Fábula de um marciano em Macau

04/09/17

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem chegasse de Marte, de talhe e olhos verdes, assim como eu, e passeasse distraído pelas ruas de Macau não deixaria de notar a verdadeira obsessão que os humanos têm pelos relógios.

Há mais lojas de relógios do que Madrid tem toureiros.

Será terra de filósofos, interrogar-se-ia o marciano da melena verde (como a minha). Em Portugal, rezam os canhenhos também era assim no século XVIII. Casa que não tivesse na sala cinco relógios de pêndulo e dois de cuco não valia um caracol.

Disso soube o corsário francês Du Bocage, irmã de uma poetisa francesa que o Voltaire elogiara, e que se apoderou dum navio holandês que levava no porão seis toneladas de relógios e rumou imediatamente a Lisboa, no farejo de vender a mercadoria.

Rapaz pragmático, enamorou-se de uma rapariga de Alfama, e depois de outra, e de outra, enquanto ia enchendo a cidade de tique-taques.

Deste modo se amodorrou por Lisboa o antigo pirata francês e nela fez uma filha – a mãe do poeta Bocage.

É inútil procurar rasto de Bocage por Macau, embora, após ter desertado da marinha, tivesse o “carão moreno” aqui desembarcado, antes de mão amiga o salvar de novas dissipações, “deportando-o” para Lisboa, para alegria dos salões que nesse tempo andavam à míngua de rimas.

Mas coloco uma hipótese que me animará o resto da semana. Bocage chega a Bocage na penúria (como eu) mas com uma carga de que nunca se separava por afecto: o relógio que fora do seu avô e que a mãe, no leito de morte, lhe entregara à sua mão pequenina.

Por duas vezes ainda dormiu na Gruta de Camões, embalado pelo mavioso tique-taque, enquanto reflectia, Que tipo de devaneio cabe aos relógios, ou, Onde se localizará o clitóris do tempo, etc.,etc.

Mais nada lhe ocorreu, pois nada mais lhe sobrava e nessa altura não havia ainda os casinos para experimentar a sorte. Na manhã do terceiro dia, faminto e alquebrado, entrou numa venda na cidade e penhorou o relógio do avô, que tinha marchetado em marfim um camaleão cuja língua tocava o baixo ventre de uma Virgem com as faces encarniçadas… pelo assombro.

Só me restam quatro dias para vasculhar, de coração contrito, rasto do relógio de Bocage. Baterei um a um todos os relojoeiros de Macau, mesmo sabendo que ruborizarei ao descrever a volúpia nos olhos da Virgem.

Dado que em Macau é tudo perto, como no Alentejo, estafarei as solas e ficarei verde (como o marciano) a quem finalmente chegou “o cheiro da carne que nos embebeda”.

05/08/17

Gosto, quando aterro numa cidade e passado pouco tempo na minha cabeça fervilha a ervilha dos projectos. É o que me está a acontecer em Macau, onde se me deflagrou o desejo de escrever uma peça sobre as relações entre Pessanha e o seu arqui-inimigo Silva Mendes, um tradutor de Lao Tze que invejava o poeta. O modelo da peça será o conflito entre Mozart e Salieri. Já tenho o actor para o Salieri: o Manuel Mendes – como se diz em Moçambique, um xará do primeiro. Uma comédia que fale da difícil acomodação dos poetas na cidade e brinque com o manto de irreais com que os portugueses se entregaram em todas as colónias à devotada replicação das suas aldeias. Ainda não gizei o enredo, mas creio que o relógio de Bocage será um motivo de disputa, que a cabeleira verde (em jade) do marciano igualmente, e que haverá um travesti que se julga a Lady Macbeth.

06/08/17

Faz-se em Macau o que em Moçambique não se ousa. Manter viva a voz do poeta que sinalizou o acume simbólico da presença portuguesa. Aqui Pessanha revivifica, em Moçambique o ausente, a grande figura genial é ainda um filho bastardo do vento (que como se sabe é fêmea) e do esquecimento. E tem nome, ou antes tem vários: António Quadros, pintor/ João Pedro Grabato Dias, ou Mutimaté Barnabé João, o poeta guerrilheiro que ele inventou.

E foi o bruto poeta, arquitecto, pintor, pedagogo, apicultor, autor de manuais sobre óptica – este único poeta que o Zeca Afonso musicou.

Começou por ganhar um reputado prémio literário que nunca levantou, escreveu uma continuação paródica dos Lusíadas, em as Quibíricas, atribuídas a um frei Joannus Garabatus, suposto confessor do El-rei D. Sebastião (livro que mereceu um prefácio paródico de Jorge de Sena); fez reportagens poéticas sobre as incidências em Moçambique após a independência, ao jeito de uma que Lusa tivesse Ovidio e Virgílio como redactores; escreveu longas odes sobre temas existenciais e sobretudo A Arca (de Noé), uma suposta tradução do sânscrito ptolomaico com versão contida, na qual Grabato só larga o espaldar depois de trezentas estrofes regulares, de uma densidade conceptual que deixam o leitor exaurido. E alvitre-se já: A Arca é um dos esteios da poesia portuguesa do século XX, um dos raros poemas de fôlego portugueses onde a poesia se aproxima de uma gnose, de uma literatura concebida como anamnese.

