Pagar o preço

03/2018

[dropcap]O[/dropcap]curso que começarei a dar na quarta, 13, e a que chamei Dá-me cem Gramas de Platão Mal Passado?, começa com um módulo sobre Nietzsche e as Vanguardas e dou de novo com o episódio:

Nietzsche passava um serão com uns amigos. Um deles deu como fanfarronada a história de Mutius Scaevola, um jovem romano que entrou no campo inimigo do Etruscos e matou por engano o secretário do rei Porsena, em vez do próprio rei. Para se castigar do erro, Scaevola meteu a mão num braseiro.

O episódio não colhia junto dos companheiros do filósofo, incrédulos. E então Nietzsche dirigiu-se à lareira e pegou num carvão em brasa, fechando a mão sobre ele, enquanto cerrava os dentes para não deixar escapar um grito.

O que desconhecia leio-o agora num livro de Élie Faure: «Com uma destas teimosias de criança que muitas vezes constituem o instintivo esboço de uma disciplina do querer, durante anos conservou aberta a chaga».

E o que pode parecer uma doidice, um sadomasoquismo declarado, explica algo da aragem que se sente na leitura do filósofo de Assim Falava Zaratrusta.

Em presença da dor cada palavra é mais viva, porque arrancada a uma intensidade sensorial que, para ser apaziguada, obriga a uma paralela exactidão expressiva. Ninguém se livra da dor duma queimadura recitando um soneto de Shakespeare, porém a pouca disposição para jogos de linguagem que assiste a quem sofre a dor, obriga a soltar o verbo numa única oportunidade, certeira como a pincelada num fresco. Não há retoques diante da dor e embora a palavra certa não a faça esquecer, talvez a sublime. Como a pintura ajudou Frida Khalo a suportar o desconjuntamento da sua coluna vertebral.

Nietzche usava a chaga sempre aberta como uma disciplina, um enxerto de tragédia na carne, e quando falava na dor, ou na alegria, no apaziguamento ou na revolta, era sentido. Ninguém discorda de nada com uma dor enfiada na carne se não discordar de todo; ninguém se diz eufórico, com uma dor entalada na carne, se tal não for verdadeiro.

Mais tarde Nietzsche, formulará que «a doença é um ponto de vista sobre a saúde», já uma forma de distanciamento sobre o sensível e que terá treinado na longa duração deste episódio.

Escrevo isto e ouço a Jade a reclamar com o gato, «o Sebastião é um lambareiro…» (roubou-lhe uma salsicha). Gosto que ela tenha achado uma forma mais viva e expressiva de acusar o gato sem ter caído nas fórmulas gastas de «comilão», ou «guloso». Mas quanto tempo lhe durará esta descoberta das palavras antes de se enfronhar nas fórmulas?

Por que o problema é este: não estamos dispostos (como o Nietzsche) a pagar o preço.

 

06/03/2019

 

De um prefácio que escrevi: “ (…) um traço de irrequietude, desconstrutor, só é possível a partir de um ponto de ancoragem. Deixar de navegar à cabotagem só é possível depois da invenção da bússola. Cada nova descida no abismo tem de achar novos pontos de amarração – alargamos o âmbito, mas sem o acto de amor que nos permite descortinar um padrão no caos nenhuma aventura humana seria possível.

Aliás, creio que pouco podemos para além do que Seferis insinua em EURÍPEDES, ATENIENSE: «Gostava das cavernas no areal e dos desenhos / do mar./ Viu as veias dos homens / como rede dos deuses, onde nos apanham como às alimárias; / tentou rompê-la.»

Por isso me incomoda a facilidade com que tantos evocam a loucura. A loucura em pão-de-ló da literatura. Quando, desse ponto, muito raramente se regressa.

A escrita, para mim, é antes o recorte lúcido de uma lide tauromáquica, onde se joga o pleito da morte. Subrescrevo totalmente esta anotação de Andrès Sanchez Robayana, nos seus diários, La Iminência:

«Leio Herman Broch – A Morte de Virgílio, esse livro inacabável, livro de uma vida que corre interminavelmente até ao seu fim -: o destino de Virgílio havia-se visto condenado à poesia, “a mais estranha das actividades humanas, a única que serve para o conhecimento da morte”.

E não é a poesia, por esse motivo, a única que serve para o conhecimento da vida? Não é o poema a homenagem da morte à vida?

Observo que a minha última escritura encerra, de certo modo, essa ideia. Os poemas levarão o título de Palmeiras sobre a laje fria. Vejo nisto a ideia e a imagem da vida e da morte, ambas interrogando-se, aliadas, mas nunca, em verdade, juntas ou fundidas. Afirmação ou vitória da vida. Afirmação da vida até na morte. (subinhado meu)»

Sim, a haver algo de singular que rompa a clausura da subjectividade, que mais além do modo como se interpela a intratável indomesticabilidade da morte? Podemos rir, podemos escolher a metafísica, podemos solenizar o amor ou o erotismo, podemos fazer da propriedade a ilusão – nada suspende o anúncio trágico de que padecemos de um aneurisma: eis aquilo que Charlot procurava no relógio quando o martelava desalmadamente, o aneurisma escondido por detrás dum mecanismo de tão dóceis simetrias, do ronrom do tempo. O modo como Charlot ri e nos faz rir com ele subtrai à morte o triunfo; a resposta paradoxal do relojoeiro-Charlot fez da indecibilidade uma festa e subtrai a esse limite o direito a dimensão negativa. O valor que Charlot transmite nesse gag é o do «aprender a desaprender» que Pessoa refere a dado passo, e nesse descasque fenomológico julgo que se desmonta o sentido da privação que Paul de Man atribuía à linguagem, por esta ser sobretudo figura, representação de algo: se tal condição prepondera no geral, há “curto-circuitos” criativos pelos quais a linguagem supera a sua mudez inexorável e se projecta num âmbito de novas relações para além das imagens, onde se desvanecia.

Daí que me seja mais atreito sondar a zona transfronteiriça da catábase que a “extraterritorialidade” da loucura, propícia a uma retórica do artifício.”

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