Cansaço, simplesmente cansaço

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ansaço de mim mesmo ou de mim próprio? Vai dar no mesmo, um estuário de fadiga, num espelho desidratado.

O Pessoa arranjou os heterónimos para se aliviar destes sarilhos. Punha a mesma gabardina mas mudava de borsalino como os polígamos. Era como um búzio com várias cabeças. Sou demasiado macambúzio para o ardil resultar comigo, ou tão prestável que acabaria por inevitavelmente emprestar a chave do meu quarto a um heterónimo para ele ir lá dormir com companhia e acabaria à chuva, no cacimbo da noite, por extrema delicadeza.

Cansaço, e do mais impuro. Para já só descortino uma medida que me poderia salvar. Se eu casasse com a Dora Maar. Por vários motivos, ela tinha uma imaginação desatada e gostava de falar. Ora, eu pélo-me por falar menos. Ela mobilava a casa de palavras num instante e não se importaria com o meu silêncio porque como roçava o desequilíbrio, estaria tantas vezes ocupada em recuperar algum tino que nem daria pelo meu alheamento; por outro lado, ela reunia os encantos suficientes para compensarem a aragem inflamada com que às vezes o seu juízo desbordava. Claro que tudo isto parece um bocado egoísta, mas não é, repare-se, as ausências que ela me permitiria estariam fundidas nas frequentas ralações com que eu me ocuparia dela, seja por amor, ou por sobrevivência, para que as coisas corressem nalguma fluidez, sem estorvos.

Portanto, o meu aparente egoísmo ser-lhe-ia afinal vital porque me alienaria nela, por ela, com ela, numa presença contínua junto dela que de outro modo me seria insuportável.

Cansaço. Como o dela, imagino depois de ter sido durante anos amante do Picasso e deste a ter trocado pela jovem Françoise Gilot, o que a arrastou para uma crise.

Ou pior, muito pior. Porque ter uma relação com o Picasso e ficar cansada é normal, não será distinto de ter de lavar todas as janelas de um arranha-céus de duzentos andares na duração de um relâmpago, mas enfim, a perspectiva lá de cima há-de ter ganhos – não se há-de ficar com uma visão solteira. Muito mais complicado é ter uma relação a sós com a minha árida solidão e não ficar cansado de montar a tenda e de aplainar dunas, não convém nem ao mesmo e nem ao próprio e fica-se com o cérebro seco como as axilas do escorpião.

Era a mulher que me convinha. Bonita, altiva, de marés sempre vivas nas epístolas do desejo, com uma imaginação ímpar, iria de bom grado ao caixote de Picasso para resgatar esta fotógrafa delirante e modelo (nu) em repetidas sessões de Man Ray, a única mulher do pintor que esteve à altura do seu génio.

Se os meus amigos conseguirem localizá-la, informem-me. Há-de ter reencarnado.

Porque estou tão cansado que acabei de escrever como posfácio para um livro de poesia que vai sair daqui a dois meses:

«A amiba que desfez o cérebro daquela criança ilustrava um princípio gelatinoso. De uma simplicidade que abisma. O que é fascinante e horrendo.

Foi numa piscina, na Argentina, que o insigne animal, imaginemos que avançando em mariposa, penetrou pela narina da criança para depois se acomodar fazendo das suas.

Das notícias que mais me perturbaram neste começo do ano.

Observável apenas com a ajuda de microscópio, a amiba é um protozoário cuja vida remonta ao período de origem do nosso planeta. Como ser unicelular, movimenta-se e “captura” os alimentos emitindo prolongamentos citoplasmáticos – os pseudópodes –, os quais envolvem as partículas alimentares e incorporam-nas na sua massa gelatinosa, informe. Como parasita instala-se no intestino da mosca, quando esta suga o sangue de algum mamífero infectado, ou no cérebro das crianças, que desfaz. Para uma amiba nada nos distingue de uma mosca. Só nos resta acolher uma infinita humildade.

Creio que a poesia é uma amiba de efeito ao retardador.

Pode ser extremamente benigna para quem a lê, mas é refractária e sujeita a servidão o seu portador. E ameaça, não propriamente enchafurdar-nos no silêncio mas com uma pronta liquidificação das cabeças. A amiba, na sua simplicidade, rechaça quaisquer imprevistos. Foi sempre sob ameaça que escrevi, vivo amiúde nesse gume. Com a exaltação que antecede os fracassos.

Se pudesse não tinha escrito estes livros (são dois reunidos num volume). Foram-me impostos. Não lastimo, certifico. Não reivindico qualquer daimon. Possui-me uma amiba, e, cego desde o seu aparecer, corro contra ela. Imponho-lhe um ritmo embora tenha sido ela quem me obrigou a adoptar um passo de corrida. Por enquanto não ultrapassou a cavidade nasal, onde fez estalagem. O tempo é para ela um arco de luz?

Também eu gostava de dizer “gosto das formas que se tornam outras”. Mas quando o enigma foi desregulado por uma amiba vacilo sobre em que lado da forma ficar. Volteio entre as imagens sem subtileza, aristotelicamente.

Gostava de não vos afligir, mas a minha fatuidade é total e só me ocorre: cuidado com os contágios!»

Pior, a minha fadiga é tão grande que acredito piamente nisto.

Tal como creio no que escrevi no poema de outro livro: «Eu também não gosto dela./ Ao ser lida, porém, com um total desprezo, descobre-se/ apesar de tudo que o genuíno aí tem o seu lugar:/ escreveu Marianne Moore, num poema intitulado POESIA./ Esta declaração é um divisor de água./ Eu também detesto a poesia, posso lá eu relacionar-me/ com algo que me trata como um cão de cego?/ Gosto é de espreitar à socapa no espelho/ a ver se alguém que não eu, em gestos/ e expressões que me não pertencem, me perscruta./ À socapa, se ela sabe (a poesia) faz-me o escalpe.»

O ideal era conseguir calar-me (- Como se cala um pobre? Só os ricos se podem dar a esse luxo!), fazer do nevoeiro gabardina e escapulir-me. Ou perder-me entre os olhos redondos e os pés esguios de Dora Maar.

Quem (me) achar o seu endereço será o meu padrinho de casamento.

1 Mar 2018

Curar & Curare

19/02/2018

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] tapeçaria dos povos apresenta amiúde histórias medonhas, intrincadas, implacáveis. Pior quando se eximem da responsabilidade sobre o bem comum e acabam como vítimas desgraciosas do próprio desleixo acumulado.

Nesta última semana choveu a potes. Daria para transformar um estádio nacional em barragem, em não havendo drenagem. Desconheço em que estado ficou o Estádio Nacional de Maputo. Entretanto, não longe dali, no Hulene, acumulavam-se há anos monturos de lixo que cresceram, até à “sã” altura de um prédio de três andares, colinas de miasmas circundadas por casas de cimento ou madeira e zinco. Sofrivelmente cristãos, esses monturos resistiram à chuva, ao vento, à sua fúria e gosma. Até que ontem desmoronou sobre as casas, num tsunami.

Foi um regabofe. Ficaram soterradas cinco casas. Dezassete mortos, fora os que ainda não vieram à tona e estão a ser pasto dos ratos.

Que quarenta anos depois da independência uma comunidade morra enterrada pelo lixo que produz não deixa de ser tristemente metafórico. É a condição mais habitual em países que escolheram como prioridades as armas e a “política do ventre”.

Situando-nos agora no norte, contaram-me a seguinte história: um amigo precisava de uma certidão de nascimento. Por acaso é do Mossuril, no distrito da Ilha de Moçambique. Ora, os livros de assento dessa zona foram enviados para a Conservatória da Ilha e foi aí que um amigo deste meu amigo foi requerer uma certidão de nascimento. Porém, a seguir todos os prazos razoáveis foram ultrapassados, até que chegou finalmente o documento e a explicação. Os livros de assento de antigamente eram grandes e as suas páginas desbordam da única e pequena máquina de fotocópias que existe na Conservatória. E então a opção é acumular os casos por resolver a fim de que se justifique enviar dois ou três livros de assentos atravessar o istmo que separa a ilha da costa numa balsa, com um funcionário, para, no outro lado, se tirar as fotocópias necessárias. E sob risco de que um aguaceiro, uma trovoada repentina, desabe sobre a balsa e os livros, debotando o milhar de assentos de que dependem muitas vidas. Por que não se digitaliza? Porque não há orçamento.

O episódio da ilha chega a ser risonho, não fora essa quase doce irresponsabilidade – uma verdadeira cocada mole – ser outra face da mesma realidade que desaba na triste tragédia ocorrida esta noite.

E não há orçamento quer para a digitalização dos arquivos, quer para o tratamento do lixo, porque se tem preferido a guerra ao diálogo, com todos os custos que tal acarreta.

Deve ser horrível ser enterrado vivo por uma tonelada de lixo, a não ser que encaremos a tragédia como uma vacinação garantida contra os maus odores do inferno.

20/02/2018

Numa atoarda infeliz, a Ordem dos Médicos em Portugal posicionou-se contra as licenciaturas no ramo da Medicina Tradicional Chinesa, vulgo Acupunctura. Foi com assombro que li que «A OM acusou o Governo de ameaçar a saúde dos portugueses validando cientificamente práticas tradicionais chinesas através de uma licenciatura e admite avançar para “formas inéditas” de mostrar o descontentamento dos médicos. Para o bastonário, Miguel Guimarães, a criação de um ciclo de estudos com formação de quatro anos “em práticas que não têm base científica constitui um perigo para a saúde e para as finanças dos portugueses!”».

Ora, a minha experiência leva-me a dizer o contrário, quiseram os médicos da “medicina científica” espoliar-me enquanto na acupunctura encontrei um modo alternativo de com eficácia resolver os meus problemas. Passo a contar.

Em 2008, depois de uma gravidez, a minha mulher ficou com o “ombro congelado”, havia perdido a mobilidade por calcificação. A única solução dos médicos convencionais era levá-la à serra, operação invasiva e de resultados incertos, para além do preço bruto da intervenção. Optámos pela acupunctura. Em doze sessões a calcificação “liquidificou”. Cem por cento de eficácia para um terço do custo.

Resolvi fazer doze sessões, para regulação. Só fiz oito porque fui orientar um curso em Madagáscar, mas assisti ao seguinte: a minha parceira de quarto nas sessões era uma garota de doze anos que experimentou a acupunctura por desespero: tinha um cancro numa víscera, não lembro onde. Na última sessão a que fui, havia festa e corria o champanhe. Os pais e a terapeuta comemoravam que o cancro da miúda tinha reduzido em dois terços. Se não tivesse visto não teria acreditado, mas fui testemunha. E bebi o champanhe.

Há três anos uma filha minha fracturou num treino de ginástica um ossinho do joelho. Fomos à clínica privada melhor equipada em Maputo. Fez uma radiografia e o médico não detectou nada, disse que era uma inflamação e enviou-a para casa com umas pomadas e uns comprimidos para as dores. Dois dias depois eu tinha de descer com a miúda ao colo os nove andares do meu prédio (o elevador estava avariado) e voltámos lá. O médico voltou a não encontrar nada na radiografia, e sentenciou, Ela tem de fazer um TAC. Ok, quanto custa? Mil dólares. Arregalei os olhos e perguntei: O dr. tem consciência de que com esse dinheiro vou fazer um TAC a Lisboa? Lamento, mas é o preço. Passou-me pela cabeça ir consultar primeiro um acupunctor.

Meia hora depois o terapeuta chinês segurava a radiografia e diagnosticava, apontando, Tem uma fractura, aqui… E, agora, precisa de gesso? Nada. Como vamos então fazer? Traz a menina duas vezes por semana, e faremos doze sessões. E depois não vai precisar de fisioterapia? Nada. Havia um precedente, confiámos. E um mês e meio depois a miúda andava, dois meses e meio depois voltou para a ginástica. E em vez de dois mil dólares no total gastámos duzentos dólares por tudo.

O ano passado a minha mulher escapou de ir à faca, para tirar a vesícula, usando de novo a acupunctura.

O ideal será cruzar as duas medicinas. A acupunctura não faz milagres, não é panaceia para tudo mas funciona – e ao nível preventivo aí será imbatível.

22 Fev 2018

Mau tempo no canil

12/02/2018

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma entrevista televisiva vi o Júlio Pomar e o Jorge Palma, lado a lado, divagando sobre a vida e a arte. E às tantas o Jorge Palma fala da criação de uma composição qualquer e abriu-se um fosso entre os dois, advertindo o pintor: «Meu caro, nós não criamos nada, nós recebemos…».
Lendo o Da Cegueira dos Pintores (Documenta, 2014), de Pomar, cujo título armadilha de imediato a hipótese da sua ser uma arte retiniana, compreende-se porquê:
«Dotado de pouca vontade, deixo-me fazer pelo quadro, e sofro frequentemente as exigências das pequenas coisas insidiosas que procuram impor-se a todo o custo.
Deixar fazer, trabalho invisível. Mas a obra, por natureza, dá ao visível o que lhe pertence. Na fruição desse visível, o pôr a nu, tornado utilização, torna-se também ele, obra. Obra que vive da tensão entre o que é conhecido e o que acaba de ser realizado e lhe escapa».
Assim, quando se abandona à lavra da matéria, embora o que seja próprio do pintor seja ver, acontece-lhe que acaba por restituir ao visível mais do que foi perdido – afinal, uma das condições da arte.
O espantoso é que as frases pulsem e se enfeixem neste livro como «uma energia em expansão», dotadas duma clareza, de um ritmo e riqueza imagética superiores à de muitos escritores. No livro demonstra-se que é Júlio Pomar um dos melhores aparos em Portugal, não há nele palavreado mas polpa, sangue, caroço e morfologia, e a ductilidade de espírito do pintor encarna as palavras no fito de as desviar de qualquer talhe frívolo. Exactamente porque o autor se abandonou à “lavra da matéria” (neste caso verbal), a palavra é «um utensílio que faz corpo com ele».
Admira que a dado momento escreva «Quando uma forma nos surpreende como se acabasse de surgir, não é a forma da forma que está na origem desse brilho, é o seu movimento, e este também não saiu, salvo em parte muito pequena, do movimento que é descrito, mas do gesto que acaba de o inscrever», para precisar duas páginas a seguir «Bacon esvazia o acto de pintar, como quem esvazia um peixe ou uma peça de caça. A sua violência amarra-o ao presente, a sua rejeição do narrativo, da discursividade literária, esvazia imediatamente qualquer ilusão de fazer da travessia dos espelhos, uma manobra de diversão»?
Também para Bacon o que importava não era o deleite mas sim o sentido da finalidade, a que ele chamava a bruta realidade dos factos e por isso nele não se interpunha um centímetro entre o que ele era e a sua obra.
Dois pintores que buscam uma imagem verdadeira que não ceda às “heteronomias” do real, a um tal ponto que Pomar cita Picasso: «Se te acontecer fazeres alguma coisa que te agrade logo, apaga».

(13/01/2018)

As democracias apresentam-se de saúde depauperada. Numa época frenética, em que o fb e o twitter substituíram a opinião pública, neste cenário em que já nada se projecta nem se imagina – destituídos de novas configurações (políticas, mitológicas) -, apenas se reage. Ou seja, o espaço vital contrai-se.
Natural que à medida que o homem se sinta acossado, controlado, domesticado, tenda a buscar situações de conflito e a guerra porque esta, intuiu bem Caillois, eclode como uma ruptura dos tabus. A guerra é a face negra da festa, a sua forma sinistra – porém aviva a ilusão de que se dilatou o espaço vital.
Cumpriu-se, de novo, o Carnaval do Brasil. A direita e a esquerda fizeram uma trégua e rebolaram em comunhão as “bundas”. Veja-se: eles não perdem a primeira oportunidade para fazerem uma coisa que lhes agrada. A Veja desta semana chamava-lhe: A Ciência da Felicidade. Ou da avestruz?
Num país de ilícitos e de esquemas, no qual é difícil achar a quem não enodoe a malha da corrupção, o evitamento do conflito aberto será mais prolongado, embora como dura há demasiado tempo a ruptura dos tabus (o Brasil será hoje o exemplo duma sociedade sem vergonha) uma tensão lateje. Qual será a gota de água para uma guerra declarada, a Grande Purga?
Que eu não seja profeta, mas entretanto pode a língua enlouquecer de todo porque os idiomas também apodrecem e enlouquecem quando se instala a disjunção entre a realidade e o que elas denominam.
O peixe já está estripado mas ninguém quer ver o fedor, antes a mentira que tal sorte, ou seja, a língua já começou a enlouquecer. Um famigerado “Bloco Porão do DOPS” – numa referência às salas onde milhares de brasileiros foram torturados durante a ditadura militar – queria sambar celebrando a ditadura e a censura. A justiça é que os travou. E explica-se uma das responsáveis pelo Bloco, Stefanny Papaiano: «A gente reconhece que houve uma repressão, mas a gente não reconhece a ditadura.» Eis a semântica atirada às urtigas.
Um exemplo da loucura instalada é o esquema de cooperação que me contaram esta semana, o qual envolveria artistas plásticos moçambicanos e poetas/escritores brasileiros.
Pediram a um amigo meu que ilustrasse um poema e pagaram-lhe cem dólares. Era o soneto de um amador. Telefonou-me a perguntar quem seria o ilustre poeta. Eu desconhecia, investigámos. Era um poeta ceguinho (ah Homero, tens culpa de tudo!), falecido há um lustro, xadrezista e campeão distrital, e que em anos bissextos escrevia sonetos nado-mortos que lia nas sociedades recreativas da sua rua. Para ilustrar “a sumidade” chamaram um dos melhores artistas moçambicanos.
Faz sentido? Faz se suspeitarmos que o morto não reivindicará a sua parte dos direitos, a qual reverterá para alguém da organização. Pois, incautamente, uma instituição patrocinou o projecto e a sua inexistência de critérios é afinal uma adição irrelevante ao magma de heteronomias em que a cultura naufraga, exactamente porque a palavra já não faz corpo com quem a profere.
Imposturas em flor.