Aqui deixamos um excerto de um outro poema:

«Meu Amor, como pensares-me morto e ser triste?/ Estive sempre em viagem. Só agora regresso. / Usa o teu sorriso. Tira o coração da arca / De entre os linhos, alfazemas, naftalinas /E usa-os no domingo de todos os dias do ano (…)/ Estou catando os cachorros, apanhando limões/ Abrindo a colmeia no fumo cheiroso da bosta seca./ Sorrio, pela primeira vez, sem comandar os lábios/ Com o esticar dos fios da complacência doméstica./ Destrinço o sexo na ninhada da velha coelha/ Virando de barriga para cima os veludos das crias./ Espero daninho o teu regresso, acocorado no verão/ E, porque cheguei ao verso, estou vivo»

06/08/17

Acordo e sento-me no útero da minha mulher. Serão já saudades de Macau?

7 Set 2017

Trabalho de casa II 

26/08/17

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onfesso que os princípios estéticos taoistas me trazem um tópico que me fascina: o isomorfismo.

Potenciar ressonâncias em sistemas distintos pressupõe a existência de isomorfismos  – uma similitude de estruturas, como nos fractais, entre os diversos seres, níveis de realidade ou sistemas – e ilustra o velho postulado chinês da harmonia universal.

É o que acontece naquela célebre história em que Tzang Tsu e Hui ’Tzu atravessam uma pequena ponte e desatam a discutir sobre como pode Tzang Tsu avaliar se os peixes que nadam e cabriolam na torrente se sentem felizes. Ao que sage responde prontamente: Eu conheço o gozo dos peixes no rio pelo  gozo que eu sinto ao caminhar junto do mesmo rio.

Entretanto, para que se perceba como o potencial estético do isomorfismo não está refém do mimetismo, piquei em Chesterton um exemplo que me delicia:

Um homem que se apega à literalidade das harmonias, que não associa as estrelas senão com os anjos, ou os rebanhos com as flores primaveris, arrisca-se a ser bem frívolo, porque se limita a adoptar um só modo a cada momento; e passado esse momento ele pode esquecer o modo em questão. Mas um homem que se esforça em conciliar os anjos com os cachalotes deve, por seu lado, ter uma visão bastante séria do universo.

Esta formulação afere a seriedade dos processos em muita poesia moderna, tantas vezes tão incompreendida: os anjos e os cachalotes não devem andar de costas voltadas – ainda que tenhamos que fazer as ligações porque elas não nos são dadas.

Em suma, a poesia obriga-nos a sondar novas associações intelectivas que desencadeiam uma multiplicidade de relações nunca entrevistas, numa dinâmica que não se fecha mas se estua.

Ou como diria o Chillida, sobre a arte, mas extrapolando-o para a poesia: trata-se de fazer luz onde estava escuro, o que nos empurra continuamente para fora da lógica do discurso em que nos movíamos, para vermos iluminados âmbitos novos.

Se quiserem, a metáfora que traduz a transversalidade isomórfica é o passe vertical no futebol, que produz uma economia de tempo ao conectar automaticamente vários níveis do campo.

Eis um bom ponto de partida para compreender o que a poesia nos ofereceu desde Baudelaire e para nos aquietar quando constatamos que a posição da arte é quase sempre um desmentido à posição do discurso (- ó Lyotard, estás bom, rapaz?).

É no que creio e só por aqui começo a compreender como anjos e cachalotes rimam.

27/08/29

Provavelmente tudo o que vou dizer na palestra sobre Camilo Pessanha, dia 5, em Macau, seria desmentido pelo que se vazou nesse mítico caderno desaparecido do poeta de que alguns falam com, pasme-se, sete mil páginas.

Confesso que suspeito desta cifra, não lhe encontro grande nexo. Sete mil páginas correspondem a catorze resmas de papel, seria uma árvore maior do que a floresta, e que não se deixaria ver. Provavelmente, na sua aludida letra pequenina, eis a hipótese que me parece plausível, João de Castro Osório viu sete mil linhas e cometeu um erro de simpatia. O que a trinta linhas por páginas daria algo como duzentas e tal páginas, um número mais viável.

