa e Fiel, pág. 15)

28/09/2021

Das escassas duas horas que passei na Feira do Livro de Lisboa, uma delas em “função”, fazendo de conta que alguém queria que eu assinasse o meu livro (vá lá, tive dois leitores devotados), pareceu-me que ao contrário do que seria espectável, as pequenas e médias editoras estão quase, quase, a engolir os grandes grupos editoriais e que estes estão condenados às fugazes leis do entretenimento, reféns dos youtubers, e de sucessos feitos por medida. Mas, fora alguns grandes nomes que mantém em carteira, o que há hoje de mais vivo nas letras não lhes pertence, o que a prazo as condena, porque a espuma momentânea não faz os catálogos.

É como já não entrar sequer na Bertrand ou na FNAC, se pouco acima existe A Travessa – e nunca tal desafecto me passou pela cabeça.

Leio num caderno meu (e não sei de onde tirei isto): «quis expôr as bochechas de Louis Armstrong e Gizzy Gillespic – não se pode querer vitrificar uma paisagem e crer que ela esteja viva!», e julgo que a imagem se apropria.

29/09/2021

O meu amigo Filipe Branquinho, artista e fotógrafo moçambicano, participou numa grande exposição interacional em Basileia, a Art Basel (fechou a semana passada), e escrevi para ele um texto de que divulgo um excerto:
«(…) A forma do anjo foi a última tentativa encontrar no corpo do homem uma medida que fosse articuladamente universal. (…) S. Jorge e o Dragão mais não simboliza que o combate para conter em si, em cada um de nós, a ameaça da poliformia. O monstro é o que é incontrolável no desejo em sermos outro, em fundirmo-nos num corpo estranho, e emerge como um sintoma da patologia do infinito. (…)

O classicismo ainda tentou contrariar de novo essas energias arcanas. Mas o romantismo reforçou-as e um século mais tarde a descoberta do inconsciente, como continente psíquico, revestiu por dentro as manifestações polifórmicas que a pintura havia figurado por fora: os bestiários de seres imaginários passam a ser um espelho do homem, que desde então é Pi, a partilhar o mesmo bote que a fera.

Também a fotografia, duzentos anos depois de Joseph Niépce, parece ter esgotado a missão aristotélica com que devolvia ao real o que nele parecia escondido. O realismo mais não seguia que o príncipio da arte que Elias Canetti definiu como poucos: encontrar mais que foi perdido.

Ao depararmos com esta nova linha de trabalho de Filipe Branquinho encontramos algo que a arte já sondara mas agora num novo formato e expondo uma inquietação latente, que aviva com claridade a tensão do observador com a obra.

O que se realça neste bestiário é que “os retratos” nele não parecem “montados”, encenados. Há uma unidade orgânica – sem costuras nem descontinuidades – entre os corpos, a cabeça, e a sua gestualidade.

Não é tanto a memória de outras grafias corporais que nos instiga (e lembremos que o monstro era, por definição, a criatura que resultava da fusão anamórfica entre dois géneros diferentes de criaturas) como a suspeita de que estas figuras constituem o “novo normal”.

A rudeza, o primitivismo de carácter destas fotos, é magnificamente contrariada pela unidade biomórfica, como a que se verifica na criatura de três faces, onde é muito nítido um inconsutíl acordo de texturas.

Como prevenia Valéry: “O novo é a parte permissível das coisas. O perigo do novo é que ele cessa automaticamente de ser e que acaba em pura perda. Como a juventude e a vida” (Tel Quel, pag. 150) Permissível deve, por conseguinte, ler-se como: o que é contigente e mais facilmente se extingue.

A inquietação para que estas fotos nos alertam, em época de pandemia (e devemos considerar que nenhuma imagem é inocente, no sentido em que revela sempre uma força indicial), é que talvez o humano – o antropomórfico − seja, ao contrário do que gostaríamos, a parte “périssable” das coisas, o que o mundo tem de passageiro. Daí que noutra magnífica foto desta sequência haja um monstro que tapa a cara, num gesto de vergonha, adivinha-se, pelo que ainda haja nele de homem.

O Filipe Branquinho apresenta-nos as criaturas de um Novo Éden, aquelas que se prefiguram antes das palavras e da traição emocional com que a razão as emudece. Se não nos esquecermos que “a tranquilidade é um estado não-humano porque é uma forma de instalação no tempo em que se lhe reconhecem, sem sentimentos de perda, dano ou revolta, todos os poderes” (Manuel Maria Carrilho), então só nos resta agradecer-lhe por ter rompido com a clausura das simetrias.”

30 Set 2021

Cais das Descobertas 1

06/09/21

Devíamos escrever num espelho com um marcador colorido em vez de em papel branco. Não por qualquer impulso narcísico, mas para não deixarmos de estar sempre face a face com o efeito do tempo em nós, a sua tremenda vocação para desenganar-nos.

Interrogo-me se não seria o mesmo que acontecia a Danielle Lessnau, que fazia fotografia-pinhole dos seus amantes com a câmara implantada na sua vagina.

07/09/21

No dia da morte de mon Ami, Ferdinand, vi o enfandonho Exodus, de Ridley Scott, que é o mesmo que uma grande fortuna posta de joelhos (que erros de casting!); fita que me pareceu feita para ilustrar a máxima de José Saramago: “Antes de Jesus já os homens eram capazes de perdoar, mas os deuses não”.

Quanto a Belmondo, que nunca seria actor para fazer de Faraó ou Moisés, guardo-lhe as performances preciosas que marcaram uma geração: como Laszlo Kovacs, em À Bout the Soufle, e como Ferdinand, em Pierrot le Fou, na mais sábia dosagem que o cinema assistiu de actor brechtiano e de nonchalance. Teve um realizador à altura, o que não aconteceu com outros da mesma qualidade, talvez com a excepção de Robert Mitchum em A noite do Caçador.

08/09/21

Voltei ao ciclo das insónias. Acordo entre a 1h30 e as 2h da manhã e não volto a cair nas garras de Morfeu senão pelas 7h, 7h30.

Mato o hiato, lendo, ou fazendo a primeira demão de traduções várias, normalmente de poesia.
Esta noite entreteve-me um delicioso livro de Claude Roy que sobrevoa a poética de vários autores, La Conversation des poètes, e leio sobre Jean Tardieu (1903- 1995):

«(…) nesta duplicação perpétua a que chamamos ser humano, o poeta repara que, em querendo exprimir a sua verdadeira realidade interior, o solilóquio não lhe convém e o simples monólogo o trai. Com a série de poemas reproduzidos em “Dialogues a voix basse””, começou a sua conversação infinita, que vai do arguir contra um interlocutor-interruptor (aliás inexistente), desenvolvido em “Quel est ce homme?, às interrogações, “colóquios”, interpelações e falas ao jeito de um clown filósofico, em “Monsieur Monsieur”. Esta metamorfose levará Tardieu de uma poesia a várias vozes ao teatro.»

Nada que não conheçamos desde o Pessoa; Tardieu, acrescenta-lhe o humor, a paródia, perfaz o espectro duma ironia doce que desemboca na causticidade da sátira, em poemas-curto-circuito onde o “koan” não está ausente.

A primeira antologia que adquiri dele, “Le Fleuve Caché” (poésies, 1938-1961) desfez-se-me nas mãos. Malditos livros que não foram cosidos, antes mal colados, e se desmancham em mil folhas ao contacto.
Nele sublinhei este verso premonitório: «O vento dispersa a tumba».

Há vinte e cinco anos que repousa na estante, intocado. A segunda antologia que dele arranjei é da Seghers, comprei-a na Feira da Ladra, com outros da colecção e pouco a manuseei, interessavam-me mais outros poetas comprados na mesma ocasião; portanto negligenciei o meu encontro com Tardieu.
Agora abri-a ao acaso, à primeira apanhei isto:

«PRIMEIRO ÚLTIMO AMOR

Está tudo morto. Mesmo os desejos de morte,/ jazem, mortos. O que cresce não tem figura./ As mãos, os olhos – desertos. É a derrocada/ de qualquer medida depois do incêndio que destrói um corpo.// Nada – nem esperança nem dúvida – abre mais/ aquela porta onde costuma o sol esperar-nos./ Os frutos profundos, tombados pela tempestade/, estão mortos: o espírito conhece enfim as suas cinzas; // sedento e mestre de uma só noite / que do céu precipita a chuva,/ onde todo o movimento mergulha, para, do objeto/ que nele se apaga,
ressaltar/o chamado sem voz/ que confunde a esmo os nossos sonhos.»

E passo a madrugada a esboçar a tradução de alguns poemas:

«A NOITE, O SILÊNCIO E O ALÉM
Um suspiro na imensidão do espaço// Sussurra então uma voz:// “Gontran, estás aí?”// Soergue-se o silêncio// Passos que se afastam como as nuvens.»

«CONVERSAÇÃO
(de ombro na ombreira, com bonomia)/ Como vai isso aí na terra? / – Ah, magnífico, tudo sobre rodas.// Os cachorrinhos medraram, vigorosos?/
– Graças a Deus, graças a Deus, obrigado. // E as nuvens?/ – Essas flutuam.//
E os vulcões? – Fervem, num fartote.// E os rios?/ – Fluindo.// E a hora? – Acontece.// E tudo bem com a sua alma?/ – Oh, está doente/ a primavera foi tão verde/ que abusou das saladas.»

«NOTAS DE UM HOMEM ESPANTADO
Nascido debaixo de grandes nuvens/ como tu,/ no rodapé das nuvens,/ eis-nos/ */ ela muitas vezes está aqui,/ assim como vos vejo/ Já o instante depois dela é mais longínquo/ ouço-a cantar num beco limítrofe/ É a vastidão, Senhor, a vastidão/ */ Ao meio-dia no momento em que não se morre/ mais de uma folha/ se sobrepõe na sua sombra/ E eu de todo disperso nesta grande paisagem/ nascida da luz dos meus olhos./ */ Saiu esta manhã um pleno de plantas/ bichos e homens/ de uma mesma casa/ repartida pelas estradas,/ nada respira acima deles/ além da luz/ */ Aquele que atravessou o mar/ e aquele que se contenta com pouco/ e todos os demais,/ movemo-nos como os dedos da mão./ */ Cresce a sombra como os mortos/ No alpendre, entre o dia/ e a noite/ hesito/ */ Tremer como varas verdes? As/ portas/ uma após outra/ ei-las fechadas:/ qu’ ele está para chegar./ */ Mas não para quê sofrer/ Não passará de um instante/ De resto, de vós estaremos perto/ */ Se bem que eu não acompanhe o ritmo/ o melhor é saber antes de expulsar-me./ Mais que uma palavra/ uma só palavra/ e raspo-me.»

A afinidades que distraídamente, durante décadas, me haviam passado ao lado! Amanhã aterrarei em Lisboa e hei-de encomendar a obra completa que descobri na Quarto. E hei-de escolher cinquenta poemas para traduzir, com paciência e recato, divertindo-me como um bruto com os seus jogos coloquiais. É sempre excelente o que nos apanha desatendidos.

9 Set 2021

O que nos distingue dos animais?

Como transmite o anjo? As formas de comunicação angélica distinguem-se dos modos de ver e de apreensão sensíveis, e o anjo testemunha o mistério na sua forma mistérica, transmite o invisível enquanto invisível, não o atraiçoa com os sentidos.

Resiste o infinito, aos olhos do anjo, a ser desonerado. O anjo actua como um espelho, certamente, mas da pureza do silêncio e do mistério de Deus.

E mesmo que o homem se encontre num estado de não-dualidade, num estado de “enosis” (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente, segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade».