20 Fev 2018

Duas fábulas sobre lembrar e esquecer

03/02/2018

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calor vara o corpo, goteja pelas costas. Bebo uma caneca em dois tragos e peço outra.

Na mesa em frente à minha uma ruiva magra como um galgo sofre a fustigação de uma negra de grande envergadura, que lhe quer mostrar como fala bem o inglês e lhe despeja à fraca figura parágrafos sobre parágrafos, sem tomar o fôlego. Para a outra aquele ímpeto é um verdadeiro apedrejamento e equilibra-se como pode, cilindrada. Conheceram-se pela Net e é a primeira vez que se encontram. A ruiva chegou de Joanesburgo, veio visitar a amiga. A moçambicana decidiu-se a tomar a ruiva como cunhada e martela-a com o extenso rol das qualidades dos irmãos. Numa pressão que a paralisa. Ao fim de quarenta minutos a negra, faz-lhe um reparo: Mas estamos aqui há uma hora e ainda não sei nada de ti.

A ruiva balbucia qualquer coisa, timidamente. Antes de acabar a terceira frase a outra atalha: Deixa lá, o melhor é irmos para casa, temos de preparar o teu quarto. Mas primeiro deixa-me fazer uma oração pela nossa amizade. Uma oração? – pergunta a pobre, desconcertada. Uma oração. Nós somos muito religiosos. Não te importas? Não… – gagueja a ruiva. Óptimo…

Mete as mãos em prece e abre a torneira: Oh Lord, agradeço-te por nos teres trazido esta irmã, por nos brindares com a sua amizade como o maná no deserto, e que, oh Lord, ela encontre no nosso lar o seu refúgio e a inspiração para superar as provações que a vida lhe dará, mas, Oh Lord, sê suave e benevolente com ela, e com o meu irmão Jacques que alimenta muitas esperanças nesta amizade, e Oh Lord, não tragas tormentas onde os caminhos são de flores para colher… Oh Lord faz com que a Jessica nunca mais se esqueça de nós…

A oração prossegue infindável, por dez, quinze minutos. A Jessica está um feixe de vergonha, quer já esquecer os «oh Lord» que a amiga percute, a triste ideia de ter vindo. Quando a amiga acaba, salta da cadeira no mesmo lance e arrasta-a. Só lhe falta pôr a coleira.

Uma das empregadas está siderada. Uma miúda dos seus vinte anos, com tudo intacto. Entreolhamo-nos, ela ri-se: Que bom, ainda haver pessoas assim. Bom, teríamos de saber mais qualquer coisinha, pode ser muito boa na oração e ser uma grande, grande, pecadora…- minimizo. Não… brinca, vê-se que é uma cristã… E isso tem uma grande importância? Para mim, sim – diz. Então qual é a sua igreja… A Igreja Universal – responde-me. Ah, uma vez assisti a um dos vossos cultos… Onde? No Cinema África, está a ver ao tempo… Então está cá há muito tempo. Eu, vivo cá há treze anos… Não me diga que agora vou ver sempre esta cara-linda… A cara-linda é comigo? – insisto, surpreso. Claro. Sai-me de jacto: Mas você julga que não sei o que é uma ruína? Retorque: Cada idade tem a sua beleza…

Já sabe tudo sobre o comércio de Deus. Não me hei-de esquecer de voltar.

05/02/2018

Um fox terrier com três patas. O Tripé. Mordeu-me duas vezes na bochecha esquerda. A de baixo, entenda-se. Lembro-me porque era o cão do Spencer, um cabo-verdiano que era um diabrete com a bola. O talhante Dias vaticinou, Este rapaz está destinado ao Benfica.

Aos catorze redobrou-se a aliança: o Spencer entrou no Benfica. Foi uma festa no bairro e abriu-se o champanhe.

Lembro-me que o pai do Adriano era embarcadiço e a mãe – uma mulata com dengue – começou a ter uns casos. Constava. Tudo se abafava, à mãe da futura estrela do Benfica perdoava-se tudo.

Lembro-me da primeira vez que nos zangámos. O Victor Hugo, my best friend, desentendeu-se com ele e o Spencer deu-lhe um empurrão que o fez cair desamparado, partindo o braço.

Lembro-me que no instante em que o reencontrámos, no bar do cinema, há sete anos que não falávamos.

O Victor Hugo cochilava ao meu lado com os diálogos rebarbativos do Ingmar Bergman. Ao intervalo quis dar de frosque. Fomos ao bar esgrimir argumentos. Foi aí que o encontrámos.

Jogava no Braga, no Benfica fora barrado pelo Chalana e mudara-se para o norte. Tivera duas épocas de vulto, mas agora estava lesionado. Tornou-se evidente que teria de rever o filme noutra ocasião.

Arrastou-nos para uma discoteca, em frente à Lisnave. Aí passámos a pente fino as recordações comuns, decilitro a decilitro. Com um senão que foi espalhando as metástases: as pequenas incidências, os ângulos de vista sobre os episódios vividos em comum dividiam-nos em tudo. Enfim, tudo quanto marcara o Spencer, não nos causara mossa, impressão, não recordávamos, e vice-versa. Vivêramos duas vidas paralelas e instalava-se o nevoeiro. Ele, pelo seu lado, não se lembrava do “acidente” em que partira o braço ao Victor Hugo, «não me lembro, juro…», e emborcava o seu quinto whisky. Tínhamo-nos afastado tanto? E estávamos a caminho da segunda garrafa de whisky.

O Adriano, mandou vir outra a garrafa, que ele pagaria, pois estávamos tesos. Eram os 500 contos que ele se gabara de ganhar contra os 10 do Victor Hugo na Lisnave salvaguardavam-nos de quaisquer hesitações. Só que ele insistiu em continuar a desfilar as suas lembranças e nós a disfarçarmos as lacunas com um olho na miúda da pista.

De repente levantou-se um burburinho na porta e o Spencer julga reconhecer a voz de um patrício e foi espreitar a confusão. Nós, aliviados, comentávamos o desacerto do reencontro. Bebemos mais meia garrafa, antes de começarmos a suspeitar que ele não voltava. Mais tesos que o Tripé, e com oito contos de despesas.

Um ano depois, a sair de casa, reencontro-o a estacionar o Mustang à entrada do prédio da mãe. Dou-lhe um abraço, chamo-lhe sacaninha e pico-o pela «banhada». Ele ouve a queixa, mede a situação, saboreia os pormenores e sentencia, secamente, Oh, pá, não me lembro de nada, juro!

8 Fev 2018

Descida aos infernos

1

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]egundo o dramaturgo ateniense Agatão, o único poder negado aos deuses é o de desfazerem o passado. Isto, coitados, são os deuses gregos. De outro expediente, insusceptivelmente eficaz, os políticos moçambicanos que fazem e desfazem o passado, à sua medida e ambição. O seu poder (é a crença instalada) sustenta-se no desiderato de apagar a memória.

Tive um jantar com amigos. Alguns trabalharam em arquivos e outros fazem investigação e dependem da frequência dos arquivos. A conclusão é unânime: em Moçambique os arquivos estão mortos, arrasados por um banimento infindável.

Começa pela desorganização voluntária dos serviços, no fito de servir interesses dos funcionários. Por exemplo, se os dados estatísticos mostram que naquela biblioteca ou arquivo há uma maior solicitação de determinadas publicações, de xis temas e eventos, então rapidamente desaparecem essas publicações e as páginas referenciais mais requeridas (arrancadas sem pejo), de modo a que posteriormente possam ser solicitadas “particularmente”, contra o pagamento de uma quantia.

Os primeiros funcionários do Arquivo Histórico rasgavam os jornais para embrulharem o pão e o mata-bicho – delatado com vergonha pela primeira directora do Arquivo. Hoje, metade das colecções de todas as publicações foi espoliada, destruída, despedaçada. Não há modo de empreender qualquer investigação séria com balizas cronológicas: as faltas, omissões e os hiatos serão fatais. Dois terços dos livros da Biblioteca Nacional foram vendidos na rua, em duas décadas de desvios para as bancas de rua. A única colecção nacional provavelmente incólume será a do Banco de Moçambique, fechada ao público. Um dos comensais contou ter orientado uma formação para bibliotecários e arquivistas e como sete dos nove formandos escolhidos pela comunidade eram analfabetos.

A sanha de vender os livros ao desbarato ou de se desfazerem do “papel” começou depois da independência, no gesto de se deitar para o lixo os arquivos das Conservatórias, como as pastas com as certidões de nascimento, “porque já não eram necessárias!”, mas estes primeiros actos de irresponsabilidade, ignorância e inconsciência, volveram depois actos de amputação voluntária ao sabor da conveniência política e estenderam-se a todos os domínios. Os arquivos de cinema não estão catalogados – ou seja: não existem -, os arquivos da televisão pública foram literalmente apagados, etc., etc.

A última, contada ao jantar: há duas semanas um dos convivas quis consultar vários números da revista Tempo – um baluarte da comunicação em Moçambique, antes e após a independência – e respondeu-lhe o funcionário da instituição: o arquivo da revista Tempo foi “confiscado pela Presidência”.

A tentar adivinhar, sopesar, esmiuçar o que signifique tal “confiscação” bebemos mais duas garrafas à mesa – talvez em luto.

Até que alguém deixou cair:

– Havia um apagamento deliberado da memória que envolvesse os portugueses e agora impõe-se outro, eles não querem que se recorde que hoje os grandes defensores do capitalismo mais cru e selvagem eram os ortodoxos líderes socialistas de antigamente…

Réplica imediata de outro dos comensais, erguendo o copo numa saúde:

– Ah, menos mal, se afinal é um gesto de decoro…

– É o decoro de A Grande Farra… – atira um terceiro.

 

2

Ao arrepio do que se passa em Moçambique, a norte o desnorte ecoa o ditado apocalíptico de Baudrillard: «Hoje o meio mais seguro para neutralizar a alguém não é saber tudo sobre ele, mas sim dar-lhe os meios para ele saber tudo sobre tudo. Já não é necessária a repressão e o controlo, substituído com vantagem pela saturação da informação e da comunicação, porque o consumidor está encadeado pelo vício da pantalha. De forma mais segura será o vulgo paralisado com o excesso de informação sobre tudo (e sobre si mesmo), do que privando-o de informação». Eis o lado negro e obsceno da avalancha mediática que tem, contudo, outras virtualidades e recortes menos sombrios até porque na verdade às imagens de um espelho ninguém as consegue penhorar ou confiscar.

3

Morreu esta semana o poeta chileno Nicanor Parra, aos cento e três anos. Poeta e matemático, posicionou-se com Antipoemas (1955) como o anti-Neruda, enveredando por uma poesia discursiva e narrativa e que evita a metáfora.

Cheguei ao poeta chileno por causa de uma dedicatória de Fernando Assis Pacheco, que lhe chamava «meu mestre».

Nicanor – irmão da cantora Violeta Parra e do artista de circo Óscar Parra, conhecido como el Tony Canarito – foi Prémio Cervantes de 2011.

Dele fiz a tradução de dúzia e meia de poemas, aqui deixo a sua VIAGEM PELO INFERNO:

 

Numa sela de montar /fiz uma viagem pelo Inferno. //No primeiro círculo vi umas figuras/ placidamente recostadas/ a uns sacos de trigo.// No segundo círculo borboleteavam homens em bicicleta, / à rasca, sem saber onde apear-se/ – pois estavam bravas as chamas!// No terceiro círculo reparei / numa só figura humana/ que parecia hermafrodita.// Era criatura sarmentosa/ e dava de comer aos corvos. //Trotando e galopando queimei/ um intervalo de várias horas/ até ter chegado a uma cabana/ no interior de um bosque/ onde vivia uma bruxa. // Sacrista do cão,/ foi por um triz! // Já no círculo número quatro/ topei um ancião de longas barbas,/ calvo como um sandeu/ que montava um pequeno barco / no interior de uma garrafa. / Que afável o seu olhar! // No círculo número cinco vi / uns jovens estudantes jogando futebol / araucano com uma bola de trapos. / Fazia um frio de rachar. // Tive de passar a noite em claro / num cemitério, encostado/ a uma tumba / para não morrer de frio.// No dia seguinte continuei a minha viagem por uns cerros/ e vi pela primeira vez os esqueletos/ das árvores incendiadas por turistas. // Só restavam dois círculos./ No primeiro lá estava eu / sentado a uma mesa negra. / Lambuzava-me com um passarinho/ e a minha única companhia/ era um candeeiro a petróleo.// No círculo número sete não vi/ absolutamente nada, só me chegaram ruídos/ estranhos e uns risos espantosos/ enleados nuns miados, suspiros/ profundos, que perfuravam a alma.

1 Fev 2018

Esvaziar e Recomeçar

20/01/18

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]i na tv a viatura capotada no Paris-Dakar e lembrei-me de vos contar: como todos os estetas, em serpenteante caravana, sempre me desejei no deserto. Em miúdo. Quando o atravessei finalmente compreendi que não é incomum desejarmos muitas coisas idiotas.

Quando parámos no acampamento da tribo a quem pagámos escolta (para evitar o risco de nos assaltarem) subi uma duna na direcção contrária das tendas para urinar na encosta descendente.

E metia o peru para fora – como se chama no Brasil à minha agastada salsicha – quando o meu pé encalhou nuns dedos de uma mão feminina, de corpo soterrado.

Foram cinco minutos de calafrios, qual seria a atitude correcta?

Voltando a subir a duna, avaliei que nos circundavam quatrocentos quilómetros de areia escaldante em todas as direcções e interiorizei que estava de passagem e que destapar o caso talvez não me fosse vantajoso.

A cobardia não será um posto, mas a estupidez de protestar a nu contra kalashnikovs e jambias é igualmente um dom que não convém despertar. Desde aí que me interrogo sobre o que teria mudado na minha vida se eu tivesse feito alarde ou em que medida aquele silêncio ainda me cobra.

Se na altura (em 97) eu tivesse um telemóvel que fotografasse, com essa prova talvez tivesse agido assim que chegasse à cidade.

Ali entre cinquenta beduínos armados, duas dúzias de camelos, seis tendas, uma caligrafia de roupagens ao vento, e vinte turistas atarantados por terem de tomar chá com “indígenas” curtidos e de dentes verdes (por causa do qat) resguardei-me.

O chá soube-me como nunca.

À noite, chegados ao hotel, em Marib (perto das ruínas da cidade de onde era originária a Rainha de Saba), soubemos que numa “expedição” paralela à nossa e noutra tribo, haviam degolado um alemão que se recusara a entrar na tenda para se sentar frente a frente com os anfitriões.

Fui para o quarto, enchi de água a banheira, enfiei-me no caldo e refugiei-me no livrinho do poeta franco-libanês Georges Schehadé e sobretudo nesta passagem, que repetia como se fosse um mantra: «o barulho é eterno quando lhe tocamos, quando não lhe tocamos transforma-se em vento…e passa.»

E agora, na esteira de Baudelaire, contento-me em passear pelo grande deserto dos homens.

 

23/01/18

Releio (o notável) O Museu Imaginário e Malraux a páginas tantas deixa cair:

«Baudelaire não viu as obras capitais do Greco, de Miguel Ângelo, de Massacio, de Piero della Francesca, de Grunewald, de Ticiano, de Hals – nem de Goya, apesar da Galeria d’Orleans…». Não consigo evitar um estremecimento. É brutal, sendo caso para perguntar com Malraux: «Que viu ele, afinal?».

E contudo ele viu magnificamente – e sobre elas escreveu – as obras de Constantino Guys, Corot, Grandville, Daumier e de Delacroix. Foi mais ambíguo com Manet e Courbet. Mas visou quase sempre justamente, os seus escritos sobre arte ainda se lêem com agrado e proveito. E não obstante, apesar de habitar num dos pólos culturais do mundo do século XIX, Baudelaire não viu o El Greco, o Miguel Ângelo, Ticiano, ou Goya. Não viu Goya, meu Deus! Não consigo deixar de me espantar.

Hoje é tudo mais simples, com a net. Ou não será? Em 2006 apresentei o meu primeiro livro em Maputo, o de um escritor-médico Aldino Muianga. E, discorrendo sobre os “efeitos de realidade” e as diversas convenções para se ler e traduzir a realidade, contei uma anedota de Picasso. Era um momento calculado de distensão. Pelo silêncio que se seguiu e a falta de reacção à graça do episódio detectei que naquela sala (recheada de médicos, escritores e intelectuais moçambicanos) o grosso das pessoas desconhecia quem seria o Picasso. Despertei nesse balde de água fria, emigrara para um país onde o Picasso era um ilustre desconhecido. E exceptuando três ou quatro nomes da pop e do cinema estou certo de que no oriente se desconhece noventa por cento dos nomes da cultura que consideramos nucleares, experiência que aliás o poeta Guillevic corrobora ao contar que numa viagem ao extremo-oriente descobriu que ao contrário do que lhe haviam feito acreditar toda a sua vida a presença da cultura francesa nesses lugares era nula, menos que residual, e muitos intelectuais orientais com quem ele comunicou não estavam certos de saber apontar a França no mapa.

Portanto, temos aqui duas situações, primeiro o que a Baudelaire não foi dado ou permitido ver, apesar da sua curiosidade e do seu interesse pela área, e depois o que noutras zonas do planeta, dispensado o suposto universalismo euro centrista, é considerado prioritário para a formação humana e cultural, em absoluta incoincidência com o nosso repertório de valores. Ao que se junta uma condição antropológica: só vemos aquilo que compreendemos; o que nos faz estar cegos a tantas manifestações que nos são contemporâneas.