Mas preferia ser desmentido (tenho este carácter mole, que não se importa nada de ser desmentido) e que à chegada a Macau me contassem que o tufão da semana transacta removeu umas lajes e se encontrou embrulhado em couro o caderno perdido do Pessanha. Eu acredito em Shangrilá   

29/08/17

Prófugo, solerte, adrede, enteléquia: palavras com as quais não teço qualquer empatia, modo de emprego, sinal de apaziguamento. Já cem vezes as soube, já cem vezes as perdi, não pertencemos à mesma comunidade. Puro mármore, não me entram no sangue.

E mais duas centenas delas, vieram-me agora estas, como se fossem o primeiro sintoma de um Alzheimer a vir. Há palavras de que não nos apropriamos, é caso para dizer, nem mortos. Cada um imagino ter as suas.

Bom, para minimizar, sirvo-me de um dito de Bachelard, «Se dois homens se querem entender verdadeiramente, têm primeiro que se contradizer», que afinal até é o princípio das comédias românticas. Porém, elas não se dão ao trabalho de me contradizer – repelem-me.

Se é assim com as palavras, pressinto que seja totalmente artificial qualquer ideia de comunidade.

Um sentir comum, eis uma afecção a que sou ligeiramente avesso. Pontualmente sim. Mas de forma mais prolongada incomoda-me estar entre pessoas que não desapegam e nunca querem estar sós, no anonimato, ou entre dissonâncias, e que se pelam por  montar discursos muito articulados sobre a necessidade de estar em grupo. Pessoas sempre a subir os estores e que para tudo acham argumento e nunca gaguejam e prosseguem juntas até ao fim, sem nunca se despedirem.

Nunca tive um só grupo de amigos ou um só tipo de amigos.    

Nunca me adaptei a grupos, do mesmo modo que um cardume grande de palavras da minha língua nunca me adoptou.

Ardem-me nos olhos as coisas que não sei nomear, mas uma palavra que mil vezes se relaxa no balde das coisas recalcadas, à qual só volto a encontrar irritantemente por acaso no velcro de uma página, que pretende senão capacitar-me de que nunca deixei de estar só?

Creio que somos um quarto sem ninguém reflectido nos espelhos. Quando alguém aparece na superfície prateada há festa. Mas é como uma batida rítmica, tem intervalos. Querer mobilar o quarto com uma multidão não neutraliza a mudez do espelho. Mesmo que seja um espelho de Veneza.

Pode ser lancinante o sentido comum e raramente uma partilha que é de todos e para todos é justa. E receio que a sociedade da comunicação se esteja a transformar numa sociedade holística, numa daquelas comunidades que se concebem a si mesmo como um todo. Mete medo!

Um dia destes só temos por nós as palavras que não nos gramam. Que elas nunca transijam! Eu por mim abomino-as!

31 Ago 2017

Trabalho de Casa

20/08/2017

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]a-se a banhos. Quando se vive nos trópicos isso deixa de fazer sentido. E então, por alternativa, vai-se a Macau. Será o meu caso. Eis-me (quase) de véspera.

Inquieto por ir a Macau. A Marlene Dietrich já não deambula pelas imediações e dizem que quem viaja leva consigo as suas paisagens como dantes os viajantes costumavam levar consigo os seus penicos  de porcelana. Falta-me o penico. Bom, há as sombras chinesas. Gosto de sombras, sobretudo ao vento.

Ocorre-me um episódio que contou o John Cage. Na sua infância, houve um amigo do pai que, findo o jantar em família, à despedida lhe desarrumou o cabelo, enquanto lhe anunciava, Rapaz, falei com os teus pais e, como no próximo sábado vou à Grécia e não me apetece ir sozinho, levo-te. Mas os gregos detestam quem lá vai e está desinformado, tens uma semana, vê o que podes fazer. Cage correu para a biblioteca do bairro. Devorou o Homero, O Banquete e o Timeu do Platão, leu o Hesiodo e uma História da Grécia. No sábado acordou às cinco da manhã e fez a sua mala. Remoeu uma ode de Píndaro, que havia decorado, para o caso de lhe ser perguntado. Ainda hoje poderia esperar sentado. O amigo do pai não apareceu. Em casa ninguém pronunciou uma sílaba para abordar a banhada, o homem ou a viagem. Sentiu-se ludibriado. Ou pior, devastado. Porque entretanto tinha lido o Homero e nunca mais foi o mesmo.

Isto é que é pedagogia!

Pus-me eu também a ler sobre a estética Taoista. Estou tramado.

Quando o Camilo Pessanha por lá se imiscuía – entre esteiras de ópio e a fala em papel de arroz de uma rapariga com nome de águia – Macau, como todas as províncias, devia ser madrasta, no sentido em que arruinava as liberdades. Há duas formas de arruinar a liberdade. Por coacção da lei e dos costumes, sob o ritmo dos não-ditos, ou quando se constata que executar o nosso livre arbítrio não muda nada, ou muito pouco. Aí, um tipo, como dizia o Pessoa, “liberta-se para dentro.” Foi, cheira-me, o caso de Pessanha.