O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «creem no divino/ só aqueles que o são».
Mas gostaria de associar a isto uma ideia atrevida do filósofo Rafael Argullol: «A ideia mais audaz que pode conceber-se é a de um infinito que, enamorado da nossa vida, só através desta tenha a sua razão de ser.»

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Do alto da sua pureza, lastimava Breton a Voznessenski que o Cocteau desse cabo da sua poesia, e exemplificava, horrorizado: «La guitare, bidet qui chante.»

Entretanto, leio no controverso Richard Millet: «O poder literário da América reside menos nas virtudes da língua inglesa ou nas qualidades de seus escritores do que no engenho destes em apoiar-se numa paisagem natural ou urbana das quais o cinema (primeiro, e agora também a televisão) definiu o cenário e que não existiria mais sem a sétima arte. Portanto, trata-se antes de evocar um regime literário audiovisual ao invés de uma verdadeira literatura – com excepção, é claro, daqueles escritores que consideramos como tal e não como americanos» E acho que ele tem razão: «La télé, bidet qui chante».

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Um escritor amigo propôs a uma editora um romance de sua autoria. Enviou por e-mail. Passados 3 (três) minutos, obteve a sua resposta:

“Boa tarde, Obrigado pelo seu contacto. Não estamos a aceitar originais. Cumprimentos, JM” (sic)»
“Ao menos foram rápidos”, observou o meu amigo.

Nunca houve despacho maior. Parece uma ficção: um gajo leva um ano a empobrecer a si e aos seus até à quarta geração da sua genealogia para escrever em letras duradouras a sua noveleta, mete no prego o último ourito da mulher para irem comemorar o triunfo da palavra FIM, e, antes de se banquetearem com um rodízio brasileiro, a família em meia-lua assiste ao envio do e-mail para a editora com o futuro estampado a ouro no anexo.

E quando regressam do jantar, onde gastaram a massa de uma semana, a editora já tinha respondido: não estamos a aceitar originais.
É caso para perguntar: as editoras vivem de quê, afinal?

Mudou muito, desde que o Garcia Marquez, sem dinheiro para enviar o manuscrito de Cem Anos de Solidão, meteu nos correios só metade do manuscrito.

Como é que uma editora responde à cabeça: não estamos a aceitar originais? Uma mercearia pode não aceitar batatas, legumes, pêssegos carecas? Um clube de futebol pode não aceitar golos?
Antes o erro humano de Camus que rejeitou a edição de Pessoa na Gallimard.

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A palavra crivada de caroços, a palavra quarto-minguante, a palavra que desincha o nevoeiro; a palavra que adoça os citrinos, a que revela corredores, patamares, lances de escada quando se desdobra numa algazarra, a palavra que nunca se confessa, a palavra de inúmeros pedúnculos, a extensa palavra… perdão!; a que o meu pai não disse antes de morrer, a palavra que só entre aspas desaperta o colarinho, a que vive no sobrolho da raposa; a palavra que não se enxerga, nem quando mete a mão no lume, a palavra que seca num átimo e que sorveu um lago na Suíça, a palavra que ilumina por dntro o mel, a palavra que suicida os cemitérios, a palavra chuva, que quanto mais se adensa mais azula as nuvens, a palavra nítido nulo, a palavra martelada por presságios e a palavra lesionada: dez músculos estirados contra os onze do atrito; a palavra que surripia os arrepios e nunca se sabe para onde os carrega, a palavra que deseduca os figos, fazendo-os cair; a palavra que rói as unhas até ao sabugo; a palavra que croma o vento e se aposenta em bolinhas de cânfora, a palavra assobiada por dois incisivos separados, a palavra cunhada e amante do cunhado, a palavra que ventila a narina do ácaro e a narina das mariposas, a palavra de hulha que tossiu o mês inteiro e a que desafinou junto à campa de minha mãe; a palavra que pesquei em Esmirna, na Turquia, com quatro quilos e meio; a palavra que nunca viu o mar e alucina com a pacatez dos legumes; a
palavra que abre a China ao meio como os polegares a laranja; a palavra desaustinadamente terna; palavra com duas gemas por pão, a palavra que amo e por decoro nunca pronunciei, a palavra convertida em confetti e a palavra que lavra Rá

seguem de perto o meu silêncio.

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O que nos distingue dos animais?
Antes da invenção dos nomes, para Adão dizer a Eva, És tola como um jumento, ele teria de agarrar na sua cara-metade e de perambular pelo Éden à cata de jumento para apontar a criatura e pôr-se a grunhir, aos pulos, enquanto mimava caretas idiotas, para que ela entendesse e então decidisse se o escoiceava nas partes ou não. Agora é mais simples, ele regozija-se, com ironia, “Sou um homem de sorte… em relação ao jumento és muito mais bonita!”, e ela replica, “E se fosses levar nos entrefolhos!?”. E em cima passa o urubu, soberano.

19 Ago 2021

Posturas

Quando tive de ir para o hospital consegui levar alguns livros (bom, escolhas que tinha de fazer de modo sonâmbulo, febril, e em cinco minutos).

Peguei ainda no tomo completo do Herberto Helder mas folheei cinco páginas e esbarrei em palavras abstractamente líricas, vazias, uma luxúria que vem do raciocínio, como uma máquina, que produz ideias ou metáforas segregadas por outras ideias e que, por terem abandonado o contacto com a vida nua, resistiam agora menos à violência, à prova do cateter.

A poesia tem de voltar a uma dimensão humana, de superar a prova do cateter (esse embate com a dor e a violenta drenagem de fluidos num vaso sanguíneo), ter o seu quê de mancha humana e de grito. Quantos poetas chegarão lá acima para a pergunta fatal do S. Pedro: eh tu onde meteste as tuas tripas?

Estou a ser injusto com o velho vate e aliás ao contrário de muitos adorei os seus últimos livros porque precisamente havia aí uma nova porosidade com a vida que prescindia de volutas e da gratituidade do engenho para ir direito ao osso, à humílima presença do ar que se partilha. Mas, pelo meio, a provação da doença destapara os brilhos de alguma talha dourada naquele húmus, algum apego ao adorno. Embora não esqueça que quanto mais uma coisa tem profundidade mais deva ser refinado o espírito que a pode entender.

E havia o problema do peso. Com quantos tomos completos me deixariam entrar no isolamento?

Mais tarde, já no hospital, optei por baixar na net uma antologia de Gullar. E logo ao quarto poema apanhei, AS PERAS: «As peras, no prato,/ apodrecem./ O relógio, sobre elas,/ mede/ a sua morte?/ Paremos a pêndula. Deteríamos,/ assim, a/ morte das frutas?/ Oh as peras cansaram-se/ de suas formas e de/ sua doçura! As peras,/ concluídas, gastam-se no/ fulgor de estarem prontas/ para nada./ O relógio/ não mede. Trabalha/ no vazio: sua voz desliza/

fora dos corpos./ Tudo é o cansaço/ de si. As peras se consomem/ no seu doirado/ sossego./ As flores, no canteiro/ diário, ardem,/ ardem, em vermelhos e azuis. Tudo/ desliza e está só.(…)», um poema magnífico, que naquela cama abismada pela espectralidade dos sudários, me levava a identificar-me com as peras, com a fugacidade que lhes dá e rouba a doçura e com essa voz que desliza para fora dos eixos do tempo.

Li entretanto, outras coisas com alguma densidade paliativa, que me desviaram de pensamentos tétricos, “A Tempestade”, de Vladimir Sorokin, que à partida me parecia e se confirmou como um pastiche do romance russo do século XIX mas que vai enlouquecendo à medida que progride e o absurdo se torna toda a medida, e o esplêndido segundo tomo da biografia de Doris Lessing, “Andando na Sombra”, que não deixa nada em pé dos mitos do século xx (da derrocada dos mitos políticos da esquerda, à figura do escritor como pêndulo de certos valores, em retratos onde esta pose é esgarçada pelas garras da autocondescendência, do paradoxo quanto à frequência com que se encontram em desacordo com a sua consciência, ou a da inveja) mas é de uma coragem na exposição da intimidade e duma honestidade que retempera e recupera, ainda que sob a sombra perpéta da possibilidade do erro, uma certa força moral.

E reli sobretudo um ensaio com um prazer redobrado: “Experience Esthetique et Spirituelle chez Henri Michaux /la quete d’un savoir et d’une posture”, de Claude Fintz.

É um livro que me é vital pois separa o trigo do joio e aqui é menos a estética do que o espiritualidade que me interessa, nessa vertente heterodoxa mas tão sériamente vivida por Michaux e onde também sinto ser o meu sulco – não falo dos conseguimentos mas do lugar onde me posiciono -, tal como na Catalunha o sinto na obra de Chantal Maillard, que já traduzi e espero vir a apresentar com outro fôlego.

Transcrevo dois excertos do Fintz, onde me sinto totalmente identificado: «Escrever permite, a um tempo, mudar-se a si mesmo, apaziguar as desordens individuais, mas também mudar o mundo e regular-lhe o mal. Michaux sonha com uma escritura sem traço, transfigurada em força radiosa. Ele crê na eficácia mágica duma escrita que desembocará no bem e cuja “crueldade” se metamorfosearia em poder de cura».

A segunda: «A escritura em Michaux é explicitamente pensada como empreitada de conhecimento de si (…) a escritura é certamente espelho das inquietações,  esperanças, hesitações, impasses da via experimental, mas ela é em si mesmo o caminho perdido e reencontrado de si; ela permite “percorrer-se” sobre diferentes modos – compreendendo-se aí  o ficcional e o imaginário – mas ela é em última instância una ascese que leva à maturação, quase à mutação interior».

Portanto, naquele umbral em que me encontrava confirmei as minhas convicções: merda para o cinismo, para o realismo, para o niilismo. Nós somos melhores do que isso – é o que vos digo.

E para alguém como eu, a quem interessa mais a espiritualidade do que a infusão num Deus nomeável, não deixo de encontrar sentido na questão levantada por Karlfried Durckheim: «Vocês serão melhores pintores, sapateiros ou carpinteiros, se sentirem que a vossa responsabilidade é para com Deus e não somente para com o vosso cliente.» Sim, é preciso que a sensibilidade da poesia testemunhe o seu tempo (é o fragor existencial de que não devemos abdicar) e ao mesmo tempo, numa dobra, como algo que difere ou se bifurca, desperte uma instância “anónima” e mais profunda, enraizada num outro plano onde o pequeno ego se reconcilia e dissolve – é isso que nos mede e reconstitui. É também o que nos dá uma dimensão crítica, um sentido da proporcionalidade dos valores que emudece o encantamento das sereias.

5 Ago 2021

Cruz e Sousa

20/07/21

 

Está prestes a sair em Portugal uma antologia do verdadeiro introdutor do simbolismo no Brasil, Cruz e Sousa. A organização e o aparato crítico são do poeta Alexei Bueno, um excelente indicador porque Alexei é um criador sempre em diálogo com os clássicos e de um estro técnico inexcedível, o que se traduz numa enorme segurança nas suas análises.

Cruz e Sousa foi um visionário que morreu aos trinta e sete anos na miséria, acicatado pela inveja e o preconceito, dado ser negro – outro desses seres de escol de origem africana que o Brasil produziu no século xix (bastaria lembrar Lima Barreto e o Machado de Assis) e que depois passou um século a querer branquear (até a cédula de nascimento de Machado foi falsificada, para se esconder os seus genes africanos).

A fulgurante qualidade de Cruz e Sousa, no âmbito do simbolismo em língua portuguesa, talvez só tenha par em Camilo Pessanha, dois poetas que viveram a condição de uma “diáspora interior” e a quem a vida, literalmente, lapidou a expressão.