O que Baudelaire não viu não retira entretanto a propriedade e a pertinência ao quanto escreveu. A informação foi-lhe menos vital que a sua capacidade de reflexão e para escavar no que pôde ver. Ter visto Goya só confirmaria o que ele intuiu.

O que me leva a concordar com o escultor Rui Chafes: existe uma arte horizontal que investe nos inputs do exterior e que se limita a fazer remix, um jogo combinatório, a partir da informação recolhida; e uma arte vertical, que procede à espeleologia dos interiores. E precisa: «Há artistas que trabalham de dentro para fora, há artistas que trabalham de fora para dentro. Os primeiros trazem um imenso mundo dentro de si na necessidade imparável e na urgência de o trazer par fora; os outros limitam-se a recolher os elementos do mundo e a reorganizá-los à sua maneira. Só podemos oferecer o que nos cabe na mão».

Enfim, aos cinquenta e nove, constatando que por muito que vasculhe é inevitável que um qualquer (imenso) Goya me vai escapar só me resta escavar no muito que não sei, para bater em castelo essas trevas. Ou seja, esvaziar e recomeçar.

25 Jan 2018

Dos importúnios e dos meus engates

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a mesa ao lado da minha, contava um amigo a outro sobre o seu pai camponês que este lhe confidenciara no leito de morte que lastimava não ter conseguido apurar se a galinha quando põe o ovo, fica com aquilo a arder. E dizia-o, pesaroso (o pai), acentuava (o filho), com pena da galinha.

Ouvir isto a meio de um gole de cerveja atrapalha-nos, incapazes de ajuizar se cuspimos a cerveja pelo nariz, de riso ou de estupefacção. Isto sim, são problemas. Talvez, sedando a galinha diariamente, ela não sinta e a postura fique indemne, ocorre-nos.

Brinco, mas quando em 1988 fiz a minha primeira crónica, para a Elle portuguesa, ela versava sobre a maravilha que é a epidural.

Em miúdo estarreceu-me a energia, a resistência à dor, da protagonista de A Mãe da Pearl Buck: a camponesa afastou-se das companheiras que consigo se afadigavam na monda do arroz e refugiou-se num barraco para dar à luz. Quarenta minutos depois, enfaixado o bebé contra si, voltou ao trabalho para catar as ervas maninhas. Nunca mais vi esta “facilidade” narrada e pelo contrário muitas amigas me falavam do seu pavor, da violência da dor e dos traumas pós-traumáticos.

Por isso quando chegou a ocasião de ter um filho optámos pela epidural. E a experiência superou todas as espectativas. A mãe das minhas filhas mais velhas (podem perguntar-lhe, ela gosta de contar), literalmente, durante o parto recordava-me situações e piadas dos irmãos Marx, ao mesmo tempo que em sentindo as contracções fazia força para expelir o bebé. Estava eu mais atrapalhado. Eu vi, com estes que a terra há-de comer, etc.

Por isso quando ouço injúrias ou discursos catastrofistas sobre a técnica e o mundo de hoje não consigo comungar e lembro-me sempre daquele parto e doravante lembrar-me-ei deste camponês que lastimava que aquilo das galinhas fique eventualmente assado, porque ambas as coisas significam conquistas, quer de sensibilidade humana e social quer de evolução científica que são muito positivas e irrenunciáveis.

E esta consequência em extremo de um acto de sedução (não é líquido e nem sempre desejável que uma “conquista amorosa” acabe em parto) transporta-me ao tema destas últimas semanas, o de se os homens podem ou devem “importunar” as mulheres.

Desconfio que este verbo da Deneuve foi usado de forma irónica, pelo que alvitro ter-se feito uma tempestade num copo de água.

Fui sempre um péssimo importunador. Um sedutor trapalhão; da ala Woody Allen. Quem leu o meu conto O Beijo no Arame, do livro Éter (Abysmo, 2015), onde em 60 páginas discorro sobre a agónica epopeia que foi o meu primeiro beijo, imaginará que fantasiei muito. Não é verdade, quase não precisei de inventar. E só aí à décima terceira namorada (depois de desperdiçar doze) é que consegui dar o primeiro beijo. Ou melhor: que alguém mo deu, abençoada importunadora.

Na minha imprestável vidinha só caíram na minha teia de importunador as que achavam graça à minha trapalhice, apesar da trapalhice.

Aselhices à parte – e injustiças, quantas me deram tampa injustamente, oh la la! Deviam ser sujeitas ao foro criminal, as mulheres que se negam para deliberadamente praticarem actos de injustiça! – concebo o jogo da sedução como um consentimento o mais mútuo possível. O desejo não deve ser extorquido (a sê-lo que seja no sentido de uma reminiscência que em si mesmo desperta), ou, antes, não deve ser efeito de uma manipulação. Mesmo no engate, aposto na lealdade. Embora a minha técnica esteja sempre a engasgar-me, começo sempre por dizer a verdade: sou casado e amo a minha mulher.

Facto é que o bonito na valsa do desejo – enfim, o que me foi dado experimentar – é que nela se revertem, anulam e liquidificam as querelas e as quimeras do poder. Impõe-se uma simetria na relação. Foi o que exigiu a Lillith a Adão, no leito, segundo as tradições rabínicas. Porque é que havia ele de estar sempre em cima dela, numa posição dominadora? (- embora, eu não tenha a certeza de que quem está por baixo não possa, eventualmente, dominar, admitamos que sim, que na generalidade…). O labrego não entendeu nada e preferiu sonhar com uma Eva submissa.

Se se tem poder e se quer obter uma vantagem sexual por via disso, suspeito que isso não será mais do que o sintoma de uma patologia. À partida aquele coito terá o furor de um prego na neve, não existirá relação.

Contudo, suspeito de uma histeria colectiva no caso daquelas actrizes que agora anunciam que não trabalharão mais com o Woody Allen. Foram duas, no espaço de uma semana. Previno já que me dou como culpado de inúmeras perversões. Lembrando que no espaço da confissão católica em que cresci pecados são tanto aqueles que foram cometidos como os que se quedaram na intenção, sei-me culpado de uma série de abusos maiores e menores.

Uma vez virei a Dominique Sanda, nua, em cima de uma tábua de engomar e espreitei-lhe com uma lupa as trompas do Falópio. Tive essa intenção declarada. De outra vez lambi as orelhas da Debra Winger durante uma noite inteira até ela desmaiar de fadiga. A Deneuve nunca me atraiu – mas imaginei pôr dois caracóis a subir o dorso prateado da Sylvia Kristel, que estava de gatas, e muito atenta à minha leitura de Sodoma & Gomorra. Confesso que eu nem sequer me dei ao trabalho de as seduzir, embora tivesse tido essa intenção. Juro.

Tudo isto é uma trapalhada, ou como me perguntava um amigo: Fiz anos e a minha mulher não se lembrou – está a pedir que a seduza? É tudo relativo, pá, respondi-lhe. Mas em mulher que não queira ser tocada não se toca.

18 Jan 2018

A Beleza Alheia

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início do século, comprei o livro nuns saldos da Livraria Buchholz, em Lisboa: Dans une autre beauté, de Adam Zagajewski. Custou-me cinco euros.

Li-o de rajada e, encantado, falei dele aos amigos. Em vão, ninguém dava um tostão furado por outro polaco. A tolerância para os eslavos esgotava-se em três nomes: o Milosz, para alguns demasiado católico (uma barbaridade), o Herbert (que sofria de um excesso de racionalidade, outra idiotia) e a Szymborska (quase extraordinária, não fora ser mulher). E em me sendo perguntado o que acrescentaria o Zagajeswski, respondi, secamente, “bom, na verdade, tem os defeitos dos outros, além dos próprios…”.

Fiquei sozinho com a minha descoberta, na altura desconhecia que a Susan Sontag e o Brodsky escreveram maravilhas sobre o livro.

Calhou-me ir a Paris meses depois. Aí comprei o Mystique Pour Débutants, do Zagajewiski, tão delicioso como o título. Quis editá-lo na extinta Íman Edições, mas fali nas vésperas do “grande negócio” – sem desdouro embora igualmente sem glória.

Neste ínterim o prestígio do Zagajewski subiu em flecha e hoje é o santo e a senha da actual literatura polaca. Tendo finalmente saído dele uma antologia portuguesa, Sombra de Sombras, na Tinta da China (2017).

Não me vou ocupar da antologia portuguesa (oportuna e bem feita), mas antes discorrer sobre Dans une autre beauté – um sortido muito equilibrado de notas diarísticas, de livro de memórias, de caderno de pequenos ensaios e de aforismos -, cuja ideia matriz se vislumbra no poema que cito, incluído na antologia portuguesa:

NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS: Só na beleza criada pelos outros/ existe consolação, na música/ e nos poemas dos outros./ Só os outros nos podem salvar, /mesmo que a solidão tenha o sabor/ do ópio. Não são o inferno, os outros,/ se os espreitarmos de manhã, quando/ têm a testa limpa, lavada pelos sonhos./ Por isso cismo muito sobre a palavra/ que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»/ é uma traição a qualquer «tu», mas,/ em troca, um poema de alguém fielmente/ oferece uma fresca, moderada conversa.»

Contra a paranóia sartreana (“o inferno são os outros”), ao arrepio da mediocridade do regime político de tipo soviético em que cresceu e pelo qual se sentiu espoliado quer de “acessos directos à beleza criada pela tradição humanista”, quer “da evidência da verdade” – marcas de sensibilidade a que o regime contrapôs o dogma, a venalidade e a consequente corrupção do gosto em nome de uma estética sob programa -, Zagajewski viu na “beleza alheia” a evasão e um factor de contágio que excede em muito o campo da estética. Posto a beleza ser a lente que potencia a transmutação do olhar e abre, nos termos que o poeta usa, a passagem da solidão ao solidário.

Ao transformar-nos, a beleza incita a apurar as miras da Verdade enquanto nos empurra para a consciência de que vivemos num tecido de «intertextualidades», face a cuja matéria nos situamos como um elo. O resgate da beleza propende-nos a uma maior humildade (galvanizada na contemplação e no estudo) e converte-nos em membros de uma comunidade – a dos receptores da obra de arte – que mantém a consciência de que uns poemas remetem, de algum modo, para outros poemas, umas canções remetem para outras, sucedendo o mesmo na pintura: isto faz da fecundidade da tradição uma eterna fénix.

Ou seja, só quando nos convertemos em guardiões de uma tradição – a beleza alheia – é que nos alçamos a um patamar de fidelidade que, de modo a renovar-se a combustão que mudará a pele à fénix (e isto não é paradoxal mas complementar), exigirá ao autor o salutar cultivo da ironia e da crítica.

Não existe assim tradição sem crítica e ironia e vice-versa. Embora nada disto dispense o fervor: um entusiasmo que nos impele.

Eis o núcleo da «cosmovisão» zagajewskiana: uma pequena revolução ao jeito de uma conversa amena e passo a passo. E que não pode prescindir de qualquer detalhe da memória nem da tradição clássica.

Um aspecto se abre aqui, de responsabilidade social: se cada um de nós se sentisse de facto o guardião de uma beleza não própria mas alheia, talvez esse peso não nos deixasse ceder à trivialidade e nos tornássemos criaturas de outra substância moral. Isto podia de facto ser o fundamento de uma ética, creio.

O que não adivinhava e só agora me dei conta é que já tinha traduzido esta ideia em 95 numa narrativa, em As Cinzas de Maria Callas (Teorema, 97), um livro em que atesto os engulhos de ser pobre e de crescer na periferia de Lisboa antes do 25 de Abril (- tema que nos últimos anos se tornou moda).

Aí narro um encontro meu com um homem mais velho do meu bairro, peão de um obscurantíssimo passado. Aterrando nos princípios de setenta naquele rincão pobre, como um antigo emigras nas Américas, gabava-se de uma paragem na Argentina, onde teria sido amigo do Onassis, e doutra, breve, em Hollywood, tendo no entanto acabado a sua malograda carreira de actor como a voz do Mister Ed, o cavalo que falava.

Um dia o Arquimedes chamou-me ao seu anexo para, do nada, me emprestar um livro do Cesariny e me fazer ouvir ópera. Naquele tugúrio a que não faltava o bolor acontece a transmissão fatal: lega-me uma pequena urna onde jurava assentarem as cinzas de Maria Callas, das quais me tornava guardião. Eu tinha doze anos e aquela responsabilidade pesava-me e levou-me ao gesto insólito de, durante três anos, pedir aos meus pais como prendas de anos e Natal discos da Maria Callas.

Veio o 25 de Abril e poucos meses depois a Maria Callas foi cantar ao Coliseu de Lisboa. Afinal fora enganado. Mas já estava mortalmente infectado pela diferença que era, contra todo o condicionamento da minha condição social, ser um apaixonado pela ópera e pela estranheza da dicção do Cesariny. Creio que não me acomodei como fiel de armazém devido ao deslumbre face à beleza alheia.

11 Jan 2018

Napoleão em Santa Teresita

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde miúdo que guardo a sensação de que cada ano, mesmo no seu término, nos trata como se tivéssemos a irrelevância de uma mascote pronta a ser esquecida. Não vejo o que haja a comemorar. Além disso, nem todas as cicatrizes são tão espectaculares que mereçam o relato do que as produziu.

Ganhei na última década o hábito de vir passar os derradeiros dias do ano numa lagoa, sem televisão, um lugar quase sem rede telefónica, com uma net gotejante, que exaspera quem dela necessite, e onde os fogos-de-artifício têm a fulgurância dos fósforos molhados no bolso de um esquimó. Chamo a este lugar, em homenagem à minha mulher, Santa Teresita.

Bem me tentam os amigos para que com eles festeje em lugares de estardalhaço e dissipação; acabo sempre por desviar-me para esta modorra. Eles não sabem porquê, mas vou-vos contar.

Meia-noite e dez sob o alpendre. As miúdas festejam cada “fulminante” que se recorta nos céus. Eu, nas costas delas, sentado à mesa, beberico a Ermelinda e espero uma visita. Todos os anos tenho uma visita.

Tossem nas minhas costas, diligentemente encho de vinho a caneca que mantinha vazia ao meu lado e só depois olho por sobre o ombro.

É Napoleão. Diz-me, Espero que não te importes, estava entediado em Santa Helena. Não, estás à vontade, esperava por ti. Convido-o a sentar-se

Lembra-me como celebrámos o fim de ano em Moscovo. Na véspera caçámos o veado que agora nos era servido, e eu ao seu lado, com um martelo de ouro partia nozes, enquanto a pequena orquestra atacava uma polca. Um conde russo, que apostou no cavalo errado e espera futuras prebendas do imperador francês, introduzia-nos nas delícias da vodka artesanal e trouxe-nos duas irresistíveis gémeas ucranianas, com rasgados olhos fulvos, que partilharemos. São onze e trinta, faltam trinta minutos para o réveillon e Napoleão insiste em oferecer-me o comando da cidade de S. Petersburgo. Agradeci-lhe mas intuo que me quer desviar do meu béguin por Josefina (esperto como um alho, ele já entendeu) e rejeitei-lhe a oferta, contrapondo: “Tão a norte até o meu sangue tropeça no seu passo, se me queres ocupar preferia que me oferecesses Amsterdam, até porque estou comprometido com uma neta de Rembrandt”. Ele não me diz que não, replica apenas, enchendo-me o copo com mais uma dose de rum, “Deixa que o duende da bebida seja bom conselheiro!”. Passámos a noite em transe a recordar algumas noitadas em Viena de Áustria ou a discorrer sobre a cosmologia nas tatuagens dos quioquos.

É disto que os meus amigos se foram esquecendo, aturdidos pela festa, urbana e desmemoriada. Na passagem, entre os anos, podemos ter uma visita. Nem vos conto os meus réveillons com Baudelaire, Stravinsky, Pasolini e em Cuba, com Lezama Lima. Com Lezama, vi à mesa (provei-o) o menu do banquete do Satíricon, que vos descrevo, deliciado: ovos de pavão, um papa-figos muito gordo untado de gema com pimenta, vinho com mel, grão-de-bico cornudo, uma vulva de porca estéril, empadas de javali, tâmaras frescas e secas, uvas, salsichas e chouriços, um bezerro cozido, uma franga gorda, à guisa de tordo, e ovos de pata encapuchados; um porco coroado de morcela e, em redor, sangue coalhado e miúdos de ave muito bem preparados; acelga e pão integral; lombo de urso; queixo fresco preparado com vinho abafado; um caracol por pessoa; empadas de tordo recheadas de passas e nozes; marmelos eriçados de espinhos. Não foi nada mau. À vulva de porca estéril tive de desfrutá-la às escondidas para que a minha mulher não notasse.

Há três anos conversei com Picasso, que nessa noite me levou a Paris. Os sinos acetinavam o ribombar dos fogos. Já tínhamos aviado três garrafas de Bordéus, e ele mete na mesa uma bagaceira caseira. Todos os outros convivas estavam na varanda. Só nós dois quedávamos à mesa, e ele comentava, a voz já levemente pastosa, “… muita gente julga que não vendi de imediato as Demoiselles d’Avignon por apego à arte, tolos, eu sabia que os meus quadros iriam valer ouro nos leilões de arte, escuta o que te digo, daqui a setenta anos, só os quadros do Da Vinci se equipararão no valor que será alcançado pelos meus quadros nos leilões…”. “E isso, para ti, é importante?”, pergunto-lhe intrigado. “Bom, prefiro a água de uma fonte na montanha à que sai das torneiras de ouro, em Versailles, mas só o dinheiro nos pode dar a ilusão de que o nosso tempo não se gasta…E vais ver que um dia os árabes, com os petrodólares hão-de fazer museus onde quererão pôr a Renascença e as Vénus nuas a sair das águas, eles que sempre proibiram a representação do rosto e do corpo humano… Acho que o mundo enlouquecerá sem dignidade…”.