Libertou-se em primeiro lugar do corvo do tempo. O tempo é um corvo que bebe o nosso sangue e se alimenta das escórias que nos navegam as vísceras. E bica e bica até romper os tecidos. Porém, na China, Pessanha aprenderá que afinal a vida é consumação e retorno. Mudam-se as aparências mas não o miolo de que são feitas. Pelo que podemos candidatar-nos a beber igualmente nas veias do tempo, sugando-lhe o seu extremo vagar.

Aí o tempo liberta-nos, vai incomodar outros.

Não sei se é isso que irei fazer a Macau. Mas não falo cantonês e o meu inglês é a gaguez do hamster que encontrou o urso polar. E gostaria de lá ter ido com menos cabelos brancos e menos apegado à Circe.

Macau, la petite, espera-me.

21/08/2017

Fazendo o trabalhinho de casa para aterrar em Macau com um olhar menos esbugalhado do que é costume vi-me embutido na paisagem que descrevo no soneto:

A gorda ou o combate de estéticas: “Cada pernoca vale o velame de um iate / inflado em carne por ser nela o vento interior /aos tecidos. O tom de pele é mate. /É o namorado quem recheia // com chocolate o montanhoso pico /do sorvete, e, a avaliar p’lo entusiasmo /com que lhe enche de ideogramas/ a baunilha, aprecia. ‘Tico-Tico sardanico… ‘, //mimoseia o aventureiro. Não caberia/esta imperiosa coxa num haiku japonês /escrito por sindico e que, delicado, só sugira… //Ou traria à liça embondeiros, tsunamis, /e a onda de Hokusai, que, pasma, mira/o prenhe refego do Índico? “

22/08/2017

A propósito de chegar aos lugares tarde, recordo outra história. A de Marcel Conche, o grande especialista francês dos pré-socráticos. Julgava-se o erudito aos setentas e muitos aposentado. E então começa a receber cartas de uma jovem de trinta, da Sardenha, a Emily. As cartas eram atordoadoras, de prolixas e belas. Propunha-se a jovem a examinar com ele os subterrâneos vasos comunicantes entre os pré-socráticos, os sufis e os taoistas. E como não queria perder tempo aterrou em Paris.

Foi uma ventania que fez soar todos os carrilhões adormecidos na líbido embalsamada de Marcel. Em dois meses viu-se o filósofo várias vezes nu (salvo seja) e arrastado pela lotaria do pensamento. A sageza foi à viola, tudo o que ele pensava comandar. Num ápice, intempestivamente como havia chegado ela partiu. Deixando o filósofo a nu (salvo seja) com as suas insuficiências. Oh pá, se o objecto do desejo se escapuliu entre os buracos da chuva há que fazer das tripas coração! Foi o que fez o pobre Marcel. A dobrar os oitenta foi aprender chinês e aos oitenta e cinco lançou uma tradução mais comentários ao Tao te King, de Lao Tse. Parece que o livro é notável.

Acho esta história um exemplo. Era esta a coragem que desejava para mim. Mas temo que o meu coração não passe de um fruto, não seja uma tripa.

23/08/2017

Transcrevo: “o confucionismo parte do pressuposto de que o homem é bom. Pelo contrário, no Ocidente, hoje, toda a organização social se baseia no pressuposto de que o homem é mau: homo homini lupus. Uma profecia que se autoconfirma. Quando as relações humanas se estabelecem pensando que o homem é mau, o homem acaba por sê-lo… “. Sou interrompido pela minha filha que há dois dias trauteia em voz alta, sem piedade (ensaia para algum Got Talent) , uma canção dos Abba. Infatigável.

Calma, o homem é bom, não há tensões entre o homem e a sua incógnita.

25 Ago 2017

O regresso de O Rinoceronte

08/08/2017

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]ilene. Pisámos pela primeira vez a língua de areia que separa a lagoa do mar. Elas foram em expedição, à cata de tartarugas. Eu fiquei em decúbito dorsal sobre uma duna a reler O Inumano de Lyotard. Nas minhas costas o remanso da lagoa, às vistas o fragor do mar. E anoto: “o desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa (…) Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direcção da coisa desconhecida no ‘interior’. Perde-se o tempo em busca do tempo perdido. A anamnese é o antípoda, o outro, da aceleração e da abreviação. “

Chegados da falésia que ladeia esta fimbria, alguns gorjeios aveludam o ríspido grasnido das gaivotas. Eu interrogo-me se a interioridade não será apenas a actualização duma anterioridade desmembrada. A maré enche, rebenta com ímpeto as suas ondas na rocha. Uma criança foge da água aos berros, tem um calcanhar castigado pela queimadura de um tentáculo de garrafa-azul. Leio, “Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é ao que devemos chamar pensar”. Estou certo de que tenham sentido estas minhas garatujas? Não. O sol estrela-se nas minhas costas. Persigo a disjunção, o pensar sem corpo enquanto elas perseguirão as tartarugas. Achá-lo-ei, achá-las-ão elas? A indeterminação é a pauta – embora lhes caiba (a elas) a maior propensão. Nesta latitude é mais plausível tropeçar – se em  tartarugas ou avistar-se baleias do que eu achar vaga na gávea que permite enxergar o pensamento sem corpo.

