Confesso-me culpado

[dropcap]N[/dropcap]a leitura de Ernesto Sábato, por causa de um prefácio a escrever, descubro: o escritor argentino não traía a paixão mais chã pelo futebol.

Eu sempre liguei menos ao futebol (por ter sido um praticante medíocre?) e neste fim de semana esqueci-me de ver o Benfica-Porto.

Todavia, o meu desafecto prende-se mais com o que Hans Ulrich Gumbrecht explica:

«Existem dois modelos básicos de comportamento, no tempo de lazer, na sociedade burguesa, um reconhecido como “exigente” e outro como “trivial”, e esta dicotomia valorativa é acompanhada por uma outra diferenciação que, pelo menos desde o período moderno inicial, pode ser observada entre os jogos que enfatizam o corpo e os jogos que enfatizam a mente, entre o desporto e a literatura.»

Ou seja, padeço (padeci?) de snobeira quanto ao desporto. Não tenho dúvidas.

O Gumbrecht elucida nuns ensaios notáveis porque se deu a transferência da valorização pública duma orbe intelectual para a desportista; as “estéticas da presença”, performáticas, apagam mais facilmente o fosso entre o artista e o público/observador e geram uma atmosfera simbiótica, seja no desporto como na música pop/rock; os quais se usam de velhos mecanismos, como a “identificação”.
No filme Bohemian Rhapsody, sobre o cantor Freddie Mercury, há um momento que ilustra bem este ponto.

Após a morte do cantor, Bryan May, o guitarrista, conta como nasceu uma canção emblemática da banda, Radio Gaga: para intensificar essa interação com o público em que o Freddie era mestre, lembrou-se de fazer uma canção que levasse o público a co-participar na textura do refrão através das palmas. Claro, foi um êxito.

Vi também um concerto de uma cantora brasileira (não me lembro qual) no qual, aos primeiros acordes de um seu sucesso, o público desatou a cantar tão maciçamente que a artista, comovida, do princípio ao fim, limitou-se a direcionar o microfone para o público, no fito de ampliar a comunhão.

Existe apenas o transe da música, já não existe de um lado o autor/intérprete e o receptor de outro; a amplificação fez sobressair o sentimento de pertença.

No futebol é o mesmo. No Iniesta, no Messi e no Luis Suarez “projecta-se” a jogada que os fãs desejam. O futebolista? Um mero heterónimo do fã.

A paixão do fã é a de quem foi tomado pelo fanatismo próprio ao entusiasmo que, para Platão, era o abono de vida do poeta (- entretanto, desviado para as malhas da racionalidade mais ilhada), e é essa exaltação que encadeia aquele transe colectivo.

Alguma arte e literatura, da ala mais erudita, ficaram arredadas desta qualidade. Desde que deixei de juntar cromos de futebolistas que, progressivamente, se me tornou tudo demasiado cerebral, distanciado, mediado pelo discursivo. Fareja-se, o entusiasmo em T.S. Eliot, na Arte Conceptual, no filósofo Heidegger? Só solenidade, discurso e disforias.

Ficou pior, agorinha mesmo: por causa do Sabato descobri o livro de Evgen Bacvar, Le Voyeur Absolu o magnífico fotógrafo esloveno que é cego desde os 12 anos de idade. Sheet, ia começar esta tarde no ginásio os meus treinos de boxe e, está visto, vou faltar para ler as letrinhas que o esloveno nunca leu e apreciar-lhe as fotos que imaginou mas nunca viu.

Já nos anos cinquenta George Bataille acusava a civilização, não apenas de ter deixado insatisfeitas as necessidades corporais da humanidade, mas, através da permanência de tal frustração, de as ter reprimido – ao nível coletivo. E a hipóstase da corporalidade – através da suposta exclusão do intelecto – sempre enervou muito os intelectuais. Falo por mim, que nunca acreditei muito no mito da espada do Afonso Henriques, do bem que faria aos peitorais erguê-la.

Enuncia Gumbrecht: «(…) coloquemos a questão: quem lê literatura contemporânea e o que é que os seus (já poucos) leitores – tipicamente – fazem com os seus corpos? (…) Enquanto experiências subjetivas “autênticas” do corpo, os intelectuais de hoje apegam-se àquelas experiências do corpo que “vão ao limite”, àquelas nos quais a própria experiência do corpo se torna uma “expansão da consciência”. Talvez esta obsessão em “experimentar os limites” seja um indicador de quão difícil (impossível) se tornou para eles habitarem os seus próprios corpos.»

É pertinente a questão, desdenhámos a inteligência colectiva que se manifesta no fluxo e na materialidade do jogo desportivo e que além de ser hoje o fermento da sociedade de massas estabelece uma nova relação entre o corpo, a sua discursividade e aproveitamento. Embora continue a parecer-me tão bizarro e intratável – roça o irrelevante – que se gaste dois anos de vida num treino intensíssimo e orientado para a meta de baixar um segundo a um recorde de quatrocentos metros livres, como passar dois anos a querer justificar a bisonhice de Heidegger em relação à comédia: duas ilusões razoavelmente infecundas, apesar dos pergaminhos que tais exercícios concedam.

Contudo, como, de uma forma até insuspeita, tudo se relaciona, podemos ler na organização tácita de uma equipa de futebol o equivalente das geometrias secretas que delineiam a composição de um quadro, na pintura.

Qual é o problema de José Mourinho? Foi perdendo a alegria do jogo e, perdido o entusiasmo, reduziu a leitura do jogo ao cálculo das probabilidades (supostamente científico), apostando agora excessivamente nas jogadas com contorno e nas estruturas tácticas, o que inibe severamente a improvisação nas equipas: tornou-se “um treinador figurativo”, de feição hierática, como o pintor Georges Rouault. Guardiola pelo contrário, deixa que cada jogo conte a sua própria história, apesar de ou contra as estruturas que monta: é um “treinador abstracto”, da ala Kandinsky.

Pelo menos é a divagação que me chega, hoje, neste remorso de ter dado banhada, como espectador, ao “meu” Benfica. Sinto-me culpado pela derrota, ou sinto-me derrotado pelo pensamento mágico: sinto que a minha falta de comparência é que quebrou o elã, levando a que aquele indescritível algo que, para além da técnica, pode catapultar a vitória não se tivesse dado. Ora, porra!

29 Ago 2019

Uma erótica da arte?

[dropcap]A[/dropcap] três dias de dar uma palestra sobre o Belo e as suas categorias, e a desvalorização ou a pertinência destas como elementos-chave na educação, sobretudo no enquadramento duma cidade cariada e necessitada de sacudir a orfandade de parâmetros estéticos e de valores urbanísticos, como Maputo, permaneço, como de resto sempre, indeciso.

Por um lado, acho pobres (muito pobres) e confusos os argumentos de Arthur Danto contra a beleza, à qual prefere a semântica, e creio que com demasiada facilidade se resvala para os domínios do Kitsch ou do Camp quando se pretende denigrir a beleza.

Depois não deixam de me atrair estas duas ilusões:

Camus em “O homem rebelde”, sustentava que “a beleza não faz revoluções, mas chegará o dia em que as revoluções necessitarão da beleza”; para ele a beleza prepara o caminho da dignidade do homem e do mundo em que vive.

Também o insuspeito Wittgenstein assume uma conexão entre beleza e felicidade, referindo-a expressamente à arte: “Porque há algo certamente na concepção de que o fim da arte seja o belo. E o belo é o que nos faz felizes”.

Qualquer destas posições me parecem ingénuas mas argutas, ou antes: consoladoras (contra o grande cetáceo que é a morte, e não concebo a arte alheada desse nó), embora a posição que mais me agrade seja a de Susan Sontag, no seu célebre ensaio, Contra a Interpretação, onde é defendido que em lugar de uma hermenêutica necessitamos de voltar a uma “erótica da arte”, recuperando por uma vez o fio dos sentidos, esgarçados.

A arte serviria então para recuperar os sentidos, ver mais, ouvir mais, sentir mais, vendo como é o que é e não tanto o que significa.

O esteta e músico Sixto J. Castro, numa comunicação em que enumera as diferentes perspectivas face ao desiderato, avança com uma tímida sugestão que não me parece despicienda:

«A neurologia contribuiu para assentar neste particular: os juízos estéticos de beleza provocam a activação de uma rede neuronal que de comum subjaz aos julgamentos avaliativos, de modo que sempre se combina um Substrato Neural nos julgamentos sociais e morais.

E sendo a beleza uma âncora a que a arte se encostou ao longo de sua história, como um dos factores que lhe permitiram desempenhar o importante papel que protagonizou nas nossas sociedades, não será isso um motivo suficiente para resgatar a beleza na teoria da arte?»

Talvez não, talvez sim. Mas, enquanto aguardo por uma pontada de discernimento, contra a perda de “aura” do Walter Benjamin – com certeza, um dinamitador da unicidade que cunhava a beleza – elaborei este argumento: se uma obra de arte pertence ao passado, na medida em que foi executada num tempo histórico x, a sua “beleza” será avaliada no momento presente do juízo do seu observador; ora, embora a sua recepção artística seja dependente da ulterior definição e evolução da arte, há casos em que nem isso a abala: é o que se constata com Venere degli stracci, de Michelangelo Pistoletto, que podemos descrever como uma cópia de mármore de uma estátua de Vénus semi-oculta por uma montanha de trapos. A intenção da peça é política e, sendo ao mesmo tempo um libelo contra a sociedade de consumo/do lixo, coloca no devido lugar a irrelevância em que as categorias antigas da arte (como o Belo) estacionaram, sinalizando mesmo a própria figura da “perda de aura”. Mas não deixa de ser irónico que a peça para operar o seu inteiro sentido necessite do contraste de algo que afinal não viu diluída a sua irradiação como memória de coisa bela. Se em lugar de fazer uso de um ícone grego, se Pistoletto utilizasse por exemplo o R-2-D-2, o pequeno robot e um dos principais ícones da saga Star Wars, esse pequeno droide astro-mecânico não se distinguiria do resto do lixo; a Vénus, apesar de ser uma cópia, na razão relacional que compõe a obra, dá-lhe a distancia que torna visível a intencionalidade: é o seu verdadeiro elemento de força, o que lhe dá um carácter.

Suspeito que a “felicidade” desta obra ilustra o que Baudelaire defendia: uma obra-de-arte deve comportar uma metade de novo e outra de eternidade, ao que acrescento, essa dosagem deve revelar-se indivisível. Ao ver e sentir a beleza estamos vendo e sendo um com ela, i. é, imputamos beleza às obras em que identificamos uma correspondência entre o tema e a expressão, entre o conteúdo e a forma, àquelas formas que revelam as relações internas das coisas ou, como dizia Hsieh Ho, que “revelam o ritmo do espírito nos gestos das coisas vivas”. Neste sentido, esclarece-nos o ceilonês Coomaraswamy, a beleza será mais um estado de percepção que nos apanha de golpe (e para alguns seria preciso estar em auto-abandono) do que uma categoria filosófica com mais ou menos oportunidade e vigência.

Seja como for, lembraria o velho Kant: «ante a arte somos responsáveis» – a arte demanda que nos tornemos responsáveis e activos.

De ideia semelhante comungava Marcuse, de quem se cumpriram em Julho último os cem anos do nascimento, e para quem nós éramos responsáveis pelo volume de fantasia que entregamos ao mundo. A fantasia é «a tendência contrária ao princípio da realidade, sem por isso circunscrever-se no sub-consciente nem ser tão-pouco um resíduo do arcaico», posto que a fantasia, continua Marcuse, «surge da conexão de capas do subconsciente e das mais altas produções da consciência… abrindo entre o devaneio e a realidade as maiores perspectivas de liberdade». E quem opera para que tal aconteça? Não exactamente nós, mas o descondicionamento de Eros em nós. Eis-nos remetidos para a tal “erótica da arte” que se propunha a Sontag e que, evidentemente, está nos antípodas do espírito da pornografia que instalou (- livremos, entretanto, a Linda Lovelace de acusações soezes, impoluta ainda que esplendidamente desinocente).

22 Ago 2019

O Brexit e a geofagia

[dropcap]U[/dropcap]ma crónica é uma Bola de Berlim, às vezes tem creme, outras não. Na Ilha do Farol o vendedor, trajado de branco como um enfermeiro, fazia ecoar praia fora o seu pregão: Bolinhas, Bolinhas!

Uma Bola de Berlim – com creme (é a gadelha) – parece o Boris Johnson, aquela que caiu na areia depois de alguém ter gritado Tubarão e o pânico assarapantar os veraneantes. Quando os mais atrevidos voltaram, um puto ranhoso topou a bola, felicitou-se e apanhou-a, devorando-a. Melhor: absorto pela sua sorte era-lhe indiferente que a areia se misturasse, ou antes, se sobrepusesse ao açúcar. Bola de Berlim crocante.

Averiguo no Google, que males causará ingerir areia, e descubro esta reportagem da moçambicana Anchieta Maquitela, de 2014, que pico pelo inédito e por justificar o ar prazenteiro do puto ranhoso:

«O consumo de areia virou moda em Maputo. As pessoas consomem areia na via pública, no interior dos “chapas” (…) a indústria de venda e consumo de areia está a ganhar terreno na província e cidade de Maputo (sic). Nas ruas, nas paragens e em frente das escolas, é comum a presença dos funis de papel branco cheios de areia.

Se antes comer areia era hábito entre as mulheres grávidas, para remediar a falta de ferro, agora virou moda e até homens consomem a areia.

Há três anos que Sitoe, por dia, acaba três a quatro funis: “No princípio, tive dificuldades, doía-me o estômago, tinha dificuldades de defecar, mas já estou viciado”. Por sua vez, para Alice Das Dores o vício começou aos 15 anos, tendo agora 22: “Esta areia tem um sabor incrível. Não sacia, mas traz um conforto à alma quando o desejo bate.”.

Diz Angélica Sitoe, 44 anos, vendedeira de lençóis no mercado Xipamanine: “A areia não tem gosto. Consumo por capricho”. Para Angélica, o que incentiva os jovens é o baixo preço, “Por mais que queira resistir não consigo. Sempre caio na tentação”.

A areia é extraída em Marracuene, a 30 quilómetros da capital. As mulheres pilam, seleccionam, põem nas bacias e vendem-na ao preço de 50 meticais. A seguir é submetida a um processo de transformação que passa pela adição de sal, incluindo a cozedura que dura entre duas e três horas. Logo a areia é peneirada para retirar a mais grossa. Para dar gosto, coloca-se sal de cozinha e segundo algumas fontes, sabão ou detergentes.»

Nunca dei conta, mas amanhã começam as aulas: vou perguntar aos meus alunos. E percebo melhor a alegria do puto e porque votaram os conservadores britânicos em Boris Johnson.
Continua a reportagem:

«No mercado, as vendedeiras de areia colocam o produto em recipientes abertos e manipulam-na sem luvas.

Teresa Francisco, mãe de dois filhos, vende areia no mercado  Xipamanine, arredores da capital: “É vantajoso comercializar areia porque é rentável, não apodrece, os ratos não consomem, e muito menos as crianças em casa”, explica.»

Confesso que este trecho me desconcerta. Se está na moda, não percebo a falta de sentido de oportunidade das crianças (serão abúlicas?) e como a Teresa Francisco não ocorre a poupança em tomates e feijão se as habituasse a consumi-la. Retomemos:

«Por sua vez, Rosa Moiane também vendedeira do mercado Xipamanine e mãe de dois filhos disse que faz este negócio desde 2011, e que com o dinheiro que ganha com a venda de areia sustenta os seus filhos e ajuda o seu marido que é guarda-nocturno e não recebe quase nada.

Contudo, Rosa reclama do aumento no custo do transporte e do número crescente de vendedeiras de areia na cidade.

“Dizem que este negócio mata e que devemos procurar fazer outros mas já experimentei vender tomate e cebola, e não deu certo”, concluiu.»

E, agora, a reportagem permite-nos aprender, pelo menos a mim, que nunca me tinha debruçado sobre estas práticas:

«A geofagia (comer terra) é uma prática culturalmente sancionada, e portanto não é considerada um distúrbio”.

Está documentado desde a pré-história, e a época dos faraós do Egipto. É um hábito com muitas variantes em sua prática e com diversos significados: nutricionais, psicológicos/psiquiátricos, terapêuticos, antropológicos, místico/religiosos e antropológicos.

“Na selva amazónica, por exemplo, por não ser fácil conseguir-se sal, grupos indígenas realizavam uma peregrinação anual em busca da terra salgada. No Peru e Escandinávia a argila é material comestível. Em algumas regiões de África a prática da geofagia está associada à crença de que durante o primeiro trimestre da gestação diminui as náuseas e estimula a secreção láctea quando o bebé nascer”, lê-se no documento.

A causa básica da geofagia é desconhecida, sendo que a deficiência de ferro no consumidor é a mais divulgada. Outros estudos relacionam a geofagia com a deficiência de zinco ou com as deficiências nutricionais múltiplas.

O problema coloca-se quando as pessoas consomem terra como se fosse moda, sem prestar atenção às condições nada higiénicas do processo de preparação.»

E, pronto, fim de citação, e afinal o Boris Johnson – que pelo contrário tem visíveis hábitos de higiene e daí a sua franja tão loura como o creme da mais estival Bola de Berlim – sempre teve razão: há saída para o Brexit e finalmente as praias do Reino Unido vão ser um sucesso digno de lambões.