Seria igualmente curioso fazer paralelismos, de vida, de destino trágico, de imersão nas mesmas atmosferas poéticas para uma transfiguração plena de conseguimentos artísticos, entre Cruz e Sousa e o poeta Jean-

Joseph Rabearivelo (1901–1937), o primeiro poeta moderno da África, o maior artista literário de Madagascar, e uma vítima da colonização francesa.

Como em certos poemas de Pessanha, antecipa-se no plinto de Cruz e Sousa, nalguns poemas, os laivos expressionistas e até um salto estilístico da música (avant toute chose) dos versos para o regime do olhar, como se atesta aqui:

«ÉBRIOS E CEGOS, Fim de tarde sombria./ Torvo e pressago todo o céu nevoento./ Densamente chovia./ Na estrada o lodo e pelo espaço o vento.// Monótonos gemidos/ Do vento, mornos, lânguidos, sensíveis:/ Plangentes ais perdidos/ De solitários seres invisíveis…// Dois secretos mendigos/ Vinham, bambos, os dois, de braço dado,/

Como estranhos amigos/ Que se houvessem nos tempos encontrado.// Parecia que a bruma/ Crepuscular os envolvia, absortos/ Numa visão, nalguma/ Visão fatal de vivos ou de mortos.// E de ambos o andar lasso/ Tinha talvez algum sonambulismo,/ Como através do espaço/ Duas sombras volteando num abismo.// Era tateante, vago/

De ambos o andar, aquele andar tateante/ De ondulação de lago,/ Tardo, arrastado, trêmulo, oscilante.// E tardo, lento, tardo,/ Mais tardo cada vez, mais vagaroso,/ No torvo aspecto pardo/ Da tarde, mais o andar era brumoso.// Bamboleando no lodo,/ Como que juntos resvalando aéreos,/ Todo o mistério, todo/ Se desvendava desses dois mistérios://Ambos ébrios e cegos,/ No caos da embriaguez e da cegueira,/ Vinham cruzando pegos/ De braço dado, a sua vida inteira.(…)»

Um outro excerto nos sirva de isca: «Em vão fui perguntar ao Mar que é cego/ A lei do Mar do Sonho onde navego.// Ao Mar que é cego, que não vê quem morre/ Nas suas ondas, onde o sol escorre…// Em vão fui perguntar ao Mar antigo/ Qual era o vosso desolado abrigo.» Um livro a não perder.

21/07/21

De convalescença, arrumo papéis, folheio cadernos com esboços e notas. Acho uma longa sinopse de um filme que seria um EVANGELHO SEGUNDO MÍRIAM, cuja acção se localizaria nas Minas de S. Domingos, na actualidade. E no interior do filme haveria outro filme, uma história de amor, envolvendo um antepassado do protagonista do plot principal e que se passaria em 1938, em plena Guerra Civil espanhola:

«Um anarquista, para escapar ao massacre de Badajoz, escapa-se a vau para o Alentejo e vive escondido, pois sabe a Guarda Republicana de simpatias franquistas.

Um dia a Custódia, uma rapariga bonita e de espírito vivo, sempre com a resposta na ponta da língua, marca encontro com o filho do patrão, Luciano, num velho moinho de água. Luciano era uma má rês que, segundo o padre, “adubava o pecado e a maldade nas raparigas”. Como era boa figura causava quase sempre efeito. A Custódia sabia-lhe a fama mas era mais curiosa que precavida.

Contudo, ele falta ao encontro, havia ficado de véspera na jogatina e ingeriu tanta aguardente que não acordou para o encontro.

Custódia, farta de esperar, ouve barulho dentro do moinho e resolve ir espreitar. Encontra Diego, ferido; na véspera tivera um mau encontro com um javali. Diego conta-lhe que é um professor primário, fugido aos malefícios da guerra. Está esfomeado, anda a águas há vários dias. Ao princípio ela assusta-se, mas os modos do espanhol inspiram confiança e resolve ajudá-lo. É o seu segredo.

Traz-lhe uma merenda e com umas ervas do campo fez um unguento que lhe cura as feridas. Dura isto vários dias e vão-se aproximando. Ele conta-lhe a sua aventura, as esperanças que teve e a mortandade que se seguiu. Neste novelo apaixonam-se, ainda que ela rejeite chegar a “vias de facto”. Diego respeita-a nisso, o que só intensifica a paixão.

Passam a chamar ao monte e ao moinho onde se desenrola o seu amor CABEÇA DE DEUS.

O pior é que Luciano desatou a cismar. Não estava acostumado a que lhe dissessem que não e fazia-lhe espécie que ela primeiro lhe tivesse acenado com um sim para depois ser tão recticente, negando-lhe um, dois, três encontros. Desatou a segui-la e um dia descobriu-os.
No dia seguinte, Diego era entregue à Guarda Espanhola.

Lá ficou na prisão à espera de ser fuzilado. Não contavam era com a determinação de Custódia.
Numa madrugada, armou uma trouxa, e andou cinquenta quilómetros em dois dias, até chegar à vilória onde Diego estava preso.

Depois entrou decidida no gabinete do chefe do posto e negociou com ele a liberdade de Diego. Como? Ofereceu-lhe a virgindade.
O chefe de posto abusou dela mas honrou a palavra e escoltou-os até à fronteira.

Diego tornou-se o melhor professor primário daquelas regiões, tendo educado muitos filhos de camponeses. Luciano é morto em Angola, pelo leão que caçava.”

22 Jul 2021

Crónica duma sobrevivência

Primeiro o lugar-comum: ficas isolado numa atmosfera rarificada para além das agulhas do cateter, do tétrico incómodo da máscara de oxigénio, duma áspera sensação de aquário que devagar mas inexoravelmente te desloca para a periferia da vida – vais sobrando.

E bate-te funda a perplexidade de que em 24 horas te foram roídos sessenta por cento dos pulmões – infectados.
Chegou de onde o ataque, se estavas medicado? Na primeira percepção de que algo te colocou em jogo eis-te em desvantagem, antes de tomares posição na trincheira. Uma metáfora da ligeireza com que te entregaste à vida? Metáforas de areia, reduzidas a um nó de carne patética, manejada por um reles vírus que numa ceifa rápida te fez roçar a face na lâmina da indeterminação e de quem ouves a gargalhada. Tens quarenta por cento de hipóteses, num território em que o inimigo domina.

A máscara de oxigénio incomoda-te, dias a aceitares que é tua aliada. Uma aliada que pouco te confirma. Precisarás de algo que te afaste dos números da máquina que três vezes ao dia vai à tua cabeceira ler a tua produção de oxigénio e que te desengana; aquém da resposta devida. Só aqueles malditos números importam, só eles te permitirão levantares-te, antes que paultatinamente o teu sistema biológico entre em derrocada. Tudo depende dos pulmões; tens mais de sessenta e estás na Volta a França em bicicleta. Aguentas-te? O teu diálogo passa a ser com aqueles números digitais e os seus apitos, as ondas da tensão e os valores dos diabetes, e as injecções anti-coagulantes e, com o zinco, o zinco teu amigo, mas sobretudo, com a percussão do sonar martelado por aqueles números, estamos nos Pirinéus, merda de subidas, os teus números têm de subir aos noventa.

Como evitar que ao fim de quatro, cinco, seis dias de impasse, o medo aflore? Que te sintas no intérmito, insituado em pleno deserto, sem nada para trás que te salve, inúteis os milhares de livros na estante, os versos escritos, a vaidade dos inéditos, ah, a “inteligência”, em que vácua galhofa patinam agora os milhares de artigos? Em que insuficiência te tornaste tu? Afinal o que resiste para além da borbulhagem, do imago, da caca que todos os dias produzes? Estás só, enterrado num saco de pele, recoberto por brisas e alguns escombros de palavras, enfeixado por fim num espesso saco de plástico, que te cobre inteiro com uma máscara de matéria insólita que vai engrossando com, parece-te, intenções ambíguas, suspeitas.

Não fazes balanços de vida, aí saberias que cederias à morte – a soma dos erros não te deixaria em paz.
Quando te atreves a tirar a máscara de oxigénio sabes que tens um minuto para levantares-te e ires à tomada carregar o telemóvel e o kindle. Um minuto antes de começarem as tonturas, e dessa oportunidade depende tanto. Pior, o carregador que sempre serviu para ambos dá sinais de fadiga, são horas para carregar 20 % do telemóvel, e o kindle decidiu passar para o lado das trevas. As tuas defesas baixam.

Na clínica, há resistências para receberes mais artefactos electrónicos e livros. Vais ter de te amanhar com o caderno cartonado, preto, de quadrículas, onde te apanhas a repetir variações em torno de três quatro palavras: ar, oxigénio, grainhas… Ah, de repente és um poeta concretista e só te apetece chorar!

Tens de encontrar poros no sarcófago, uma narrativa que te devolva a uma certa unidade humana, a uma presença de que te sintas parte.

Decides que a morte fica fora do tempo e que só te importa o que lateja no seu interior, no frágil tecido temporal. Só aí há algo intocável, que não pode ser invadido: o Amor. Não cederás à puta um milímetro.

Dedicas a energia a fazer no WhatsAap (nunca mexeste nessas coisas) um grupo familiar, com a tua mulher e as cinco filhas, quatro em Portugal, e netos. O que é vital é saberem que os amas e lutas por elas, e procuras todos os dias trocar mensagens animosas, contra o teu estado de espírito, fotografias com mínimas travessuras, ditos de humor, mensagens benignas – porra, amas a tua mulher e filhas, aconteça o que acontecer, o importante é elas sentirem que as amas, o resto é secundário. Depois, fechas os olhos e com a pouca carga que o carregador te permite ouves música: Debussy, Poulenc, Messiaen, tudo o que lhe sejam pássaros, a Hélène Grimaud, a tocar, Bach – Chaconne from Partita No. 2 in D minor, BWV 100, a Quarta Sinfonia do Philip Glass, o Calculus 2020, do John Zorn…( falhas tragicamente as sinfonias do Lutoslawski – adoras as sinfonias três e quatro mas era a net que ia ao ar, ou a bateria que faltava…).

Ouves a música que te expande as células e te faz abraçar o pouco grão de ar que te sustém, e é a música que, naquele momento, desesperadamente, gostarias de transmitir aos que amas, para que fossem tocados por uma parte do Belo de que fazemos parte e nos justifica a vida e sempre tão inabilmente comunicaste.

Agora o teu corpo é como uma tábua de engomar, precisa de reabrir poro a poro e de reaquirir o seu ritmo respiratório – os pulmões estão frágeis. Vais reler poetas a que deste menos atenção, poetas do ar: Guillen, Jaccottet.

Mas já estás na varanda, a apanhar sol e a ler Milosz, outro dos teus alimentos:
« O PRÉMIO / Que dia feliz./ A névoa dissipou-se cedo. Pus-me a trabalhar no jardim./ Colibris estacaram sobre a madressilva./ Nada sobre a terra que quisesse possuir,/ Ninguém sobre a terra que eu pudesse invejar./ Todo o tanto que sofri, esquecido,/ Não tinha já vergonha do homem que fui./ Não me doía o corpo./ Ao endireitar-me, vi o mar azul e as velas».

Parece que a Teresa fez uns pastéis de bacalhau; retiras-te, que te desculpem a pieguice.

1 Jul 2021

Carta a um jovem poeta

Organizada pelo poeta Zetho Gonçalves, saiu agora na Letra Livre (numa bela edição), uma compilação de textos de Jorge de Sena que de comum são difíceis de encontrar e cuja reunião se justifica no longo, justo, e tenso prefácio em que Zetho explana o pensamento poético do autor de “Metamorfoses”.