Tomei aquela por uma conversa de ébrio, até que hoje, dia 1 de Janeiro de 2018, li no Público de 31 que o quadro de Da Vinci, Salvator Mundi, um dos símbolos da arte cristã, foi rematado num leilão por trezentos e oitenta e dois milhões de dólares, tendo sido a quantia expedida pelo Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi, a capital dos Emiratos Árabes Unidos, onde abrilhantará as paredes da sucursal do Louvre.

E leio que, ao lado, os demais países árabes descobriram os museus e assaltam como gafanhotos de patas de amianto e cabeça em aricalco o mercado da arte. Não sei como a arte ocidental, a preferida por tais compradores – pelos vistos -, se compadecerá com os dogmas religiosos muçulmanos, mas é uma curiosidade a seguir com atenção. Esperemos que, como aventava Picasso, isto não seja mais um sinal do mundo estar literalmente chanfrado mas antes um indício de abertura.

Temo agora que as conversas com os meus visitantes não sejam inocentes mas proféticas e ter quebrado alguma corrente mágica quando não aceitei governar S. Petersburgo. Embora toda a noite Napoleão, afinal o criador do Louvre, tenha revelado uma grande capacidade de perdão.

4 Jan 2018

Preparar a Primavera

24/12/17

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho o fôlego curto para as compras, mais curto que a bolsa, que propende à fífia.

Mas pelo Natal, antes da minha mulher me pôr a ruminar o anátema, afasto os olhos da décima leitura de As Metamorfoses de Ovídio e tento arrastar-me com alguma fluência pelo tremeluzir das montras.

Entramos na Levi’s, onde as malhas respiram até debaixo de água, dou uma concordância silábica a uma cor, a um padrão, porém o que me atrai é reencontrar Leda e saber que um cisne esgaravata em mim para sair.

Passamos ao Massimo Dutti, as calças fazem figas para me encontrar, e ao balcão diviso Europa. Sinto-me de imediato um touro de uma coruscante fotogenia.

Segue-se a Timberland e os seus botins alinhados como vagens. O jeito voluptuoso com que a rapariga me afeiçoa a calçadeira ao calcanhar projecta-me nas delícias de Io e no secreto miolo das nuvens.

Gosto depois de sair para a aragem da rua com as mãos pejadas de sacos de papel e de, observando os gestos inábeis da minha mulher, pasmar com as alegrias da renúncia.

E é ao entrar no táxi que invariavelmente me ocorre a máxima da minha avó Judite: «ao pó tornarás, mas antes serás gaiteiro!»

27/12/17

Vou-vos contar o que me levou à leitura. Eu tinha um pai muito severo e muito competitivo. Apesar de pobre estava disposto a tudo para consolidar a formação dos filhos. Quando eu fui para o ciclo preparatório, o meu pai fez comigo um trato em relação ao “quadro de honra”. Se eu ficasse no quadro de honra no primeiro período, ele dava-me cem escudos, muito dinheirinho para a época. E sobre cada ponto que eu tivesse a mais ele acrescentava cinquenta escudos. Ainda hoje salivo a pensar nos cento e cinquenta escudos!

No primeiro período andei em velocidade de cruzeiro e tive média de catorze. Lá pude estoirar o dinheirinho, nem imagino em quê. No segundo período acelerei o movimento e tive quinze. No terceiro período entrei em economia de esforço, e pus a velocidade do relaxe e tive média de treze. Resultado, passei com média de catorze.

E vai o meu pai pôs-me de castigo os três meses. Os meus amigos passavam com dez, onze, e iam para o Algarve, eu com catorze era remetido ao quarto. Só podia sair meia hora, estritamente para ir à biblioteca buscar livros.

E nesses três meses, entre os dez e os onze, acabei por ler o D. Quixote, vários do Dickens, o Defoe, o Marc Twain, o Moby Dick, do Melville. Deste gostei tanto que nunca o devolvi. Quando me exigiam o livro eu respondia, Mandem-me prender. Teve a minha mãe de ir devolvê-lo, cheia de vergonha, seis meses depois. Para o que importa, eu estive três meses retido e só tinha como evasão os livros. Fiquei simultaneamente grato ao meu pai e incapaz de perdoar-lhe. O que aliás deu a tónica da nossa relação futura.

Eram estes os livros que lia na juvenília. Nessa altura, era ainda incipiente a indústria do livro infanto-juvenil e a nossa ambição era imitar os adultos e não as crianças. Aliás, em quarenta anos passámos de um estado em que, no dizer do Walter Benjamin, “o racionalismo via o menino como um adulto em miniatura” para uma mentalidade social dominada pela puerícia, e na qual os adultos são a obsolescência residual das indústrias culturais exclusivamente devotadas ao infanto-juvenil e subordinadas aos limites perigosos que hoje fazem da irresponsabilidade um estilo e da imaturidade um género.

Mas hoje não estamos aqui para nos queixarmos, mas para contar que a minha filha Jade, de dez anos, ficou radiante no Natal porque recebeu oito livros, e destes, até hoje, dia 27, já despachou dois. E não precisei de a meter de castigo para isso.

28/12/17

Para o Cioran toda a ideia é neutra, sendo o homem que a anima ao projectar nela o seu fogo, as suas expectativas ou demências. E chama a este processo “passar da lógica à epilepsia”.

Nunca soube viver sem ser “em epilepsia”, mesmo quando me entretenho a pensar contra mim mesmo, pois pensar assemelha-se a navegar à bolina.

E é consequente que o Cioran se compare a Macbeth, apesar, diz, de “não ter cometido qualquer crime”. Sentirá afinidades com a falta de medida a que o poderia empurrar uma Lady Macbeth (a qual, ela sim, se identifica com a ideia neutra que procura a sua encarnação), talvez por reconhecer que há vezes em que a faca nos vem à mão e ficamos atolados numa frágil condição humana, demasiado humana – consciência que também me parece ser a que matizava os estóicos.

Contudo, como escrevi num poema, já não acredito como o Cioran que um livro seja um suicídio diferido. Prefiro associá-lo a um plágio do coração. Talvez porque me tornei sensível aos argumentos de Christian Bobin que em La Lumière du Monde (um maravilhoso livro de entrevistas) defende: “o Cioran é um benfeitor e não, como dizem os seus precipitados discípulos, porque ele desencante o mundo, mas porque antes neutraliza qualquer falso encantamento. É alguém que limpa o deserto. Com uma pequena vassoura, ele recolhe todos os resíduos das fáceis consolações, e para mim é depois deste trabalho que começa a palavra verdadeira. Ele faz o trabalho do inverso; ele retira as ramagens mortas: chama-se a isto preparar a primavera”.

Preparar a primavera, uma ideia consoladora para os invernos mais agrestes.

28 Dez 2017

Do Natal e da Paixão

19/12/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]atal era o nome de um papagaio que à evocação dos três Reis Magos desatava a dizer palavrões numa catrefada de línguas e que o Al Berto conheceu numa taberna portuária em Antuérpia. Mostrou-me a anotação num caderno e uma fotografia do bicho, nessas duas semanas em que estivemos a filmar, na Quinta de Santa Catarina, em Sines, onde então vivia.

Realizava o filme o Guilherme Ismael, um amigo que fiz na Escola de Cinema, dez anos mais velho do que eu e que estivera exilado com o Al Berto em Bruxelas. Aí haviam escrito a quatro mãos um delirante exercício narrativo em que cada um deles contava a sua versão da queda livre de um pára-quedista cujo dispositivo se revelou avariado. Na câmara e na produção estava o Costa e Silva e eu, que fazia o papel de um escritor mergulhado nos seus fantasmas, todas as noites, duplicando a coisa, martelava na máquina de escrever para continuar o guião e fixar o que iríamos filmar no dia seguinte.

A intenção era anti-naturalista, com cenários pintados em telões pela pintora Lourdes Sendas. Pouco me recordo do relato – eu estava fechado no casarão a escrever uma novela e havia um segundo plano da narrativa em que os personagens da história que eu tecia regressavam de muito longe para me matar: um parricídio do autor. O Al Berto de vez em quando aparecia nos espelhos como um espírito da casa. Tinha-me alcunhado como o “De Niro das Torcatas” (o meu bairro de nascença). Mas levávamos tudo muito a peito e estivemos uns doze dias fechados no casarão a filmar aquela média-metragem.

O Guilherme trabalhou dois meses na montagem do filme no Centro Português de Cinema e lá depositou as latas quando foi chamado para trabalhar na BBC. Faltava unicamente acrescentar dez minutos de música à banda sonora – de resto a fita, com 50 m, estava pronta e seria um ovni no panorama do cinema português dessa altura. Numa mistura ousada de Straub e Syberberg e Duras (- isto, ó há ambição ou não há!), tremo só de pensar no que de tal amálgama resultaria.

Quando ele regressou no ano seguinte, para passar o Natal e gozar as suas férias e acabar o filme, deu conta que os seus colegas cineastas, num gesto canalha, tinham aberto as latas e usado a película como pontas de montagem. Nunca ouvi o Guilherme, que era negro, acusar a atitude dos colegas como um gesto de racismo, mas visto à distância era bastante plausível. E a brincadeira começou de certeza como um comentário irónico ao título que tínhamos dado ao filme: “Para demolição!”.

Foi um dos meus piores Natais, recordo eu agora, deste meu Natal a 33 graus.

21/12/2017

Mesmo quando o homem se encontra num estado de não-dualidade, num estado de enosis (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade». O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «crêem no divino/ só aqueles que o são».

Vêm-me estas notas ao ler o magnífico A Dança de Shiva/ Ensaios sobre arte e cultura índia, de Ananda K. Coomaraswamy, sobretudo o terceiro capítulo: A beleza é um estado.

Para quem vive como eu numa cidade moderna e decadente, uma cidade cariada, em que a especulação imobiliário se sobrepõe a qualquer idealizada harmonia urbanística, onde não existe o que seja uma sensibilização para ou que eduque pela arte, em que apesar de enxamearem os artistas se carece de qualquer prática crítica, campeando por isso o relativismo mais básico e ignorante; uma cidade em que os livros produzidos são maioritariamente feios, os museus escassos e a memória não se cultiva – sou impelido a transmitir aos alunos um vislumbre do legado da beleza na arte, quer promovendo discussões sobre esta categoria na arte e os seus modos de manifestação e de mutação histórica (até à sua periferização no último século), quer como pretexto para os iniciar ao Gosto e ao temperamento estético. Neste contexto, este livro funciona como um refrigério.

Apesar de associar a arte ao sagrado, na Índia, os livros sagrados são só a sua expressão temporal e a escuta do que foi revelado depende da sensibilidade do ouvinte e da sua circunstância, pelo que ao contrário do que esperaria, Coomaraswamy não sustenta uma concepção essencialista da arte e do belo –– embora admita que «a beleza está por todas as partes, esperando ser descoberta, ser recolectada pela nossa memória (no sentido sufi e no de Wordsworth): pela contemplação estética, como no amor e no conhecimento, recuperamos momentaneamente a unidade do nosso ser, libertando-nos de nossa própria identidade».

Portanto, para ele, a beleza (uma das três manifestações do sagrado) é um estado que nos reconduz ao indivisível, resultando mais do que “fazemos de” uma obra de arte do que de uma qualidade patente no objecto. A verdadeira beleza não reside simplesmente no que é objectivamente dado como beleza, sendo antes como um perfume a que só acede quem o percepciona. A beleza advém mas depende da interacção de quem a observa. E a ser assim não se esgota a sua pertinência como categoria estética, ao contrário do que tem sido alvitrado. É um estado de existência.

Outra questão, aí sim central, é a tipificação de simulacros do Belo em formas degeneradas como acontece no Kitsch e se desencadeia na paródia.

Entretanto, já o Leonardo defendia que uma figura (na pintura) é tanto mais digna de admiração quanto melhor expresse, mediante a sua acção, a paixão que a anima. Apenas a paixão nos refresca um estado de presença – a tal “embriaguez” que Nietzsche reivindicava para o impulso artístico.

Seja na Arte, seja na Beleza, seja na Política: a paixão volta a ser necessária.

26 Dez 2017

Trump e a Minha Ida à Lua

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rump anunciou que voltaremos à lua. E, como dá sempre uma no cravo e outra na ferradura, selou o anúncio assinando uma declaração, a Directiva 1 de Política Espacial, algo ambígua e na qual não se especifica nem como vai fazer-se isso, nem com que orçamento dotará o projecto nem quando está previsto que se enviem essas missões tripuladas à Lua.

O que importava era anunciar a gesta, o mito de que os EUA também governarão o céu. Isso apaziguará os críticos, pois quem quer alhear-se da grandeza?

Trump é o terceiro presidente republicano consecutivo que promete ir à lua. Os Bush, pai e filho, propuseram-se ao mesmo. Os democratas, com menos visão, nunca prometem a lua.

Não se consegue resolver o problema coreano? Viremos o foco para a lua. Se Calígula queria a lua, porque não ele?

Embora na verdade ele não queira ir à lua. E eu sei porquê. EU SEI.

Uma vez tive acesso às Clavículas de Salomão (não interessa agora como), o tratado de magia que permite pôr todos os diabretes ao nosso mando, e o que a seguir relato é ipsis verbis o que se passou:

«Quem chamou?

Asmodeu tinha dois metros de altura e uma cabeça de carneiro envolta num turbante de crepe vermelho. De resto, apresentava-se nu. Ou antes, um tufo de penas de galo e de pavão coroava o púbis, donde pendia uma larga faixa de pergaminho virgem – o seu sexo. A sua pele, encarniçada, mudava de cor, consoante o seu ânimo, como fomos verificando.

Pensei, Nunca pensei ver um diabo nu. E ele, mostrando que me lia a mente, respondeu:

Para quê encobrir o vício?

Não ousei pensar mais.

Asmodeu… tenho sérios pedidos a fazer-te. Posso formular o primeiro? Desejo que… – Asmodeu lançou-me um olhar de viés que me roeu as tripas – o sr. Asmodeu converta a minha mulher – apontei-a – na Ofélia de John Milius.

Hum… – resmungou o monstro, observando-a – esta tarefa equivale a dois pedidos…

E estendeu a mão sobre o corpo adormecido dela. Da sua palma emanou um fumo verde, espesso, que a cobriu como uma nuvem. Durante dois minutos raios e coriscos sulcaram por dentro aquela nuvem, que tornava a metamorfose invisível. Após o que, gradualmente, se dissipou.

A visão de Ofélia adormecida na cama da minha suite golpeou-me num vómito: não estava preparado para tanta beleza.

Algum reparo a fazer ao meu trabalho?

Perdoe, sim… É de alegria. Mas diga-me, ela não me vai rejeitar?

Manterá a memória durante 72 horas, depois depende de si… – informou o diabo – e não pode ser tocada nas próximas 24 horas, sob risco de se desfazer a metamorfose. Despachamos o terceiro pedido?

Quero ir com ela à lua, em lua-de-mel? – Asmodeu entreolhou-me incrédulo. Tive de me justificar:

Sou um leitor de Ariosto.

Como o mafarrico tinha prometido acordámos na Lua. Estávamos no centro de uma enorme cratera cujos bordos divisávamos pela explosão súbita de astros que a circundavam e que sobre nós ramificavam, em abóbada. Era fabulosa a profundidade de campo e a miríade de pontos luminosos. Estaríamos por dentro da pele de Deus, a sinalizar a luz exterior que lhe entra pelos poros?

Ela, envolta num roupão de seda chinês, dormia ainda. Bela e intensa como nunca. Suspirei, ciente dos maus lençóis freáticos em que andava metido. Respirava tão brandamente que decidi deixá-la acordar ao seu ritmo.

Pus-me em pé, para experimentar o solo e ambientar-me. O simples acto de esticar o braço direito para impulsionar o corpo à sua posição erecta atirou-me para quatro metros de distância. Era a falta de gravidade. Dei aos saltos duas voltas à cratera, que devia ter uns trezentos e cinquenta metros de diâmetro. Depois sentei-me, contemplando a amada, e o globo terrestre, de um azul lancinante.

Ofélia semi-abriu uma das sobrancelhas, depois a outra, lânguida, tremenda. O espaço sideral deixou-a muda, mas rapidamente sorria. Levantou-se e descobriu o seu corpo leve como nunca. Foi uma euforia.

Entregámo-nos a um jogo de gato e rato, pés furtivos e dedos enclavinhados, assobios, num ziguezaguear que soltava um bichanar inocente, inocente… e logo lúbrico. Até o brilho dos dentes constelava naquela luz espectral. Eu sentia-me um carvalho em toda a sua floração e potência.

Não demorou que nos desnudássemos. Doidos por contacto, por nos beijarmos e fundir-nos numa sutura. Contudo, o menor movimento dos músculos separava-nos. A princípio foi motivo de risada a dificuldade em manter os quadris enquadrados, e por várias vezes ela se agarrou ao meu comprido apêndice nasal, o último recurso. Depois o movimento do membro na sua vagina aliviada de adstringência constituiu uma agonia de altíssimo grau, dada a quase impossível sintonia de movimentos para o casal que esgrime pela primeira vez. Após uma hora de combate com a microgravidade o riso converteu-se em rogo: o mais leve batimento das virilhas projectava-nos a dois metros de distância e havia que recomeçar tudo.

Para além disso, fui assaltado por náuseas, pelo enjoo espacial que em terra se designa «labirintite» e resulta das informações contraditórias que o cérebro recebe dos olhos e dos órgãos vestibulares (no ouvido). Um desequilíbrio vulgar quando se aterra na Lua, soube depois.