O género humano consegue invariavelmente colocar-se um passo adiante das malditas circunstâncias, e eu, como um George Orwell de segunda, hei-de fazer o relato dessas comezainas dos súbditos de Sua Majestade.

Confesso até que estou disposto a propor a Boris um ”piqueno” negócio: cones de língua da sogra, com areia de Brighton tratada – polvilhada de sal, dentes de alho e salsa picados e uma colher de molho de soja. Embora sem descurar a vigilância quanto à restituição dos direitos aos meus amigos moçambicanos, pois, por muito que custe ao novel primeiro-ministro, esta solução não foi dele.

15 Ago 2019

A lição de Cartier-Bresson

03/08/2019

 

[dropcap]N[/dropcap]ão faço ideia de como se sentirá o pistoleiro depois de três semanas de inactividade. O indicador lateja-lhe, a garganta está seca? Hoje sonhei com um maremoto e que em pânico tentava salvar a mulher e uma filha. O melhor é voltar às trincheiras.

A Ilha do Farol continua um belo sítio para se passar uns dias de praia, embora tenha perdido parte do seu isolamento (está mais próximo da Caparica) e enerva que os guias turísticos apontem as pessoas que tranquilamente, nos alpendres das casas, “manjam” o seu arroz de ligueirão, como macacos amestrados.

Continuará a Ilha um espaço ideal para se estar nas estações baixas, excelente para ouvir a integral do Eric Satie ou para a concentração num trabalho criativo qualquer.

Na Ilha, uma insónia depositou-me este poema:

No escuro, a mão é uma alga/ e tenteia – conseguirei fechar/ as pálpebras da Medusa?/ No escuro, os pássaros/ carecem de retábulo,/ mudo escarro de Deus caído no mar./ Não é por compaixão/ que a mão adere à pedra,/ ambas friáveis ao foco/ do farol que lhes recorta,/ intermita, a finitude./ Que portas semear no escuro/ se não caminhas sobre as águas?/ Afasta-se a traineira, segue-a/ no céu o crescente, o mesmo/ que palpita no sonho do gato/ enroscado aos pés do cacto/ na duna que o chapinhar do chinelo/ coroa. No quarto – ó faminto/ de luas e vulvas – aguarda-te a mulher,/ a carne e o riso que te participam.

Não creio que volte ao Farol. Nunca volto aos sítios que me provocaram um poema. Assim fugo e me despeço, na busca da rasura e do silêncio: que a um látego só suceda o zoar do mundo, o mar.

04/08/2019

Caparide, na casa de uma amiga onde passo uns dias. Passo os olhos pelas estantes e resolvo entreter-me com leituras de que desertei há muito. Torga ou José Gomes Ferreira, por exemplo.

Descubro que nunca li o Tempo Escandinavo, do José Gomes, um livro de contos de 1969, e levo-o para a cama. São contos breves que espelham a vivência do autor na Noruega. Leio-o num folego, num viés. A meio do livro sobressai o relato de uma relação triangular que acaba da melhor maneira: «Que bom trair!». A situação é simples, mas boa – um homem que gosta de quem tanto promete mas não dá, acaba por enrolar-se com a amiga que fazia de pau de cabeleira. A narrativa flui sem entraves, relativamente bem esgalhada, até que vão para a cama.

Aí lê-se: «Depois, descido o estore, a mulher ficou de pé, como se estivesse ali há muito tempo à espera, cabelos vermelho-dourados, agressão penetrante nos olhos, feia de desejo (…) O bom é despi-la com delicadeza. Como quem veste mortas para o amor da terra.». Feia de desejo; como quem veste mortas? Uma foda tem de ser uma parábola? Tenho um arrepio, parece que o autor, que vivia num país sem liberdade, já está a escrever para agradar ao censor. Mas por que não te exilaste, meu caro poeta, limpando o aparo destas escórias gritantes?

06/08/2018

Tantos escritores só juntam palavras para fazer uma obra. Tal como na fotografia, demais só fazem clic. Ora, justamente Claudel – um autor prolixo – advertia que não foram as palavras que fizeram a Odisseia, mas ao revés. É esta dimensão que importa relevar: muito holisticamente os romances produzem-se da frente para trás, na perseguição de uma visão que, difusa, tacteia o seu recorte, a nitidez, e o fotógrafo acontece ou não, consoante a fotografia acusa um olhar ou pelo contrário. Cartier-Bresson é nisto exemplar, daí que insistisse no “instante decisivo”.

Aqui, o fotógrafo socorreu-se de um axioma de Jean-François Paul de Gondi (1613-1679), cardeal de Retz, para quem “não há nada no mundo que não tenha o seu momento decisivo”.

Facto é que não há sombra de vulgaridade nas suas fotos, até parece tudo encenado, tal o acerto dos enquadramentos.

A virtude do seu olhar talvez lhe nascesse do que ele recusara: Bresson teve uma formação clássica na pintura e embora desistindo dessa expressão, a sua extrema aptidão para “arrumar” estruturas e os padrões desenhados pelas figuras contaminou-lhe a obra fotográfica. O seu posterior abandono da fotografia – com escândalo, pois muitos consideravam-no o melhor fotógrafo do mundo – foi a marca de um homem profundamente honesto para quem a fotografia não resultava de um passatempo, de uma evasão, ou de um engenho para o comércio, e terá sido, talvez, motivado por um sentimento de derrota, por achar que afinal não rompera com a gramática das imagens de que se tinha apropriado no estudo da pintura clássica.

Contudo, a sua arte, apesar de banhada por um halo clássico, está na sua capacidade para cristalizar numa foto os “acasos objectivos” por que os surrealistas tanto pugnavam.

De igual modo escrever, para alguns, não é um mero ajuntamento de palavras mas a visão que enforma o texto, construído como um painel de ladrilhos que ausculta em cada sequência, parágrafo e palavras, o único ajuste possível – aquele que maximaliza a síntese.

08/08/2019

Despeço-me de Lisboa, talvez para sempre.

8 Ago 2019

Do Vento

[dropcap]D[/dropcap]eus não me tem trazido muito discernimento.
Suponho que porque quem me levava à missa na minha infância era uma tia surda. A minha tia Dulce.

Esta é uma história que os meus amigos sabem de sobejo e a minha família já vomita. Mas só eu é que a vivi.

O meu pai era anticlerical e como a minha mãe insistisse em que eu fosse à catequese e à missa, ao fim de anos de insistência capilar, cedeu, sentenciando: Ele pode ir à missa com a tua irmã.

Foi mistério que se me cravou na carne. Naqueles seis meses em que aquela mão calosa me conduzia à igreja, eu pouco ouvia da Palavra de Deus. O que me intrigava até às entranhas era como a Palavra acudia ao olhar beato da minha tia surda. Como é que apesar de tamanha surdez ela fora polinizada?

Eu nem sequer olhava o púlpito, fixava-me no rosto sardento dela, alheado, com os olhos embevecidos pelo que não ouvia, e nos seus lábios que mexiam, repetindo as loas e as orações.

Ela, de vez em quando, dava conta e num gesto maquinal virava-me a cabeça para a frente. Aí detinha-me, por um minuto, na batina do padre, na taça que o sacristão lhe passava e, atrás deles, no crucificado, e ouvia o fragmento de alguma parábola, antes de voltar a fixar o rosto dela e os seus olhos que, como macias faluas, se desfaziam nos quebra-mares de Deus.

É possível que Deus tenha feito nascer um milagre em Salzburgo, no caso de Mozart, no caso da minha tia, negou.

Apesar de ter crescido entre irmãs, e de não perder um culto, Deus não lhe depositou uma única palavra no tímpano. Outras coisas sim, e no coração com certeza, que era um poço de afectos, a minha tia Dulce. Porém, inapelavelmente mouca.

E parecia-me tão desproporcional a distribuição de fé em Deus, que do seu enigma não me livrava. Raras vezes me distraía dessa ideia fixa. Bom, uma vez distraí-me com uma península de carne que havia no pescoço duma senhora à nossa frente, e que abanava quando abriam a porta da igreja. Se na altura soubesse nomear as coisas, teria interrogado: Um pólipo é filho de Deus?

Na altura não havia nome para o que me perturbava, entalado entre a minha tia surda e aquele pólipo que no pescoço à minha frente ouvia a Palavra de Deus. Só eu não achava condições para a escuta.

Um dia, farto de tanta inquirição a que me levava a devoção da minha tia e do seu olhar amendoado quando engolia a hóstia, decidi arrumar os mistérios e decidi: o que a minha tia ouve é a voz do vento.

O vento tornou-se a primeira categoria transcendental na minha vida.

Nunca mais fui à missa e não sei porquê, mas nesse dia deixei de ter medo do vento. Ou não foi logo ali, mas no que lhe esteve ligado.

Nunca soube de onde nasceu o meu fascínio com o vento. Terá nascido da intuição de que se componha de sílabas entrecortadas como o meu furado entendimento do mundo, ou de o adivinhar como uma energia jubilatória, idêntica à que à nascença desloca o tempo e sintoniza nos pulmões a modulação do ar?

Semelhante ao vento, também a minha relação com a linguagem se enlaça aos sacões, por enfáticas ventosas; as palavras não me chegam quando eu quero traduzir a meu bel-prazer as inscrições da realidade em mim, pelo contrário, são volantes e indomáveis, embora a espaços pousem nas minhas mãos como pássaros num estado propiciatório (mais vizinho da desestabilização que do repouso) que faz vibrar um instante de coincidência entre mim e elas; ou seja, temo que as palavras, no meu caso, recusem a adesão a qualquer decalque e antes premeditam golpes de ventos que me trespassam.

Mas tinha medo, até esse dia, no primeiro domingo em que não fui à missa, que troquei por uma ida à pesca com o meu pai.

O meu pai pega-me na mão e avançamos pontão dentro, na Ponta da Areia, ele com a cana de pesca no ombro, e eu orgulhoso por ele me ter confiado o baldinho com as minhocas; progredimos direitos ao coração do mar, a despeito dos gritos da minha mãe que roga que regressemos, teme que o vento, irado nesse dia, nos atire às águas, concomitantemente, revoltas.

Galgamos o chão de pedras, num passo seguro, o vento eivado de lágrimas do mar endemoninha-se nos cabelos, mas ele só sorri ao medo dela, um sorriso cúmplice entre nós, que prescindimos de palavras e somos íntimos daquela vírgula de pedra, rasando as águas em que adentramos cem metros, cento e cinquenta, de olho fito no extremo adiante, aonde, como o dia está picado, se situa o palpite do meu pai de que na polpa de uma vaga bravia e oleaginosa se apinhem os robalos.

E o vento diabólico ameaça, mas não consegue arrancar-nos um sorriso.

A minha mãe grita, incansável, nas nossas costas, e só nos importa o som do mar que se engolfa nos nossos tímpanos e o vento que nos impele para diante. O meu pai é um medíocre pescador, não me lembro se o seu palpite estava certo, mas agradecer-lhe-ei eternamente ter afastado de mim o receio ao vento.

De ventos solares ouço falar, mas esses não me animam o canto. Só os terrenos, mais breves que o Papa Pepino e que enchiam de penas de anjo a boca da minha tia. Pelo menos era assim que eu imaginava a explicação que nunca me deram.

Já morreu, a minha tia que foi amada, e teve cinco filhos. Eu continuo a ser irrigado pelo vento, a matéria de um livro que me preparo para lançar. Entretanto, se nos definimos pelos nossos actos, Deus continua a ligar-me pouco, nem me deu aulas de guitarra.

4 Jul 2019

A Arte Ressurecta

[dropcap]D[/dropcap]izia Francis Bacon que pintar oscilava entre a intenção e a surpresa. Enfatizava as contribuições não planeadas e inconscientes no processo. Também a escultura brasileira Ana Maria Pacheco: «Obviamente, sei qual é a estrutura da composição, mas não sei como vai evoluir. É por isso que não faço modelos, de outro modo seria apenas um design.

Estaríamos a lidar com aquilo que sabemos. Nas artes visuais temos de lidar com o que não sabemos».

Eis-nos nos antípodas de Jeff Koons que projecta e manda fazer as suas peças, nunca se envolvendo no processo, num gesto, diria Ana Maria, de designer. Também a famosa peça de Mark Wallinger, Uma Verdadeira Obra de Arte – um ready-made vivo: um cavalo – está mais do lado do design do que da arte: ficam os trunfos jogados no momento da decisão, abolida a experiência do processo.

E suspeito que diferente não seja com My Bed, de Tracey Emin, que foi finalista do Prémio Turner, uma peça que ilustra porque introduziu o poeta Craig Raine o termo “homeopático” para descrever uma obra cujo conteúdo artístico é tão diluído, que não oferece maior efeito estético que o de um placebo.

Um bom placebo, igualmente, a peça referencial de Joseph Kosuth, Uma e três cadeiras, onde se dispõem os três diferentes elementos que conformam o conceito cadeira: a cadeira, a imagem da cadeira, a descrição da cadeira. A redundância no jogo dos análogos não descola a peça do já sabido, nem incita a uma nova relação ou a jogo diverso com a cadeira. Temos programado design e não arte.

Estabelece-se uma nova relação quando, por exemplo, se ilumina que se traçarmos dois riscos paralelos entre si na verdade desenhamos também o risco branco que fica no meio entre eles e então somamos. 1+ 1 = 3. Se não se gera este movimento, inaugurando um âmbito, qualquer peça é amorfa, não nos transforma.

Eis a superioridade da cabeça do touro de Picasso sobre o urinol de Duchamp: a escultura não só subverte a funcionalidade dos elementos que a formam, molda outra percepção. Também sobre a arte mas sobretudo quanto a como re-inaugurar o mundo. Com Duchamp, combatemos os preconceitos sobre os limites da arte, emergiram novos materiais para a arte e ganhou-se um trocadilho, mas o mictório continua um mictório: o terceiro da relação não transitou do conceito para o coração – mudou a arte mas não mudou com esta o olhar. Pura tagarelice cerebral.

Aliás, para a escolha dos objectos que fossem “elevados” a ready-made, Duchamp tinha um adjectivo: indiferente. O objecto escolhido tem de destacar-se pelas suas não-qualidades. Busca-se uma isenção, uma impessoalidade. Estamos no pleno sistema dos objectos.

Daí que Duchamp tenha afirmado, Eu dou àquele que observa (a obra de arte), tanta importância como àquele que a realizou. A blague de quem sabe ter-se distinguido na singularidade de reivindicar o anonimato para a arte. Era um homem fascinado pelo engenho da sua inteligência, habituado ao bluff, ou veja-se a sua última obra: «Étant donnés»; aí obriga o espectador a mirar através do buraco duma fechadura, produzindo uma situação onde não só ele controla a posição do observador e o seu ponto de vista – quando suprimira o controle na arte –, como realiza uma obra que, contra tudo o que escreveu e defendeu toda a vida, é bastardamente retiniana.

O seu discípulo mais fecundo e um grande pensador foi John Cage, que se colocou contra o mestre em muitas posições. E por isso disse: O que peço à arte é que mude a minha forma de olhar.

Quando reparo que um selim e um guiador de bicicletas resultam numa terceira imagem que ampliou o meu campo da percepção, flano à procura de novos nexos que despertem outras alterações no padrão com que olhava a realidade e aí o mundo torna-se de novo maravilhosamente inacabado, ficando em co-criação com ele.

O artista, na concepção de Cage, é aquele que inaugura âmbitos. O âmbito abre um poro na nossa relação com o mundo, que passa a ser visto diferentemente porque fomos contaminados pelo despontar de uma nova interpretação, que nos constipou como o vento numa casa quando se escancaram as janelas. O artista transporta-nos à aventura de nos devolver um mundo inacabado e não cristalizado. E por isso passível de ser transformado.

Embora seja preciso acreditarmos que o mundo existe fora de nós e não é apenas a vitrina para expor a nossa arte, o circo de pulgas do nosso engenho.

Fiquei mais convencido ao deparar com uma artista conceptual que me parece dar um bigode à “esperteza” dos ready-made de Duchamp. Chama-se Cornelia Parker, a autora de uma das grandes obras-de-arte britânicas do século XX, Matéria Negra Fria: Uma Visão Explodida/ Cold Dark Matter (1991).

Parker pediu ao exército britânico que fizesse explodir uma barraca de jardim cheia de objectos pessoais. Depois, como se quisesse reconstituir um frame do acto da explosão, pegou nos fragmentos sobreviventes e suspendeu-os no tecto, iluminando-os do interior por uma lâmpada, o que cria um efeito dramático e projeta sombras nas paredes da galeria. Como é nítido pela imagem, Parker pega nos fragmentos e trabalha não apenas a escala alterada e a substância das coisas, ela suga-nos (aos espectadores) para o centro daquele caos (tal a força daquela luz centrípeta) e convida-nos a reconstituir com ela a catedral da memória, de que as sombras serão os vitrais. É uma experiência que, pela força inédita que nos atinge, equivale a uma estrondosa metáfora da vida. Eis um “ready-made” que não afecta apenas o olho e a mente, cativa o coração.

O que nos subtrai à “indiferença estética”: nesta galeria ficamos expostos a uma dança que nos mudará, nesse pas de deux.

«O universo está morto mas tem a capacidade de ressuscitar!», assegurava o físico Michael Polanyi.