Logra-se o efeito deste livro, precisamente, abanar alguns lugares-comuns sobre a poética de Sena (quer no prefácio, quer congruente propriedade que a montagem dos textos revela) e estar à altura da verve que o homenageado cultiva na ácida “Carta a Um Jovem Poeta”, aqui repescada como pretexto para de outros modos de viver a poesia e a dignidade que a deve estribar se falar.

A impressão que nos fica desta leitura (de “Carta a um jovem poeta”; “Sobre Poesia, alguma da qual portuguesa”; “Acerca de um Puro Poeta – fragmentos”; “Oito Poemas para a Nova Madrugada”; “Prefácio da Primeira Edição de Poesia”; “Discurso do Prémio Etna-Taormina”; “Discurso da Guarda”) é a de que este fluxo de disparos e tinir de espadas nos chega de um pirata de Madagáscar, tal é a violência da carga que se apresenta no traslado.

É impossível numa crónica apresentar todos os argumentos que aqui se esgrimam, iremos ater-nos ao texto que dá título ao livro e a algumas irremovíveis estocadas com que Sena desfaz as ilusões poéticas.

Conta Zetho, o texto surgiu de um convite do poeta brasileiro Walmir Ayala, através de Sophia de Mello Breyner Andresen, para Sena figurar numa obra colectiva cujo plinto seria as famosas “Cartas a Um Jovem Poeta”, de Rilke.

E relata-se, num delicioso apontamento memorialístico, que perguntando Zetho a Sophia pela sua própria Carta, da qual não haveria notícia, respondeu a poeta: “A carta do Jorge deixou-me sem mar para escrever fosse o que fosse”.

Lendo a carta vê-se como Sena sabota as mais rudimentares pretensões pedagógicas e seca qualquer pingo de aragem para o mais mínimo cata-vento:

«A poesia, caríssimo, é a solidão mesma: não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa.

Já pensou no que isso é? Por ela, o senhor será egoísta, sendo altruísta; será mesquinho, sendo nobre; trairá tudo, para ser fiel a si mesmo. Por ela, o senhor ficará completamente só. E, quando, de horror, penetrar lá onde supõe que o “si mesmo” está para lhe fazer companhia, verificará, em pânico, a que ponto ele não existe, ou já não existe, ou nunca existiu senão como uma miragem, ou existiu sim mas também ele o senhor vendeu à poesia, a isso que não tem qualquer realidade senão como abstracção do que o senhor pensa e escreve, e que, por sua vez, é já uma abstracção do que o senhor viveu ou não. (…) Se for um poeta de verdade, meu caro, o melhor é com efeito não escrevê-los, e deixar de o ser.»

Sena procede como Sileno, o tutor de Dionísio, a quem o rei Midas perseguiu na floresta, insistindo em perguntar-lhe qual dentre as coisas seria a melhor e a preferível para o homem. Forçado pelo rei, respondeu: «Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, ser nada. E o melhor em segundo lugar, para ti, é morrer rápido» (, in Nietzsche, A Origem da Tragédia). Sensivelmente pela mesma data da escrita desta carta de Sena, em Londres, o jovem poeta de Bombaim, Dom Moraes (tinha dezanove anos), em visita à cidade, almoça com o seu poeta favorito das gerações precedentes, Stephen Spender; o qual desfere, sem dó: «você está ciente de que ser poeta/ é olhar-se ao espelho e ir padecendo/ do ser monstruoso em que se vai tornando,/ porque a poesia não pactua com a mentira?».

Gente sem feitio para andar com bordados. Mas que sobretudo previne que o terreno é pedregoso e que a poesia só oferece «uma garantia da dignidade humana» se a sua independência e liberdade se cumprirem (um poeta não pode esquecer-se de transformar o mundo), deixando então pressentir a vera radiação de uma presença inominável, reconhecível nos exercícios de cabotagem que a escrita permite, mas tão difusa que querer obter proveitos dela é como capturar o oceano com um garfo.

E continua Sena: «Porque a única alternativa é pavorosa: ou prostituta, dando à cauda, entre as madamas; ou monstro solitário, rangendo os dentes na treva, ainda quando só tenha visões de anjos tocando flauta, numa apoteose (ou epifania, que é mais elegante, e era o que o Joyce dizia). Guarde os versos, rasgue os versos, esmague os versos, arrase com eles. É isso o que pretende: ranger os dentes, mesmo postiços, pelo resto da vida?»

Quanto ao gesto do jovem poeta pedir conselhos, ou da pertinência destes, volta Sena a desenganá-lo: «a poesia autêntica não necessita de ser encorajada; antes se acrisola numa solidão que de própria natureza bem conhece».

Percebe-se que Sophia tenha ficado sem chão, como todos nós. Mas o que torna
necessário a leitura desta Carta contundente, visceral, é exactamente lembrar-nos que há uma espessura para as coisas e que na anti-pulcritude da verdade que contém se traceja a “aventura espiritual” (expressão repetida neste livro) que importa, mesmo contra o que parecia adquirido: «A literatura, de resto, é algo de somenos que nunca me interessou; salvo raras excepções que me espantam, sempre a achei uma forma de analfabetismo, exactamente como o ensino universitário: uma e outro não conferem cultura, mas ideias feitas, preconceitos, muita presunção vazia.»

Dizia o Godard, se a cultura é a regra a arte é a excepção. Ainda que incomode, é a que encontramos nesta carta que nos devolve à solidão. O resto é o marketing – espuma, o que na longa duração apenas fede.

10 Jun 2021

Armar a teia da sedução 2

Que horas bem passadas a ler o livro de entrevistas de Jaime Gil de Biedma, Conversaciones (Austral, 2002). Não é um autor das minhas linhagens, mas ressuma inteligência em todas estas conversas, a tal ponto que até quando discordamos é com agrado que o fazemos.

Veja-se este primor; diz Biedma ao entrevistador:
«- A respeito disso, deixe-me contar uma anedota engraçada. Sólon, imperador de Atenas, tinha fama de sábio. A Atenas daquela época seria absolutamente provinciana, com as pessoas sentadas na soleira da porta, a observarem quem passava e com quem trocariam eventuais comentários. A Sólon havia morrido um filho de vinte anos; na altura, assim que os filhos arrebitavam iam para a guerra ou punham-se a cavar a horta… Uma coisa chata, os filhos morrerem nessa idade. E parece que Sólon, o criador da Constituição de Atenas e, na verdade, o inventor de Atenas, estava lamentoso, e então o cretino de plantão, que todos conhecemos porque, sabe-se, só a estupidez é imortal, viu ali uma oportunidade para achincalhar o sábio, e observou-lhe: “Por que o choras, se não serve para nada?” E respondeu-lhe o Sólon: “É por não servir para nada que choro!” O que é muito bom, e mostra como Sólon era realmente um sábio.

– Bem, eu volto ao poema. Aquele intitulado “De vita beata”.
(transcrevo-o inteiro: «Num país antigo e ineficiente/ algo parecido à Espanha entre duas guerras/ civis, num povoado à beira-mar,/ ter uma casa uma pequena renda/ e estar privado de memória. Não ler,/ não sofrer, não escrever, não pagar contas,/ e viver como um nobre arruinado/ entre as ruínas da minha inteligência.»)
– Ah sim. E que tem?
– Você ainda o subscreve?
– Imagine que não o subscrevia. Que fazer? Removo-o das edições de minhas obras?
– Não. O que lhe quero perguntar é se foi o fruto de um momento determinado ou de uma concepção de vida mais duradoura.
– É o fruto de um momento específico; não é o resultado de uma concepção da vida. E digo-lhe mais, ao poema compu-lo na cabeça enquanto nadava numa piscina. Claro que, por isso, é tão curto, o fôlego, quando estamos a nadar numa piscina, não é o mesmo.
– Entre todas as entrevistas que lhe fizeram, que suponho terem sido muitas, que pergunta gostaria que lhe tivessem feito e ninguém fez?
– Eu gostaria que me fizessem uma proposta desonesta.
– Como desonesta?
– Sim, é o que ainda se espera de uma entrevista, que nos façam uma proposta desonesta.
– O que entende por desonesto?
– Bem, repare, o normal numa entrevista é que te perguntem a opinião sobre a poesia e etc. e tal. Mas chegar alguém e passar-me a mão no pêlo, bem, seria o que não se espera, e aí poderia tornar-se realmente divertido.»

Biedma, como Auden, faz do poema uma conversa, às vezes em chave alegórica como em Eliot e Cernuda, que também permeia de ironia e ou de auto-derrisão – e diga-se que o seu confessionalismo sinaliza mais um efeito retórico do que uma premissa psicológica.

Na sua obra há vinte poemas excepcionais, os demais espelham um quotidiano hipostasiado em cultura ou uma espécie de auto-compadecimento, em pose, que me irritam um pouco e me põem sob reserva. Com a leitura deste livro entendi porquê.

Biedma distingue entre poesia e poema: «a poesia é o que o leitor experimenta lendo o poema, não o que ocorre ao poeta enquanto o escreve. A poesia é o poema assumido no momento da leitura. Um poema não se faz para ser escrito mas para ser lido, inclusive pelo próprio».

Ou seja, a poesia é primeiro que tudo um artefacto social, de que o poema é o epítome, não passando do seu processo desencadeador. E o que interessa sobremaneira a Biedma é o efeito do escrito sobre o seu leitor – «o meu interesse primordial são as pessoas», diz – e menos a experiência a montante do poema.

O que explica a escassez da obra (pouco mais de cem poemas) e a desmotivação que, com a idade e a perda do seu tónus físico e da eroticidade que o galvanizavam, o tomou.

Com esta distinção entre o poema e a poesia Biedma imita o engenho que ecoava na boutade de Duchamp:”ce sont les regardeurs qui font les tableaux!”. Por outro lado, a importância que dá ao leitor, a obsessão com “o seu” público, realça que os seus poemas funcionavam para o poeta como simulações com endereço prévio – i, é, mais não pretendem do que “fazer espírito” e armar a teia da sedução.

Fica justificado o reparo do poeta da sua geração Caballero Bonald, com quem concordo: «dificilmente a sua narratividade anulava o meu hábito de leitor, seguramente defeituoso, de desdenhar a poesia que não ocupa mais espaço que o poema, quero dizer que não ultrapassa a própria fronteira do seu argumento para se cingir à sucinta órbitra realista, sem ramificar-se noutros voos…».

Atenção, levantar as saias das senhoras ou baixar as calças dos homens: motivos tão superlativos como quaisquer outros para produzir poesia. Porém isto faz com que aflorem na poesia de Biedma, sumamente inteligente como factura técnica, vários momentos pueris (frívolos, lhe chama Bonald), dado que apenas pretendia organizar um solvente catálogo de engates.

Com excepção daqueles poemas em que, ao contrário, está inteiro, como em No Volveré a Ser Jovem, que o poeta declarava como o seu preferido: «Que la vida iba en serio/ uno lo empieza a comprender más tarde/ —como todos los jóvenes, yo vine/ a llevarme la vida por delante./ Dejar huella quería/ y marcharme entre aplausos/ —envejecer, morir, eran tan sólo/ las dimensiones del teatro./ Pero ha pasado el tiempo/ y la verdad desagradable asoma:/ envejecer, morir,/ es el único argumento de la obra».

Neste caso também deve tê-lo composto a nadar, mas não é preciso mais.