O encantamento pusera-nos a respirar na Lua mas não nos libertara das leis da gravidade. E de repente, ao olhar o extenso firmamento e a solidão da Terra senti-me atingido por uma punhalada pascaliana e brutalmente trespassado pelo abismo de tudo o que não sabia e não podia saber. Diante do infinito espaço sideral, não consola adivinharmo-nos uma gota de orvalho na borda de um balde.

Odiava-me. Estava na Lua com a mais bela mulher, a mais disposta a resgatar a lendária lascívia de Lillith, e pensava em Pascal.»

Compreendem? Na lua o assédio pode acontecer mas é mais incerto que as promessas da carne não se tornem tumultuosas. Para quem como Trump gosta de as agarrar pelo triângulo das Bermudas ir à lua é uma tremenda perda de tempo.

14 Dez 2017

52º Retrato do soldado desconhecido

01/12/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]efendia Derrida, em 1998, que a transformação tecnológica é um dos factores essenciais da aceleração política e que um regime totalitário não sobreviveria a uma certa densidade da rede telefónica, a uma certa densidade de informação televisiva, de mails, etc. Vinte anos depois constata-se uma torção na aprendizagem dos valores e também a qualidade da democracia cede ao influxo da informação e à densidade das redes sociais. A democracia padece do seu sucesso.

Pelos motivos mais simples, o pendor dos meios de comunicação de massas para a nivelação da experiência, a) foi nublando a separação entre representação e realidade efectiva, e, dada a redundância informativa, b) instalou-se uma atmosfera de imediatez e esquecimento que favorece a ilusão apriorística, a qual tem na opinião o seu grande instrumento.

Eis o conhecimento preterido pelo espectáculo da opinião, pela flutuação das pertinências. E foi-se tornando claro que o meio é (mesmo) a mensagem, à medida que perdeu relevo a qualidade ou a substância das opiniões.

Ora, ao arrepio da ideia dominante é preciso afirmar: nunca fomos todos iguais. Esta ilusão que uma utópica e generosa cultura de esquerda propagou e o multiculturalismo cavalgou, ganhou metástases na esfera da razão comunicacional. Mas é preferível a lucidez de Bloch, ao elaborar o seu conceito de não-contemporaneidade: «Nem todos existem no mesmo presente. Estão só exteriormente, porque podem ser vistos no dia de hoje. Mas nem por isso vivem o mesmo tempo dos outros», ou seja, – a discriminação é de José Jiménez, cujos argumentos cito – há um desnível entre o tempo exterior, a época e o tempo interior.

Mesmo vivendo na mesma época, porque tiveram oportunidades cognitivas diferentes ou vêem de tradições distintas nem todos os homens vivem o mesmo tempo.

Daí que apesar do esplendor da tecnologia emergente o enxamear das opiniões, tão histericamente reclamadas, não reflicta uma pauta de valores satisfatórios.

E invertendo a lógica libertária que impulsionou as utopias da internet, hoje ao reinado da opinião, tão rés ao mundano, foi reservado o mesmo papel dos Silenciadores oficiais na corte dos imperadores bizantinos – cuja função era calar os perturbadores de toda a ordem, para que reinasse apenas o pensamento estabelecido. Hoje silencia-se com a algazarra da opinião e o hábito de postar sentenças em vez de debater argumentos ou com a arrogância performativa do ignorante.

Ainda julgo com Jerome Bruner, que só a educação pode transformar a sociedade. Porque, demonstrou ele, até as revoluções não são melhores do que as ideias que personificam e que os meios que estas mobilizam para realizar tais ideais.

É porém inescamoteável: temos de lidar com as patologias do sistema de ensino, que se demite do seu papel de transmissor de cultura humanística e cede à pressão mediática e à cultura de massas – a tal que nivela tudo por baixo.

Contemos um episódio com uma filha. No 12º ano a professora de português pediu aos alunos que escolhessem um autor português que não fosse contemplado pelo currículo escolar e redigissem um trabalho sobre ele. Passei-lhe uma dúzia de livros e ela, para minha felicidade, escolheu o Carlos de Oliveira. A surpresa veio depois: a professora não fazia ideia de quem fosse. A mesma professora que eu havia encontrado em férias com exemplares de Dan Brown e de Gonçalo Amaral nas mãos.

Fiquei boquiaberto, mas não devia. Tal como Trump esta professora era já um fruto transgénico, com código de barras, dos códigos e limites da cultura de massas, ao que se aliou o desacerto dos currículos pedagógicos.

Todorov escreveu um livro sobre esta situação: A Literatura em Perigo. Aí lembra que a missão da escola desde o Iluminismo reflectia a vocação do ser humano em aprender a pensar por si mesmo, «em lugar de se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas em seu redor». Esta missão foi desvirtuada desde que também a Escola visa alimentar o Mercado, como função primeira, vendo-se arredada dos seus corredores a formação de um pensamento crítico.

Paralelamente – o que, se não é de propósito, parece – o estudante deixou de estar em contacto directo com a literatura, remetida para um lugar periférico e substituída pela Teoria da Literatura e por métodos de análise, esquecendo-se que a literatura é, em primeiro lugar, «a encarnação de um pensamento e de uma sensibilidade» que interpretam o mundo. A literatura passou a ser não o lugar da fruição como «a ilustração dos meios necessários à sua análise». Será por isso que a professora da minha filha prefere a “literatura” que prescinde totalmente de crivo hermenêutico?

Eis a contradição: as escolas não preparam os alunos para lerem Alberto Pimenta ou Herberto Helder, ou António Franco Alexandre, ou Manuel Gusmão. Totamente desfa-sados os programas escolares e as novas sensibilidades e códigos. Esteve um poeta excelente quase a ganhar o Prémio Oceanos, o Helder Moura Pereira. Faça-se um inquérito aos professores: quantos conhecem?

Ademais, a heterogeneidade manifesta em poetas como Fernando Pessoa, Haroldo de Campos, Carlos de Oliveira, João Miguel Fernandes Jorge, ou Luís Quintais, torna difícil explicar a experiência da poesia a quem não a experimenta. Por isso a poesia perdeu leitores e os professores vão-se apegando às receitas que o mercado fornece. É o pronto-a-vestir. Embora no difícil é que esteja o ganho.

Dantes havia o pronto-a-vestir e os alfaiates, a escola agora é a primeira a admitir que o fast food alimenta da mesma maneira. É uma mentira, ou o novo hábito dos fake news, apenas o mecanismo perverso do celebrado poder das redes sociais, meras instâncias da informação em autototelia.

06/12/2017

Faço um ano de crónicas no Hoje Macau. Gramo maningue. Por isso, meu (caro) leitor, meu hipócrita, meu irmão (Baudelaire), só me resta dizer como ao smart guy que tentava quebrar a última resistência da miúda à sua sedução: «…se não nos viermos entretanto, então até à próxima!».

7 Dez 2017

Pino com contorção & ventosa

25/11/2017

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onvidaram-me para participar de um dossier em torno de Clarice Lispector, que em 10 de dezembro conhecerá uma data redonda. É impossível recusar o desafio, ainda que tenha de fazer um pino com contorção & ventosa, dada a proximidade do prazo e a obra imensa da brasileira.

Ninguém escreve como a Clarice. Veja-se o retrato de uma velha senhora ao espelho: «Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva húmida, mole assim como gengiva desdentada.»

E como todos os grandes escritores que prefiro as suas frases estão pejadas de saltos quânticos, de uma lógica que só pelo isomorfismo se explica: «Ah Ulisses, pensou ela para o cão, não te abandonei por querer, é que precisava fugir de Eduardo, antes que ele me arruinasse totalmente com sua lucidez: lucidez que iluminava de mais e crestava tudo. Ângela sabia que os tios tinham remédio contra picada de cobra: pretendia entrar em cheio na floresta espessa e verdejante, com botas altas e besuntada de remédio contra picada de mosquito. (sublinhado meu)» Da lucidez decapitadora de Eduardo passamos sem preparação para o veneno da cobra, afinal o mesmo mas noutro reino, noutro nível de realidade.

Enfim, suspeito que a Clarice que nasceu ucraniana e se considerava brasileira de gema afinal era chinesa e por isso «sua escrita se faz pelo avesso — sendo a escuta do que se

cala ou a visão do que se oculta (Yudith Rosenbaum)».

Numa coisa coincidimos. Ambos achamos que o mundo é uma coisa vasta demais e sem síntese possível, e somos (no possível) felizes nisso e na ideia de que se encontrássemos a verdade não conseguiríamos pensá-la, pois esta seria impronunciável – sem que tal visão nos atemorize.

Recordo uma discussão que tive com uma namorada, instrutora de ioga, a partir da surpresa que lhe chegou ao ter-lhe dito que tinha muitos momentos em que não pensava. Ela considerava improvável, eu, pelo contrário, estava atónito com a insistência dela de que seria impossível não pensar. E às tantas perguntei-lhe, Ouve lá, tu quando fodes pensas no quê? Não me respondeu. Nunca desejei para mim esse tipo de insónia branca.

Muitas vezes basta-me ser e esvazio o pensamento como o comboio nos carris.

Talvez eu seja aquele cavalo de que fala a Clarice: «A forma do cavalo representa o que há de melhor no ser humano. Tenho um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas quando vejo outro cavalo então o meu se expressa. Sua forma fala.»

26/11/2017

Escreveu Valéry, em carta a um amigo: “Sonho com uma poesia curta – um soneto – escrita por um visionário requintado que seria ao mesmo tempo um agradável arquitecto, um algebrista sagaz, um calculador infinito do efeito a produzir”.

Parece-me profundamente entediante esta festa da inteligência.

Creio que um algebrista deste calibre – e Valéry não desmereceu sê-lo, tal como Pessoa – só escreve e escreve e escreve – ambos deixaram demasiados quilos de papel grafado – porque deseja desesperadamente que uma página o surpreenda com o que nunca antes havia imaginado e agora brote como um alimento nunca mastigado, algo desaustinado que o transporta ao medo, ao furor ou à paixão.

28/11/2017

Está confirmado, vou reeditar o meu livro de poesia Arte Negra (Fenda, 2000), um volume de mais de duzentas páginas. Do ciclo Cemitério dos Prazeres, o 1, o 2 e o 5: «Não sei que sucesso/ obterás. Depenas uma pedra,/ obstinas-te, lavas o ar/ com um pano húmido.// Em redor a morte ceva/ as letras mudas, carcome/ um mapa de seda/ na nascente do teu rosto.// Não sei que sucesso,/ assim solícito e crédulo,/ obterás, pois a anda das imagens/ já sentou a mixórdia/ no lugar de Deus.», «Uma infância perfurada/ por zepelins. Hoje, de comando/na mão, zappas. Melancolia/ que te sufoca o amor e as veias,/ uma a uma, esvaziadas de Deus.// Mas a que outra luz/ acederia o coração se o lugar/ não foi capinado, se a treva amarinha no interior das gavinhas/ sem tu a teres capinado –/ e os anjos e os rinos/ quase extintos? Vinte unhas/ são a energia que ultima/ o escuro mate da morte.»; «Cem anos depois do cinema/ bombeias ainda o branco em páginas/ sem consolo: candelabro/ exposto ao vento e que só encheu/ de mistérios areias movediças.// És o canhoto de um anjo/ ainda que o bico, o adunco da rapina/ que nenhuma entranha desperdiça/ queira lá saber de ícones/ e esburaque o ar que nos resta!// O mal não se decompôs em frames,/ é, como o infinito, cesta que não decora/ o fortuito nome dos seus ovos./ Que importa! Escreve e respira fundo!»

29/11/2017

Com o espírito boçal e traquinas de quem roça a insanidade mental, Trump gabou os novos aviões invisíveis do exército. Os aviões invisíveis têm sobre os pepinos invisíveis o defeito da algazarra, de resto transformam igualmente a morte numa salada.

Mais felizes os dias em que o combate não era anónimo e quem morria conhecia o nome de quem o matava.

Sinto-me um monge do século XXI a compor inúteis hexâmetros latinos.

30 Nov 2017

O clitóris e outros filmes

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando usei pela primeira vez a palavra clítoris? Certamente depois duma ida ao cinema; nessa “câmara escura” é que as coisas se passavam, em sadia troca de mãos, membros, bocas e flores carnívoras.

E tendo lido num livro sobre sexologia trazido de Badajoz que estimular o clítoris fazia a diferença, isso passou a fazer parte da “conversa, clínica e técnica” que ocorria sempre depois das sessões: gostaste, tiveste orgasmo…etc., etc.

Afinal, o que é um bem cultural? Se for toda a manifestação que incide directamente na consciência crítica do público e é objecto de experiência e de participação, naquele tempo o clítoris (e a obsessão analítica dos seus efeitos) era um inexcedível bem cultural. E era público: contaminava de decência qualquer discurso, como Wilhelm Reich, de resto.

Um dia emperrei. Numa sessão de cine clube às 18h30, um filme antigo a preto e branco para nos abstrairmos de réstia de interesse pelo mesmo, e comprámos bilhete para o segundo balcão do Cine Incrível, um “albergue espanhol” afamado desde que uma jovem imitou no orgasmo os carrilhões de Mafra. Era o nosso jardim edénico.

A luz apagou-se e a primeira poalha colorida foi projectada. E emergiu aquela voz tonitruante, hipnótica. Seguiu-se uma narração que à época julgava labiríntica e actuava como um anzol. E esqueci-me do nobre desígnio a que havíamos encomendado as almas. O filme chamava-se Citizen Kane e foi o primeiro que me arrebatou, numa viagem ao desconhecido. No fim, ela desviou-me para a garagem de uma amiga mas eu só me lembro do enigmático Rosebud.

De outra vez, entrei desprevenido numa sessão da meia-noite e saí de lá vidrado por uma felina prostituta de meias verdes, a que Shirley MacLaine encarnava em Irma, la Douce. E só se atenuou quando sete anos depois fui ver Laços de Ternura e me apanhei dividido entre mãe e filha, precisamente a mesma Shirley e Debra Winger.

Tenho saudades de me apaixonar no cinema. Ou de sentir que um filme ameaça a minha vida, como quando fui ver Lawrence da Arábia com a namorada e percebi no fim que a nossa relação tinha os dias contados porque ela saíra absolutamente apardalada pelo Omar Shariff, enquanto eu me aparentava ao Peter O’Toole, uma alva magreza de vela, com cabelos fulvos.

Não sei o que procuram os jovens que se inscreveram no meu curso sobre Guionismo e que teve dia 16 a primeira aula.

Suspeito que ao analisarmos a narrativa de Táxi Drive se estejam nas tintas para a estrutura trinitária das sequências, ou lhes passe ao lado o que quero eu dizer quando defendo que a montagem de um filme de acção é mais eficaz quando a sua progressão rítmica respeita o número de ouro no desenrolar das sequências. Não estão maduros para este tipo de informação ou para assimilarem que há uma geometria secreta na fabricação das histórias.

Basta-lhes que haja miúdas e movimento, se possível um bom turning point, no fim do primeiro acto, e uma orgia barroca a marcar o clímax.

Nada de revelações “estáticas” como a que ocorre no final de The Dead, de Huston, quando um homem olha do fundo da escada a sua mulher e percebe numa troca de olhares dela com um terceiro que a sua vida é uma soma de inapercebidos actos falhados. O “débacle” de uma vida há-de parecer-lhes pouco movimentado.

Mas tudo tem uma segunda face.

Esta semana – toujours en retard dans la vie – soube em Maputo que faz precisamente um ano que morreu Alberto Seixas Santos, para quem eu escrevi três filmes de ficção.

Os equívocos pessoais e profissionais em que nos embrulhámos não retira a menor parcela à evidência de que ele me ensinou a olhar e me aguçou o pensamento analítico.

Colaborei em três projectos: em Paraíso Perdido, em O Mal, e naquele que seria o projecto da vida dele mas de que ele desistiu sem nos dar cavaco, a mim e à Maria Velho da Costa, que estivemos um ano a escavar em três episódios de hora e meia sobre o Camilo Castelo Branco – visto sob o ponto de vista do dinheiro, do amor e da escrita, guião que acabei por publicar dez anos depois sob o título Inferno.

O Paraíso Perdido, o primeiro filme integralmente de ficção de Seixas Santos, foi um caso descoroçoador de junção entre a total inexperiência (a minha), uma absoluta conjunção de azares, nabices, e falta de nervo, dele, e uma circunstância um pouco canalha que para ser esmiuçada daria um livro.

Várias más escolhas entretanto se avolumaram, de actores e técnicos. Coitado do Seixas passava tardes a mostrar álbuns do Hooper ao cameraman que reagia a “tais arrebatamentos da sensibilidade artística” com o ar perplexo de quem nos dias de folga se maravilha com a pornografia.

O Alberto não aguentava a pressão. Era excelente a discorrer “no seu território” sobre qualquer aspecto da cultura. Com tempo e vagar. Não sitiado por uma equipa e actores que rogam por respostas prontas e um planeamento eficaz que não comporte lugar para a dúvida. A sua enorme capacidade analítica não se traduzia em beat, em ímpeto criativo, sobretudo naquele ritmo e numa produção desapiedadamente industrial.

Numa sequência filmada na Biblioteca Nacional a equipa técnica chegou às seis e trinta da manhã para preparar o trabalho e esteve à espera até ao meio dia enquanto ele, de bloco na mão, riscava e tornava a riscar, tentando decidir sobre a decupagem das cenas. Isto repetiu-se em inúmeros dias, o que lhe minava a autoridade diante da equipa.

O talento dele cumpria-se no vagar, não na prontidão das boxes.

Amanhã vou olhar de frente os meus alunos e vou tentar adivinhar qual deles daqui a vinte e cinco anos escreverá uma crónica em que me recorda como um homem cheio de talento mas incapaz de estar pronto.