27 Jun 2019

Brasas do fundo impróprio

[dropcap]E[/dropcap]screve Leonel Ray, no prefácio ao livro de Jean Portante, A ÁRVORE DO DESAPARECIMENTO, poeta luxemburguês, que a Exclamação, do Porto, lançará amanhã, na Férin, em Lisboa, às 18h30, com apresentação do Nuno Júdice:

«Jean Portante, num lirismo muito pessoal, mesmo se ele escreve como um eco às leituras dos poetas de que gosta, reencontra uma das funções exemplares da poesia: dizer o que escapa, o que se apaga, o que mexe na memória e nas palavras, trazer uma resposta possível à desordem inicial do universo e dos pensamentos e construir, mesmo com “a cinza das palavras”, juntar ramos sempre novos à árvore do desaparecimento.»

Este poeta é muito particular e foi-me útil a coincidência de o ler ao mesmo tempo do que um volume de entrevistas a John Cage, recolhidas por Richard Kostelanetz. Neste, conta o músico que num curso que fez com Schoenberg, o compositor alemão o fez ir ao quadro transcrever um dado problema num contraponto. Quando tiver uma solução, volte aqui e mostre-ma, disse o mestre. O que Cage fez. Schoenberg pediu então, Uma outra solução, se faz favor. E o Cage propôs outra e outra e outra solução, até que aí pela oitava, enfrentou o mestre e foi assertivo: Não há outra solução. Replicou Schoenberg: Ok, qual é o princípio que se subentende em todas estas soluções?

Associo esta história ao engenhoso fecho deste livro, o capítulo a história acabou (soneto desaparecendo), uma sequência de quinze variantes-ocelos que tiveram a sua ignição num verso do argentino Juan Gelman: a noite passa num dorso de gato, e na qual o soneto, no seu “trajecto” para a invisibilidade, passa do MENOS NADA (onde se sepulta o dia) ao MENOS TUDO (que evolou o poema), ou seja, em cada uma das catorze variações desaparece um verso ao soneto até que o ar o toma de assalto. Lê-se em (MENOS NADA):

comecemos por sepultar o /dia debaixo de um monte de horas / desordenadas. por pôr tudo no / cimo da pilha para que seque a // primeira hora do mistério. é / loira e inútil? ou silenciosa / como a viagem entre a vida e / o catálogo das imagens adormecidas? //é de um enterro que se / trata. quando chega ao fim /constrói edifícios sólidos. //o betão da negligência confere-lhe /asas pesadas. ao longo da areia /das nuvens fica o deserto do porquê.

E em (MENOS TREZE):

às vezes atrás da porta um silêncio que se despe.»

Porque escreve sonetos aquele que os sabe condenados a desaparecer? Está dito neste último verso, mas também podemos reapropriarmo-nos de uma resposta de Cage: “Para mim, a significação essencial do silêncio é abandonar toda a intenção”. E eis o princípio que subtende, esta poética.

Portante, um nómada, é igualmente um tradutor de dois poetas sul-americanos que traduzi numa antologia, nos prelos: o argentino Juan Gelman e o chileno Gonzalo Rojas. Para ambos, a reapropriação (ou seja: a intertextualidade) é uma palava chave. E o que redigi para o prefácio da antologia, ajusta-se a Portante:

«Rojas escreveu com insistência que o seu exercício poético não se fundava num projecto de invenção mas antes numa ideia de resgate e nunca descurou uma dimensão reflexiva constante, daí ser a sua poesia levedada pelo pensamento crítico. Nos seus poemas-remontagem apropriava-se dos seus poetas, como Celan, para entabular entrançamentos poéticos com que aclarava as suas visões e superava a sua amnésia global transitória. É deste modo que leio a profusão dos relâmpagos na sua poesia: são flagrantes em que a memória se reconstitui.

Folheando o volumoso La poesía de Gonzalo Rojas, de Hilda R. May, descubro que o poeta corrobora a minha intuição, e declara: “o relâmpago saca à luz, num sentido profundo, as muitas coisas na sua união articulada.”»

Para Portante os relâmpagos são os poetas com quem dialoga, de quem se reapropria, tal como os pré-socráticos se apoiavam nos elementos naturais como núcleos de conjunção unitária.

Embora, com o tremendo desassossego de saber que as presenças que se testemunham exigem despojamento:

«quem deixa uma pegada, deixa uma praga HENRI MICHAUX /nada mais fácil do que /rodar a chave na fechadura. /o norte diz caminha e o sul /levanta-se. a viagem será longa. /chamemos a essa pegada uma epidemia. /inútil calçar luvas. /AS RAÍZES SÃO A PRAGA DA ÁRVORE.» (pág. 21).

Volto ao prefácio de Leonel Ray, que explica bem a urgência de ler este poeta:

«A arte de Jean Portante relembra a dos poetas barrocos, é um teatro de surpresas da linguagem, uma fusão alegre de imagens, de minúsculos enigmas e de hipérboles. Há qualquer coisa de inesperado, de flamejante, a estranheza do jogo de palavras, não excluindo nunca que os véus se rasguem, que o ser surja da aparência e deixe aparecer o verdadeiro rosto, a angústia de viver, o retomar da subida feliz para o lugar irradiante das origens familiares.»

Pegando na epígrafe da primeira parte do livro, o carvão desce (a cinza), de CHAWKI ABDELAMIR: “às minhas fronteiras/ pedi uma/ fronteira”, apetecia ler o livro à luz do “sujeito do limite” e do “pensamento transfronteiriço” de Eugenio Trías, mas nem sempre é vantajoso que a beleza que jaz sob os fragmentos seja explicada, sobretudo se o que se ilumina não é tanto uma expressão subjectiva mas um fundo impróprio, o que fugazmente nos salva e se revela quando se abandona “a intenção” e radiosas e impessoais as brasas se reatam, na cinza das palavras.
«na verdade a cinza nada sabe dos nossos /CÁLCULOS. QUANDO TEM DÚVIDAS ABRE O /pára-quedas da luz. a queda assim / amortecida desenha sobre o caminho as duas /direcções do dia. de uma vem a mais-valia // do sacrifício. Vivemos mais /tempo que nós mesmos. na outra / está pendurada a pele que seca ao sol.»

Há ainda algo de mágico por aqui. O melhor é comprar e ler. Em silêncio.

20 Jun 2019

Quarentena: uma narrativa

[dropcap]N[/dropcap]ascidos a bordo de um navio
em quarentena, ao fim de uns anos
engolfa-nos a ausência,
ansiamos um abraço de sangue.

A raros se concedeu – presumo
que a suborno – soltura.

O navio ficou ao largo
por um período a prumo,
que não cessa de indeterminar-se
e aí a língua é o algeroz
de onde pingam a esperança
e o alfabeto do inferno.

Divisamos de longe as luzes
da cidade, adivinhando até ao sabugo
os seus perfumes, a desabrida
floração dos cometas
no peito das raparigas,

o rasto de anfetaminas com que
os rapazes metem a terceira
e repelem os mortos.
Enquanto na nossa cabine
ou no desabrigado convés
tudo se repete, unânime, caliginoso.

Dás conta, já não batem os sinos
na cidade! Emudece a via
láctea nos salmos
que tingem o WhatsApp?

No dia da boda uma borboleta,
das que migra, transatlântica,
veio ressacar ao corrimão
do tombadilho e depois alumiou
as bordas da piscina
com a sua valsa imatura.
Tudo quanto vislumbrámos
das flores da costa.

Ocorre o amor
entre os convalescentes?
Tudo indica que o homem é capaz
de amar no próprio inferno,

embora a solidão na proa
não deixe de lembrar-nos
que nunca mergulharemos
duas vezes no mesmo vento.

Ancorados ao largo da alegria,
de quarentena,
o capcioso brinde final
destinar-te-á um breve
toque de clarim,
antes de amortalhado
numa bandeira o teu cadáver
ir lancetar o mar.

Mataste o tempo,
lendo a Oresteia e conviveste
com as deambulações de Ulisses,
também ele tardio e como tu
enleado nos novelos
da idade que ensimesma,
e já reconheces na enlanguescida
inteligência do antigo amante
de Circe o declinar da tua.

Estaria tudo bem se não visses
que os teus filhos
também nasceram a bordo
e como se lhes emaranha nas veias
uma bilha de gás e uma cabeça
de fósforo. Aí revoltas-te!
Apontas o canhão da proa e
inflamas o horizonte
com a tua veia derramada.

Alba. O barrete realça,
não esconde a cabeça de cachalote
do marinheiro que subiu à gávea.
Padeceriam igualmente os anjos
desse peso transbordante,
acima do pescoço rútilo?

Um veleiro airosamente descalço
adeja ao largo.

No rádio passam Zappa,
conduzido por Boulez
– tudo se desloca nos meridianos
aquosos. A quem devemos
a quarentena do planeta?

É tão escasso o pensamento,
nestas anfractuosas tonelagens
de ferro, que nos serve de guarida
contra o íngreme
entenebrecimento, contra
a cegarrega que nos atou,

é fugaz, mas dactilografa estrelas
à superfície das águas,
lépida doma dos néones,
e aí intuímos:
cada palavra é uma ilha
e procura arquipélago.

Saberá o urso que hiberna?
Não tem clímax a noite,
só tem ápice na queda.
A noite é o seixo que rola
no leito da tua vida; rola
para a foz ou para a nascente?

Alarma-te o enigma
do teu corpo e da tua sombra
bifurcarem na língua da cobra.
Como traduzir a inconciliável
corrente que os aparta
em amuos incandescentes,
não obstante partilharem
o que tolda no copo de gim?

Solução para o dilema: talvez
em terra, mas, entretanto, retido
em quarentena, apesar
de desconheceres a combustão
antropofágica da doença,
a dúvida que não cala encapela-te
os páramos do sangue.

A inocência é que te tramou,
enredou-te nas ramagens
da noite – embora na orla
das escotilhas já a luz da alba
se ice, vagarosa, e a algazarra
das cores se adiante, esta outra

luz é mais um alinhavo
frágil na bainha da mesma
e idêntica noite que te
ofusca, espectral.

Contudo, por décadas
a fio de quarentena
encrespada nos gargalos,
pode lá a escassez encaixar-se
nas tuas linhas de sombra:

basta ouvirmos o latido
de um cão na costa
e restituímos a pedra que sonha
à tepidez da mão que enxagua
a sua matéria exausta.

Transpira o navio contra
a quarentena, ondula.
Lês na fornalha de Dante
os glóbulos brancos do teu nome.
Quanto tempo demora o limbo
a fazer-nos compreender
que desenhar as letras
não nos emenda a escuridão?

Tanto que vejo, sem
adivinhar o quanto ensejo
no que vejo.
De quarentena, a vida
de nós não se aproxima
nem para a despedida.
Embora tudo indique
que o homem seja capaz
de amar no próprio inferno.

08/06/2018

13 Jun 2019

Eu, os polacos e a Mona Lisa

[dropcap]É[/dropcap] a terceira vez que mando um aluno ler A Casa Tomada, de Julio Cortázar, e que depois me surpreendo a dar uma interpretação do conto diferente em relação à que havia desenvolvido anteriormente. Isto acontece por não ser muito sistematizado e, em vez de fichas, ter as notas de leitura espalhadas por cadernos, os quais depois dá um trabalhão localizar.

Por isso, em vez de repetir as fórmulas, abordo de novo o texto, medindo-lhe o pulso.
Agrada-me o que me surgiu agora: os dois irmãos agem não como proprietários, mas como locatários das suas próprias memórias. E essa relação heterónoma com a vida é-lhes de tal forma confortável que, em vendo-se expulsos por invasores invisíveis e achando-se fora do portão da moradia, têm a delicadeza de fechar o portão para prevenir o risco dos novos proprietários serem assaltados. Passou simplesmente o tempo daquelas memórias serem suas. Contra o assombro dos leitores, eles não sofrem com o que lhes aconteceu porque talvez dentro de casa apenas estivessem em êxodo.

A nível macro, evidentemente que Cortázar fala do colonialismo das mentes, numa altura em que a Argentina vivia fascinada pelo imperialismo americano.

Também se pode ler o conto – e já o trabalhei com alunos, nesse sentido – como metáfora da situação moçambicana, representando os dois irmãos a alienada elite política moçambicana, que entrega o território e as matérias-primas do país ao saque alheio (e, porque não-dito, invisível), em nome do brando esquecimento que traz a alguns a espuma das coisas materiais.

A literatura tem esta capacidade camaleónica de, enquanto forma singular, poder ser lida por lentes universais.

Teria curiosidade em saber como Gombrowicz leu este conto, o polaco que viveu 23 anos exilado na Argentina e que facilmente aqui encontraria ressonâncias para o seu país invadido pelos soviéticos.

Vem-me esta deriva na banheira, onde me entretenho a ler um livro divertido que o insuspeito Edgar Pera dedicou a Hollywood, e onde resgato a deliciosa história do roubo do cadáver de Chaplin por dois polacos famélicos que depois não conseguiram obter nenhum resgate, porque a viúva foi tesa, e além de ter dito que o marido haveria de divertir-se com a situação propôs, “querem ficar com o cadáver, fiquem!”. Depois dos ladrões terem baixado de um milhão e picos para os cem mil euros, a viúva aceitou, no fito de lhes estender uma armadilha. Apanhados na ratoeira, foram perdoados e lá confessaram onde se encontrava o cadáver, enterrado num campo de milho. Oona O’Neill, a viúva, achou tão bonito o local que teve pena de ter de trasladar dali o cadáver, mas o proprietário foi intransigente. Contudo, até este, passado o tumulto, assinalou o ocorrido com uma tabuleta, onde se lê: “Aqui repousou Charlie Chaplin, Brevemente!”.

Outro roubo caricato, sendo história menos conhecida, é a de um pobre emigrante em Paris que tomou como objecto de furto a Mona Lisa. Foi em Agosto de 1911. O quadro era tão pouco visitado, no Louvre, que o ladrão teve tempo para o tirar da parede e enfiá-lo num saco a tiracolo, saindo do museu pela porta da frente. E depois enviou a notificação para o resgate. Só que esse roubo, nesse mesmo país que, até aí, não ligava peva ao retrato de Leonardo, desencadeou uma histeria nacionalista, no agitado clima político-social da época, já prenhe do que se transpiraria na I Guerra Mundial; o roubo motivaria manifestações concorridíssimas, vários quadros de teatro de revista, um sem número de capas e dossiers em revistas e jornais, e de repente, aquilo que era do domínio dos especialistas tornou-se público. Inclusive, para recuperar a perda, as actrizes de variedades mais conhecidas do momento e as cantoras de ópera posaram de Mona Lisa para as revistas ilustradas, penteadas como ela e com roupas mais ou menos similares. E o pobre do ladrão, que guardava o quadro debaixo da cama e viu a escala assimétrica que as coisas adquiriam, compreendeu que seria linchado se fosse apanhado e então reverteu a coisa e empreendeu num acto altruísta: devolveu o quadro, três anos depois.

E assim a Mona Lisa ganhou um estatuto que não tinha.

Estava até agora mesmo absolutamente convencido, e por isso contei a história, que o roubo tinha sido da autoria de um polaco. Armei-me de escrúpulos e fui verificar: afinal não, foi vilania de italiano. Mas tenho fé de que com origem polaca, não há outra hipótese.

Voltemos aos polacos, que estão na minha vida desde que os cinemas de Lisboa começaram a passar os filmes de Wadja e, sobretudo, de Walerian Borowczyk, cujos Contos Imorais e O Monstro, me deram a volta à cabeça. Mais tarde veio o maldito Poborsky, aviar Portugal, num campeonato da Europa, e uma miúda que eu desejava muito cortou-me as vazas, sentenciando que, se eu havia trocado um encontro amoroso com ela pelas vistas desse jogo (de má memória), nenhum outro encontro amoroso haveria de acontecer. E não aconteceu. Juro-vos: gostava muito mais dela que de Poborsky, mesmo quando se tornou a alegria dos benfiquistas.

Pela mesma altura, partilhei uma casa com um escritor surrealista, o Virgílio Martinho, e durante pelo menos um mês alimentámos uma rábula com polacos como protagonistas, uma louca fantasia sobre um polaco que tinha um mapa do tesouro no sovaco esquerdo. E a pedal das cervejas imaginávamos o que lhe acontecia numa pensão de menina no Cais do Sodré.

E, bem aviados, na cervejaria, líamos em voz alta o Testament, de Dominique le Roux, um longo e extraordinário livro-entrevista com Gombrowicz, que me levaria à leitura sistematizada da sua obra.

Depois chegaram os restantes poetas, sobretudo o Czeslaw Milosz, o Zbigniew Herbert, o Tadeusz Rózewicz e o Adam Zagajewski – grandes! O Milosz, uma vez escreveu este verso: «Que longe está a voz humana da mudez dos poemas!». É o que vos digo, os polacos, na poesia, são foda!

6 Jun 2019

De Eva para Lillith

[dropcap]I[/dropcap]sto anda tudo ligado, sendo, o mais das vezes, em rede, por contágio ou intoxicação voluntária, que a criatividade se insemina. Leio a sinopse de Um Homem é Um Homem de Brecht e percebo de imediato a fonte do Nicanor Parra para escrever o seu poema Um Homem. Tal como é nítida a sombra da faca de Macbeth em Faca Só Lâmina de Guimarães Rosa.
E talvez isso até não aconteça somente por refração ou influência, mas pelo que Benjamin insinua sobre BB e as autorreferências nos seus textos: «A relação que ele mantém com a sua história é igual à do professor de ballet com a aluna: o primeiro objectivo é flexionar as articulações dela até ao limite impossível».