A um palmo de mim uma pequeníssima, quase invisível, aranha, suspende-se de um fio preso onde? Lamento não ter trazido a máquina para fotografar o inefável. Ao meu lado o Vítor, deitado de papo para o ar, lê o 4321 do Paul Auster, um senhor tijolo, e comenta, Este livro além de excelente exercita os músculos.

Pensamento com corpo.

10/08/2017

É impossível não sorrir quando leio no Magazine desta semana:

A selecção nacional de xadrez qualificou-se para o mundial da modalidade, a ter lugar na Índia, no próximo mês de Dezembro, fruto da conquista do “africano” da modalidade, recentemente realizado em Moçambique, que contou com a participação de dois países do continente africano (…) A organização contava com mais participantes mas por motivos financeiros e burocráticos, à última hora, os restantes desistiram da prova.

O certame foi designado Africano Zona 4.3/ Sub-16, por equipas.

Este mega evento é a primeira vez que é organizado em Moçambique e contou com juízes internacionais provenientes da Zâmbia e os restantes são de Moçambique. Com a ausência de um número considerável de países, o certame resumiu-se a dois países nomeadamente, Moçambique e Suazilândia. Foram divididos em quatro equipas, equipa A,B,C e D. A equipa “B” foi a grande vencedora da prova. Tendo a Suazilândia ficado em último lugar…

Parabéns Moçambique.

Isto faz-me lembrar o exemplo que costumo dar na primeira aula quando quero frisar o fosso que é preciso ultrapassar para dar o salto para o desenvolvimento. E então aí informo que o jornal que mais vende em Moçambique é o matutino Notícias, o único que chega a todo o país e que, para uma população de 23 milhões, vende 20 000, recordando em contraste que em 1890 os principais diários de Paris, Londres e Nova Iorque vendiam entre 90 000 a 100 000 exemplares.

Há muitos mundos no mundo, repetia a minha mãe.

11/08/2017

Pascal morreu aos trinta e nove anos… e já era, no seu tempo, uma idade avançada. Alexandre Magno e Catulo morreram aos trinta e três anos, Mozart aos trinta e seis, Chopin aos trinta e nove, Spinoza aos quarenta e cinco, Santo Tomás aos quarenta e nove, Shakespeare e Fichte aos cinquenta e dois, Descartes aos cinquenta e quatro, e Hegel com a avançadíssima idade de sessenta e um. Também o Bolano se finou aos quarenta e nove.

Face a estes dados só nos resta reconhecer que somos de uma preguiça incomensurável e que há ossos que não se liquefazem no efémero.

11/08/2017

Folheando cadernos adentro pesco um episódio caricato que se passou com o Ionesco.

O velho gnomo recebeu o telefonema de um encenador de Nova Iorque que além das palmadinhas nas costas lhe comprou os direitos para encenar O Rinoceronte, uma peça onde todas as pessoas de uma aldeia se metamorfoseiam em grandes mamíferos. A peça na altura foi lida como uma metáfora sobre a alienação ou sobre a indiferença. As interpretações variavam. E o Ionesco lá pagou um tintinho ao Cioran e a outros compinchas.

Passado dois meses recebe um novo telefonema do americano, que estava encabulado. Desembuche homem, incentivou o romeno. O nova-iorquino lá esclareceu que tivera de contratar um “negro” para reescrever a transição do segundo para o terceiro actos. Mau Maria, de que é que você fala? E o encenador confessou que fora obrigado a introduzir um telefonema em que Berenger (o protagonista) tenta em vão telefonar ao seu maior amigo, antes de concluir, Bom, eu tentei avisá-lo várias vezes que ia a casa dele, mas como não me atendeu o telefone…

Resumindo, o que deixou o Ionesco siderado, para o americano era normal que um corno de rinoceronte irrompesse da testa das personagens e que toda a aldeia se bestializasse, isso fazia parte da lógica poética, o que era impossível de acontecer era que um amigo fosse a casa de outro sem o avisar previamente. Convenção social, afinal, que derrotava  o absurdo da peça.

Seja a alienação seja a indiferença, qualquer uma das duas chaves tornam O Rinoceronte actualíssimo.

17 Ago 2017

Adonis, um santo

06/08/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Iémen, à beira de uma casa de campo, o realizador com quem viajava teve a ingenuidade de tirar fotografias a uma menina de três anos que sentada num degrau dava à perninha e sorria.