3 Jun 2021

Ignorâncias

Insone, passei à sala e agarrei num molho de livros para começar a fazer a minha busca de poemas de todo o mundo sobre o vento, pensando num programa de rádio que planejo fazer com o Fernando Alves (um fascinado pelo vento, como eu). Um dos livros que me veio à mão foi «O Prolífico e o Devorador», do Auden, traduzido pelo Helder Moura Pereira para a &etc. Um livro de aforismos e anotações breves que Auden deixou inacabado. No primeiro aforismo lê-se:

«O homem não só cria o mundo à sua própria imagem como os vários tipos de homem criam vários tipos de mundo. Cf. Blake: “O ignorante não vê a mesma árvore que o homem sábio”».

Neste momento, de falência cognitiva tão acentuado, esta evidência seria considerada ofensiva. Depois, ao que parece, deixou de haver ignorantes. Disse-me um aluno (fincando a inutilidade da minha presença como professor): basta abrir a net e informamo-nos sobre tudo e todos.

No que só deu razão a Platão que antevia na escrita o perigo e a loucura de se idolatrar as sombras. Daí estar justificado que, com tanta sabedoria à mão de semear, o meu aluno se dispense, numa caprichosa constância, de “consultá-la!”.

Eu, ao contrário dele – que mantém a ignorância “sob controle e ao alcance dos seus megabytes” (invejo-lhe a crença na “transparência” dos meios) -, considero a vida e a sabedoria como enigmas e à minha ignorância uma benção. É o que me motiva a procurá-la, ciente, de que há, inclusive, muitos tipos de elucidação não verbais.

Quando percebo que ignoro qualquer tema, âmbito, a existência de um autor e determinada área, sinto que se avizinha o reencantamento e atiro-me às águas desconhecidas na ânsia de alcançar, mesmo a nado, esse novo arquipélago. Nunca me senti diminuído por desconhecer algo: é uma alegria reconhecer o que ignoro, dado que isso abre o espaço.

Nunca tomei é o conhecimento como adquirido, tenho sempre de o conquistar, de o digerir.

O que o meu aluno não sabe (lembro Blake, “O ignorante não vê a mesma árvore que o homem sábio”; admitindo que seja eu, noutros níveis, o patego da relação) é que o saber não está na informação, e não resulta da soma dos seus itens, e antes se situa no modo como lemos a “experiência”. Sendo esta, tão somente, o que “acontece” quando a informação deixa de transitar à nossa frente, fora de nós, com os seus brilhos efémeros, e se interioriza, inscrevendo-se subcutaneamente no nosso corpo, levando-nos a mudar a vida e o olhar em conformidade com o nosso comprometimento no seu rasto. Avatar que o meu aluno ainda não está disposto a assumir porque, como é novo, acha que tem ainda mil hipóteses à sua frente e não tem que se vincular com nada.

Ora, como alvitrava o Pound, no ABC of Reading, e eu tomo por certo: «Os homens não compreendem os livros até que tenham vivido uma porção considerável da sua vida. De todo o modo, nenhum homem compreende um livro profundo enquanto não tiver visto e vivido ao menos uma grande parte do seu conteúdo.»

Talvez se ele observasse o rosto de Auden percebesse: o tempo é um arado e os mil sulcos na face do poeta confluem para um mesmo resultado, é imparável o modo como o humano se aproxima da morte e aos caminhos que se bifurcam convêm estar sustentados em valores para não resultarem em miragens mas em riqueza expressiva.

Resulta daqui que na relação com o conhecimento escavar seja o que é exigível, nem que seja para que se levantem poços de ar – percepções concretas. Mas se até o acto de observar, em si mesmo, leva tempo, o que ele não quer “desbaratar”, abstraído de que temos de perder para ganhar…

Ilustra-o o belga Jacques Darras, num poema, Nommer Namur, em que alude aos dois rios da sua infância que circundam a cidade), e de que traduzo um excerto (Darras é um poeta de poemas longos):
«(…)/ Como restabelecer a circulação num rio confiscado por um hino?/ Deixem-me explicar./ Afago-o vai para um longo tempo./ Acarinho-o há um vasto tempo infinito./ Isto poderia durar meses, bastantes, anos, uma vida inteira./ Acaricio o rio no sentido das suas pernas para conseguir que o sangue reaprenda o sentido da água, a jusante./ Para que ninguém se engane, isto nada tem que ver com a ecologia, é preferível que se considere a medicina./ Uma medicina enamorada./ Uma medicina poeticamente enamorada./Que consistiria em curar os rios ou às cidades com a voz./ Ou reciprocamente./ Com o matiz que pretende fazer passar todo um rio como o Mosa pela sua própria voz de uma vez só, o que suporia um gargarejo gargantuesco./ Enfático./ Não confundir ênfase com empatia./ Não, eu curo-me e curo-nos com os rios, nessa liquidez fluvial./ Queria que nos encontrássemos na palavra, na fluidez./ Essa transparência fluida que é como a respiração da água prévia à desembocadura./ E para o qual os rios do Norte parecem possuir desde sempre uma enorme facilidade./ Na sua moderação pouco torrencial./ Igual a si mesma./ Na sua uniformidade falsamente plácida./ Não busco tanto o epos antigo caricativo com os militares e com as castas de soldados demasiado tempo afastados das mulheres./ Não busco o conhecimento profundo de Gilgamesch./ Busco o jogo alargado da insinuação amorosa através da voz.»

Uma voz. Manter no fio de uma voz a insinuação amorosa que pode exalar do afecto e juntar-se à admiração – esse são princípio de proporcionalidade – na liga que importa, que não é a do futebol mas a da vida que decola do seu ponto de irrelevância.

27 Mai 2021

Lembrar Edward Said

Olho para estes dias a ferro e fogo no Médio Oriente e imagino como o Edward Said viveria a irracionalidade que nessas terras se compraz.

Said, mais conhecido pelo célebre “Orientalismo”, era um intelectual para quem entender o mundo pressupunha – anota David Barsamian no prefácio ao livro de entrevistas que saiu no mesmo ano da sua morte, em 2003 e que conheço na edição brasileira, intitulada “A Pena e a Espada” – encontrar «um equilíbrio entre dissonância, consonância e discordância» e que «por esse prisma complicado» se via não como «uma única pessoa corente, mas como várias coisas diversas».

A sua disposição é ainda mais suspeita, este intelectual palestino, professor de Literatura Comparada na Universidade Columbia, que fez livros que desmantelaram arreigados mitos ocidentais sobre o (médio) oriente e foi um defensor abnegado da causa palestina mas, ao mesmo tempo, o primeiro a dizer que não reconhecer Israel era um disparate, gostava de se definir como um ser marginal e atreito a uma completa ausência de centro, declarando que se sentia como «um feixe de correntezas fluidas»: «Prefiro isso à ideia de um eu sólido, à identidade à qual atribuem tanto significado; (…) os seres humanos não são recipientes fechados, mas intrumentos pelos quais outras coisas fluem».

“A Pena e a Espada” é um livro de uma lucidez mordaz (não porque ele seja ácido, simplesmente nunca se evade de pensar para além das evidências), que se hoje fosse lido pelos seus compatriotas e pelos israelistas talvez servisse de travão ao fanatismo que os encarniça: «Na minha infância, era possível mudar de um país – Líbia, Jordânia, Síria, Egipto – e cruzá-los por terra. Era possível fazer isso. Todas as escolas que frequentei quando garoto eram cheias de gente de raças diferentes. Era completamente natural para mim frequentar uma escola com arménios, muçulmanos, italianos, judeus e gregos, porque aquele era o Levante e essa foi a maneira como cresci. O divisionismo e o etnocentrismo que encontramos agora são um fenómeno relativamente recente que me é absolutamente estranho. E eu o odeio. (…)Em muitos dos meus textos recentes oponho-me à ideia, presente em muitas das agendas intelectuais e políticas dos oprimidos, de que quando chegassem ao poder iriam descontar tudo nos outros. Isso é absolutamente contrário à ideia de libertação. É como se parte do privilégio de vencer fosse o direito de descontar nos outros. Vai directamente contra a razão da própria luta; não posso dizer que concordo com isso. Essa é a outra armedilha do nacionalismo, ou do Fanon chamava a “armadilha da consciência nacional”. Quando esta se torna um fim em si mesma, quando uma particularidade étnica ou racial ou a “essência” nacional, em grande medida inventada, vira a meta de um civilização, cultura, ou partido político, você sabe que esse é o fim da comunidade humana e que estamos diante de outra coisa».

Essa outra coisa é o coração das trevas que por aquelas bandas lateja, até se reduzirem mutuamente a pó – pois que retaliação caberá a um fantasma?

Saliente-se que Said fundou em 1999 com o seu amigo Daniel Barenboim, maestro argentino-israelita, uma orquestra de  jovens  do Egipto, Síria, Líbano, Tunísia e Israel, a “Diwan Oriente-Ocidente” (Barenboim, que ofendeu judeus quando, em Israel, ousou tocar Wagner – o “compositor de Hitler” – e que emocionou palestinianos ao doar o seu Steinway ao Conservatório de Ramallah [que agora tem o nome de Edward Said], destruído pelo Exército israelita, tinha uma admiração profunda pelo amigo com quem partilhou concertos de Mozart, Beethoven, Schubert e Rossini.).

Vale muita a pena ler este “A Pena e a Espada”, bem como o seu livro magnífico sobre os intelectuais, “Representações do Intelectual” ou o seu último ensaio, aliás póstumo, “Sobre o Estilo Tardio”, reflexões na arte e na literatura.

No livro de entrevista, às vezes somos nocauteados com evidências que deixámos escapar, por “erros de simpatia”, como esta, sobre Camus:

«Não menosprezo o seu talento como escritor; Camus é um excelente estilista, certamente um romancista exemplar em muitos aspectos. (…) Mas o que me incomoda é ser lido fora de seu contexto, da sua história. A história de Camus é a de um “colon”, um “pied noir” (…) Os seus romances, na minha opinião, são verdadeiras expressões da situação colonial. Mersault, em “O Estrangeiro”, mata um árabe, a quem Camus não dá nome nem história. Toda a ideia do final do romance, segundo o qual Mersault vai a julgamente é uma ficção ideológica. Nenhum francês jamais foi julgado por matar um árabe, na Argélia colonial. Isso é mentira, é algo que ele inventou. Em segundo lugar, no seu romance, “A Peste”, as pessoas que morrem na cidade são árabes, mas não são mencionadas. As únicas pessoas que importavam para Camus e para o leitor europeu da época, e até de hoje, são os europeus.»

É duro, mas faz pensar. Como na generalidade tudo o que escreveu este homem de uma profunda racionalidade e cultura múltipla, que sabia amar o diferente e ser equidistante, embora nunca tivesse perdido de vista as causas.

20 Mai 2021

Da vida como brasa

Serei o único nababo que ao acender o cachimbo, macia e estultamente, se queima?

Muito mais do que eu, o Pasolini há-de ter esmaltado com o lume algumas estrias nos dedos imprevidentes porque não há dúvida que a vida lhe esteve sempre em brasa, que o seu sopro nunca deixou esfriar o escândalo, que o vento nele era uma liga de fogo «num ventre vivo».

Lê-se este livro póstumo de Pasolini, editado pela Barco Bêbado, e percebe-se porque, sinaliza-o Claudio Magris num artigo em que os compara, Montale se irritava com ele.