Quando se lê numa atitude que não seja reverencial mas como quem participa num banho de ideias e formas, acontece que a boa sugestão do poema não nos pareça ser explorada a contento (a bailarina foi preguiçosa e as suas flexões não desenharam todas as figuras que lhe eram possíveis) e então assinalamos, anotamos a sugestão de uma emenda à parte ou fazemos uma variante, tornando-se esse poema matéria-prima para um delito.

Gostava de um dia ter a insolência para publicar um volume com os “poemas emendados” que guardo na gaveta, de vários poetas (no meu blogue, Raposas a Sul, expus um dos crimes que cometi: em Fortunata critica: Beirão no aeroporto).

Foi uma magnífica escola de poesia, esse manejo das facas do açougueiro; arroubos de uma montagem muito godardiana.

Nunca compreendi a atitude passiva, basbaque, diante de um poema. Uma coisa é a humildade e o reconhecimento dos nossos limites, outra o que nos é lícito fazer em privado para melhorar e expandir o estro que parcamente nos coube e aí o diálogo interpelativo com os textos dos ancestrais que escolhemos pode dar bons resultados e mais depressa, por saturação, escreveremos contra aquela orbe, afastando a influência. É como no luto, ultrapassa-se atravessando-o, com a dor e a irracionalidade necessárias. Tratemos a fascinação como um luto que temos de atravessar.

Quando cheguei a Moçambique, a erosão – humana, urbana e ambiental – que se me deparou era tão descomunal que tive vergonha pela frivolidade de noventa por cento das guerrinhas entre os meus amigos literatos, entre as diversas gerações ou capelas, mesquinhos dramas burgueses (e estendo a coisa aos que se julgam marginais e independentes), e durante algum tempo, face àquele choque da realidade, suspeitei do autárquico regime das metáforas. Deixei de conseguir ler Char ou Gamoneda. Do primeiro, só uma biografia que mostrava a dignidade do seu percurso de vida me recuperou o poeta; quanto a Gamoneda só o voltei a apreciar quando, após um jejum de cinco anos, me consenti voltar às metáforas.

Um dia numa aula abri a Poesia Toda do Herberto e li um poema aos alunos. Sangraram aquelas orelhas contra a espinhosa – sem referências mínimas para o desfrute e a beleza que, para mim, ali se engendrava; iluminando-se-me então que a beleza é algo que floresce na apropriação de um contexto -, e, simultaneamente, vi o aparato de que o poema se servia para camuflar que resvalava para uma vácua dimensão abstracta (- daí que, contra alguns, tenha gostado tanto do concreto para o qual guinou o Herberto, nos últimos livros). E a aula saiu dos eixos, usei de tesoura e cola e mudei o poema do Herberto, ou enxuguei-o em catorze versos. Telefonei-lhe para contar como lhe assassinara a vaidade, mas atendeu-me a dona Olga e de rajada perguntou sarcástica: “Então Cabrita, como vão essas pretas?”, o que me inibiu a tesão de mijo.

De outra vez, fiz crime de lesa-majestade ao emendar publicamente um poema de Craveirinha, um dos que mais gosto mas falho na chave final. Chama-se Exíguas Palavras: «Posso jurar que a solidão me tacteia. / Uma a uma esvaziando-se no rígido vazio / exíguas são as palavras que me ocorrem. / Rimas de livros fitam-me indulgentes. / Desde Camões ao Eça passando por Tolstoi / são-me vãs as respostas que contêm. // Um sobressalto interrompe-me a escrita. / Na maneira yankee de chamar deve ser o Hemingway. // Jamais estaremos socraticamente sós. Há sempre em nós um Chaplin. / Não são os grãos de areia um por um que povoam os desertos?// O que há de eterno não sou eu que tenho de o consumar. // É irritante o farfalho do vento nas persianas. / Mahatma Gandhi só sucede para os lados da Índia. // Não fumo. Volutas de cigarro são meu anacronismo. / Nem me faz sua volúpia a mínima gota de álcool. // Chateado levanto-me. Pressuroso. // Na torradeira as torradas estão a queimar-se.» Um homem faz contas à vida, às suas ilusões e precaridade das palavras, inexoravelmente sozinho com os seus modelos esfiapados pela realidade e que até os seus vícios vê declinar. Sobra-lhe apenas o riso com que a realidade num golpe brusco (maldita torradeira) se apodera do desanimo. Este poema é a branda ilustração de um ditado judaico que reza: “o homem pensa, Deus ri”, e no seu conseguimento é quase perfeito.

Mas não desisto de ser um leitor activo, e para mal dos meus pecados sempre li assim os versos finais: «Chateado levanto-me. Pressuroso. / Na torradeira as palavras estão a queimar-se.» Convençam-me de que não é o que falta ao poema.

O poema é, não raro, um caminho entre uma cidade e outra e é para ser transitado e intervencionado até que ambas as urbes cresçam intempestivas e num imprevisto sentido, e não a senhora púdica que não pode ser tocada.

Daí que escreva tudo de jacto e às vezes exponha esse precipitado no Facebook para me divertir, mas só o dou por acabado anos depois, estando a virgem convertida numa senhora muito dada à brincadeira. De Eva para Lillith, eis o caminho do poema.

30 Mai 2019

Profissão de fé

[dropcap]”A[/dropcap]os cento e dez anos de idade, cada ponto, cada linha que eu traçar vibrará de vida», previa o pintor japonês Hokusai no posfácio às suas Cem Vistas do Monte Fugi, e tenho para mim que ele tinha razão.

A obsessão da juventude, um dos efeitos que as obras de Mozart e Rimbaud imprimiram no sulco do modernismo, contaminou a sociedade de massas, impulso que depois o cinema converteria em “identificação com a luxúria de ser novo”. O rock e a contracultura consolidaram o mito da (eterna) juventude a que foi emprestado até um cunho fáustico; a hipótese de fazer “um pacto satânico”, em troca de um sucesso rápido, levanta como promessa saltar-se sobre várias etapas da vida, a longa duração a que a experiência obrigaria.

Hoje, os resultados desta «pressa em arder» são o mais das vezes frívolos, embora continue a haver quem logre grandes conseguimentos numa curta existência e, no domínio do rock, bastar-nos-ia a Amy Winehouse. Na generalidade, passa-se o contrário. A grande liberdade dos últimos Picassos ou de Rembrandt, o solto negrume de Goya na Casa do Surdo, os últimos quartetos de Beethoven, a qualidade de presença dos últimos desenhos de Hokusai, a qualidade iniludível dos últimos livros de Vicente Aleixandre, Mario Luzi, Seifert ou de Armando Silva Carvalho, a insofismável grandeza dos últimos vinte anos da carreira de Saramago. convidam-nos a encarar a idade como um delta que vai alargando o seu caudal (a isso exige a sua maior sedimentação) e não como uma espera em cujas ramagens se esgarçam os pássaros do outono. Em todos estes casos, quanto mais velhos mais jovens.

Tudo o que assinei até aos 38 anos, livros, argumentos de filmes, artigos, vogava ainda na lassidão imatura de quem crê pertencer a um circo imputrescível, tendo o nosso trapézio uma barra de ouro. Tolices. Retirei tudo da tábua bibliográfica.

É só pelo desapego que nos apercebemos que, na arte, não é a cola que faz a colagem. Esta é uma ilusão de todas as gerações. Outra: a que a expressividade tem de ter brilho. Com a idade começamos a almejar os “poucos recursos” do Harpo Marx, a inteligência da sua mudez. Menos palavras, mais densidade.

Afinal, não é tanto a literatura que interessa como descobrir que janelas abre a palavra para outro tipo de realidade; da mesma forma, o que nos transforma não é o que fazemos com o tempo (qualquer nababo endinheirado encontrará formas de despender o seu tempo) mas o indefinível movimento de dilatar o tempo. A poesia, a pintura, convocam a realidade, i. é, podem, num acto de reversão, exercer uma influência sobre o real, são operativas. Conta Simon Leys: «um cavalo dos estábulos imperiais de que Han Gan tinha sido encarregado de fazer o retrato pôs-se a coxear depois do artista se ter esquecido de pintar um dos seus cascos».

O bordado, o ronrom da literatura, não fica fora da agenda (estamos viciados nela) mas começa a atrair-nos os seus intervalos, onde, com sorte, desatamos a desempalhá-la. Pelo motivo que registou Bachelard: «A poesia é um dos destinos da palavra». Daí que a poesia seja imorredoura enquanto houver linguagem. Minimizar a poesia, querer reduzi-la à irrelevância, expõe na palavra a sua sombra em carne viva; só a poesia cura a palavra da funcionalidade e lhe dá ventilação. Sem a poesia, a palavra é um quarto carcomido pelo bolor, onde não chega a luz. A palavra tende a fossilizar, a poesia age como o emoliente que restitui a mobilidade às suas articulações. E, a ser sério, cada poeta será sobretudo «um investigador em poesia», mais do que uma personalidade poética.

O essencial, de facto, foi dito por Hokusai:

«Desenhava desde a idade dos seis anos toda a espécie de coisas, e a partir dos cinquenta os meus trabalhos foram frequentemente publicados. Mas até aos setenta anos eu não fiz nada que mereça verdadeiramente atenção. Não foi senão com setenta e três anos que comecei a compreender um pouco do crescimento das plantas e das árvores, a estrutura dos pássaros, dos animais, dos insectos e dos peixes. Aos oitenta anos, espero ter progredido nesta via e aos noventa poder penetrar até ao princípio latente das coisas, de maneira que aos cem anos tenha atingido na minha arte um nível maravilhoso. Aos cento e dez anos, cada ponto, cada linha que eu traçar vibrará de vida».

Na véspera dos oitenta anos, quando Hokusai desenhava uma mosca, no fundo só usava os dizeres da natureza – imitava. E pedia que o destino lhe desse mais dez anos para conseguir incubar na mosca o voo. Ou seja: toda a vida Hokusai desconfiou do seu primeiro esquisso. Mesmo já tendo direito a ele, pediu dez anos mais.

O traço justo ou a palavra justa, como lembra Júlio Pomar (e quando é que os poetas começarão a reivindicar este tremendo escritor?), não significa a justeza de um decalque mas o que “destapa” na forma um novo tipo de relação, seja a de uma imagem que de repente pulsa (a descolagem da mosca) ou a de uma palavra que desencadeou na frase uma corrente de ar.
Isto só se adquire depois de décadas a praticar, não é dado: é conquistado. Pior, durante o nosso trajecto de criadores, ensina-nos Matisse: «as regras, todos os ensinamentos colhidos no Louvre (da arte ou da vida), estão para o pintor como os flutuadores para o hidroavião: durante o voo a inutilidade deles é nula». Todavia, será vão querer ensinar ou transmitir isto – é preciso aprender para depois desaprender e essa experiência é indelegável, sendo isso que faz de cada uma um valor único.

Entretanto, di-lo o poeta sírio Adonis, o vento lê a rosas que o perfume escreveu.

23 Mai 2019

O ladrão de livros

(10/05/19)

 

[dropcap]E[/dropcap]u só conhecia o sofrimento, o mal revelou-se-me atrás de uma cortina africana. Já o vislumbrara noutras ocasiões, simplesmente não o soube reconhecer. E preciso sermos iniciados para topar no desenho dos indícios um padrão. Pode ser-nos interior, morde como o êxodo de que nos julgáramos apeados. Depende de nós ele tornar-se ou não nativo no território que nos religa aos meandros da alma.

Diz Le Clezio em O Êxtase Material: “a grande beleza religiosa, foi ter acordado para cada um de nós uma alma.” Sim, embora nos advirta François Cheng de que a alma possa ser movida pela perversão, por uma pulsão destrutiva. Todavia, Pierre Emmanuelle dá-nos o antidoto num poema: ” Toi, premier sauvé de Babel, non par vertu singuliere/ mais simplement parce que tu aimes”.

Por vulgar que isto pareça, reconheço que só o amor e o humor cauterizam os dois bordos da ferida. O mal existe, quer implantar os seus grampos na ferida mas é como a clara e a gema: pode ser isolado. Não rebentar a gema é quanto basta para não cedermos ao cinismo.

(12/05/19)

Volto a ler Bloom, O Cânone Ocidental. Um livro a alguns títulos estupendo, que não ganhou uma ruga. Mas parece-me irritantemente exagerada esta afirmação:

“(…) para centenas de milhões de pessoas que não são europeus brancos Shakespeare é um significante para o próprio pathos delas, para o seu próprio sentido de identidade com as personagens que Shakespeare faz cintilar através da sua linguagem. Para essas pessoas, a Universalidade de Shakespeare não é histórica mas fundamental, pois ele põe em palco as vidas de todas elas.”

A afirmação de Bloom é uma expressão do desejo, enganosa. E recorda-me a história de um aluno, numa aula em que eu apresentava Shakespeare. Falei-lhes dos filmes, prometi mostrar-lhes a versão pop do Romeu e Julieta, de Baz Luhrmann, com o DiCaprio; frisei, por fim, que o nome de Shakespeare é o que tem maior número de referências e entradas no Google depois de Deus.

Aqui um aluno levanta a mão para colocar em dúvida a minha estatística. E argumenta: não acredito, em Nampula eu nunca ouvi falar de Shakespeare!

A discussão foi alucinante pois, resumindo, aquilo de que não se ouviu falar em Nampula não pode concretizar-se em Marte. Àquele rapaz faltava a imaginação do bardo, ou as suas toneladas de curiosidade, pois uma coisa está ligada à outra.

Num livro de Vila Matas há um personagem que esteve na Suazilândia e garante: aí nem se produzem nem se vendem livros. Fiquei surpreendido quando li, agora confirmo: também nunca encontrei um livro na Suazilândia, onde o Shakespeare não será igualmente conhecido.

O moço tinha razão numa coisa: pelo menos um terço do planeta nunca terá ouvido falar de Shakespeare e não sofre de ansiedade por causa disso. Lá se vai o pathos para “o caraças”.

O que não me impede de partilhar a opinião de Bloom, Shakespeare é o referente humano incontornável e devia ser leitura obrigatória nas escolas de todo o mundo, pelo menos uma dúzia das suas peças. Quem não soubesse discretear sobre Shakespeare não obteria a licenciatura. Não creio que um país – qualquer – possa desenvolver-se sem celebrar Shakespeare porque, como Bloom advoga, ele inventou metade dos “tiques, manias e afeções” que motivam o humano – até o ciúme. É o meu fanatismo (e o dele)!

Quando era jovem e muito mais pobre do que hoje roubei livros, em livrarias e inclusive em bibliotecas. Uma vez no Seixal a rapariga da biblioteca pediu-me para ficar no lugar dela durante duas horas, pois queria namorar. Anuí logo e os bolsos do meu sobretudo também. Consegui aí a obra completa do Herberto. Do Shakespeare gamei quatro peças. Ela ficou feliz e eu idem. Quem roubasse livros de Shakespeare devia ser eternamente perdoado – primeira regra universal.

Aqueles anjos dos céus de Wim Wenders não se chutavam com “cavalo” mas com Shakespeare.
Ainda assim e, infelizmente, o Bloom não sabe o que diz naquele paragrafo e vê-se que pouco saiu de Nova Iorque.

(14/05/19)

Pepe Guardiola teve a elegância de agradecer ao Liverpool pelo triunfo mais difícil da sua carreira. Foi uma homenagem justíssima – a qualidade chama a qualidade.

A nova geração de escritores moçambicanos está a obrigar a velha guarda a trabalhos suplementares no espaldar para se manter na crista da onda. E, ao contrário de muitos, estão autónomos: criou as suas próprias editoras, os seus circuitos de reconhecimento internacional – não sendo por acaso que alguns dos seus representantes foram finalistas da última edição do Premio Oceanos, criou o seu Festival Literário, o Resiliência, que cumpriu na semana passada a sua terceira edição, com alguns convidados de relevo de Portugal, Brasil, Angola e Guiné. Tudo isto sem a tutela do estado, rompendo com vícios anteriores.

Virão agora “os profetas da anterioridade“ dizer que nada se passou, que os “miúdos” (recurso “desclassificatório”) estão por crescer. O que dói é que os miúdos criaram o seu próprio galinheiro e alguns, mutantes, apresentam quatro patas.

O escândalo da modernidade, para as sociedades tradicionais, também radica no ensinar-nos que, às vezes, são os mais velhos quem têm de estar à altura dos mais novos.
Leio na Erosão, da Gisela Casimiro, que veio ao Resiliência representar a Guiné: “Ele escreveu na areia/ o primeiro poema -/ multiplicado/ até aos nossos dias/ para a alimentação/ dos sensíveis.// Um destino impossível/ de ser sacudido.” Pois, conversas, foi a minha casa comer a açorda de camarão e depois aliou-se à minha mulher e filhas, num motim, a quererem reconduzir “o sensível” às dietas. Crueldades do feminino, já não há casas como antigamente, onde um homem tenha o exclusivo da moela e se jubile com peras ao vinho tinto. Admoestei-a logo: Ah, é assim? Agora só voltas para o ano! E em casa comecei a almoçar e a jantar de escafandro!