Um homem sem clítoris – perdido para o pique, a sensação do instante, portanto.

23 Nov 2017

Arqueologia das marés

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]andelstam (1891-1938) e Vladimir Holan (1905-1980) são um exemplo manifesto de como um dia – dizia a Zambrano – todos os vencidos são plagiados.

Seres de excepção, expelidos pelos caprichos da História e por sistemas sociais mesquinhos, cínicos e redutores, ei-los hoje inevitavelmente celebrados como figuras nucleares.

Ocorre-me agora um terceiro caso, este africano, o do sul-africano Breyten Breytenbach (1939).

Narremos rapidamente os percursos de vida dos três.

Mandelstam, educou-se fora da Rússia – em Heidelberg e na Sorbonne – e voltou à Rússia depois de uma viagem por Itália e por outros países europeus, para se ligar ao movimento poético acmeísta e publicar em 1913 a plaquete A pedra, que o catapultou imediatamente na notoriedade.

No imediato da Revolução, foi dos primeiros poetas a enveredar por temáticas sociais. Mas só publicaria o seu segundo livro, Tristia (coisas tristes), em 1922, simultaneamente em Berlim e em St. Petersburg. Ainda viveria cinco anos de relativa discrição antes dos inquisidores começarem a procurar nos seus versos o pêlo no ovo. E em 1927 declara-se frontalmente contra o regime soviético. A escrita de um poema onde zurzia em Estaline, «cujos dedos gordos parecem engordurados vermes», em 34, valeu-lhe ser desterrado para Vorónezh, e morreria 4 anos depois num campo de trabalho.   

É um dos grandes poetas do século XX mas se lhe conhecemos a obra completa foi porque a mulher, Nadezha Maldelstam, apesar da indigência a que foi exposta, lhe copiou os poemas e escondeu-os, ou decorou-os, até que os pôde publicar em Nova Iorque.

Quando ela se lamentava da perseguição de que eram objecto, ele replicava com humor: «De que te queixas, este é o único país que respeita a poesia: mata por ela. Em nenhum outro lugar ocorre isso!».

Hoje apodrecem no negrume os seus detractores ou são notas quase ilegíveis no rodapé das biografias de Mandelstam.

Em Vladimir Holan, o grande poeta checo do século XX – que só tem rival no posterior Miroslav Holub – o encontrão que lhe deu a História conhece tonalidades grotescas.

Holan começou como um poeta mallarmeniano, precioso, obscuro e de rimas rebuscadas. Teve depois uma conversão à poesia social, tornando-se na voz nacional de resistência à invasão dos nazis. Correu riscos físicos e militou no Partido Comunista e escreveu inclusive um livro alinhado, Soldados do Exército Vermelho. Paradoxalmente, em 48, o novo poder saído da guerra acusa-o de escrever de forma «obscura e decadente» e condena-o ao ostracismo. No mesmo ano, também o destino escarnece dele e nasce-lhe uma filha portadora do Síndroma de Down. É uma espécie de escalpe cósmico.

Refugia-se na ilha fluvial de Kampa, no centro de Praga, e raramente saía de casa. Só noite dentro se entregava a longas passeatas, à hora em que na cidade só se ouviria o barulho dos seus passos. Chega a Primavera de Praga e querem recuperá-lo como poeta nacional, mas esmagada a reforma do regime fica mais isolado, até à sua morte em 1980.

Hoje é o poeta nacional. E a sua poesia despojada, bruta, prosaica, dissonante, de palavras esculpidas, é inimitável, enquanto a dos seus rudes inimigos foi diluída pela espuma do tempo.

Breytten Breyttenbach (1938) é um poeta sul-africano de um quilate inigualável. Foi preso durante o regime do apartheid por ter casado com uma indiana. Oito anos. Tornou-se amigo de Mandela. Mas uns anos depois da liberdade, não tolerando a direcção que o país tomava, mudou-se para Paris. Por ocasião dos 80 anos de Mandela dirigiu-se-lhe em carta no Le Monde, uma interpelação que interrogava os rumos do país e onde, no essencial, tocava nos pontos que com Zuma se potenciaram, arrastando o país para uma degradação triste e indesejável.

Está condenado a ser postumamente o grande poeta de um país que hoje faz tudo para esquecê-lo.

Três homens que não pactuaram com a mentira e tornaram mais exacta a proposição de Walter Benjamin, segundo a qual há uma arqueologia psíquica por detrás dos fluxos humanos que corrige a história, fazendo-a retomar com o máximo esplendor aquilo que primeiramente foi recalcado pela grosseira falácia do presente. Como aventava o Freud para os sonhos, o que importa afinal é o que está latente e não o que aparece manifesto. Pois «é ao ritmo dos sonhos, dos sintomas ou dos fantasmas, é ao ritmo dos recalcamentos e dos retornos do recalcado, das latências e das crises, que o trabalho da memória, antes de mais nada, se afina» (Didi-Huberman).

No fundo, a dinâmica do presente é uma propulsão para inverter os sentidos da história e semear no seu manto os sinais da reversão. O Ying devém Yang, contra todas as aparências e a marcha linear do progresso.

Neste sentido, não fiquei surpreendido que Putin tenha aproveitado a efeméride da Revolução de Outubro para insinuar que talvez a leitura oficial da sua História esteja equivocada e haja pouco a festejar. Uma meia verdade, pois há os factos e há os símbolos e estes mantém o seu capital de promessas. O que me chocou foi ter sido ele a dizê-lo.

Porém os poetas, mesmo que momentaneamente reprimidos, reduzidos à indigência  tinham a consciência desperta. Como Mandelstam: «a poesia é um arado que reinventa o tempo de tal modo que as camadas mais profundas, o seu húmus, afloram à superfície».

Um poema breve de Holan: ENCONTRO: «Chuva no descampado… O feno húmido …/ Abertura do gás… Nuvem frita na frigideira da lua…/ Piscadelas… Carícias intermitentes… Desaparição das formas…/ Espantoso que não tenham tropeçado no carrinho de mão do cemitério…/ “Agrado-te?” – Sim, sim…/ – “Amas-me?” – Não.»

16 Nov 2017

Intervalo

07/ 11/ 2017

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, com a falta de tempo para me entregar ao “espírito do sério” faço um intervalo nas reflexões que andava a fazer para me entregar ao devaneio do instante e ao que o quotidiano me oferece, como, neste preciso momento, a visão daquela penca tão grande e adunca que ao beber a bica, antes que os lábios toquem o café, lhe fica o nariz pingue.

“Tinha o rosto branco de cólera”, leio, e eis coisa que não temo encontrar nesta cidade de acácias vermelhas. Contudo, deparei, numa banca de rua, com um volume dos diários de Mircea Eliade, Fragments d’un Journal, 1970-72, e custou-me euro e meio.

A chatice é que vou atrasar tudo, para me alimentar deste naco. E a 19 de Outubro de 72 deparo com uma entrada sobre Allan Watts.

Antes de a transcrever, conto a morte deste senhor. Dava uma aula e no meio de uma digressão esfuziante que entusiasmou os alunos, anunciou, Quando terminar este raciocínio, vou-me sentar em lótus e vou morrer. A extensa maioria considerou o anúncio mais uma charada do mestre, até pela energia física que dimanava. E, em calando-se, Allan Watts pôs-se em posição de lótus e não mais se levantou.

Narra agora Eliade:

«Acabo de ler a autobiografia de Allan Watts. Lembro-me das primeiras conferências sobre o Zen que ele fez aqui, em Chicago. Achei-as simplesmente extraordinárias. No entanto, na época, em 1956, eu não tinha captado bem a sua “mensagem”. E como prova disso conto a nossa surpresa, minha e de Christinel, quando ele nos veio visitar uma manhã e, contrapondo ao café que lhe oferecíamos, Watts nos perguntou se nós não tínhamos antes vodka…»

Este espiritualista heterodoxo, como Lao Tsé, gostava da sua pinga. São os que prefiro, os que prescindem do ascetismo e não iludem a embriaguez de ser humano.

No mesmo livro, um apontamento sobre Gide e o seu diário, de 1946: «O mundo não será salvo, a poder sê-lo, senão pelos insubmissos. Sem eles, etc.»

Hoje Gide teria necessidade de corrigir a coisa, substituindo insubmissos por insones. Só os insones não cabulariam na transformação de si porque a lâmina em que atravessam a vida não lhes deixa. Só nessa desesperada urgência dos insones antevejo uma pureza que não pode ser pervertida pelos meios.

Telefona-me a minha mulher, Como vai a revisão, pergunta. Trabalhamos na revisão de um grosso livro do arquitecto José Forjaz. Aí se reúnem palestras, dadas em todo o mundo, conferências, textos de reflexão vária, dirigidas à academia (ele foi professor em vários países e director da Faculdade de Arquitectura em Moçambique) ou a outros públicos.

Espantoso, neste tijolo de condensada sabedoria, é que raramente o Forjaz cita. Embora todo o saber aí esteja implícito e haja alusões, há um pudor em exibir o conhecimento. Atitude aliás comum aos livros de artistas. Creio que estas reflexões aparentemente mais ancoradas no empírico do que no confronto com o teórico (está lá, mas refractado) resultam do facto de que a arquitectura exige uma grande habilitação técnica e uma minúcia da ordem do fazer. Naquela as teorias são consecutivamente testadas – o que dá ao arquitecto uma visão holística. É o que acontece neste livro excelente, e gosto especialmente dos capítulos em que Forjaz relaciona a arquitectura com a medicina ou apela a uma contenção da “arquitectura espectáculo” em detrimento de um respeito para com a paisagem e o ambiente.

Uma lição que talvez fosse pertinente levar a Macau.

O Forjaz é o contrário de mim, que cito muito, e isso nem sempre é compreendido. O meu material afinal não é a pedra, o vidro, a coluna ou a abóbada, mas os livros, o pensamento alheio que interpela o meu e o nutre. Tal como o sapateiro não pode deixar de citar o formão, a cola, o martelo, o prego, o x-acto, seria desonesto eu não citar os meus materiais, aqueles que me permitem a aceleração do pensamento. Através deles penso com, e empreendo no que acredito: que a cultura seja sobretudo um acto de relação, uma plataforma em que o vivido e o lido se imbricam e irmanam.

Novo telefonema. É o Jonas. Dia catorze, a complementar a inauguração da exposição do ceramista Jonas Donato, Saudades da Lata, será lançado o livrinho que fizemos juntos, O blue da Majika (o nome popular para as violas de lata). Ele recriou quinze instrumentos musicais tradicionais e eu fiz um poema para cada um deles, tendo inventado uma Cosmologia em que no princípio era o Vento – o qual vendo como a desarmonia e a indiferença cresciam entre os homens inventou o ritmo e os instrumentos musicais para os unir e lhes alimentar a empatia.

E perderam os animais a fala porque rejeitaram a música.

Segue o poema para o Pankwé:

«DO QUE ME CONTOU UM RÉGULO EM TETE: O PANKWÉ// Até o pénis e a vulva terem caído do céu a minha mãe tapava / um buraco que ela tinha com caril de amendoim/ e o meu pai ia à caça cada vez mais intrigado/ com a forma das setas por não conhecer nada parecido/ no seu corpo que desse a vida/ enquanto o seu passo projectava no chão uma sombra.// E viviam tristes, de lágrimas e vitualhas insípidas porque se sentiam sós. // Então nesse dia choveram milhares de pénis e as vulvas. / Eram de barro mas amoleciam se manejados. /A minha mãe punha-se a cantar e ululava quando o pai se acercava./ O meu pai passou a ornamentar-se com plumas.// Louvado seja o Senhor que levou o mar aos búzios! // Aí a minha mãe criou o Pankwé. / As duas cordas são os grandes lábios/ a cabaça o útero/ – do que aí ressoa nasci eu! / Eu e mais um cento de cabritos. // E desde então o meu pai só faz o que gosta:/ sobe aos imbondeiros e abre cisternas.»

9 Nov 2017

A culpa é do Pitágoras

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando o José Rodrigues dos Santos publica um livro proliferam no FB os posts dos que “não leram e não gostaram”, dos desiludidos, e os posts com citações que se prestam a ser escarnecidos. Uma minoria revela lê-los com satisfação do conteúdo.

Contudo, os romances vendem cem mil exemplares – facto que leva o seu editor a estampar na última contracapa, a atrevida frase que se realça na foto – apesar de JRS, nas redes sociais, ser reivindicado por uma partícula de gente.

Infira-se então haver dimensões paralelas à literatura que contagiam a sua recepção.

Talvez o ar de Peter Pan que exibe o JRS – nunca envelhecendo a olhos vistos –, e a sua voz jovial de adolescente, ajudem: há lá avó que não quisesse aquele neto para si, um menino inexpugnável à morte. Traquinas para vestir fatos de astronauta e colocar chapéus de texano e dizer piadas no fecho do telejornal que vão directas ao coração do seu público, mas que como um verdadeiro queque sabe o seu lugar (- JRS é hábil nessa construção do afecto).

Acrescente-se o que Gadamer referiu quanto ao “volume” da linguagem, por oposição ao seu conteúdo proposicional ou apofântico, ou seja, na televisão, enquanto realidade física, a linguagem falada não toca nem afecta apenas o nosso sentido acústico mas também o nosso corpo na sua totalidade. Na televisão, a linguagem envolve-nos de um modo menos invasivo, é como um ligeiro toque do som na nossa pele. Daí que a televisão recupere uma “magia” atribuível à cultura oral, uma certa corrente de presença, sendo o ecrã uma fonte de mediação entre o nosso desejo de epifanias e o cepticismo que nos rodeia.

Há uma última dimensão, mais cínica. Esbocemo-la assim: juro que se houver um editor que coloque vinte mil livros de um romance meu nas livrarias com uma tarjeta que diga “3ª edição, mais de cinquenta mil livros vendidos” (e é irrelevante se é verdade ou não: o truque funciona), em mês e meio imediato esgotará os vinte mil porque é efeito dos números incitar à imitação e ninguém quererá subtrair-se à oportunidade de pertencer ao círculo que encontrou a panaceia para o seu vazio. Melhor ainda e mais rápido, se, sob pseudónimo, eu fizer publicar um artigo soez a atacar-me (método que usou o Camilo) ou se tiver muitos detractores porque um reparador sentido de justiça é acicate.

Está visto, eu mesmo devia promover os meus livros mas só tenho tido editores que confiam no poder da literatura – ingénuos! A literatura não vende. Digam-no os editores da Maria Velho da Costa, dos últimos Lobo Antunes, dos primeiros onze livros de José Saramago. O que de facto promove o livro são “dimensões ocultas” que despromovem a literatura, e quem tem culpa é o Pitágoras.

Achado um culpado passemos ao segundo aspecto

Vivo em Moçambique onde embati na mentalidade corporativa comum aos países do socialismo revolucionário; a qual se manifesta em aspectos medonhos.

Por exemplo, o mérito e a qualidade de algo nunca são mencionados como vectores de critério. O que importa é o colectivo, sobrepõe-se, e por isso nenhum indivíduo que faça algo de meritório pode esperar um elogio, um reconhecimento. A mediocridade não será igualmente objecto de alusão; porém, o caviloso é que os dois tipos de silêncio valham o mesmo. Este comportamento visa um objectivo claro: nivelar tudo. Não importa se é por baixo.

Da mesma estratégia faz uso a corrupção: se esta se estender a todos e não houver sombra de inocente quem possui legitimidade para apontar o dedo ao comportamento de um terceiro?

O sistema não autoriza que o mérito seja mencionado porque há que evidenciar que aos olhos do poder todos são iguais – ou seja, dispensáveis.         

O que gera uma perversa rede de dependências e esclarece porque há uns anos um inquérito de rádio junto a estudantes universitários sobre se consideravam mais importante acabar o curso com mérito ou ter o cartão do partido inclinava-se obscenamente para a segunda hipótese.

Ora, é extraordinário verificar que “a lógica de reconhecimento” que se instalou na sociedade de mercado dos países democráticos tem um cariz semelhante. Os números comandam e aplainam tudo, a mixórdia e os bens culturais de valor equivalem-se nos azimutes do menor quociente cultural que pauta a cultura de massas. Estranharmos que Erza Pound venda por ano em todo o território dos USA quatrocentos exemplares enquanto José Rodrigues dos Santos no nicho português vende cem mil exemplares, é inútil, pois a comunicação social colabora com esta distorção.

O mercado capitalista conseguiu transformar em fascínio e realizar com um fulgor único o que os sistemas socialistas tentaram mercê de tanto custo e sacrifício de gerações: decapitar o mérito, o trabalho intelectual, moldar na maioria a ideia de que todos os espíritos e bens se equivalem. Só o anonimato da expressão numérica conta. Que importa que o romance de JRS seja mau (caso seja, nunca li)? Não é nem o nome dele nem a literatura que estão em jogo nesta aposta.

Pelo contrário, na literatura «a forma é a satisfação de um conteúdo» (José Forjaz) que exprime precisamente aquilo que não se pode exprimir de outro modo. Entendem?

Quando abro um canal brasileiro e vejo que depois do samba, da bossa nova, duma plêiade de compositores extraordinários, o que se oferece agora como espectáculo é a música brega ficam evidentes os riscos deste triunfo do Pitágoras (brinco), do fascínio dos números, e desta paisagem de um regime cultural a “um só sabor”, como a propagada pelas indústrias culturais – as quais já vendem por música meros padrões sonoros.

É necessário uma nova espécie de crítica, uma espécie de urbanismo caosmótico que – dilucidando as linhas de nível de cada paisagem cultural e, reconhecendo-lhe as intersecções e os contágios – desenhe uma morfologia para os valores na pauta heteróclita das sociedades democráticas, sob risco de tudo sucumbir ao mais infame relativismo.