Pasolini e Montale representam os dois pólos da atitude face à escrita e à vida. Um apostava numa escrita impessoal e era céptico quanto ao poder que a poesia lograsse para mudar a vida; aliás à própria vida não atribuía mais do que uns 5% de presença e convicção. Pasolini, pelo contrário, era da linhagem de Rimbaud, vivia a 120% do seu potencial e a escrita nele só tinha sentido como operador da mudança. Mesmo eivada de contradições e do vestígio das derrocadas que a existência arma, a poesia era-lhe um modo expedito de fazer respirar a acção que urde uma moral focalizada pelo dissídio, ou na razão poética e anti-burguesa.

A poesia é, para o autor de “Poesia in Forma di Rosa”, esse pleito onde a consciência acede à sua própria percepção e restaura a contigência duma voz (de um rosto) exumada pela sua inscrição política. Ademais, ele tinha uma vocação plectórica que o fazia tocar vários carrinhos: poeta, contador de histórias, dramaturgo, cineasta, romancista, cronista político, ensaísta, e, provocatoriamente, gostava de fazer de “ponto” intrometido e desarvorado no palco de todas as revoluções. Este “Who is me – Poeta delle Ceneri” (Poeta das cinzas), bem o demonstra.

Um dia, cinco anos depois do seu assasinato, Enzo Siciliano, o autor de uma das suas biografias, descobriu o rascunho deste longo “poema biobibliográfico”, e, apesar de não estar acabado, considerou que à obra incabada não faltava o ímpeto que merecia a publicação.

Tinha razão, o poema tem nervo e no seu modo digressivo, “reticulado” (um bom achado da posfaciadora, Rosa Maria Martelo, para falar do mecanismo desta escrita) faz uma espécie de panorâmica sobre a vida, com flexões desde a infância, às ilusões revolucionárias e à justificativa de passar da poesia para o cinema (o filme “Teorema” tem no poema uma boa e alentada sinopse), numa fluência em que as modulações reflexivas, as concretíssimas pinceladas campestres, a trama dos amores e das perseguições judiciais que aí se desencadearam (Pasolini foi alvo de vários processos), a discussão sobre as formas estéticas e os valores morais, se enredam numa textura verbal sempre à beira de pegar fogo. Porque este é um homem de um realismo iracundo que conversa interpelando o leitor, nesse tu cá, tu lá, que fazia dos poemas de Pasolini um pensamento coral.

Não tinha razão Montale quando acusava Pasolini de um excesso de pathos, como se erguesse um ego contra o mundo; na verdade, para o poeta rival, como prevenia Deleuze, «Escrever não é contar as lembranças, as viagens, os amores, os lutos, sonhos e fantasmas. Ninguém escreve com as suas neuroses. (…) A literatura só se afirma se descobre sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal.»

É neste sentido que o emocionado Moravia, nas exéquias de Pasolini, falou da enorme perda de um “poeta civil” – exactamente no mesmo sentido com que Pound definia o “poeta como antena da raça”. Pasolini usava a sua vida, narrava-a, como quem encarna o modo coral da sua época e do tecido social que ele sentia em perda.

Este poema de trinta páginas, que faz o balanço de «um peixe fora da rede», chega a ser brutal na análise e na auto-derrisão dos factos narrados, quer na relação com o pai, sempre ambivalente no ódio e na compaixão, quer na traição dos camaradas comunistas, aburguesados, que chegaram a matar-lhe o irmão por fanatismo de facção, quer na própria relação de artista com o seu público («A burguesia italiana, a verdadeira, a/ que compõe verdadeiramente a Itália/ experimentou um ódio profundo por aquele mundo subproletário:/ o ódio pela diversidade/ um ódio indistinto e global por mim e pelas minhas personagens./ Com o meu primeiro filme, que se intitula “Accattone”, /aquele ódio transformou-se num verdadeiro e real sintoma de racismo.», pág. 21).

Nada escapa à lucidez e ao crivo do poeta (que na altura da escrita do poema viajava pela América e era alvo de processos judiciais contra a iconoclastia de “La Ricotta”).

E, antecipando-se ao seu tempo, o poema apontava o dedo à biopolítica que corrompia pela base as alternativas existenciais e políticas e anteviu os perigos da massificação das massas («Caros americanos, não pacifistas, e não espiritualistas, /ou seja, a enorme maioria bem-pensante,/ o vosso deus é um idiota/ como qualquer cidadão médio/ que deseja com todas as suas forças e com todo o seu espírito/ ser como todos os outros (…)», pág. 22).

Expressivamente, Pasolini reclama uma alocução directa que diz preferir às volutas do estilo: «Também este caso te contei/ num estilo não poético/ para que não me lesses como se lê um poeta. / Assim decaiu a estima pela poesia, típica/ das infâncias que acreditam no eterno…» (pág. 29), mas esta é uma meia-verdade, pois como o poeta lembra na página seguinte: «Apenas o amor por aquela língua do não-eu, que se exprime/ com igual direito, igual força do eu/ dá ao poeta/ a capacidade.» (vês, Montale?). Daí que ao fim de trinta páginas deste aluvião ou ossário afinal polposo o leitor se sinta agarrado – e também por força do bom ritmo com que a tradutora, Ana Isabel Soares, soube dotar o texto.

«E hoje, dir-vos-ei, não é só preciso comprometer-se com o escrever, / mas com o viver:» é isto, nem mais.

14 Mai 2021

Farewell, My Dear

18/04/21

Completei hoje o segundo livro de poemas depois de Tristia. É curioso pensar que, antes do Valter o ter levado para a Porto editora este livro esteve em duas editoras renomadas, que não me deram sequer sinal de o terem lido.

Eu sentia, há anos, que depois deste volume pouco tinha a acrescentar na poesia. Não foi assim e fixei dois livros novos nestes últimos três meses, nos quais mudei absolutamente de processos e cheguei a uma simplicidade discursiva surpreendente em relação aos meus livros anteriores, como será patente na antologia Uma Ostra Questão, que sairá daqui a uns meses.

Estes dois livros abrem um novo veio, depurado (com alguns curto-circuitos), mas escorreram-me com uma facilidade que se por um lado me agrada por outro me parece maculada pela competência. Creio que a competência é inimiga da poesia e que a técnica não é suficiente.

Há um episódio curioso de Mallarmé. Um dia foi-lhe pedido um poema para ser recitado no casamento da filha de um amigo. Mallarmé cumpriu a encomenda. E felicita-o o amigo: “O poema é muito bonito e não é hermético, como te é habitual”. E responde o poeta: “Não tive tempo para o obscurecer”.

Sinto o mesmo: o desafio da poesia exige tempo, e não que cedamos “ao natural”. É preciso ser desconfiado, que lhe digamos que não. Só assim nos salvaguarda do aviso do René Char: pobre do poeta a quem a poesia não ensina o que ele não sabia de antemão.

“Como um esquife, morto de cansaço,/ o verso que me habilita à proporção.”, leio em Tristia, e fico espantado, só agora descubro a força da tensão que aqui se declara, é um dístico que como um pé-de-cabra abre uma poética, mas a proporção que nele se mete em movimento já está para além do apego aos géneros. Imaginar é-me preciso, mais do que a poesia.

Agora que tecnicamente faço o que quero, chegou como o Miró a hora de mudar de mão, de retomar a boa via de conduzir contra o trânsito. Continua a haver em mim uma criança que prefere assustar-se a confirmar-se.

Gosto dos dois livros que acabei, não é essa a questão. Mas depois deles já não me surpreenderia o que pudesse escrever, estaria a imitar-me, em modo de ronron. Eles estão no limite e funcionam muito bem; não lhes falta ritmo, sangue, humor, algum atrevimento, boas soluções, e mantêm uma vibrátil plasticidade verbal, mas detesto conhecer o terreno que piso.

Caos precisa-se, que as palavras cheguem ventiladas da esfera do indescernível, de lugares sem raízes, desorbitados, insusceptíveis de serem plintos para exercícios onde a medula estará para além de mudar-se o lugar das mobílias.

Cheguei ao brando conforto da “forma”, há agora que readquirir a potência do desequilíbrio.
Já estive quase dez anos sem escrever poesia, o jejum não me fez mal.

20/04/21

Reler Bandeira faz-nos sempre descobrir alguma coisa que nunca tínhamos visto antes, tão certo como os versos de Hafiz que o poeta recupera: “Amarei constante/ Aquela que não me quis”.

Desta vez, entrevi a poética, patente em Saudação a Murilo Mendes e em Nova Poética, a que o poeta foi fiel. O primeiro destes dois poemas fecha assim: «Saudemos o grande poeta/ Permanentemente em pânico/ E em flor.» ( – que aliás é uma variante dos versos de Dante: “o artista/ a quem, no hábito d’arte/treme a mão”).

O oximoro não só é exacto em relação ao Murilo como me parece definir o estro da poesia: dar flor no manto sacudido por um sismo de grau oito. No mesmo impulso bolçavam os samurais um haiku celebratório da vida durante o seu harakiri. Essa suspensão face ao desequilíbrio, seja o do interior, seja o do meio ambiente, resume o único tipo de “sageza” (intransmissível, que tem de se experimentar) a que o poeta pode aspirar.

Paralelamente, em Nova Poética, dum modo divertido, Bandeira prevê três géneros para a poesia: a do “poeta sórdido” (“Aquele em cujo poesia há a marca da vida”), a da “nódoa no brim” (um tecido forte de linho) – “O poema deve ser como a nódoa no brim:/ Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero” -, e o da “poesia é também orvalho” – com a ressalva que se segue: «Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem piedade.»

Paródia à parte, estes três géneros correspondem ao lírico (o orvalho), ao trágico (o brim), e ao dramático/realista (o poeta sórdido).

Porém, a lição que se tira do exercício da poesia em Bandeira é que não nos devemos ater a um género ou tema em exclusividade e antes planar no reconhecimento da topografia vária de todos os continentes. Por isso ele escreve em Arte de Amar: «(…) As almas são incomunicáveis/ Deixa o teu corpo estender-se com outro corpo./Porque os corpos se estendem mas as almas não.» sem temer contradizer-se depois, no poema Seio: «O teu seio que em minha mão/ Tive uma vez, que vez aquela!/ Sinto-o ainda, e ele é dentro dela/ O seio-idéia de Platão.» E assina rondós, ou redondilhas, ao mesmo tempo em que fazia poemas concretistas.

Esta liberdade, aliada à sua plena consciência da transitoriedade de tudo, levava-o a não se levar demasiado a sério (ainda que seja um poeta eminentemente sério) nem a deixar-se aprisionar por uma imagem, refém de si mesmo – capaz em páginas contíguas de ser cruel, amargo, cínico, terno, romântico, ou subversivo, e de de transmitir a lucidez da cal.

Tão diferente de alguns poetas que só querem ser um, o mesmo, de risca ao meio, mesmo que com vento. Daí que o velhinho e modernista Manuel Bandeira me seja dilecto e que a sua lição me faça abraçar um interregno.

29 Abr 2021

Baudelaire, uma efeméride

Já topei que a Jeanne Duval – a eterna amante de Baudelaire e uma figura recorrente dos sonhos do protagonista do meu primeiro romance, A Maldição de Ondina – não era rapariga que me fizesse subir os Pirinéus de bicicleta mas, convenhamos, poucas há que me impelissem a semelhante sacrifício. E seria Baudelaire um rapaz de poucos atributos ou de pouca decisão nos atributos, a avaliar pela imperícia da noite de 30 de Agosto de 1857, que passou com Madame Sabatier depois de anos a rondá-la, visto que lhe escreve no dia seguinte queixando-se de que “faltou a convicção”. Repare-se, o amante lastima-se de a senhora não ter gozado.