Só que a coitada tinha uma sainha pelo joelho. Ao terceiro clic assomou de dentro uma avó endemoinhada que nos repele aos gritos, secundada por um pai de kalachnikov nas costas e que imediatamente incitou a mãe a espancar a criança à nossa frente. A dita havia mostrado as pernas aos estrangeiros.

Foi um “espectáculo” que conduiu e acabámos por pagar caro a nossa retirada – mitigação traduzida em dólares porque a moral (helás!)  negoceia-se sempre.

Toda a minha atracção pelos páramos dos sufis, pelo Ibn Arabi, pelo Rumi, etc., vacilou naquele instante e fui vasculhar no fascinante Islam, l’autre visage, de Eva de Vitray-Meyerovitch, a raíz daquela violência. Não fui esclarecido.

Ē-me explicada agora a causa das coisas no abrasivo Violence et Islam (Seuil, Dec. de 2015), um livro de entrevistas de Adonis (1930), o poeta sírio, no qual este, com a cumplicidade do psicanalista franco-marroquino Houria Abdelouahed, desmantela o carácter ferino do islão, demonstrando não apenas a sua violência genética como a sua falência. Citando os textos dos Hadiths, do Corão, dos Sutras, e “saturando-nos” com a sua autoridade de um homem de dentro… Adonis zurze quase envergonhadamente por ver a “sua” civilização de quinze séculos definhar na pulsão degenerativa do Daesh – um caso, diz, de arterioesclerose religiosa.

Neste livro não encontramos um ajuste de contas mas um homem que ama as “fontes vivas” da cultura de onde emergiu – e que lhe alimentou dezenas de livros – mas que ama igualmente a verdade e que desgostoso, começando por fazer uma análise da malograda Primavera Árabe, diagnostica um final triste para a cultura que sempre almejou dignificar:

«O homem que se pensa mais vigoroso do que a morte – porque se imagina a piquenicar agradavelmente no paraíso – pratica a barbárie sem medo ou sentimento de culpabilidade. Ele simplesmente está separado da natureza e da cultura. Vejo no Daesh o fim do Islão. Ē um seu prolongamento, certo; sendo igualmente o seu fim. Actualmente, sobre o plano intelectual o Islão não tem nada a dizer. Nem élan, nem visão para mudar o mundo, nem pensamento, nem arte, nem ciência. Esta repetição é o próprio signo do fim. (…) O Daesh não oferece uma nova leitura do Islão ou a construção de uma nova cultura ou de uma nova civilização. Antes é o encerramento, a ignorância, o ódio do saber, o ódio do humano e da liberdade. E é um fim humilhante!»

Percebe-se porque sendo Adonis um dos iniludíveis poetas mundiais da actualidade e um consecutivo (desde há década e meia) candidato ao Nobel (invariavelmente, dos mais falados), a distinção lhe tem escapado.

Fosse eu uma voz decisiva na deliberação e votaria contra pela razão mais simples: quero-o vivo e não exposto a uma fatwa – o que automaticamente se seguiria à publicidade sobre a sua obra.

Este livro – tocado pela inusitada coragem dos santos que pairam com a sua liberdade acima do medo – deixa sem vértebras o corpo institucional da religião e dos poderes islâmicos (evidentemente que, como um homem de bem, e não como um tolo iconoclasta, Adonis não confunde a fé dos seus membros com o anquilosamento estrutural da religião).

Citemos a mais inocente das passagens:

«O Islão matou a poesia. Este assassinato, com efeito, é igualmente o da subjectividade, representa o detrimento do indivíduo e da sua experiência de vida em proveito da crença comum, a da Oumma (a comunidade). O Islão rejeitou que a poesia fosse um conhecimento e uma demanda da verdade. Ele baniu-a e condenou-a. Ora, a poesia perde todo o sentido se não for exactamente uma busca da verdade. Posso mesmo dizer que a poesia é uma desmontagem e um desmantelamento da religião, tanto na sua crença como no seu conhecimento. Ademais, é a poesia que diz a verdade. (…) Do ponto de vista poético, a religião é um duplo niilismo: dado que é uma destruição da beleza da existência sobre a terra, querendo-a substituir por um enchimento infinito de lendas em torno do paraíso. A poesia tem a vantagem de afrontar directamente a divindade sem se transformar numa outra religião. Ela rechaça a ideologia. Como a mitologia, antes questiona e abre e desdobra horizontes infinitos para a busca.»

Olé!

Repita-se: este não é o livro de um ressabiado mas apenas o de um homem que à obediência preferiu a inquirição e que não receia ferir-se no acto de abordar a verdade. Ē como um sudário limpo que sonhasse que o seu corpo corrupto se metamorfoseasse numa cesta de fruta.

E o melhor de tudo é que neste livro quem sai mais dignificado é o feminino e cada uma das mulheres, sequer alguma vez reduzidas à abstracção de um género. Como pai de cinco filhas, agradeço-lhe.