Vejamos como o sistema de ensino tem contribuído para esta hecatombe.

3 Nov 2017

Ensaios sobre a ordem e a desordem 2

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mais das vezes, pensar é emboscar-se. Emboscar-se sob bancos de corais já formatados e cujo resguardo compensa a nossa dependência externa com um aparato de coerência interna.

Aí “pensamos” para reflectir a ordem estabelecida pelo repertório a que aderimos – um partido, um determinado modo de vida, uma igreja, uma convicção escolástica: todas as respostas-pronto-a-vestir que nos tragam conforto – e não como seria desejável para explorarmos a fundo o “caos” do pensamento pensante. Ao “pensarmos de um modo assistido” inserimo-nos, certificamos que pertencemos ao sistema de interesses instalados. E embora nos galvanize a nossa satisfação, dado que os elementos de persuasão montam uma viva aparência retórica, esquecemo-nos de que um dos efeitos eficazes da ideologia é apagar o seu rasto e fazer-nos crer que estamos estanques à auto-ilusão.

Ora, demonstrou-o René Girard, nós, no mais das vezes, não queremos pensar, queremos apenas pertencer. Daí a importância da mimetização nas virtualidades do jogo social. E a boa execução da mimetização recompensa-nos com a possibilidade de sermos populares.

Eis um dos significados da palavra «popular». Outros significados florescem no mesmo tronco semântico.

Ser popular significa algo ou alguém ser muito conhecido, como designa o que seja próprio de uma classe social particular, a mais desfavorecida da organização social. Donde decorre, um terceiro sentido: a pertinência de algo “não elaborado”.

Roger Pouivet, num ensaio em que descreve a mudança das agulhas que faz a arte popular deslocar-se para os carris das artes de massas, esclarece – a arte popular deve reunir duas condições de acessibilidade: a primeira é económica, a segunda condição é cognitiva.

Uma arte popular não exige uma cultura de segundo nível, uma cultura clássica – a qual  supõe sempre uma aprendizagem de que está arredada a maior parte das pessoas.

No feliz exemplo de Pouivet, um novo registo das Variações Goldberg, de Bach, não custa mais caro que um novo cd da Celine Dion. Mas captar a diferença entre a nova interpretação da obra de Bach e os registos anteriores da mesma obra é cognitivamente inacessível à maior parte das pessoas. Eis uma razão para haver menos compradores para esta obra do que para a de Celine Dion.

Embora Bach tenha hoje mais compradores do que nunca, persistir em ouvir música clássica e tirar o pleno proveito da mesma já exige um manejo cognitivo cujo acesso só será franqueado pelos que se tornarem amadores de música e forem pacientes para estudar os vários níveis de leitura das obras – o que não se compadece com a lógica aditiva da massificação nem com a ansiedade da novidade que as indústrias culturais herdaram das vanguardas artísticas.

A arte de massas oferece-nos o que seja consumido rapidamente e não necessite do esforço da interpretação – e, por sua vez, para o consumidor, ter obnubilada a necessidade de compreender.          

Para ajudar-nos a entender a emergência sufocante da cultura de massas sobre os demais regimes culturais, será útil socorrermo-nos da tipologia estabelecida pelo alemão Hans Ulrich Gumbrecht, o qual defende que o mundo está polarizado entre as culturas do sentido e as culturas da presença.

As primeiras desenvolveram as tradições hermenêuticas e uma certa racionalidade afim da lógica e do discursivo. Já as culturas da presença são mais performáticas, associam-se ao corpo e desenvolvem um tipo de inteligência mais holística.

O que importa realçar é que Gumbrecht sintoniza com Pouivet neste diagnóstico sobre um dos principais motivos para a adesão “sem espinhas” à arte de massas:

«As finalidades da música de massas – e das artes de massas mais gerais – não são cognitivas, morais, religiosas, sociais, históricas, como o são as obras da cultura humanística. Elas são fundamentalmente afectivas» (e, neste sentido, poderão ser até terapêuticas).

O segundo grande motivo para uma adesão decapitadora associa-se a um vector básico que separa a arte popular da arte de massas.

As artes populares são de comum expressões de comunidades de que elas emanam. Há um lastro identitário. O que nos autoriza a localizar as origens do fado, do folk, da morna, do flamenco ou do sushi.

Pelo contrário, as artes de massa não reflectem as comunidades que com elas se identificam. Os U2 são ouvidos por jovens holandeses, chineses ou africanos. Talvez por causa do que adianta Pouivet:

«As obras da arte de massas dirigem-se ao comum denominador de seres que não partilham uma mesma cultura, no sentido humanístico, que não falam as mesmas línguas, que não vivem da mesma maneira. Madonna, os Rolling Stones, U2, mas também Matrix ou O Silêncio dos Inocentes, romance ou filme, interessam todos os seres humanos dos mais jovens aos mais idosos. Eles dirigem-se ao seu mais pequeno denominador comum não cultural.»

E para interessarem a todos, esclarece o francês, a estética destes produtos desenvolve aquilo que se chamam os efeitos genéricos do humano: a amizade, o medo, a alegria, o amor, o fascínio pelas máquinas, etc.

Por efeitos genéricos entenda-se o grosso modo: daí que hoje nas obras se privilegiem a estrutura sobre a linguagem e o detalhe, a funcionalidade sobre a deriva romanesca. As grandes subtilezas ficam do lado da poesia, ou do romance de cariz humanístico. Porque na verdade, mais de metade dos romances de hoje não passam do que dantes se chamavam as novelizações, ou seja, as adaptações dos filmes de êxito.

Mas como vendem e estando o esforço de classificar fora de moda –  ao arrepio de uma corrente que privilegia os matizes da «presença» – então os media tomam tudo por igual.

E isto ajuda-nos a discernir porque, a) um novo “romance” de John Grishman, ancorado ao “género” e ao cinema, conhecerá maior sempre cobertura mediática do que uma tradução, esta sim louvável, de uma obra de Arno Schmidt, b) porque a maioria expressiva dos jornais generalistas prefere tratar preferencialmente a cultura alheia do que a nossa, dando uma menor visibilidade, atenção e credibilidade ao que se produz na nossa língua. Mas não nos adiantemos.    

26 Out 2017

Ensaios sobre a ordem e a desordem 1

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ornámo-nos mais pobres, à medida que fomos ficando mais ricos – farto de martelar isto nas aulas, constato que nada é levado a sério enquanto não ganha a autoridade da letra de forma. Impõe-se-me um esforço de síntese.

Comecemos pelo mais corriqueiro exemplo: o Michael Jackson não é um génio e a sua contribuição para a música será avalizada numa nota de rodapé de um subcapítulo sobre o século xx e a extensão pop-rock da música popular. Mas motiva cinco mil vezes mais artigos nos media do que, por exemplo, John Cage, este sim, um génio.

Por que se dá esta distorção das perspectivas?

Devido às falácias próprias às indústrias culturais, que ameaçam submergir-nos.

Acentuou-se nas duas últimas décadas o recrudescimento de uma inversão na ordem simbólica dos valores culturais, impelido por dois factores que se conjugam simultaneamente: pela primeira vez na história da humanidade vivemos mergulhados num caldo comunicacional simbiótico em que se enfeixam como ingredientes farrapos de distintos regimes de cultura (a Cultura Popular, a Cultura de Massas, a Cultura Humanista/Erudita, e a Cultura Digital – fiquemo-nos por esta tipologia, para simplificar), sem que se tome em conta que esses regimes, afinal, manejam modos de produção e mesmo pautas cognitivas diversas; depois, as “indústrias culturais” (digamos, o braço armado da Cultura Popular) fizeram da globalização o seu combate e tendem a procurar algoritmos que uniformizem o que se oferecia como estrias identitárias profundas e (até certo ponto) inconvertíveis.

Ora, de entre os vários dispositivos emanados pelos diferentes regimes de cultura, só os da denominada indústria cultural lograram a capacidade para atingir e disseminar-se por todo o mercado global – e a escala desta dimensão perverte tudo.

Vou exemplificar dois aspectos observáveis na última Revista do semanário Expresso.

José Mário Silva, “obrigado” pela pressão do que seja considerado mainstream (ele que não o fizesse e seria acusado de elitista, etc.), abriu a secção dos livros com uma crítica de página e meia ao último romance de Dan Brown, para avisar afinal que o romance além de falhado é fake (- previsível, quem enriqueceu a escrever tão mal vê necessidade de escrever melhor?), razão suficiente para só lhe dar uma estrela. E não foi por avarícia, acredite-se. Na página ao lado temos no curto espaço de uma coluna a recensão de Pedro Mexia ao último Roth saído em Portugal, com direito a cinco estrelas.

A lógica que preside ao critério desta ordem dos artigos é simples: Dan Brown, que esta semana lançou o seu livro na Feira de Frankfurt, é tratado como acontecimento – e aqui a suposta qualidade literário daquele produto é uma dispensável cereja no bolo. O marketing acrescentará ao produto a notoriedade q.b. para que ele se venda, a granel. Um filme que o adopte já estará negociado, etc. O resto é sustentado pela pressão do mercado sobre o gosto e as subjectividades enquanto aos disjecta membra da cultura irá sobrepor-se o poder das “instituições” daquele. E a ordem simbólica deste novo poder fixa e enclausura, satisfaz e codifica. O que implica rituais de assimilação, de interdição e de desqualificação – mesmo que nada disto passe do domínio do implícito.   

Para exemplo desta suave lógica de desqualificação (feita de forma inconsciente para si mesmo, a jornalista – que conheço – é boa pessoa) atenhamo-nos à entrevista a António Mega Ferreira, com chamada de capa igualmente nesta última Revista.

Mega Ferreira é um prolífico escritor que tem contra ele o estigma de ser um homem público e de ter sido e continuar a ser um gestor cultural de qualidade. Num país como Portugal, de parca imaginação, nunca se admite que alguém possa fazer bem várias coisas ao mesmo tempo, o seu eclectismo soa a crime inconfessado.

Como sou um teso, só lhe li o primeiro livro de ficção, O Heliventilador de Resende, que tinha mais do que a graça de ser bem arejado, e um dos dois livros de poesia, bom o suficiente para merecer uma atenção cuidada aos seguintes, mas li-o no registo biográfico, com Macedo, Uma biografia da Infâmia, e vários livros de ensaios, nomeadamente o D. Quixote : o literato, o justiceiro e o amoroso (2006), O deserto da Europa (2007), Viagem à Literatura Europeia (2014), Vidas Instáveis (2014) ou Viagem à Literatura Sul-Americana (2017). Neste género de ensaios que cruza a história da cultura com a da literatura, não vejo quem se meça com ele em Portugal. É o nosso Simon Leys.

Contudo, poucos o lêem ou se manifestam e ele próprio se queixa de não ter leitores: «Ou me lêem pouco, ou sou um péssimo escritor.» Há evidentemente um laivo de ironia neste queixume.

Na capa, retirada a citação do contexto, é que me parece essa ambiguidade perder-se de todo. Somemos agora a uma eventual leitura literal a observação final da entrevistadora, que roça a sentença: «Provavelmente António Mega Ferreira será lembrado como o homem que fez a Expo-98», ao que o próprio replica, elegantemente: «E se as árvores continuarem a crescer como cresceram até agora ainda bem» (- e foi imprudente a jornalista, de certeza que não leu metade dos 32 livros que o intelectual Mega Ferreira tem publicados).

Com que ficamos, subliminarmente, somados o título da capa mais o desfecho da entrevista? Com um autor que parece atestar a menoridade do que escreveu.

Não creio que Mega Ferreira o merecesse, não creio que a Ana Soromenho tivesse calculado esse efeito – apenas no elementar jogo de regras fixas (a chamada de capa de uma entrevista tem de ser uma citação, etc.) em que a informação se tornou calhou assim, fazendo realçar a perversa dimensão (atenção, não falo de intenções) oculta com que o sistema pensa por nós.

O Estado, escrevia Freud, proíbe ao indivíduo a injustiça, não para aboli-la mas sim porque pretende monopolizá-la, tal como faz com o tabaco e o sal. Se substituirmos aqui o Estado pelo Mercado, teremos lenha para continuar… (à suivre)

19 Out 2017

Os crimes públicos

10/10/17

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]dianta Olivier Rolin que Michaux viajava «para expulsar de si a sua pátria, as suas amarras de cultura grega ou romana, ou germânica ou hábitos belgas».

«O que é uma civilização?», pergunta o belga a fechar Um Bárbaro na Ásia para responder com uma radicalidade que não receia o paradoxo: «Um impasse (…) Um povo devia ter vergonha de ter uma História».

Como isto acerta na mouche, ou com mais precisão, na tsé-tsé, visto da minha varanda de Maputo sobre os falhados estados africanos e a ignóbil façanha com que os “libertadores” se locupletam alarves, limpando os pés ao capacho em que converteram o seu povo.

Ser «enraizado», escarnece Rolin, «deixemos isso para as beterrabas».

Uma nação só está madura quando se esquece de si mesma. Não a que esteja alienada de si, como a nação colonizada, mas esquecida, ou seja, tão saturada de si que prefere entregar-se ao cosmopolitismo. Aí não lhe dão as febres nacionalistas, que resultam de uma identidade cultural ter caído na patologia da abstracção. E educa os seus cidadãos para serem cidadãos do mundo.

Entretanto, a confrontação no conflito catalão está assegurada e será estúpido acreditar que se vai confinar ao campo institucional e aos tribunais.

Com verdadeiro destemor (cojones ele tem) Puigdemont, no seu discurso de hoje, foi o mais longe possível na retórica da independência e sem declarar guerra aberta reiterou a falta de fidelidade ao rei (aliás, em vez da bandeira da independência imediata ergueu a da República, o que para bom entendedor…) e face à sua provocação a violência que vimos no dia do Referendo, apesar de um aparente apelo ao diálogo, vai crescer. Repare-se, primando por um cinismo exemplar, Puigdemont suspendeu a  independência para reafirmar a legitimidade desta, o que deixa sem recuo Rajoy e o rei Felipe.

Eu que fui a favor do Referente, tinha sérias dúvidas sobre a necessidade de uma suposta independência da Catalunha, porque nem tudo o que é plausível é o mais funcional. Agora é totalmente incerto o que vai acontecer.

Rajoy, que deveria aproveitar a oportunidade para alterar a Constituição e transformar a Espanha num estado federal, dando maior autonomia às nações hispânicas, não vai resistir – até para mostrar como a legalidade tem por si a força – a aplicar o artigo 155, jugulando a honra catalã.

Aí será o ponto do não retorno. E a irracionalidade vai crescer como os cogumelos.

Uma última proposta: exporte-se o Costa (por muito dinheiro) para a Catalunha. Ele negoceia, ele reconcilia.

10/10/2017

Ontem baixei vinte livros da net, de três autores de quem gosto muito: Philippe Sollers, François Cheng e Pascal Quignard. Para quem como eu vive sem boas livrarias nas imediações é um consolo. Fiquei radiante, e simultaneamente apreensivo. A facilidade com que hoje se fura o pneu que permite ao autor viver à tona de água é alarmante.

Em Moçambique não há livrarias, ou só as há de best-sellers e que carregam no preço do livro, que chega a custar meio ordenado mínimo. A única teta à mão é a net, e a pirataria campeia. É a única e verdadeira indústria cultural por estas paragens. O jovem ou lê um dos vinte e muitos livros do Mia Couto – é um exemplo – que hoje se baixam na net, ou não lê.

Ainda esta semana descobri na net um livro de que acabei de fazer um posfácio para uma segunda edição (nem sei se já saiu da tipografia), de uma ensaísta brasileira. É um livro fantástico que cruza filosofia e estética e que aborda os regimes da figuração do corpo na arte da primeira metade do século XX. Inclui-o na bibliografia obrigatória de duas disciplinas e já pus duzentas pessoas a lê-lo. Agora baixa-se, gratuitamente.

Tudo isto está errado e está certo. Do ponto de vista antropológico os desfavorecidos têm de corrigir os desequilíbrios sociais, as entropias, e às vezes os danados da terra só pelo crime se resgatam.

Como autor fico alarmado.

Há definitivamente que estabelecer-se um novo tipo de contrato social para que a rica opulência de alguns (em Inglaterra publicam-se por ano 9000 livros só do género infantil, em Moçambique 100, de todos os géneros) não degenere nesta tribulação dos direitos intelectuais.

Antes que, como diria o Xie Lingyun, o Yang na sua frescura renda o Yin exausto.

11/10/2017

“Os mortos não têm mais a palavra, ou antes, têm-na mas seca, sem a água que a faça viver. E por isso em muitas culturas se faz a libação à terra, para devolver com a humidade um pouco de palavra aos mortos”: leio numa entrevista de Geneviève Calame-Griaule sobre os Dogons.

Eram belas as tradições quando eram realmente vivas, antes de se converterem em tradicionalismos tacanhos e de uma severa esterilidade.

Preparando entretanto uma colecção de livros orientais, petisco à esquerda e à direita, e apanho esta coisa maravilhosa do Sri Aurobindo sobre as realizações espirituais: «esta assombrosa reverência pelo passado é algo desconcertante e temível! Ao fim e ao cabo, o Divino é infinito e o desdobramento da Verdade pode ser um processo infinito ou ao menos que permita o espaço para novos descobrimentos e novas afirmações, inclusive, até novos conseguimentos…». Isto é importantíssimo e convém repeti-lo: o tradicionalismo faz de Deus um coxo e dos seus atributos infinitos algo determinado com régua e esquadro. A mim que sou um ateu intermitente um tal conceito handicapado não afecta. Mas é perturbador pensar que supostos crentes abraçam com fervor e de cara lavada a hipótese de uma amputação divina, como se não se sentissem culpados por transformarem Deus num galo capão.