16 Mai 2019

Bertolt Brecht : the teacher

[dropcap]O[/dropcap] dr. Sigmund Freud disse uma vez uma coisa muito estranha: “Não parece ser possível de modo nenhum levar o homem a trocar a sua natureza com a da térmita.” Foi esse um dia feliz para Satã, em virtude do irresponsável optimismo do psicanalista.

Pelo contrário, foi arredado do horizonte político qualquer resquício do projecto iluminista, que visava o princípio de autonomia dos seres humanos, ideia que fermentou as próprias vanguardas artísticas do século xx, e que talvez tenha tido o seu último arauto em Joseph Beuys.

Hoje, talvez só na arte se possa alcançar uma promessa não frustrável de plenitude humana, mas, o que é sintoma da época, de uma forma individualizada que não admite já os movimentos. O que, se reforça a liberdade de alguns, torna patente que os projectos antropológicos se tornaram efabulações vazias e que a crise pode ser endémica.

Gravito na vertigem do vazio e da frustração, talvez por efeito do Congresso da Frelimo onde se demonstrou que – em nome da unidade – os homens avestruzes são e que um país pode afinal ser um Clube do Procrastinador.

O tanto que era preciso clarificar, discutir, esmiuçar, enfiou-se para debaixo do tapete e o carácter unanimista – quando seriam tão úteis as divergências e o debate que trouxesse uma aragem programática, sobretudo depois do desafio dos ciclones – respinga de uma evidência que devia ser tomada como tristeza e não como razão triunfante: não há alternativa à Frelimo.

É feliz o país em que a qualidade existe nas diversas facções que constituem o seu panorama político. Para isso seria preciso uma aposta séria na educação, o único combate. A democracia devia resguardar as suas quotas de esperança e não ser apenas o jogo formal que valida e impõe a grelha de adiamentos das discussões essenciais.

Dei uma palestra sobre Mercados de Arte e Tipologias Culturais. Às duas por três perguntei: “Como é viver num país em que não há validação social ou cultural fora do alinhamento político? Quando os artistas moçambicanos quiserem responder a esta questão talvez comecem a autonomizar-se”. Levantou-se um artista e, desviando-se da minha questão, vociferou contra mim e os mais “resíduos de portugueses” (os brancos) do país (e explicitamente o Mia Couto), num discurso de ódio que ainda se fundamenta na retórica da “mão externa”. Continua a ser dominante uma recusa generalizada pela auto-análise.

Também no Brasil os sinais são acabrunhadores. Os números demonstram que retirar-se a Filosofia e a Sociologia dos programas escolares foi a manobra de diversão para esconder o objectivo mais drástico: a maior talhada nos cortes para a educação deu-se no ensino básico.

Afinal, eles não querem, em vez de vez de filósofos, terem cientistas e engenheiros, não: eles querem ter térmitas. Estamos numa época que se péla por desmentir o dr. Freud.

Vem-me de súbito à cabeça que talvez o que caracterize este princípio do século seja o desenraizamento e a inadequação. E que motivados por estas duas afecções os governos, em vez de resolver os problemas que capricham em se apresentar complexos, tomem por desígnio, pelo contrário, cumprir literalmente o que se lê no poema de Brecht,  A (Dis)solução: «Depois da revolta de 17 de Junho/ Mandou o secretário da Associação de Escritores/ Distribuir panfletos na Stalinallee/ Nos quais se podia ler que o Povo/ Perdera levianamente a confiança do Governo/ E só a poderia reconquistar/ Trabalhando a dobrar. Pois não seria/ Então mais fácil que o Governo/ Dissolvesse o Povo e/ Elegesse outro?»

Querem a prova? Vejam o que se passa nos EUA. Eu não consigo descortinar o que valide a “chispa engenhosa” do “jogo de somas a zero” que o Trump pratica na sua guerra comercial com a China, a não ser com a chave do poema do Brecht. Ora veja-se:

«A fabricante de tratores Deere estima uma inflação de US$ 100 milhões nos seus custos com matérias-primas neste ano, por conta das tarifas de Trump sobre as importações chinesas. A empresa cortou gastos e ampliou preços para proteger seus lucros.

Um relatório de fevereiro do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA apontou que as taxas levaram a aumentos de até 12% nos preços de máquinas de lavar, em comparação com os valores de janeiro de 2018, antes da vigência das tarifas.

Os impostos sobre aço e alumínio elevaram os custos de produtos feitos de aço em cerca de 9% no ano passado, aumentando os custos para os que utilizam aço em US$ 5,6 bilhões, de acordo com um estudo do Peterson Institute for International Economics.

Empresas e consumidores norte-americanos pagaram US$ 3 bilhões a mais por mês em impostos por conta das tarifas sobre produtos chineses e alumínio e aço de todo o mundo, segundo um estudo do Federal Reserve de Nova York, da Universidade de Princeton e da Universidade Columbia. As companhias suportaram a adição de US$ 1,4 bilhão, nos custos relacionados com a perda de eficiência em 2018, mostrou o estudo.»

Comprova-se pelos efeitos da sua política nos tecidos industriais americanos: Trump, desgostoso com o seu povo, quer que ele trabalhe a dobrar. Ele garante que ganhará “a guerra”, mas a que preço? Todavia, tenho a certeza, estes braços de ferro serão exaltados pelos seus fãs e a irracional “virilidade” neles demonstrada há-de valer-lhe a reeleição.

Hoje, não tenho a menor dúvida de que os governos se sentem exilados no seu território. Veja-se o drama que o António Costa enfrenta com os professores – roídinho por um sentimento de exílio, face a um povo tão desenraizado que já não sente os dramas do governante. Os governos, para obstar estes problemas, deviam rodar. Governo eleito na Suécia trocava de povo com o da Suazilândia, por exemplo.

Os Congressos dos Partidos deviam ter a mesma lógica de desterritorialização. Podiam realizar-se todos na Califórnia e trocarem entre si as resoluções finais. Ou esperem, façam-se antes em Curitiba, o Bolsonaro garantiu que fornece “as gajas”.

9 Mai 2019

Da telha ao Brecht

25/04/19

 

[dropcap]C[/dropcap]omecei o ano com a telha. A esgravatar no imenso abismo que, no dizer de Camilo José Cela, se abre entre estar hodido e estar hodiendo. Nos primeiros dois meses, no plano existencial, obcecavam-me os borrifos de sangue que redemoinhavam no caustico bafo de uma estrela negra.

E de repente abriu-se uma fissura no denso negrume da estrela negra: o convite para um projecto muito desafiador. Como as coisas chegam em séries, na semana seguinte recebi outro convite para um projecto irrecusável. Em ambos trabalho, neste momento.

É do segundo que falarei primeiro.

A mensagem surpreendeu-me: conhecia de nome a actriz e encenadora e vi alguns dos seus trabalhos, mas há quinze anos que estou fora e desconhecia que entre nós havia elos. Felizmente que os havia. A Maria João Luís convidou-me para escrever uma peça tendo como objecto a (complicada) relação entre o Bertolt Brecht e a Helene Weigel (sua mulher e diva), no momento em que encenavam a mítica versão da Mãe Coragem.

Há desafios a que não se pode dizer que não, se chegam no momento em que se está maduro para não estragar o embrulho da bela complexidade que nos puseram ao colo, e ao entusiasmo (primeira acendalha da criatividade) já aliamos a disciplina.

Estou radiante, e prometo que irei falando dos matizes que trouxerem a hulha a esse fogo.

O primeiro livro em que peguei foi o Intelectuais, de Paul Johnson, que aí desfila retratos incisivos de 13 intelectuais entre os quais Ibsen, Tolstoi, Hemingway, Russell, Sartre, Edmundo Wilson, Lillian Hellman… e Brecht. E terminam assim as suculentas quarenta páginas dedicadas ao dramaturgo alemão: «Neste relato tentei encontrar algo que dizer a favor de Brecht. Mas, salvando o facto de que sempre trabalhou muito e que durante e depois da guerra enviou encomendas com comida para a Europa (ainda que isto possa ter sido obra de Weigel) não há nada que se possa dizer a seu favor. É o único intelectual, de entre os que estudei, que parece estar destituído de um só rasgo que o redima.»

Logo no início fôramos avisados: «De facto, inventou um tipo novo de intelectual, como o fizeram Rousseau e Byron no seu momento. O intelectual novo modelo de Brecht, de que ele mesmo foi o protótipo, era áspero, duro, desapiedado, cínico, em parte gangster, em parte entusiasta e desportista.»

O livro é informado, num bom balanceamento entre vidas e obras, e não se exime nem de mostrar o brilho nem as contradições dos retratados, à vez magnéticos e perigosos.

Entre o tanto que aprendo, enxergo que só o facto de Brecht ser um santinho da esquerda nos impediu de ver o grau zero do seu comportamento ético e a dimensão canalha da personagem, na verdade, um péssimo exemplo, que nem Auden, um santo católico, (que colaborou com ele), consegue poupar – classifica-o assim: um filho da puta. É definitivamente um personagem fascinante, já que a qualidade da obra ninguém lha tira.

Embora mesmo aqui haja nuances: Hannah Arendt, num excelente ensaio, defende que tudo o que Brecht escreveu depois do casal regressar à Alemanha e de terem criado o Berliner Ensemble, é inferior ao que escreveu antes. Juízo que só poderei avaliar depois de ler detidamente cinco mil páginas de e sobre ele. Aliás, decidi começar por uma peça póstuma: A Judith de Shimoda; já que ando a rever Ozu e Mizogushi vem a talhe de foice. E o primeiro ensaio será o da recolha dos textos do Benjamin sobre o seu amigo Brecht.

27/04/19

«“O Brasil não pode ser o país do turismo gay. Quem quiser vir aqui fazer sexo com mulher, fique à vontade. Agora, [o Brasil] não pode ficar conhecido como paraíso do mundo gay”, disse Bolsonaro em café da manhã com jornalistas.»

Nem sei como reagir a semelhante barbaridade.

Quando era miúdo não havia gays. Havia homossexuais, panilas, ou larilas, consoante o estrato social de quem aludia ao “fenómeno”. Os primeiros dois homossexuais de que me lembro, eram justificados por causa de um desastre de automóvel de que haviam sido vítimas: fora o efeito colateral.

Depois descobri que o meu tio. Que dois amigos de infância, e três da adolescência. E que uma namorada um pouco rezinga que tive, afinal. Eu próprio a dado momento senti-me um miserável porque não tinha Veneza nem me aparecia um Tadzio para me desviar da minha via straight, pois, esteta e curioso, achava que isso podia dilatar o meu campo da percepção humana. Ou seja, cresci num momento em que essa dimensão ontológica estava inibida no horizonte do meu piqueno mundo para depois a ver desabrochar sem medo e ela se tornar um dos pilares de uma consciência finalmente em simbiose com a liberdade do corpo. Descobri em seguida que, em Roma, o generalíssimo, o vigoroso, o estratega único, o grande Júlio César era conhecido como “o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens”, e que, se eu tivesse nascido romano e a coisa fosse só cultural, a minha hipótese de ser bissexual era descomunal.

Nunca mais consegui deixar de respeitar as escolhas de cada um e um dos filmes da minha vida é com certeza O Jogo de Lágrimas, do Neil Jordan.

Certo é que nada me preparou para a evidência de que o Brasil – o país de Drummond, de Hilda Hilst e Lispector – tenha agora um presidente que, depois de ter assegurado que as posições que o Brasil assumiria na ONU se orientariam pela Bíblia, tenha agora declarado que, apesar de ser absolutamente contra Sodoma, o Brasil é uma Gomorra aprazível, de lubricidade à flor da pele e de pernas eternamente abertas para o turista – declarações que me parecem pouco apostólicas e me deixam literalmente estupefacto.

Mas isto sou eu que sou ateu, havendo mistérios da fé que nunca poderei compreender.

2 Mai 2019

Ressonâncias

[dropcap]H[/dropcap]á obras que nos tocam pela densidade humana que nelas perpassa e não por outras qualidades específicas, técnicas e formais – a obra até pode ser lisa, mediana, coxa.

No cinema isso é muito claro. Lembro-me do delicioso Saint Jack, de Peter Bogdanovich, um filme “menor” dos anos oitenta com uma personagem maior do que a vida, e onde Ben Gazzara interpreta um americano “exilado” e que actua ou como um proxeneta muito especial ou um facilitador de negócios, iluminando com a sua sageza as noites de Singapura.

A dado momento Jack é colocado diante da tentação de se tornar um delator, em troca de uma quantia que lhe permitiria regressar à terra. Mas a sua “pureza” é a liberdade com que agencia vidas sem com elas interferir, e escolhe permanecer na sua “pobreza essencial” – afinal, o seu modo taoista de “seguir a linha da água” e de estar em ressonância com o mundo, numa conectividade concreta. Revi-o agora no YouTube.

Mais recentemente recordo-me de outro filme (também está no YouTube), O Visitante, de Thomas McCarthy, interpretado por Richard Jenkins, de 2008, que a política de Trump em relação à emigração actualizou.

Um renomado professor de economia, Valter, epítome de uma classe média de sucesso, atravessa uma crise por causa da viuvez que lhe revelou a irrelevância dos seus valores. Sente-se agora um “homem sem qualidades”, que vive agarrado às memórias da sua mulher, uma pianista de carreira, ao ponto de sem qualquer sucesso querer aprender a tocar piano.

A contragosto, vai a Nova York dar uma palestra, onde mantém um apartamento. Chegando lá, descobre um casal de imigrantes ilegais a viver no apartamento, ele árabe, ela negra. Mas, sendo um homem sem reservas mentais percebe que eles foram enganados e deixa-os ficar.

Tarek, um jovem sírio-libanês, é percussionista e a música acaba por tecer entre os dois uma verdadeira cumplicidade. Valter percebe que afinal não é um caso perdido para a música, apenas estava enganado no instrumento.

Por acidente, Tarek é preso e deportado, a sua namorada tenta desaparecer no anonimato, e Valter, que luta contra a desumanidade com que as autoridades tratam Tarek, acaba por se envolver com a mãe deste, uma mulher decente e educada, chegada do lado dos derrotados da História, para se inteirar da situação do filho.

No fim ficam todos sozinhos porque a vida não se compadece, mas Valter está mudado e o filme acaba com o académico e reputado palestrante a tocar tambor no metro.

Valter toca tambor no metro para se identificar com Tarek, essa figura anónima do bem que as absurdas e cínicas leis humanas penalizam, e para tentar recuperar o que aprendeu com ele: a Ressonância, essa sílaba de uma frase que só no transporte de um ritmo (fantasmaticamente colectivo) se deixa formular como um lugar (mental, atópico) onde o mundo deixa de ser um estranhamento.

Ao resumi-lo, reduzimos à caricatura este filme sóbrio e aparentemente simples, com quatro personagens e um drama atualíssimo, mas o que nele vale é a densidade das personagens e o seu subtexto: creio que a ressonância neste filme é a metáfora para falar da escuta, o seu primeiro tema, ou antes, da escuta deficiente com que nos condenamos ao isolamento social. Vivemos em sociedades doentes porque já não nos escutamos nem aos outros nem a nós mesmos, e a pele do tambor é aqui o tímpano que nos falta.

Nas sociedades actuais, como diria Sloterdijk, somos sempre convidados a ouvir o que ajuda a não ouvir o mundo e a alteridade. Valter enganara-se anos a fio de instrumento musical porque, preso às imagens da sua mulher e à sua música sedativa e funcional, deixara de se ouvir.

O outro grande tema do filme é, concomitantemente, o da hospitalidade.

A hospitalidade não é apenas o acolhimento do outro, mas o modo como através da presença do outro no meu espaço vital eu deixo de mentir a mim mesmo. Como nos ensinou a psicanálise, a mentira a si mesmo é primeiro que tudo uma proteção narcísica, defendemo-nos contra a imagem desfavorável que podemos dar de nós mesmos; neste sentido, a mentira secunda a intenção de quem tem vontade se perseverar a si mesmo. Lidar com um outro, o que acarreta tensão, obriga-nos a resolver este estado de reféns da consciência intencional e a transitar mais rapidamente para o plano da verdade.

A hospitalidade não abriga então apenas as dimensões da fraternidade e da responsabilidade, é igualmente um passo essencial para o amadurecimento e o auto-conhecimento. É outra forma de ressonância.

E isto serve tanto para os planos individuais como colectivos.

Também no Youtube, à procura de estudar a estrutura de várias óperas, por súbita necessidade profissional descubro uma versão inteira (e legendada) da Carmen, de Bizet, com a romena Angela Gheorghiu no lugar da protagonista, que me fascina. Como até agora andava distante da ópera não tinha dado conta do trabalho desta intérprete, não só no canto como no magnetismo que transmite às personagens. E há um pormenor da encenação que amplifica a força e sensualidade da personagem: quando a Carmen está em cena há uma máquina de vento ligada que lhe electriza o cabelo e o corpo. O fito é dar-lhe uma aparência indomável, e o instrumento é, de novo, a ressonância. Três obras magnificas para rever muitas vezes.

25 Abr 2019

Revisão da matéria dada

[dropcap]U[/dropcap]ma reportagem no Notícias, de Maputo, relembra-nos como pode descer o homem, na escala dos ratos. Aí se lê: há mulheres moçambicanas a serem forçadas a actos sexuais em troca de ajuda humanitária, na sequência da destruição causada pelo ciclone Idai.