Uma das coisas desconcertantes, quando se aborda Baudelaire, é que a extrema segurança com que desbravou caminhos na literatura e na arte se recorte contra a extrema dependência que o manteve sob as saias da mãe. Há uma descoroçoadora simetria invertida: a alguns títulos Baudelaire não passa de um “paspalho” inspirado por um traumatismo maternal e chega a ser confrangedor o modo como o seu comportamento com as mulheres se ajusta à grelha psicanalítica. Ao Freud poderia ter sido da leitura de uma biografia de Baudelaire que lhe veio a faísca do Complexo de Édipo – é um supor. E o sintoma mais celerado da desproporção do seu edipianismo está no testemunho de Jules Buisson que o encontra nas barricadas da Comuna de Paris, em 1848, de fuzil nas mãos, excitado e aos gritos: «É preciso fuzilar o general Aupick!» (o padastro).

Fiquei agora curioso de verificar se não há mais corpo nas Flores do Mal do que na soma da sua vida.
Veja-se o que regista em O Meu Coração a Nu, depois de caracterizar uma cópula como “um esquecer o seu eu na carne externa” (insólita expressão) : «Quanto mais um homem cultiva as artes, menos fode (…) Só a besta fode bem e a fornicação é o lirismo do povo. Foder é aspirar a entrar noutro e o artista jamais sai de si».
Que diferença brutal para Bataille, por exemplo, para quem o orgasmo era “a pequena morte”, pelo voluptuoso apagamento de si.

Nisto, os homens serão todos diferentes. Lembro-me da perplexidade que se me seguiu à minha primeira vez: Afinal, é só isto! (Graças a Deus, que como eu é ateu, foi melhorando!).

Contudo, em Baudelaire, essa distância da sua pele a si reflecte-se nas coisas imperdoáveis que escreve sobre as mulheres, fá-lo do ponto de vista de um réptil. Nestes tempos de leituras a preto e branco que as feministas desenfreadas não lhe coloquem a vista em cima (- ai, que já fiz de delator, auto-censura, acode-me!)!

É difícil dizer de Baudelaire, como de Eliot, É o meu poeta preferido! Mas de quantos preferidos já despeguei? Pelo contrário, à medida que os anos passam só lhe descubro qualidades. Ainda esta noite andei às voltas com um poema das Flores do Mal, Le Cygne, e dei comigo a pensar, Meu Deus, estas rimas escorrem como seda! O Brecht odiaria e também eu… há uns anos atrás, agora assombram-me.

É muito divertido o que Baudelaire escreve sobre o teatro, referindo que aquilo que mais o atrai nas casas de espectáculo é “o lustre”. E, apesar de ter gostado pelo menos das peças do Victor Hugo, condena o teatro em termos que sugerem outras propostas artísticas: os actores deviam andar de andas no palco e ter máscaras. Talvez perdêssemos a oportunidade ver Gata em Telhado de Zinco Quente e a senhorita Elizabeth Taylor a catrapiscar o miúdo Newman, porém confesso que a sugestão das andas me excita verdadeiramente as meninges.

De uma mesma carta a Toussenel, retiro isto que me interessa muito: «a imaginação é a mais científica das faculdades, porque só ela entende a analogia universal, ou aquela que uma religião mística chama a correspondência…» (o que agora levaria meia-hora para explicar) e a azeda embirração com o pobre do Fourier (alergia cutânea inexplicável). Embora me agrade que ele nunca aplaine o que repele, ou tão só, e com incomodidade, os elogios que lhe dirigem (como o de Verlaine, acolhido com desconfiança).

Num fim de tarde, no final de sua vida, quis o poeta calcular tudo o que havia ganho com a sua pena. Somou um total de quinze mil oitocentos e noventa dois francos e sessenta centavos; e o amigo que testemunhou esta contabilidade sinistra comentou: «Então, este grande poeta, este terrível e delicado pensador, este artista perfeito ganhou, em vinte e seis anos de trabalho, cerca de um franco e setenta centavos por dia».

O que consternaria Baudelaire não seria a pobreza em si (a sua mãe nunca o desampararia), mas o que a pobreza realmente significava: a indiferença brutal do público educado. A auto-derrisão com que fechou o poema de abertura da sua obra magna (“Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”), tolamente, foi sempre tomada por insolência. A graxa que dá aos burgueses no prefácio ao seu Salão de 1846 não lhe serviu de nada e disso tirará as devidas consequências.

Ao contrário de Rimbaud, Baudelaire foi poeta a que sempre resisti, mas com a idade bateu-me.
Assim que me livrar de algumas tarefas pendentes escreverei um pequeno ensaio a demonstrar que, ao contrário do que tem sido escrito, o seu poema Correspondances rompe com a verticalidade que tem sido aduzida para a relação que o simbolismo estabelece entre a Terra e o Céu, «segundo uma direcção irreversível, ou seja, uma herarquia» (Ivan Junqueira). Pelo contrário, vejo antes embutido aí o mesmo jogo de proporcionalidades que o Heraclito defendeu para a relação entre os elementos, o que abre o campo para uma reversibilidade dos dons.

16 Abr 2021

Legente de sombras

Lê-se numa carta de Benjamin para Scholem: «(…) como afirma Kafka, existe uma esperança infinita, simplesmente ela não é para nós. Esta frase contém realmente a esperança de Kafka. É a fonte da sua irradiante serenidade».

Essa pacificação chegará a Kafka, com certeza, da consciência de não haver traído o vector ético, pois a convicção de que viver a esperança não lhe tocará em sorte não o fez generalizar a sua “despossessão” para os demais. É um sinal de uma rara grandeza não querer contaminar com a sua descrença ou malapata o destino dos demais – o que inclusive talvez relativize a negatividade que o próprio Benjamin associava ao autor de METAMORFOSE.

Cada poeta deveria adoptar esta lição ética e forjar um saudável distanciamento em relação à lucidez que calcina, pois se é necessária para revolver a terra também a semente o é, e quando há negrume identifica-o afinal um halo.

Por esfiapada que esteja a esperança, em termos pessoais, há ainda um princípio de fidelidade que deve assegurar o elo, a transmissão.

Sim, é uma bela coisa “deixar falar a linguagem” (Novalis) e isentarmo-nos de interferir com a palavra, mas isto deve ser matizado por momentos em que um carácter de urgência impõe que a palavra signifique e não seja apenas um estado de suspensão da vida ou um resíduo cantável de “deus ausente”, e antes materialize um grito que – esquecida a vidência -, quer apenas lembrar o horror da fragilidade humana e o modo como a descuidamos.

Comecei por apreciar o Pedro Teixeira Neves pintor. O que vai sendo raro, ele deixa-se levar pela “inteligência da mão” e deixa que os materiais e a energia cromática validem as suas composições, sem lhes impôr uma ideia. Aqui, é ainda o romântico que pulsa.

Depois, achei graça à leveza de poemas que vi citados do seu último livro OS TRABALHOS MAIS LEVES (Húmus, 2021), onde as palavras conversam e brincam entre si, numa linhagem que nos recupera O’Neill e Henrique Leiria (A vulnerabilidade toca a todos: «nos bicos dos pés/ alçou-se/ nos bicos dos seios/ calou-se») , e onde o humor e a desconstrução cultural caminham paralelamente (Yazujirô: «gostava/ de a ter/ ao nível/ do plano de câmara ozu.»), às vezes com efeitos de grande subtileza que revelam inteligência do ofício (o que está muito para lá de ter graça), como nestes dois versos que aludem a um orgasmo: «exsudação de figos/ no prumo de agosto». E, lido o livro, vi que estes pormenores se repetiam.

Tomei-te então de lata e, como estou em terras longínquas onde não chegam os livros portugueses, pedi-lhe outros livros. E o Pedro mandou-me dois. Pude então ler A PARTE QUE NOS TOCA, o seu livro anterior (Labirinto, 2020).

É um livro nos antípodas de OS TRABALHOS MAIS LEVES, em termos estilísticos e temáticos, como se fora outro autor a escrevê-lo, e isso não apenas lhe acrescentou ecletismo como seriedade, ficando nítido que não se atém a fórmulas ou a uma “voz” imperturbavelmente mineral. A PARTE QUE NOS TOCA é de uma densidade que contrasta com a airosa fluência de OS TRABALHOS MAIS LEVES (dedicado aos hílares trabalhos do amor) e mostra um poeta que sabe “o seu a seu tempo”, alternando o lúdico e o combate contra a trivialização que hoje importa travar. E fez-me descobrir um poeta confiável, no sentido em que, dominando os seus materiais, não perdeu nem o sentido da “gravitas” nem essa reversibilidade entre a vida e a literatura, tão necessária para romper a vazia tentação dos literatos.

A PARTE QUE NOS TOCA é um longo poema, de fôlego narrativo e verso largo, dividido em três partes (Exílio, Travessia, O Princípio da Imortalidade), onde se mostra a anti-epopeia dos refugiados que nos chegam de África e do médio oriente para se finarem em balsas de morte no Mediterrâneo. Os primeiros três versos soam assim: «prende-se ao coração/como animal de trela/ a terra a que chamamos mãe» e não deixam de martelar-nos espírito dentro os seus mais de mil versos, que correspondem ao lento escalpe da peregrinação para a morte.

Não há neste “cântico” maiúsculas porque face a este horror são ignóbeis as hierarquias e é-nos pequenino o coração que observa.

Tenho mais a sentir do que a dizer sobre este grito-que-nos-toca, a não ser que me espanta realmente que o oportuno carácter de urgência deste poema, de excelente factura técnica, tenha encontrado um caviloso silêncio (ressalvo a revista Caliban, que o entrevistou); sinal de que já não se acredita que a poesia possa ter um papel social ou qualquer dimensão que a torne relevante e necessária. Quando um bom poema como este, que não se faz só das incandescências oraculares e ousa declarar-se como respiração de um testemunho, numa boa bofetada na bochecha da indiferença política, cobardemente, não logra qualquer eco é porque a sociedade está doente e todas as tripas encortiçados.

Cito, do fragmento em prosa (poética) deste “cântico” (Travessia) – em prosa porque estamos então na “aventura” de Job, no momento em que atravessa o mar intérmino – selvagem, sem descanso ou cesura – da sua provação:
«e foi de noite, noite mais noite, que job e três amigos, encharcados de escuridão, se fizeram fantasmas fortuitos ondulando os sonos dos algozes e como coágulo romperam as primeiras e precárias ondas da incerteza e do desconhecido (…) deixando que a sorte rolasse os seus dados. (…) conheceram a negridão das águas paradas, vidro transparente como a espuma dos ossos, amarga e sideral se eternizando, a boca salgada como se picada por escorpiões, a pele queimada, chamamento de chaga, as cabeças a ferver de tanta bebedeira de luz, o frio à noite rasgando o pensamento, mandíbula.»

Obrigado Pedro por nos lembrares que não basta a empatia-diferida, falta a dignidade de dar viva voz à indignação.

8 Abr 2021

Bouquet

Vou ao hipermercado e perco o norte ao tempo certo da fruta. Qual é a época das cerejas? E dos pêssegos? Haverá mangas nas árvores todo o ano? E de morangos, que profusão é esta?

Eu ainda me recordo, mas nenhuma filha minha conseguirá entender a propriedade dos haikus em relação às estações do ano, que evidentemente nesse género poético se confundem com as maturações da vida.

Sempre me atraíram os haikus, mas raras vezes fui capaz de os cometer, acho que por falta de humildade. Escrevo um haiku e não deixo que a redoma do silêncio poise sobre ele, penso de imediato que lhe falta algo, que lhe posso acrescentar xis. Em dias de menor orgulho páro num soneto, mais vulgar é estragar um haiku (enfim!) com uma baba desmedida.
Angustia-me que me tomem por Satie, que não me acreditem como Rachmaninoff.
Uma das lições mais difíceis da vida é a que se estampa no haiku de Buson: «Para cantar/
o rouxinol/ só entreabre o bico.»