A aventura espiritual, que a há, aquela que nos transforma, é que não consente em tais limites. É mesmo uma questão ética.

12 Out 2017

As afinidades colectivas

23/09/17

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue árido viver a solidão quando o sujeito insiste em afirmar-se de “uma só peça” -uma poça tem pouco enredo. Outra forma muito distinta ocorre quando o sentimento avulso de estar ilhado se torna apostila e nos refazemos em arquipélago, entrosados num feixe. Tem sido essa a minha experiência do “exílio”.

Isolado do meu meio ambiente “natural”, qualquer incidente ganha as perspectivas de uma categoria que se irisa ao vento, porque o mais leve tecido de dúvidas e expectativas nos compromete, gerando uma tensão dinâmica. Desabrocha aí uma energia, dir-se-ia desaforada, que desencadeia a paisagem interior que equilibra o que nos assalta pelos poros e o olhar parecia esgotar.

Contra a cronologia dos acontecimentos ergue-se então a trama luminescente das afinidades electivas e a realidade que nos sitia evola-se num ramo, confina-se. E onde antes só jorrava a imaginação agora associa-se a memória, num ajuste novo, o mais fecundo quando a memória é ejectada pela imemorialidade arquetípica.

Sem ficarmos livres do mal, já vivemos aí num universo paralelo, obliquamente simples, isto é plural, com uma consciência em arquipélago ou em continuada transumância.

É assim que imagino “o encontro” de Pessanha com Ruben Dario (1867-1916) como um outro eu, que nele fez carne, a carne do verso reminiscente. Nunca tinha lido o sul-americano com a devida atenção e as afinidades que confessa o poeta de Clepsidra em relação ao autor de Azul… encorajou-me. Ruben Dario, é simplesmente monstruoso, volve até perdoável a saturação dos cisnes.

E várias coisas são coincidentes. Começando pelos elos familiares, pois igualmente Dario padece do sentimento de que a sua origem é um desconcerto que engendrou desvarios: “A voz do sangue, escreve, que flácida patranha romântica!” Também ele escolhe viajar cedo e parte para o Chile, reside em Costa Rica e Guatemala; mais tarde rumará a Espanha, que encantará (como Pessanha em Portugal, exultam com ele os salões e os ágapes), em França é elogiado por Victor Hugo e prende-se de amizades com Verlaine e Gautier; desembarcará nos States… e a sua liberdade vai brotando de um patriotismo que, paulatinamente, se faz universal.

Igualmente em Dario, a sintaxe do poeta não é senão a matemática de sua música. E onde quer que esteja, apesar da absoluta seriedade do seu trabalho literário, não se entrega à vida como um literato e antes bebe e fuma e não hesita em empregar palavras fortes e o seu humor é truculento, sendo um dandy que frequenta a prostituição. Se num campeia o ópio, no outro há uma feroz entrega ao vinho e ao uísque, ao ponto da calcinação. A ambos interessa sobremaneira «desacreditar a realidade», posto que carregam a sua própria realidade consigo. E pede Dario Em Prosas Profanas: «Ámame en chino, en el sonoro chino de Li-Tai-Pe». E podia não ter escrito mais do que estes dois versos: «La onda, cuando el viento canta,/ llora.», que chegava.

Experimente ler a biografia Yo, Ruben Dario, de Ian Gibson, que hoje se baixa, free, na net.

24/09/17

O problema com a Catalunha é a existência de cinquenta bandeiras que aguardam por precedência para assomarem às janelas. Catapultada a Catalunha nas nuvens da independência suceder-se-á uma marcha de imensos esqueletos até aqui escondidos nos armários e que poderão significar uma pulverização de inúmeros países europeus.

Portugal deve à Catalunha a sua independência dado a Espanha em 1640 ter preferido manter a riqueza catalã à perfídia em que o carácter luso se transformara.

Também eu intelectualmente devo muito à Catalunha. Muito do precário pensamento que consiga elaborar, a nível filosófico, estético e cosmoteândrico, devo-o às drageias que fui recebendo de Barcelona. Eugenio Trías, para a filosofia, Rafael Argullol e Xavier Rubert de Ventós para a estética, Raimon Pannikar para a antropologia das religiões, e Pere Gimferrer, Joan Brossa e Gabriel Ferrater na poesia, são minhas referências quase diárias há vinte anos. Gostaria de saber o que Trías, a par de Ortega y Gasset, o grande filósofo hispânico do século XX, pensaria desta derrocada para que o estulto autoritarismo de Mariano Rajoy, que ele toma por destemor, empurrou o país.

Já não há recuo – sou a favor do referendo catalão. Com angústia, mas só depois se avançará com legitimidade para quaisquer tipos de negociações que esclareçam a nova relação entre as duas nações ibéricas.

26/09/17

No dia em que as mulheres são autorizadas a conduzir na Arábia Saudita – meu Deus, adivinho o abuso dos polícias de trânsito que aproveitarão para exigir às mulheres que tirem o tchador para supostamente conferirem o rosto do motorista com as fotos nas cartas – leio que o rapper norte-americano B. o B quer enviar satélites para o espaço para tentar encontrar a curva da Terra.

«O artista deu início a uma campanha de GoFundMe para tentar provar cientificamente que o planeta azul é mesmo plano e descobrir a curva da Terra, pois sustenta que se o planeta tivesse a forma circular isso seria possível perceber a olho nu.

Por isso. B. o B, pretende lançar satélites no espaço para refutar o que a ciência e a tecnologia têm como provado. Para dar corpo à sua ideia necessita de 200 mil dólares – 168 mil euros ao câmbio actual – e da autorização das autoridades, refere.»

Pois se a curva das ancas de uma mulher se percebe logo a olho nu, como pode a curva da Terra, que é muito maior, não se notar de imediato? E deve ser esmagador viver com a certeza de que triliões de imagens manipuladas nos querem enganar, de que não há um cientista ou um astrónomo de confiança no mundo! E porque mentem tanto o Papa e os telescópios? A lua é chata como uma moeda!

A mim choca-me que um artista tão grande venda tão poucos cds que precise de pedir emprestado 200 000 dólares. Estou devastado!

Eu por 250 000 dólares provaria que a Terra tem a forma da popa do Elvis Presley. Só elucubra quem pode!

28 Set 2017

Três fachadas

18/09/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão se confessava há vinte e cinco anos. Estava em processo de divórcio, depois de um ano rocambolesco em que (achava ele) se portara indignamente com a mulher e a amante e os filhos, e com mais a terceira que arranjara no fito de se aliviar da pressão e do sarilho de saias em que se enfiou. Duma paixão assolapada com a amante, passara a ser uma relação a cinco na cama, ele, mais a mulher, mais a primeira amante, mais a segunda amante, mais a culpa, toda esta desordem assistida pelo fantasma que segundo Lacan existe “entre” e excita os dois travesseiros.

Foi confessar-se, sentindo-se uma nódoa, indigno, e após um relambório de meia-hora, declara o padre, “Que quer que lhe diga, acho que o senhor não tem espessura humana para pertencer à comunidade católica, aconselho-lhe uma igreja apostólica, os seus pecados são daqueles que prescrevem rapidamente e pelo menos aí com o dízimo continuado sentirá mais a fatalidade da culpa de que nitidamente precisa”.

Ele nunca soube interpretar esta reacção do padre, nem eu. Faltar-lhe-ia uma certa crueldade que dilatasse a extensão do mal, em primor do bem? Hesitávamos.

Até eu ter visto a fachada das ruínas de S. Paulo em Macau e ter entendido diante desse simulacro que as religiões nunca descolaram do oráculo, e que em todas elas o homem está sozinho com aquilo que “ouve” e com o modo como interpreta a mensagem que ouviu. Aquela fachada barroca não passa da simulação de um tímpano, embora a longa escadaria seja subida com veneração (mais que não seja museológica, turística).

Ir à igreja, um templo com miolo, púlpito e tecto, não passa de uma incubação. Como acontecia nalguns templos romanos em que se ia para a cura de uma doença e aquela era dada com o adepto a dormir tendo por almofada uma pedra de toque. Aquela que lhe permitia contactar em sonhos com quem lhe daria uma receita para o problema. Uma frase que se destacaria no seu sonho, a qual, dizia-o Heraclito, era mais um apelo à atenção dos sinais que uma prescrição.

O Matrix colocou os pontos nos is: ao contrário do que julgamos, dormimos. Só que não existe, como se supõe no filme, um único sulco – no caso, satânico – para a navegação onírica. Há sonhos que nos habilitam ao bem, no meio do aleatório e do caos mais adstringente, embora estejamos na plena “guerra dos sonhos”, de que nos fala o antropólogo Marc Augé, num livro de que gosto muito. 

19/09/17

Esta semana, no dia 22, às 18h30,terá lugar o lançamento do meu livro de poemas Anatomia Comparada dos Animais Selvagens, na Fnac, em Lisboa. Estando em Moçambique enviei um depoimento em vídeo. Onde, para arranque, me socorri de uma coisa assombrosa que descobri em Macau. E cito, esse excerto:

“Pego no missal que é a Clépsidra, na belíssima edição que dela fez o Carlos Morais José, e vou para a banheira, gesto em que imito o Jean-Paul Belmondo que passa uma parte substantiva da acção nos filmes do Godard a ler na banheira – eis o único tique de cinéfilo que me ficou.

Tamborilo com os dedos dos pés na água tépida, descontraído, julgando que poucas surpresas me estarão destinadas e ao abrir ao acaso num soneto sou golpeado pela evidência de estar frente a frente com uma estrutura fílmica. Para que não haja dúvidas, passo a decompor o soneto numa découpage fílmica.

«Desce em folhedos tenros a colina/ – Em glaucos, frouxos, tons adormecidos»: temos um travelling de recuo em plano subjectivo e é fim de tarde; «Que saram frescos, meus olhos ardidos/ Nos quais a chama do furor declina»: passámos a contracampo, para apresentar o sujeito da acção, em GP (grande-plano), e interpõe-se uma sombra no olhar dele que confirma a gradação do poente; «Oh, vem do branco, do imo da folhagem!/ Os ramos, leves, a tua mão aparte»: voltámos ao plano subjectivo mas agora o plano supõe um movimento de câmara interno para fechar em detalhe, ou seja num GP da mão, antes de voltar a câmara a incidir em quem olha. E ouve-se: «Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,/ Reflectir-te virgem a serena imagem.», havendo agora a necessidade de mantermos o GP sobre o observador porque é mais forte que o que se segue seja sugerido na expressão do olhar de quem está de fora: «Da silva doida uma haste esquiva/ Quão delicada osculou um dedo/ Com um aljôfar cor de rosa viva.» E aqui a câmara volta à mulher que desce a colina: «Ligeira a saia!/ Doce brisa impele-a!/ Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo./Alma de silfo, carne de camélia.». E a carne da camélia aqui será reflectida na nódoa de sangue da saia sobre a qual o zoom fecha.”

Nunca se sabe o que um leitor e a sua circunstância podem extrair de um poema. Principalmente se atrás da fachada de um soneto havia um cineasta.

21/09/17

VI-O, ao pé que torna bamba qualquer medida. Bebia uma beer, absorto num ensaio viscoso como crude, e ao ouvir na tv do bar aquela canção com uma letra mais estúpida do que um carrapato quis ver o rosto do grotesco. E ao meu lado, acomodado numa cadeira de chanfuta, interpunha-se O PÉ. Baloiçava. Seria em negro o pé da mulher de Hércules, esta bisarma com ar de destino ou de foz e cuja genitália presumo ser um chamariz de atritos, forrada a papel de parede? É normal que cada pé modele uma sintaxe, à semelhança da vespa que galga a pé-coxinho a parede húmida da minha imperial, mas eis-me gago ou, pior, siderado. Que conexões, que deliciosas incorrecções se poderão fazer à sua sombra! A fachada para uma futura Igreja de Santa Madalena? Pior, o sorriso é-lhe tão abrasivo como o pé é longitudinal. Traga-me duas Laurentinas!

21 Set 2017

A sombra do inimigo

10/09/2017

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sfalfado pela viagem, desde Macau, reencontro um país congestionado pelos desastres que têm na arbitrariedade dos homens a sua origem natural.

No mesmo dia, três notícias deprimentes.

Moçambique está a ser investigado por supostamente ter comprado clandestinamente, violando o disposto nas sanções da ONU, mísseis à Coreia do Norte. Primeiro, é um país que se vilipendia aquele cujo governo persiste em fazer tudo às escondidas; depois, que inimigos pode ter uma nação que não consegue sequer produzir (tendo água a rodos e terra fértil) a alface e o tomate que mete na mesa, tendo de comprá-los à vizinha África do Sul? Mísseis?

O maior inimigo do moçambicano é a sua própria sombra.

A nova lei do cinema, aguardada pelo sector há décadas, é um tiro no pé do bom senso.

Moçambique teve como uma das poucas singularidades da sua história ter apostado no cinema desde a independência, e daí que cá tivessem aterrado personalidades como Jean-Luc Godard, Jean Rouch, ou Ruy Guerra e se gerassem algumas gerações de cineastas que anualmente, mal ou bem,  iam produzindo filmes. Para além disso era um dos poucos países africanos com técnicos de cinema para poder atrair produções internacionais.

Só houve dois critérios para o delineamento desta lei carimbada contra todos os avisos da classe: o controlo dos conteúdos (isto é a censura) e o maior lucro possível e imediato à mínima visibilidade de qualquer câmara na rua. Vou caricaturar porque a realidade o mais das vezes imita a caricatura.

Para um cineasta poder ir à rua gravar o acto de compra de tomates pela protagonista, para posteriormente os lançar à cara da segunda mulher do seu marido, teve de previamente ter depositado no Instituto de Cinema um guião que foi esmiuçado por um comité de leitura (o qual averiguou se aquela cena não “feria os costumes”) e de pagar uma taxa (absurda, de alta) por filmar em espaço público. Fora o reforço dado ao poder discricionário do tal comité de leitura, tudo pareceria normal.

Só que entretanto houve greve de chapas e a vendedora dos tomates não conseguiu chegar a horas ao sítio habitual da sua venda, pelo que só há beringelas à venda – então terá de se mudar a cena e depositar o novo guião no Instituto de Cinema, pagar uma taxa (penalizadora), desta vez por se ter modificado o guião (que será reexaminado, auscultando-se se a nova cena “não fere os costumes”), acrescida pelo pagamento de uma nova taxa para se “renovar”a autorização de filmar vegetais naquela esquina. Tudo isto, supostamente, controlado por fiscais.

Num país onde o transe da burocracia reina imagine-se a agonia, o sufoco e o delírio a que se chegará, em nome da lei.   

Terceiro sinal deprimente. O relatório independente da Kroll sobre o processo das Dívidas Ocultas confirma o que já se sabia mas nunca fora declarado por uma instância internacional: para liderar as empresas e os projectos de interesse e âmbito públicos são invariavelmente escolhidos os gestores mais incapazes. A única regra é: Percebe de futebol? Vai para reitor da Universidade de Direito. A única habilitação: ter o cartão do partido. O que resulta num desbarato de tempo (de gerações), de dinheiro e energias que só se explicará à luz da hipnótica euforia do “potlach”.   

Tudo o que um país em crise profunda não precisava.

Não sei se me apetece sair à rua, uma desgraça nunca vem só, sobretudo quando o círculo é vicioso.

12/09/2017

Após uma hora de prospecção encontro a frase de Peter Sloterdijk que procurava: «Alma é aquilo que não se mediatiza» (in O Estranhamento do Mundo, Relógio d’Água, 2008, Lisboa). E busca dentro, folheando à esquerda e à direita, constato: o Sloterdijk é um verdadeiro designer da filosofia.

Será um dos filósofos actuais mais estimulantes, porém, simultaneamente, enche as frases de achados. «Aí, onde termina a história das religiões começa a história do design.»: uau! É uma tremenda frase de efeito e que faz de imediato eco em nós: eureka! Que bela citação, resulta sempre.

Foi só quando reli o livro, num dia de descontracção absoluta que me permitiu ir petiscando sem a pressão de procurar um apoio funcional para qualquer ideia, que, dando de novo com a frase, me acudiu perguntar: mas afinal as leis do design, o telos que motiva esta disciplina, não estavam já claramente presentes nas catedrais góticas? Não há até uma banda desenhada franco-belga onde as catedrais góticas se transformam em naves espaciais exactamente por causa da sua sugestão aerodinâmica? Dei comigo a suspeitar da fiabilidade da frase do Sloterdijk –  talvez mereça um exame mais atento aos seus fundamentos.

A condição básica para me libertar do fascínio da frase, que me obliterava o raciocínio, foi não andar à procura de nada, estar entregue a uma leitura deambulatória, arredia a qualquer utilidade imediata. Só nesta leitura sem tensão, dir-se-ia imotivada, é que enfrentei o livro de forma activa. Ou seja, as leituras excessivamente orientadas, dada a pressão e a ansiedade, correm o risco de volverem uma escuta com projecção. E aí alheiam-nos quer do distanciamento, quer do detalhe que faz toda a diferença no essencial.

Tome-se outro exemplo: «É característico dos místicos inverterem a tendência básica do desenvolvimento do líquido em sólido (…) os ensinamentos místicos são passíveis de serem interpretados (…) como escolas de mergulho (…)». A adesão é imediata.

Contudo, algo em mim – o ácido úrico? – resiste a esta solubilidade total.

O design na filosofia – tal como o encontramos também em Nietzsche, autor de fórmulas brilhantes – é tão fascinante como decapitador. Assemelha-se a um farol nos olhos, encadeia.

Por isso tomei sempre a atitude de ler os autores da moda depois do seu pico de unanimidade, só então lhe enxergamos os caboucos para além da momentânea alucinação colectiva. Poucos sobrevivem.

14 Set 2017