Emergem, em todos os lugares, em estados de crise, comportamentos deste tipo – da Croácia, ao Ruanda, ao Brasil de Bolsonaro: um artista é morto com oitenta tiros e ao Ministro da Justiça só lhe ocorre comentar, “acontece!”. Como em todos os períodos sombrios, flirtamos com o pior da pluralidade humana, à escala global.

Uma educação a sério conseguiria inculcar uma maior humanidade, a civilidade, no comportamento das criaturas? Face à insensibilidade de Moro levantam-se dúvidas mas atenuaria o número de ocorrências bárbaras; uma verdadeira educação humanista reforça o respeito pelo outro e a compaixão.

Entretanto, li um livro a vários títulos interessante, Le Battement du Monde (A Pulsação do Mundo), um diálogo entre dois pensadores: Peter Sloterdijk e Alain Finkielkraut. O livro surpreende pela actualidade, apesar de ser de 2003, sobretudo no diagnóstico traçado no capítulo O Estádio e a Arena.

Vou resumir alguns dos delineamentos aí esboçados. Nada de muito novo, simplesmente bem sistematizado:

«Na hora actual, a psicose de massa mediática substituiu integralmente o senso comum, esse maravilhoso órgão de uso democrático da inteligência colectiva».

Isto é muito claro para quem acompanha no Youtube a caricata evolução política no Brasil, onde enxameiam os canais, individuais ou colectivos, que pretendem substituir o papel dos media tradicionais. No geral, percebe-se que o que move o homem é a ilusão. Depois, a prática prevalecente (muito mais nos representantes da direita do que nos da esquerda) não é a de esgrimir argumentos mas a de taxar os adversários com etiquetas infamantes ou denúncias moralizantes. Modo de ser que se locomove segundo uma espécie de princípio da razão insuficiente herdado da retórica de guerra (em frívolos mas agressivos jogos de linguagem) fomentada pelos jacobinos no período de radicalização da Revolução Francesa. Eles compreenderam, explicam-nos os autores, que, para sobreviver na turbulência permanente, é preciso ser o primeiro a caluniar.

«A calúnia é a primeira arma do povo, ou melhor, dos amigos do povo», e o volume das calúnias urde rapidamente uma “sociedade do escândalo”, a qual garante uma rede à prática da calúnia e nos reenvia para o primeiro teatro da crueldade: o circo romano.

«Se, agora, alguma coisa não funciona no sistema mediático mundializado é por causa desta conversão cada vez menos secreta, cada vez menos decente, do espaço público num circo (…) O espaço público é penetrado por dois mecanismos de competição: aquele das acções de opinião e o das sensações circenses.

Nos nossos dias, a questão é de saber se existe uma vida fora do circo. A maior parte dos nossos contemporâneos responderá pela negativa. Eles estão convencidos que só o circo proporciona a vita vitalis, essa vida desdobrada de um sentimento de significação».

Acresça-se a isto, que decalca o que se passa (eles terem-no detectado em 2003 só confirma que há várias velocidades na globalização), duas outras características concomitantes:

A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa.

Repare-se em como o circo da opinião dos canais se transforma numa caça ao níquel. Quem mantém um canal lucra na proporção do número de likes e de visitas; daí que seja preciso dramatizar, acrescentar elementos de sensacionalismo à matéria, para que o vídeo seja mais impactante. Rapidamente as mensagens se convertem em slogans e os argumentos preterem à verdade os efeitos da retórica. O que imita a lógica televisiva. Quando vejo o Olavo de Carvalho a perorar para as centenas de milhares de pessoas inscritas no seu canal, e a usar-se da soberba que o faz afirmar ser o único escritor brasileiro que conhecerá a posteridade, tentando convencer os seus fiéis sobre o geocentrismo e que o Einstein era “um babaca”, só me lembro daquela questão de Brecht: “Que é roubar um banco, comparado com fundá-lo?”.

Esbateu-se a consciência do valor civilizacional, o sentido do respeito pelo adversário e as boas regras intelectivas. O que faz a grandeza das personagens num filme como A Grande Ilusão, de Renoir?

A monetarização da “verdade”, ou seja, a opinião pública transformou-se numa Bolsa

Aquilo que parece uma ideia inócua a borbulhar numa proveta burguesa, é mais sério do que se afigura. Não apenas à superfície isso sustente a vaga de anti-intelectualismo que vemos emergir por todo o lado, como é sintoma disto: «Os novos denunciantes, no momento do insucesso, tentam mudar as regras do jogo. É isto, o fascismo. Deixa-se cair as boas maneiras do combate quando se compreende que na arena actual há risco de se perder a vantagem. Produz-se então um último esforço desesperado para negar a derrota. É por esta via que o terrorismo jacobino se volta a instalar na nossa cultura.»

Onde fica a ética no meio desta amálgama de tudo ao molho e fé na calinada? Talvez um princípio dela seja esboçado pelos autores quando defendem: «(…) é preciso reformular um código de combate, implicando o cuidado do inimigo. Quem não quer ser responsável por um inimigo já cedeu à tentação do tanto pior melhor. Querer ser responsável pelo seu inimigo: o gesto primordial de uma ética civilizadora dos conflitos. Se a forma do “celerado” é a única maneira de conceber o inimigo, aí estamos já embrulhados no massacre imaginário.»

Será isto entendido por poucos, paciência. Começa-se sempre por poucos. Na Grécia antiga inventaram-se os Jogos Olímpicos como uma emulação da violência e a competição agónica substituiu a guerra. São de soluções deste tipo – que implicam um reforço da simbolização, i. é de um retorno da astúcia, da persuasão, da inteligência e da capacidade interpretativa articuláveis no espaço público, contra a literalização cognitiva e a calúnia que aí se jogam – que o futuro necessita para se proteger.

18 Abr 2019

Da tristeza

08/04/2018

 

[dropcap]T[/dropcap]inha passado a tarde com o poeta Luís Carlos Patraquim e pelas dezoito ele sugeriu, Vamos visitar o Craveirinha, que está de passagem por Lisboa.

Apanhámos um táxi e quinze minutos depois uma figura plúmbea abriu a porta. En-trámos numa casa soturna, velada por pesados reposteiros e por cores escuras nos mó-veis, maciços, e nos sofás.

E lá estava o poeta, com o semblante mais infeliz que me lembro de ter visto na vida. O Patraca apresentou-nos mas, face ao viático da tristeza, como reagir? O Patrarca tentou uma e outra vez levar o vate a sorrir, mas, atrás do olhar enfermiço, via-se: nevava.

Saí dessa casa com a impressão de ter visitado um castelo desmoronado; alguém que sobrevivera a uma infâmia para agora, a custo, mungir a dor de viver. Não me admirou que pouco tempo depois morresse; aquela presença tersa, fragilizada, subtraída à ilusão de qualquer palavra esfarelava-se à nossa frente. Recebera o Prémio Camões há pouco tempo mas pelos vistos fora tarde.

Creio que o José Craveirinho nunca se livrou do sentimento que o levara a escrever As Saborosas Tangerinas de Inhambane, um poema de revolta e de profunda decepção face ao rumo do país.

Leio agora que cerca de um milhão de crianças moçambicanas estão envolvidas nas piores formas de trabalho infantil, de acordo com os resultados do estudo realizado pelo Ministério do Trabalho, Emprego e Segurança Social (MITESS), em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane-UEM.

Um milhão. E essa pesquisa fornece indicações específicas sobre as piores formas desse trabalho infantil: a mineração do tipo garimpo, a prostituição, o tráfico de drogas e o transporte de carga pesada.

Lembro-me de numa visita ao Gabinete Contra a Violência Doméstica, na Beira, ter ficado assarapantado porque até 10 de Março de 2010 – ano em que fiz a investigação -, haviam sido registadas na polícia, só nesses dois meses e meio, 110 crianças abandonadas. E do meu horror ao ter multiplicado isso pelo número das cidades existentes em Moçambique.

Passo a página e leio que Moçambique perdeu, nos últimos 15 anos, cerca de quatro milhões de hectares de floresta, devido à exploração desordenada e outras acções humanas.

As províncias de Nampula, Manica e Sofala são as regiões do país que apresentam o maior desmatamento. Este cenário, dizem os especialistas, ganha contornos preocupantes, agravados pela fraca reposição destes recursos; revela o especialista Credêncio Mahunze: “A província de Nampula, nos últimos 15 anos, perdeu mais de metade da sua área florestal, e se o ritmo continuar, nos próximos 10 anos, podemos não ter florestas nos próximos dez anos”, diz. O que terá efeitos no desencadeamento de um processo de desertificação e, evidentemente, numa alteração do clima local.

Moçambique, leio, perde igualmente elevadas somas com a exploração ilegal da madeira, cujo mercado principal é a China: pelo menos 540 milhões de dólares da venda de madeira não foram para os cofres do estado, entre 2003 e 2013.

Bom, Celso Correia, ministro da Terra e Ambiente, diz que o governo aposta na reforma do sector de florestas e em novos modelos de fiscalização; o mesmo governo que tem fechado os olhos ao saque.

Não creio que estas medidas venham a tempo de abafar as lágrimas não derramadas pela sombra do poeta, irmãs da tristeza que sentia.

09/04/2018

Tive um sonho, uma variação de Fausto; desta vez passa-se em África.

Matusalém – assim alcunhado por ser eterno, mais o seu partido, na chefia do governo – está deprimido: não vê mais nada a que deitar-se a mão.

As riquezas florestais foram delapidadas, vendida a madeira ao desbarato, o que degenerou numa desertificação crescente. Grande parte da mineração continua sem controle, explorada por “camaradas” que desviam para contas no estrangeiros os lucros em vez de os aplicarem na construção de infra-estruturas. Também a agricultura foi desmantelada – num país de terras férteis e bastante irrigado, nem um tomate agora se produz. As poucas fábricas de têxteis foram cilindradas pelas “calamidades” – o negócio que resgata a misericórdia dos países ricos, colocando nas ruas fardos de roupa a preços da chuva. As praias foram vendidas aos lodges estrangeiros. Os elefantes e rinocerontes contam-se agora pelos dedos, pois todos ganharam com a caça clandestina. A riqueza piscícola encontra-se depauperada, depois de décadas de varredura dos leitos do mar por frotas soviéticas e depois chinesas, que nada respeitavam nem tinham defeso. A corrupção alargou-se aos níveis mais capilares.

Matusalém está deprimido: para que raio estar no poder se daí já não vêm vantagens? Só abafar os escândalos, não lhe parece motivador.

Resolve endividar o país, nas costas de um parlamento que nunca respeitou. Em biliões.

E então aconteceu algo inesperado. Um ciclone de inolvidáveis proporções arrasa a segunda maior cidade do país e alaga um território imenso, provocando uma tragédia nunca vista.

Matusalém fica desesperado. Como mostrar uma competência técnica nunca antes exibida para levantar o país da calamidade, sem vislumbre de algo que tenha sobrado e que possa ser depredado?

E então, num rasgo, sugere-lhe o primeiro-ministro. O Presidente convoque o Diabo, ele atenderá.

Podemos vender a sua alma para salvar o país. Parece um mau negócio mas é o melhor. Seremos perdoados, tudo será esquecido, e morreremos ricos e benfazejos. E o Presidente será recordado como o grande salvador.

Melhor plano não havia. Recrutaram-se os melhores espíritas do país e, sob tremendos rituais, convocou-se a Besta. Uma, duas, três vezes, mas o Diabo não reagia.

Convocou-se o diabo uma quarta vez, com sacrifício do último rinoceronte, duas girafas e três pacaças. E aparece um furibundo Balzebu no seu lugar, que atira, dirigindo-se a Matusalém: «Não sei para quê este disparate de te convocares a ti próprio, mas estás a pôr alguns vulcões submarinos furiosos! Cuidado com o que vem aí!”.

Foi aí que se soube que o Diabo sofria de Alzheimer.

11 Abr 2019

Os pés pelas mãos

[dropcap]E[/dropcap]xigiu Donald Trump aos norte-coreanos que eles transferissem todo o seu arsenal nuclear para os EUA, sem explícita garantia de que o guardariam com inigualável segurança e particular atenção à fadiga dos materiais.

Acho um plano genial e não vejo motivo para não ter desdobramentos, a todos os níveis.

O Brexit, por exemplo, resolvia-se trocando os cidadãos britânicos com os húngaros. Estes, às margens do Tamisa ganhariam a cor louçã dos ingleses e posturas democráticas. Deslocados os problemas, estes deixariam de fazer sentido. Nem todos os britânicos seriam deslocados, Theresa May manter-se-ia na ilha para ensinar os preceitos da etiqueta a Viktor Orbán. A rainha Elisabeth II de Inglaterra, como no youtube a dizem reptiliana, seria substituída pelo melhor ginete cigano de Budapeste – um equídeo, além de especialista no xadrez como o comprovou Swift em As Viagens de Gulliver, enobrece sempre qualquer réptil.

Eu próprio já exigi ao meu vizinho de 26 anos, com quem não me dou nada bem e que tem o meu porte, que me ceda o esqueleto dele; em ficando com os meus bicos-de-papagaio baixará a gripa.

De Donald Trump só me interessa a cabeleira; dispenso-lhe o “arsenal”, para cogumelo basta o meu. Para compensar, estou a investigar sobre o “pinto” de Leon Tolstoi, e, por intermédio de um espírita amigo, negoceio o nosso transplante de pélvis. À minha mulher há-de agradar esta nova Guerra e Paz! (à mulher do cronista, não confundam sujeito da crónica com o sujeito civil – mas não lhe digam, que é surpresa!)

Ah, como serei dedicado e preventivo contra a fadiga dos materiais!

E a Putin, por que não exigir o mesmo a Putin, ó Donald?

Segredaram-me que os chineses se prontificam a entregar aos EUA toda a tecnologia referente à Inteligência Artificial, desde os segredos da HUAWEI ao fabrico das robots-sexuais que fazem boletins meteorológicos e traduzem os poemas de Li Bai.

Cuidado América, esta oferta pode não passar de um cavalo de tróia, embora, nesses domínios, quem melhor para cuidar da fadiga do material?

Entretanto, parece que nos campos de golfe de Trump – delataram os funcionários – só ele pode ganhar. Quem lá vai deixar o couro e o cabelo por uns metros de relvado e a codicia dos buracos, tem de ceder à prerrogativa. Os milionários pagam para se comprometer a deixar o boss ganhar.

Uma medida digna de Kim Il Sung, avô. Foi o que os terá aproximado da primeira vez? Contudo, agora, Kim ficou ofendido por considerar que a proposta americana apontava para a crença de que haveria nele uma fadiga da inteligência.

Foi-me pedido um parecer sobre esta matéria e prometo depois divulgar o meu relatório.

Esta semana foi farta em acontecimentos. Escreveu-me a Joice Hasselmann, representante do partido de Bolsonaro no Congresso. Eis o teor da missiva:

«Meu caro Cabrita
a política é como a pesca ao corrico – lança-se o isco para longe e vai-se puxando, a ver se pica cardume… O Jair Bolsonaro nunca foi desses pescadores que fazem de cegonhas no mercado antes de voltarem a casa. Onde deixa cair o anzol é certinho, só não vêm sereias porque a Michelle não deixa. Mas muito robalo, pirarucu, dourado… até o atum, conhece? O atum prostra-se aos seus pés. E o Jair sabe escolher a melhor minhoca, a corrente do peixe, os ventos favoráveis… com ele não há demoras. Uma genebrazinha apura-lhe o faro, a intuição. Só peixes nobres. Nesse dia foi à pesca, a espairecer, consumia-o a política do PT. Contra os vermelhos, um peixinho de sangue azul, porque ele se põe o anzol, até o lagostim trepa, mesmo o macho… Teria sido escusado ele levar a melhor cana, uma cana de carbono, de quatro metros, que tinha comprado em Montevideo, para ali era desnecessário, mas um homem tem a sua vaidade! Uma cana de carbono, negríssima, com uma flexibilidade que não se via em mais nenhuma. Ainda dizem que o Jair é racista… E estava por ali, na Estação Ecológica de Tamoios, entre Angra dos Reis e Paraty, sossegado a contar as guelras que se iam amontoando no balde e congeminando como salvar o país dos comunistas quando apareceu aquele fiscal, O senhor não pode pescar na Estação, é proibido. Mas sabe quem eu sou, perguntou-lhe o Jair, eu sou o próximo salvador da pátria. Pode ser, mas eu sou do Ibama e hoje tem de tomar multa, 10 mil reais. Olhe que eu vou salvar o país, eu nunca minto! Eu até acredito no senhor, mas lei é lei… e aplicou-lhe a multa. Há dez anos, senhor Cabrita. Eu sei que parece coincidência ser o único fiscal do Ibama exonerado agora que o Bolsonaro chegou ao poder, mas é preciso ser muito caro de pau para achar que neste gesto de despedimento houve ressentimento. Repare, o espírito religioso é o mais apto à defesa do Meio Ambiente e esse senhor não era um simples fiscal mas um Chefe; ao não reconhecer em Bolsonaro o seu dom e a sua missão mostrou como estava despreparado para o cargo que ocupava. Quando Cristo fez secar a figueira que não deu frutos à sua passagem houve todo este sururu? Então? Ainda vai ser estudado: a Parábola do Peixe Ilícito. Sei que o senhor é um jornalista sério, e por isso passe a Palavra. Sua, Joice”

4 Abr 2019

Ácaros & Orgasmos

[dropcap]G[/dropcap]eorge Steiner, no discurso de agradecimento ao honoris causa atribuído pela Universidade de Lisboa, teve este desabafo: «É possível que as humanidades nos tornem menos empáticos, que elas nos proporcionem uma enorme riqueza interior que nos torna menos capazes de reagir imediata e vigorosamente à necessidade humana. A necessidade humana é frequentemente estúpida, desordenada desprovida de beleza». (Das cinzas do silencio à palavra de fogo, Porto, Exclamação, 2018)

E proferiu este juízo contra si mesmo; toda a vida defendeu que as humanidades humanizavam, ei-lo aos oitentas a pôr a hipótese contrária, embora sob ressalva: «espero estar enganado».