Sim, mestre Ibn Arabi: «todo o lugar que não aceita o feminino é estéril».

08/08/2017

Subimos da Macaneta (praia) à cidade mais próxima (a dez quilómetros), Marracuene, a trinta km de Maputo, para depositarmos na filial local do nosso Banco a renda da casa.

Estivémos quarenta minutos na fila. E chegados ao balcão sentencia a intrépida funcionária, Não temos fotocopiadora, cada cliente tem de trazer de fora as fotocópias da sua identificação… (o que deu mais meia hora em apalpação de um território peculiar, que vive ao retardador). Ainda que seja o próprio que se apresenta, com todos os seus documentos, numa filial do Banco onde tem a sua conta.

Ē indubitável o delírio kafkiano nos países à deriva.

Bom, para as minhas gatas também sou um fabuloso primeiro-ministro!

10 Ago 2017

O planeta dos macacos

26/07/2017

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s meus amigos de esquerda são – como eu antes de ter mudado para o sul e como diriam as minhas filhas – “muito fofinhos”, mas têm as bússolas avariadas. O combate contra os Trump deste mundo e os nefastos desiquilíbrios que o rasto do neo-liberalismo nutriu só ganharão em serem subsidiários de uma causa mais estrutural e de uma legitimidade acrescida.

Não basta ter boas-intenções, urge um esforço para distribuirmos um pouco mais, globalmente, em vez de nos confinarmos na defesa dos nossos privilégios.

Para que se entenda ao que aludo lembro o modo como um dirigente do período mais aceso do samorismo definia a “disciplina” nos sermões que dava aos seus subordinados.

Contava o dirigente, deliciado: quando os japoneses invadiram a China, o Exército Vermelho e o de Chang Kai-chek, fizeram um pacto tendo em vista combaterem o inimigo comum. O Exército Vermelho enviava contingentes para se juntarem ao exército nacionalista e Chang Kai- chek nunca desdenhava a oportunidade para os chacinar.

Embora sabendo disso o exército revolucionário nunca deixou de enviar novos soldados para a matança porque considerava a luta contra os japoneses um imperativo nacional. E os seus soldados, sabendo igualmente a sorte que os destinava, entregavam-se à traição dos seus compatriotas, por disciplina. Era este o espírito  elogiado pelo dirigente moçambicano, disposto a trocar a bagatela de muitas vidas pela grande causa. Claro que se esquecia de acrescentar que como grande dirigente ele estaria sempre fora da lista dos disciplinados. Pormenores.

Merda para a disciplina.

Muito disciplinadamente a esquerda repete slogans, princípios e reivindicações como se a natureza dos desafios fosse imemorial e unicamente diagnosticada como abalos ou avanços económicos. É a que nos convém à nossa esfera de consumidores e por isso a nossa disciplina vê – se condicionada pela leitura dos “nossos” problemas.

E então esquecemos feridas inaparentes e invisibilidades essenciais, porque ocultas pela distância e a nossa tolerância face ao sofrimento alheio.

O essencial, por exemplo, prende-se antes com o que se denomina neotenia humana. Um conceito que não se desconhece mas de que ninguém tira as devidas consequências.

Explica-o Gilbert Durand: “(…) o cérebro humano vem ao mundo imaturo e incompleto. Enquanto um jovem chimpanzé termina o seu crescimento cerebral nos doze meses que se seguem ao nascimento, são precisos seis anos no mínimo, e depois ainda dez a doze anos, para que o cérebro humano se desenvolva. Dito de outro modo, não há desenvolvimento do cérebro sem ‘educação ‘ cultural. “

Por educação cultural entenda-se aqui sensibilidade para o problema e condições de possibilidade  para a sua elucidação, do mesmo modo que os problemas de género só são resolúveis a partir de uma educação de base que discirna costumes e natureza, até que a anomalia se torne percepcionada.

Considero um escândalo que ninguém brame contra as desigualdades que a desatenção à neotenia gera. Que se omita haver dezenas de nações – de todas as latitudes, raças e regimes políticos – que não oferecem as menores condições para que o grosso das suas crianças possa desenvolver plenamente o seu crescimento cerebral. Que no miolo de países ricos, como os States, haja bolsas de pobreza com efeitos afins.

Em Moçambique chama-se à criança subnutrida e de olhar mais vago que a varejeira em linha recta: marasmada. Está marasmada. A criança marasmada não aprende mais do que um  cogumelo no frigorífico, tem o seu futuro hipotecado. Acrescente-se à subnutrição os traumas de guerra. Aí o marasmamento constela pelo negativo, vira cratera lunar.