Talvez aos oitenta consiga dizer com o Hokusai, mais dez anos e conseguirei desenhar com vida o voo de um moscardo. Até aí, cagança e manha.

Capturei dois haikus numa Canção do Mário Quintana. Ei-los, em CANÇÃO MEIO ACORDADA: (…) Lua de ouro entre o nevoeiro/ Do sono que se esgarçou./ Laranja! Grita o pregoeiro.(…) Sob os arcos da manhã./ (Os gatos moles do sono/ Rolam laranjas de lã.)
Se eu fosse o Mário Quintana, acabaria por transformar o poema em dois haikus, mas ainda bem que ele nos deu a alegria de me contrariar.
Noutro poema, também só ficaria com o que aqui cito, CANÇÃO DE OUTONO PARA SALIM DAVI: O outono toca realejo/ No pátio da minha vida.
Mas isto sou eu a ler dois poemas de 1940.
E o Quintana acabou por fazer, na generalidade, uma obra magicamente enxuta, cristalina, e bem-humorada como em poucos. Não sei porquê, cheira-me que a feliz “leveza” do Jorge de Sousa Braga, teve aqui um mestre.

Em frente à paragem do chapa há uma tasca atamancada – cimento cru e grades sobre bandas de vermelho pintadas para anunciar uma marca de cerveja – como são quase todas na periferia de Maputo, ladeada por duas garagens, uma que parece o Museu do Escape, a outra especializada na recauchutagem de pneus.

Engraçado é os nomes escolhidos para as garagens: a Auto-Motora Passarinho e a Auto-Motora Passarão.
Explicam-me na tasca que ambas pertencem a dois cunhados desavindos, e que a primeira, a dos escapes, é de alguém de apelido Passarinho, o que determinou o nome da outra garagem, escolhida por pirraça e sarcasmo.

Mas a graça completa-se porque redescubro este mimo – e isto configura aquilo a que o Jung chamava uma “sincronicidade” – no dia em que releio a obra completa de Mário Quintana, vejam a delícia:
POEMINHO DO CONTRA, «Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho,/ Eles passarão…/ Eu passarinho!»

Os haikus, que são de uma concretude ímpar, não hesitam em restituir-nos o sentimento do mistério ou do inefável, e transportam-me para uma certa ambiência que estampa esta ideia de Montale: «Toda a arte que não renuncia à razão, mas que nasce do choque da razão com algo que não é razão, pode também chamar-se metafísica». Esta tensão sempre existiu, e acho piada que no horizonte da aporia ou do cinismo instalado no seio das sociedades servo-materialistas, se abeire, como se do magno regresso das andorinhos se tratasse, a metafísica. Pois como escapar à natureza, que julgavámos dominada – agora que o Covid nos
demonstrou a vanidade da nossa arrogância?

Daí que, de vez em quando, voltar ao haiku, nos habilite a uma primeira terapia, a um banho de modéstia.
À sua maneira, noutros domínios, e até no domínio das ideias, podem aflorar sínteses admiráveis. Do arguto Valéry: “Todos os políticos leram a História, mas fico com a impressão de que só a leram para daí retirar a arte de reconstituir as catástrofes” – condensando este nosso tempo, pasme-se, num poema inacabado.

Mas falta ainda aqui um bom ingrediente, que encontramos nos melhores haikus e nas melhores ideias, o qual talvez traduzisse assim: só quando uma ideia faz despontar uma sensibilidade, um novo discernimento, é que deixamos de ser apenas intérpretes de projecções passadas e reféns da sedução da inteligência que naquelas se arma.

Um bom haiku rompe, impõe um novo olhar.

Daí que considere que só uma destas aproximações que intentei em baixo cumpre o desiderato (- e já nem falo da métrica). E deixo ao leitor, como se fosse um teste americano, a apalpação duma (sua) hipótese:

1 O girassol não delata./ Não há peças sobressalentes/ para a polinização. 2 Amarelece a sede na carne/ das begónias. Deus/ já seria um excesso. 3 Tempestade,/ encavalitam-se as cerejas/ nas orelhas do vento!
4 Honra ao atavio/ à gordura na picanha:/ a tua carícia fora de horas. 5 Retirada a onda/ dormimos à beira mar sob/ a custódia dos despojos. 6 O meu corpo é o corrimão/ em que se coça/ a puída criança do tempo. 7 De galochas não és um camponês/ o haiku não te dá a santidade/ – que desejo é esse, se a beijas?, 8 Terrível mas verdadeiro,/ o dizer do Buson: canta o cuco,/ sem parentes nem fedelhos. 9 Queres ouvir as estrelas?/ Ouve o chamado/ de bronze dos grilos. 10 Crisântemos à altura da cintura/ e diante dos olhos a escarpa/ dos teus olhos que se afastam. 11. Vejo os cães a polir o teu afecto/ pela alba, na praia/ que me interditaste. 12 Duas mil insónias sem abrigo/ esmaltaram na lua/ a luz dos olhos dela. 13 Desejo inédito inunda a pélvis/ da minha namorada:/ comer ostras na lua. 14 Não subestimes o tigre/ que bafeja esta página/ rasgada pelos olhos do leitor.

1 Abr 2021

Da Ira Identitária II

Há livros clarividentes que constituem um antídoto contra esta maleita mas as hordas fazem alvorecer os equívocos. Devia ser obrigatório ler “As Identidades Assassinas”, do Amin Maalouf, ou o magnífico “A Identidade Cultural não Existe”, do François Jullien. Mas não foram escritos por africanos… e hoje a inteligência e a memória são rejeitadas como elementos espúrios, em não tendo um selo étnico.

Na semana passada evoquei a irreparável ofensa que constituiu a deficiência cognitiva programada pelo colonialismo, comentarei agora a abominável “perda de realidade” e a perversão dos valores que os regimes pós-coloniais imprimem na percepção das novas gerações, praticadas em nome da “identidade”.

Há uma jovem do Malawi, cujos livros estoiraram em todo o mundo. Chama-se Upile Chisala e foi publicada na Leya/Brasil. Li-lhe o primeiro livro, “Eu destilo melanina e mel”. Que tal é? Cite-se: «Eu gosto de pensar que Deus sorri/ quando uma mulher negra é corajosa o suficiente/ para amar a si mesma.»// «Diga a ela que há deusas nos seus ossos/ E histórias de triunfo na sua pele./ E que essa negritude não é um pecado».

Sobressaem no livro três temas: a cor da pele, a necessidade de auto-estima e o difícil respeito mútuo no amor. Upile cresceu no Malawi, entre negros, fez o curso universitário nos EUA, e depois voltou a casa e agora vive na África do Sul, maioritariamente negra, e, em entrevista, diz pretender ser a voz, não de todas as mulheres, mas, “das negras”, contra a discriminação que as vexa. Fico baralhado quanto aos alvos e em que “lugar” ela localiza o racismo e a discriminação: afinal, não vive em África? Talvez Upile sofra do mesmo problema que um jovem “filósofo” moçambicano que nas suas palestras excita a plateia com as mesmas histórias e argumentos histórico-filosóficos, que conduzem invariavelmente ao despertar para a consciência do homem negro, no bairro de Harlém, em 1920 – à terceira vez que ouvi o mesmo discurso, perguntei-lhe se ele já havia dado conta de que vivia em Maputo, terra libertada, em 2019. Até hoje não despertou para a sua realidade e papagueia o seu discurso anti-esclavagista, evitando pronunciar-se contra os erros grosseiros do poder actual que conduziram a Cabo Delgado e à decapitação de crianças.

Outros poemas do livro: «Você/ e eu/ e todos os nossos vícios.»//«Meu amor,/ você não acreditaria em todos os lugares/ em que achei que encontraria você.»// «Milhares de poemas vêm dançando no meu peito/ desde a primeira vez que você me beijou.»//«Tenha cuidado com a maneira como você ama as pessoas./ Não as destrua./ Não se destrua».

Isto tem consistência como poesia? Até como auto-ajuda é medíocre. Porquê o sucesso? É simples, é uma mulher negra num mundo polarizado, não importa a vulgaridade do que diga. Coitadas das poetas de outras latitutudes e raças: têm de estudar todos os poetas da sua tradição, dois mil anos de poesia, antes de se atreverem a escrever uma linha que seja consistente.

Esta crónica vai ser lida como racista quando é o contrário disso: apela a que os africanos readquiram a sua dignidade trabalhando mais e melhor e auto-guetizando-se menos.

Uma moçambicana passou-me o manuscrito de “uma novela”. Como novela era pífia; salvei umas frases no meio da hulha, que montei, o que resultou num poema unitário de 20 páginas. Ela publicou o poema. Vejo-a depois entrevistada pela RTP África onde, com desfrute e vaidade, se ufanava de ser estudada nas universidades do Brasil.

Em que farsa me meti eu, interroguei. De outra vez, deram-me um manuscrito de trezentas páginas para ler, sem estrutura, martelado na sintaxe com que se acomodarão os alimentos no bandulho de um pangolim. Estruturei-o e reduzi-o a cento e dez páginas. Pensei, isto, claramente, ainda precisa de ir às oitenta mas não quero assustá-lo de antemão. O tipo, radiante, meteu imediatamente o livro na tipografia antes de eu conseguir enxugá-lo devidamente.

Nunca mais privou comigo ou voltou a escrever outro livro. Ou antes, contactou-me dez anos depois para que eu exercesse de novo as minhas habilidades de alfaiate, mas disse-lhe que não.

Recebi agora um daqueles livros colectivos, emanados dos Departamentos de Estudos Africanos: lá vinha um aperaltado estudo académico sobre a famigerada “obra-prima”. Ao qual se segue outro artigo “científico” sobre uma poeta que não consegue, literalmente, no domínio da língua, fazer coincidir um botão com a sua casa. Assim se produzem teses, de fora, sobre “o cânone” literário, ancoradas num paternalismo estupidificante.

(Não distorçam, existem bons escritores, ainda esta semana escrevi o prefácio para um jovem novelista, falo antes dos “efeitos da mentira” alimentados pelo duplo critério da complacência, que impedem a autonomia e o crescimento).

O predomínio da cultura oral é patente, explicando a dificuldade de grande parte dos estudantes africanos que vão estudar para fora com bolsa. Não estão habituados a uma tal exigência de ritmo de leitura e de pressão. Em casa, os trabalhos nunca visavam a excelência e nas avaliações prevalece um critério de mitigação: “Dado o contexto, não é mau…”.

“Subtilezas” enquadradas num proselitismo auto-desculpabilizador e avesso à crítica. Neste contexto, a cultura instalada – de cultivar o discurso vitimista em detrimento do esforço e da produção, quer de conhecimento, quer de modos de vinculação ao presente -, é um erro programado que politicamente beneficia a alguns.

O que gera tensões e leva a que os comportamentos se polarizem entre a baixa estima e a auto-indulgência como desporto nacional, num desvanecimento colectivo que tem como mecanismos principais a busca de bodes expiatórios e a catarse hedonista. Por isso são sociedades essencialmente consumistas, destinadas a estar em pane: orgulhosamente, querem ter “a autoria” sem trabalhar o suficiente para aprender os processos. Eis a contradição, gritam por soberania ancorados em sistemas de vida que os engaja na dependência.

Houve um inquérito de uma rádio à boca da universidade sobre se era prioritário fazer o curso universitário ou pertencer ao Partido. Adivinhe-se.

26 Mar 2021