A hipótese levantada é terrível. Talvez a frequência excessiva da arte nos amortize a sensibilidade, reféns da literatice. Quanto mais consumidores da cultura e da arte mais alheios à sorte do que está “lá fora”? Ver a beleza de uma fotografia de Sebastião Salgado afinal imuniza-nos de questionar a pobreza?

Talvez o mal emerja do cruzamento de quatro coisas: uma mutação da cultura de massas, o “apagamento” da mathesis e da memória e a bomba demográfica.

Quando havia um vislumbre de mathesis (a hipótese de uma ciência geral que articule os diversos horizontes do saber) confiava-se numa maior correspondência entre a sensibilidade, o conhecimento (científico ou artístico) e a moral.

Hoje, alia-se à suposta falência da mathesis uma depauperação da memória e a pulverização da cultura humanística, degradada pela asfixiante auto-referencialidade das indústrias culturais – a minha filha de 15 convidou-me a ver “um filme espectacular com a Lady Gaga” e afinal era a quinta versão de A Star is Born (fraquita). Mas como ela não tem memória das outras… E lembremos como as televisões viram sobre si mesmas “as janelas para o mundo” e se saciam na circularidade auto-referencial (- fenómeno a que Eco chamava a neo-televisão).

Entretanto, o conhecimento foi preterido pelo entretenimento, o qual sustém o seu foco na sociabilidade: se não vemos a última série de televisão, a peça de teatro mais badalada ou lemos os livros mais vendidos, quem somos? As indústrias culturais oferecem catálogos de “novidades”: as emboscadas e solicitações em que enredamos gratuitamente o nosso tempo. E o gosto médio vai baixando de nível porque, de sempre, a qualidade que emerge de uma “sensibilidade prospectora” não pode ser a de todos, nem muito menos de massas. E aquela implica trabalho, erudição, distância e risco.

Se hoje se confunde na democracia (do gosto) a hierarquia da popularidade com a do prestígio, foi a forma do sistema desviar para as performances económicas os critérios que deveriam assentar na qualidade formal e orgânica das obras. Porém, apesar de José Rodrigues dos Santos vender como pãezinhos, é um lixo, não é Lobo Antunes: diferença facilmente verificável no modo como um e outro trabalham a linguagem, os seus supostos materiais.

Recordemos uma maravilhosa formulação do maliano Tierno Bokar, segundo o seu discípulo Hampaté Bâ:

“A escrita é uma coisa e o saber outra. A escrita é a fotografia do saber mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem.”

Bokar prevenia, como Platão, contra o fetichismo da letra impressa, mas o seu aviso ajusta-se hoje igualmente aos estereótipos das indústrias culturais e até ao nó cego cognitivo que impera nas redes sociais.

Ao mesmo tempo, o mercado oferece um índice de satisfação imediata que se entrosa num tipo de cultura remix (Rui Chafes), de horizontalidades, onde tudo se equivale e rapidamente fica obsoleto. Hoje, quando a opinião de um especialista se equivale à de um ignaro nas redes sociais estamos diante de letras mortas, das fotografias do saber. Contudo, o gosto da maioria, ilusoriamente reforça-se com a explosão demográfica; à maioria, que tem sempre um anseio pela metade, um querer pela metade, é indiferente que seja absolutamente distinto saber como funciona a máquina de lavar roupa ou como apertar o botão.

Quando estabelecemos com a cultura uma mera relação petisqueira, heterónoma, i.é, de divertimento e descarte, não se produz aí, em termos humanos, nenhum campo novo de valores e de relação. Pelo contrário, a experiência estética profunda, implica uma vulnerabilidade – nela, a nossa percepção sobre as coisas, o mundo, as relações, mudam; despertamos para um novo sentido, talvez o transe dessa luz de que fala Bokar e que pode estar obstruída ou ser desvelada.

Como escreve o filósofo Byung- Chul Han: «Não podemos ver de forma diferente sem nos expormos a uma vulneração. Ver pressupõe a vulnerabilidade». Eis porque de comum vemos melhor as nossas tradições de fora delas do que no seu seio, ou percebemos finalmente certas complicações da nossa vida, mercê de um distanciamento.

Do lado do entretenimento temos o Gosto (convertido em tique facebookiano), do lado da reminiscência (diria o Platão) gera-se uma flutuação das “placas continentais” que muda a nossa topografia interior. Deste lado a experiência, do outro a ilusão conectiva.

E afinal, é mesmo impossível uma mathesis? Não. É propaganda da cultura de massas, para fazer cumprir o ideário hegemónico do neoliberalismo, o qual subentende uma sinonímia do sujeito ao consumidor, esquema em que o sonho e a criatividade imaginativa ou rememorativa são menorizados na medida em que se associa a juventude a uma rápida busca ansiosa que privilegia a eficiência. Daí que a noção de subjectividade se veja substituído pela de performance.

Mas continua a haver outros paradigmas mais fecundos.

Se abraçarmos o pensamento da complexidade, de que Edgar Morin nos abriu as portas, notamos cadeias de transmissão entre diversos saberes que se observam simultaneamente nas ciências, nas artes e na vida. Há outros caminhos.

Embora tudo isto dê trabalho, e aqui se exija a educação, até para compreendermos que o trabalho que o conhecimento dá pode não só dar prazer como (um efeito lateral) até recompensar-nos. A sabedoria, meus caros, pode ser uma felicidade, já as indústrias culturais… finam-se numa lógica masturbatória: momentânea e aquém do outro.

28 Mar 2019

Manifesto das mãos

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]arcel Duchamp posicionou-se contra a tirania da retina na arte. Foi uma boa fisgada e necessária.

Todavia, cem anos depois precisamos de um manifesto contra uma arte que seja só conceptual: a arte que descartou o corpo, a mediação, o corpo-a-corpo com os materiais, e que abandonou a expressão como saldo de uma experiência no tempo, faliu.

Há um saber técnico que imprudentemente se descuidou e há uma inteligência, diria até, uma poética da mão, que convinha resgatar.

E não é preciso ir muito longe. Se até a música depende das mãos, como não ver nisso o apelo a uma conformidade, a uma humildade que nos transporta à magia do tangível? O desempenho das mãos não admite embustes, nem na punheta de bacalhau. Porque na música não basta a excelência que a partitura encadeou, coitado do acorde que não encontrou o seu exacto momento de ataque, o tom e o valor que só a mão lhe emprestam.

Há uns meses comecei uma vagarosa caminhada para o emagrecimento e quando me inquiriam sobre a minha diminuição de álcool eu respondia: “Quando o Orson Welles morreu, dizem que tinha à volta de cento e cinquenta quilos. O que é certo é que seis meses antes ele se cruzou num aeroporto com a Rita Hayworth, com quem fora casado, e que esta não o reconheceu. Ora, eu não quero praticar esta crueldade sobre a minha ex-mulher, senão o ódio que me devota e lhe orientou meia vida deixa de fazer sentido!”

Era evidentemente uma blague, decidi emagrecer quando as minhas mãos se tornaram sápidas e já não conseguia olhar para elas.

Nas mãos, como no rosto, começa a eroticidade do corpo. Calhou-me escolher o rosto e também as mãos.

Para o Rei Ubu seria simples imaginar o seguinte recurso para a dócil aceitação da escravatura: as mãos da plebe seriam desenroscadas do corpo após as dez horas de trabalho e só na manhã seguinte lhes seriam restituídas. Sem mãos não há revoltas, apesar do raciocínio.

Pois. E este idiota abandono da agricultura em todo o mundo é reflexo do caviloso predomínio que se dá a mente contra a mão. O mesmo que levou Bolsonaro a condenar um dedo no cu: eu não percebi a maleza do gesto a não ser no sentido em que faltará a mesma determinação para semear a beterraba.

O que é certo é que é bimilenária na arte a desconsideração do trabalho manual em relação ao projecto, o que redundou no racionalismo da mente.

Nem pela masturbação aprendemos.

É engraçado o descaro com que em 1965 Robert Rauschenberg enviou o telegrama-retrato de Iris Clert, uma marchant francesa, onde se lia: “ This is a portrait of Iris Clert, if I say so. Robert Rauschenberg.”

Engraçado é ter sido tomado a sério. Como antes, em Duchamp, a morfologia de um mictório, de um portador de garrafas, de uma pá de neve, foram confundidas, por simples penhor do nome, com uma nova função.

E, contudo, o peso generoso do ser humano está na mão. No que esta transfigura e transmuta. A agressão em perdão, o objecto desvalorizado em valor que cicatrize. E até a cegueira de uma mão pode ser divina. Vê-se no modo como Hokusai  aproveita o dom do acaso e faz do acidente, do estudo e da destreza, um só. Vê- se nas pinturas cegas de Tomie Ohtake, uma nipónico-brasileira que fez dezenas de quadros magníficos de olhos vendados; vê-se nas mãos de Rembrandt, na voluptuosa capacidade metamórfica de Júlio Pomar – pintores que talvez busquem a caligrafia de Deus, sem que em nenhum deles isso signifique um mínimo de beatice e antes uma operação mais concreta e abrangente do olhar.

O velhinho Focillon explicou-o maravilhosamente: “(…) entre o espírito e a mão, as relações não são tão simples como as que há entre um chefe autoritário e um servo dócil. O espírito faz a mão, mas a mão também faz o espírito. O gesto que cria, exerce uma acção contínua sobre a vida inferior. A mão arranca a capacidade de tocar da sua capacidade receptiva, organiza-a para a experiência e para a acção. É ela quem ensina o homem a tomar posse do espaço, do peso, da densidade e do número.”

Experimentem lá fazer arte contra estas grandezas.

E noutra página do seu breve Elogio da Mão, Focillon dá o uppercut: “ O que distingue o sonho da realidade é que o homem que sonha não consegue criar uma arte: as suas mãos dormem.”

Mãos sonâmbulas como as do voyeurista que domina este tempo de esplendor pornográfico, em cuja teia o cínico se espoja como a aranha convencida pelo seu raciocínio sobre a inexistência do vento.

Razão tinha o catalão Juan-Eduardo Cirlot, quando escrevia:

“Os olhos do meu espírito não têm/ a boca do meu espírito,/ as mãos do meu espírito não têm o corpo do meu espírito.// Esquartejado flutuo no abismo./ Azamboado de morte como uma água inquinada.// Já não quer dizer que não foi nada? / Todo um jogo de luzes e espelhos,/ todo um retábulo de fumo tenebroso? // As veias do meu espírito não têm/ o sangue do meu espírito.”

É urgente percebermos que o pensamento só sobrevive em consentindo que o acaso se infiltre nas redes que tece – “exterior” que só o corpo, as mãos, lhe garantem.

21 Mar 2019

À procura de sabato

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o meu velho liceu, havia um alpendre com uma mesa de ping-pong. Comprei a raquete, aquela raquete. E durante seis meses treinei afincadamente, evoluindo para níveis que me pareciam excelentes. Contava ir apresentar-me ao Benfica e tornar-me atleta federado. Um dia, o meu parceiro de jogo fora à aula e deixara a raquete dele comigo e passa por ali um aluno do sétimo – filho de sueco contou-me depois e alto e enxuto como uma vírgula. Pisca-me o olho, Eh puto (eu era do quinto) vai uma partidinha. Aceitei, antevendo a vitória. E levei 21-3. A limpeza, a elegância e técnica do jogo dele eram imparáveis. Reclamei desforra. Despachou-me com 21-2. Vendo-me baratinado, consolou-me: Deixa lá, quando jogava com o meu pai ele também me dava 21-2, 21-3, ele chegou a ser atleta de competição e foi jogar à China, com os melhores do mundo, mas depois abandonou o ping-pong porque, diz, é um desporto muito incompleto.

Cheguei a casa e arrumei a raquete, que caiu para trás da estante e foi esquecida; desde então sempre que jogo ping-pong ao fim de dez minutos, começo a ver duas bolas, o enfado multiplica-se em efeitos ópticos.

Vem isto a propósito da escrita, onde continuo a levar 21-2 com regularidade. Só que aqui não desisto porque me lembro de duas senhoras a quem tiro o chapéu. Diz uma, a Duras: «A partir do momento em que estamos perdidos e que não se sabe mais o que escrever, o que mais perder, aí é que se escreve. Entretanto o livro está ali, e incomoda e grita, exige ser terminado, exige ser escrito. E a pessoa vê-se obrigada a colocar-se ao seu serviço». E refere, a outra, a Lispector: «Por destino tenho de ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem».

Acreditar nisto é o mesmo que acreditar em farófias, mas as farófias (graças a Deus, que é ateu) existem e tecem mapas imaginários nas nossas papilas gustativas – em pura auto-profecia.

Entretanto, já tenho a idade suficiente para ter testemunhado estranhas mutações nos gostos literários. Há poucas semanas fui literalmente fulminado pela observação de uma jovem amiga de trinta anos, escritora, que me confessou que não entrava no Hemingway porque lhe parecia demasiado denso.

Outro que deve ser demasiado denso é o Ernesto Sabato, mesmo para os sul-americanos. A propósito de uma crucial edição do Relatório Sobre os Cegos que vai ter lugar em Portugal, andei duas horas a catar na estante algum artigo escrito sobre ele.

E nada achei de substantivo. O Carlos Fuentes, no volume sobre a literatura sul-americana, menciona-o de raspão, não lhe dedicando duas linhas. Nenhum dos ensaios críticos de Cortázar lhe foi dedicado; não descortinei qualquer artigo de Juan José Saer sobre ele, e nos livros de crítica do Piglia também avulta pela ausência. Estou chocado. O Gombrowicz nos Diários Argentinos sobrevoa-o três vezes, sem detalhe… Em Portugal, o Mega Ferreira escreveu uma panorâmica sobre a Ficção Hispano-Americana de 250 páginas, nem uma linha sobre o Sabato. Vou espreitar nos ensaios e artigos do Bolano, mas vejo a coisa mal parada. Lá descubro duas páginas, no brasileiro Davi Arrigucci Jr., onde, pelo menos, se sinalizam duas coisas relevantes: «à visão clara, ao mesmo tempo que dolorosa da realidade argentina, Sabato justapõe o mergulho nocturno no subconsciente, nas zonas oníricas e abissais, nos aspectos demoníacos da personalidade, juntamente com a indagação metafísica do sentido da existência humana. O resultado é uma espécie de delírio lúcido, uma arte dionisíaca aferrada à expressão de um pesadelo (…) A busca de uma obra poética total parece confirmar-se na tentativa de Sabato de um romance como um poema metafísico, em lugar de um mero documento». É isso, Heróis e Túmulos, e o seu bloco mais delirante, Relatório sobre os Cegos, é a translação possível no século XX de Paraíso Perdido, de Milton, depois de Lautreamont, Dostoievski, do surrealismo, e, já agora, de Robert Arlt.

Mas ei-lo que sofre da abstenção dos seus pares.

Se o Sabato é “sabotado” desta maneira, não há esperança; creio que o melhor é dedicar-me à roleta, levar a banca do casino do Mónaco às cordas numa noite e no dia seguinte, já multimilionário, suicidar-me numa festa de arromba, porque ao menos aí a trivialidade e o sem-sentido ganharão um semblante.

O que falta ao admirável Sabato para ser mais estimado? Desconfio que a postura lúdica – naquele universo catártico, enredado em três livros de ficção, até as coincidências se tornam simetrias e vemo-nos mergulhados em atmosferas onde os lobos não se vestem de cordeiros. E, embora tal condensação trágica seja apreciada, isso afasta os muito sensíveis: afinal os mundos paralelos em Sabato traduzem a toxidade do nosso, o que assusta.

Faltar-lhe-á a leveza e o engenho que sobrava a Ramón Gómez de La Serna que escreveu quatro páginas sobre a sua paixão por pregos e ao fim destas ficamos convencidos que podiam ser quinhentas? Num livro sobre Ramon observa Francisco Umbral: «O escritor puro é aquele que às vezes não tem nada para dizer, mas continua escrevendo (…) E diria que é aí, quando já não tem nada que dizer, no puro rebordo do ofício, que ele dá o melhor de si como escritor. Aquele que só escreve quando tem algo para dizer, é um senhor que diz coisas, mas não necessariamente um escritor.»

É tremendo mas, ao contrário deste escriba, Sabato – que queimou vários dos manuscritos que escreveu – tem sempre algo para dizer. E com ele não há o risco de nos assaltar a sensação incómoda denunciada por Mark Twain: «Estou seguro de que a música de Wagner não é tão má como soa», porque à partida seria um erro nosso tomar a sua obra por música de câmara.

14 Mar 2019

Pagar o preço

03/2018

[dropcap]O[/dropcap]curso que começarei a dar na quarta, 13, e a que chamei Dá-me cem Gramas de Platão Mal Passado?, começa com um módulo sobre Nietzsche e as Vanguardas e dou de novo com o episódio:

Nietzsche passava um serão com uns amigos. Um deles deu como fanfarronada a história de Mutius Scaevola, um jovem romano que entrou no campo inimigo do Etruscos e matou por engano o secretário do rei Porsena, em vez do próprio rei. Para se castigar do erro, Scaevola meteu a mão num braseiro.

O episódio não colhia junto dos companheiros do filósofo, incrédulos. E então Nietzsche dirigiu-se à lareira e pegou num carvão em brasa, fechando a mão sobre ele, enquanto cerrava os dentes para não deixar escapar um grito.

O que desconhecia leio-o agora num livro de Élie Faure: «Com uma destas teimosias de criança que muitas vezes constituem o instintivo esboço de uma disciplina do querer, durante anos conservou aberta a chaga».

E o que pode parecer uma doidice, um sadomasoquismo declarado, explica algo da aragem que se sente na leitura do filósofo de Assim Falava Zaratrusta.

Em presença da dor cada palavra é mais viva, porque arrancada a uma intensidade sensorial que, para ser apaziguada, obriga a uma paralela exactidão expressiva. Ninguém se livra da dor duma queimadura recitando um soneto de Shakespeare, porém a pouca disposição para jogos de linguagem que assiste a quem sofre a dor, obriga a soltar o verbo numa única oportunidade, certeira como a pincelada num fresco. Não há retoques diante da dor e embora a palavra certa não a faça esquecer, talvez a sublime. Como a pintura ajudou Frida Khalo a suportar o desconjuntamento da sua coluna vertebral.

Nietzche usava a chaga sempre aberta como uma disciplina, um enxerto de tragédia na carne, e quando falava na dor, ou na alegria, no apaziguamento ou na revolta, era sentido. Ninguém discorda de nada com uma dor enfiada na carne se não discordar de todo; ninguém se diz eufórico, com uma dor entalada na carne, se tal não for verdadeiro.

Mais tarde Nietzsche, formulará que «a doença é um ponto de vista sobre a saúde», já uma forma de distanciamento sobre o sensível e que terá treinado na longa duração deste episódio.

Escrevo isto e ouço a Jade a reclamar com o gato, «o Sebastião é um lambareiro…» (roubou-lhe uma salsicha). Gosto que ela tenha achado uma forma mais viva e expressiva de acusar o gato sem ter caído nas fórmulas gastas de «comilão», ou «guloso». Mas quanto tempo lhe durará esta descoberta das palavras antes de se enfronhar nas fórmulas?

Por que o problema é este: não estamos dispostos (como o Nietzsche) a pagar o preço.

 

06/03/2019

 

De um prefácio que escrevi: “ (…) um traço de irrequietude, desconstrutor, só é possível a partir de um ponto de ancoragem. Deixar de navegar à cabotagem só é possível depois da invenção da bússola. Cada nova descida no abismo tem de achar novos pontos de amarração – alargamos o âmbito, mas sem o acto de amor que nos permite descortinar um padrão no caos nenhuma aventura humana seria possível.

Aliás, creio que pouco podemos para além do que Seferis insinua em EURÍPEDES, ATENIENSE: «Gostava das cavernas no areal e dos desenhos / do mar./ Viu as veias dos homens / como rede dos deuses, onde nos apanham como às alimárias; / tentou rompê-la.»

Por isso me incomoda a facilidade com que tantos evocam a loucura. A loucura em pão-de-ló da literatura. Quando, desse ponto, muito raramente se regressa.

A escrita, para mim, é antes o recorte lúcido de uma lide tauromáquica, onde se joga o pleito da morte. Subrescrevo totalmente esta anotação de Andrès Sanchez Robayana, nos seus diários, La Iminência:

«Leio Herman Broch – A Morte de Virgílio, esse livro inacabável, livro de uma vida que corre interminavelmente até ao seu fim -: o destino de Virgílio havia-se visto condenado à poesia, “a mais estranha das actividades humanas, a única que serve para o conhecimento da morte”.

E não é a poesia, por esse motivo, a única que serve para o conhecimento da vida? Não é o poema a homenagem da morte à vida?

Observo que a minha última escritura encerra, de certo modo, essa ideia. Os poemas levarão o título de Palmeiras sobre a laje fria. Vejo nisto a ideia e a imagem da vida e da morte, ambas interrogando-se, aliadas, mas nunca, em verdade, juntas ou fundidas. Afirmação ou vitória da vida. Afirmação da vida até na morte. (subinhado meu)»

Sim, a haver algo de singular que rompa a clausura da subjectividade, que mais além do modo como se interpela a intratável indomesticabilidade da morte? Podemos rir, podemos escolher a metafísica, podemos solenizar o amor ou o erotismo, podemos fazer da propriedade a ilusão – nada suspende o anúncio trágico de que padecemos de um aneurisma: eis aquilo que Charlot procurava no relógio quando o martelava desalmadamente, o aneurisma escondido por detrás dum mecanismo de tão dóceis simetrias, do ronrom do tempo. O modo como Charlot ri e nos faz rir com ele subtrai à morte o triunfo; a resposta paradoxal do relojoeiro-Charlot fez da indecibilidade uma festa e subtrai a esse limite o direito a dimensão negativa. O valor que Charlot transmite nesse gag é o do «aprender a desaprender» que Pessoa refere a dado passo, e nesse descasque fenomológico julgo que se desmonta o sentido da privação que Paul de Man atribuía à linguagem, por esta ser sobretudo figura, representação de algo: se tal condição prepondera no geral, há “curto-circuitos” criativos pelos quais a linguagem supera a sua mudez inexorável e se projecta num âmbito de novas relações para além das imagens, onde se desvanecia.

Daí que me seja mais atreito sondar a zona transfronteiriça da catábase que a “extraterritorialidade” da loucura, propícia a uma retórica do artifício.”

7 Mar 2019

F de fake: a dobra

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]sta semana trouxe-me vários sustos. Tinha acabado de ler um magnífico ensaio do filósofo Eugenio Trías que me havia reconciliado com o Duchamp – na leitura de Trías, o Le Grand Verre ou La Mariée mise à nu par ses célibataires-même, supera a aporia aberta pelos ready-made e a Fonte (a qual se tornou manancial legitimador para grande parte dos embustes que hoje se manifestam na arte) – e de repente sabe-se que afinal o “engenheiro dos ready-made” ludibriou toda a gente. O mais célebre mictório do mundo, assinado por um incógnito R. Mutt, em 1917, o qual, depois do seu desaparecimento, foi objecto de réplicas, autorizadas por Duchamp e vendidas por milhares de dólares a alguns dos museus mais proeminentes do mundo (o Centre Pompidou em Paris, o Tate Modern em Londres e o San Francisco MoMA, por exemplo); pois o urinol deve ser creditado à artista Dada alemã, a Baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven, segundo os especialistas.

Vários académicos, sobretudo na Holanda, tentam determinar quem é o criador real desde 1982, quando apareceu uma carta de Duchamp em que ele nega qualquer envolvimento. Em 2002, a académica Irene Gammel escreveu na biografia da Baronesa que esta foi pelo menos parcialmente responsável pelo trabalho, e, entretanto, numa carta de Duchamp para a irmã, o artista refere, preto no branco, que foi mesmo Elsa von Freitag quem enviou o urinol para a Exposição de Nova Iorque.

E que importância isto tem?

Em 2004, a Fonte foi descrita na imprensa britânica como a obra de arte moderna mais influente de sempre, já se escreveram centenas de livros sobre a revolução que a peça ocasionou nos rumos da arte e milhares de artigos corroboram desde então o bifurcamento das práticas artísticas, sobretudo desde que a Art Pop e a Arte Conceptual tornaram o autor de Nu Descendo as Escadas como seu profeta.

E afinal tudo não passou de um golpe de marketing, de uma farsa neo-neo-conceptual de um mitómano.

Não estou ainda reposto e leio que «Elmyr de Hory tinha mão para pintar mas não de todo a técnica nem a formação para falsificar um Gauguin, um Matisse ou um Modigliani». A tese é defendida por Diego Feliu (Madrid, 1959), autor de Desmontando a Elmyr (editorial Sloper), que acabou de sair em Espanha.

Eis questionado, pela primeira vez, o maior falsificador de arte da história. Até agora, recorda Feliu, «todo o mundo escrevia o mesmo» sobre este personagem, usando como únicas fontes a película F for fake, de Orson Welles, e o livro Fake, de Clifford Irving. Na opinião do jornalista madrileno, o que narrou o novelista e biógrafo americano sobre a vida do pintor e falsificador húngaro é «pura invenção».

E adianta, Elmyr de Hory só tinha um verdadeiro talento para forjar os documentos dos supostos especialistas que validavam as obras que ele apresentava aos tansos, e para reproduzir a assinatura dos pintores. Os quadros eram pintados por outros, cada um deles, esses sim, especializados na burla de um pintor famoso. Ele depois assinava, daí que parecesse ter dotes polimórficos.

Sinto-me destroçado, de repente o “meu” falsificador, a quem invejei toda a vida, não passa de um vigarista de indubitável requinte, mas a quem falta absolutamente o talento.

E deixa-me de cara à banda a vigarice (meto aspas, tiro?) do Duchamp, porque é muito diferente a provocação do urinol aparecer da parte de quem André Breton considerava o homem mais inteligente do século XX e que concebeu este projecto de “ready-made recíproco”: utilizar um Rembrandt como tábua de engomar”, do que da simpática baronesa. Simplesmente, porque Duchamp criou toda a vida objectos artísticos e uma reflexão congruentes com uma obra de que afinal não foi o autor; em relação à baronesa a Fonte seria a sua “melhor” obra, pois ela foi sobretudo poeta.

Imagino a cena, dado haver indícios de que Duchamp e a baronesa foram amantes, ela tem a ideia e fartam-se de rir com o efeito que a peça terá junto do júri (de que Duchamp fazia parte). Imaginarem a cena foi o complemento erótico para a noite. Ele de manhã desvaloriza a ideia e diz-lhe que não vai em frente com o atrevimento. Ela fica meio perplexa e diz-lhe que vai enviar o urinol, e ele anui, Força. « Quando depois observou o efeito que a peça foi produzindo e que sobre a autoria da mesma se mantinha o anonimato, Duchamp, que apurou o engenho de especular teorias à sombra de novos ready-made, apropria-se, e é ela quem então recua, devido ao crescente prestígio dele.» E foi um dos grandes negócios da vida dele.

A brasileira Valentina Corrêa Trigo, focou a questão: «Por que ninguém fala mais em Picasso e tanta gente ainda se inspira em Duchamp? A resposta é simples: a arte de Picasso exige talento, técnica, reflexão sobre a vida e a História, enquanto Duchamp, por genial que tenha sido em seu momento, traz uma mensagem muito mais fácil de ser assimilada e copiada: qualquer um pode ser artista.»

Na sua conversa com Pierre Cabanne, a dado momento Duchamp refere: «Quando Rubens ou qualquer outro necessitava da cor azul, tinha de pedir tantos gramas à sua corporação e discutia-se a questão para se saber se lhe podiam dispensar 50, 60, ou mais. Eram verdadeiros artesãos…» Sim, eram cedidos os pigmentos consoante o grau de responsabilidade que fosse inerente ao artista. Duchamp, nesta perspectiva, portou-se como um verdadeiro sofista. No fundo, ele reconhece, apenas forçou a sorte, pelo que «(…) nunca trabalhei para viver. Considero que trabalhar para viver é algo ligeiramente estúpido, desde o ponto de vista económico». Smart, e pessoalmente defensável, mas com isso abriu a caixa de Pandora.

Bom, fica-me o filme de Orson Welles que continua a ser magnífico. E Le Grand Verre, pelo menos na leitura que dele faz Trías.

28 Fev 2019

As ministras suecas

11/02/2018

[dropcap]E[/dropcap] às vezes o mundo diverte-nos muito para lá das preocupações que lhe concernem.
O maior inimigo do rinoceronte é um minúsculo insecto que lhe sobe narina acima e se instala nas circunvoluções do cérebro paquidérmico onde começa a escavar túneis, o que deixa a criatura aos pinotes e de péssimo humor. O maior inimigo do muro do Trump é um cemitério de índios que, providencialmente, se localiza na fronteira entre os EUA e o México, ao longo de muitos e muitos quilómetros, e, meus caros, contra os ancestrais não há pai, nem narina férrea que os dobre.

A mostarda começa a chegar ao nariz dos Tohono O’odham e o Trump que se cuide, pois mesmo que ele não acredite em bruxos, que os há, há. E os invisíveis sobem pelas narinas acima mais soberbas.

A reserva dos índios fica no Arizona e estende-se por mais de cem quilómetros na fronteira do México e vivem nela 2000 dos seus 34000 membros. Como explica o vice-líder da tribo, “Cada animal, cada pedaço da terra é sagrado, tudo tem um propósito neste mundo, e quando começamos a brincar com a mãe natureza acontecem coisas”. Por isso os terrenos da comunidade não estão à venda e construir o muro seria profanar os ancestrais.

E os ancestrais não se deslocalizam, é inegociável. Portanto, aqueles fartos quilómetros com cemitérios (e alguns deles secretos, contam os líderes índios) funcionarão como o buraco de muitos molares na dentadura de crocodilo que o Trump quer implantar ao longo da fronteira.

Ou ele expropria e aí profana, ou mata os índios, o que é impensável, ou corrompe-os e aí atrairá a ira dos “espíritos”.

O que já estou a adivinhar é muitos túmulos a servirem de receptáculo do contrabando e muitos trilhos secretos apontados pelas linhas brancas da coca.

12/02/18

A Suécia, para além do frio e do génio de Ingmar Bergman, de quem organizei um ciclo para começar dia 19, em Maputo, tem uma mão cheia de poetas notáveis, entre os quais um senhor chamado Gunnar Ekelof, de quem adoraria traduzir a trilogia Diwan/ sobre o Príncipe de Émghion, um duplo que lhe teria sido revelado numa sessão de espiritismo, aos trinta anos, mas ao qual ele não ligou peva. Até que aos 58 anos, em 1965, Ekelof se deslocou a Istambul, e assim que entrou no quarto do hotel foi, como ele disse, forçado por um anjo a escrever a trilogia que conta as lendas em torno desse príncipe que participou na batalha de Mantzikert, em 1071, e foi feito prisioneiro, tenho-lhe sido arrancados os olhos.

São poemas belíssimos, como explica Marianne Sandels, na magra antologia saída em português, «um hino à inocência, compaixão e dignidade humanas em tempo de caos e sofrimento», o que me parece ser a receita ideal para a torcida realidade actual.

Um mundo heterónomo e soberbo se revela na trilogia que tenho em francês, publicada com o aval do autor, que as discutiu à sílaba com os seus tradutores. Transcrevo, entretanto, este pequeno exemplo vertido pelo Vasco Graça Moura: «SOZINHO, SOZINHO, Sozinho, sozinho, dizes que estás sozinho -/ mas o príncipe de Emghion diz: / Primeiro eu amava Xerezada/ e os seus contos/ depois Dinazarda, a sua irmã mais nova/ depois a criada dela, / depois o amante da criada, um núbio / e então o seu engraxador/ E quando me pus de joelhos/ e lambi a graxa dos seus dedos / amei a poeira/ E bebi-a tanto e tão profundamente/ que tudo para mim enegreceu».

Mas veio-me isto à lembrança ao deparar com o grande debate que agora ocorre na Suécia por causa do penteado rasta da sua actual Ministra da Cultura e da Democracia.

Como se sabe na Suécia metade do elenco governamental é feminino e a idade dos ministros também espanta. Antes dela ter entrado no governo, neste Janeiro último, o cargo era ocupado por, Alice Bah Kuhnke, uma afro-sueca que ocupou de forma tão competente o cargo que foi promovida a candidata para as próximas eleições europeias, mas a escolha de Amanda Lind, de 38 anos, e do Partido dos Verdes (tal como a anterior ministra), está a levantar engulhos por causa do penteado, que a “jovem” (cf. a foto) não está disposta a mudar porque o usa há vinte anos.

Políticos da direita sueca, cronistas vários ou até um jovem artista e comunicador negro, Nisrit Ghebil, referem que o seu penteado é indevido. O artista acusa-a de “apropriação cultural”, sem lhe ocorrer que quando lê a Estética de Hegel ou usa um ipad Huawei talvez esteja também a fazer “apropriação cultural”.
Eu preocupar-me-ia mais com as políticas que a ministra pretende desenvolver no seu mandato e que lhe ocupam o miolo sob a caixa craniana, mas este é um mundo em que o líder do país que representava o “mundo livre” diz aos jornalistas “vocês têm os vossos factos, nós temos os nossos que são factos alternativos” e por isso o que conta é o penteado.

Atalhando lágrimas e suspiros, sou absolutamente fã das ministras suecas e até acho que a Amanda Lind, uma amante da BD, tem um laivo profundo de Mona Lisa que a torna providencial para o seu papel.
Ainda hoje sonhei com ela. Era Verão e à beira de um rio eu tentava pescar trutas. Ela passou, viu que no meu balde já se recolhiam três trutas e sorriu, como quem diz, Convida-me para jantar. Tirou as sandálias e molhou os pés na água. Ficou aquele rio roto no calcanhar do pé dela, é o que vos digo e a mim passou-me o hábito de viver folheado em angústias.

14 Fev 2019