Devia acrescentar-se à carta dos direitos humanos o direito das crianças ao pleno desenvolvimento cerebral. País que não oferecesse condições para tal perderia momentaneamente o seu direito à soberania e a ONU – sob uma legislação precisa que  coarctasse na base qualquer tentação dirigista nomearia um governo de técnicos nacionais que, num período de transição, devolvesse a essa comunidade o desenvolvimento técnico, social e humano que lhes garantisse a autonomia futura. País rico que tivesse ainda crianças nessas condições ficava interdito de produzir armas.

Era evidentemente uma investida que colocaria de fora ideologias e fronteiras étnicas e culturais. O único aferidor válido para determinar se um povo tem direito à perpetuação da sua soberania seria o de verificar se nele se poderia cumprir a neotenia.

Creio mesmo que se tal fosse consignado na Carta dos Direitos Humanos as nações em falta reagiriam para colmatar essa pecha e por uma vez se afastariam da exaurivel cobiça com que intestinamente se esquecem do bem comum para se digladiarem pelos pequenos poderes – sob a ameaça de se verem arredados dos seus privilégios.

Eis uma daquelas causas ao lado da qual noventa por cento das demais são modas e bordados. Urge redefinir totalmente a cartografia política. Anulem-se os conceitos de raça e as falácias da identidade, substituindo-os por esta nova pedra angular: todas as crianças de todos os lugares do planeta têm de ter as mesmas oportunidades para o seu desenvolvimento psico-genético… e nem culturas, ideologias ou religiões seriam chamadas ao caso.

Evidencia-se aqui uma forma simples e irrenunciável  de “organizar o pessimismo “(Pierre Naville ) a que se tem remetido o pensamento crítico.

Até aí nunca sairemos do Planeta dos Macacos, creio que nenhuma outra fábula é tão justa.

O verdadeiro e mais insidioso colonialismo é este, interno às nações que irresponsavelmente andam à deriva, e é transversal.

Claro que dos meus amigos da direita não espero nada.

3 Ago 2017

Mondrian e outros vícios

22/07/2017

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] mais do que certinho, por um sorriso já se travaram batalhas. O sorriso de Helena de Troia, por exemplo, devia ser de estalo. E eu tive de bater-me ao sorriso da minha mulher contra um espanhol de má raça. Coube-me agora a sorte de em três semanas em Lisboa ter encontrado três mulheres com um sorriso coruscante, por quem se iluminariam batalhas.

Azar meu que seja falso que tenhamos todos as nossas idades ao mesmo tempo. E que me sinta um coral vivo, colorido por dentro, enrugado por fora. E chega de lamúrias.

23/07/2017

Domingo, uma hora na fila, cativo da máquina de bilhetes para Cascais, para depois viajar de pé, no meio de uma chinfrineira pouco atraente, como se tivesse despertado em Babel.

Os custos de uma Lisboa aturadamente cosmopolita. Adivinho que daqui a duas gerações brotará uma meia-dúzia de poetas bilingues, trilingues, sendo o português um resíduo esquinado pelos ventos da história.

E prevejo que o número de videirinhos subirá em flecha. Sempre gostei de histórias de videirinhos e admiro-lhes a manha – suponho, por ser prato que nunca confeccionei, “pateta em aberto” de bolso roto e sem agenda secreta. Mas vão proliferar os videirinhos, verdadeiros canivetes-suiços da patranha. Na literatura idem e etc.

Ainda ontem, num bar, logo de entrada, me jurava um tipo:

“O que acontece comigo e me diferencia é que não tenho vícios!”

E eu vejo como o corpo o desmente, como cresceu sem parar, por puro vício; como lhe caiu o cabelo sem parar, por embriaguez genética; como a sua linguagem gestual está num perpétuo ponto-cruz, pelo vício de esgrimir argumentos sem parar até só ouvir o eco da sua voz. Vejo um homem à míngua de tímpanos, incapaz de aceitar o seu silêncio, emaranhado no grude da inteligência – a prazo só lhe resta mentir-se até convictamente acreditar no que a mentira bolça. Com talento, mas ao modo de um cardume num aquário, refém de si mesmo, sem exterior.

E eu que não me lembrei de Luis Buñuel nem me enfrasquei em dois gins!

Chego a casa e abro um António Ramos Rosa que nunca lera, de prosas e diálogos. E o poeta, para falar da sua extrema fragilidade, começa assim: “Sempre falaram alto. Muito alto. Demasiado alto. Todos exemplares e eufónicos, erectos no seu convencimento, na segurança de si, no excesso de personalidade e de expressão,”

Parece um retrato do outro, o homenzinho impoluto. É deste jaez – incontinente, insuperável.

Prefiro os sujos, os contraditórios, os que sabem que a si mesmo mentem e por isso perseguem envergonhadamente e falhos a bainha da verdade; os noctívagos que amam a luz; os que têm sede do mal para a diluírem no seu fígado, no afã de não se afastarem do lema de Camus que é o veio de uma ética: «sofrer, não te dá direitos!»; prefiro um gago à rasca a um sofista eloquente; preferirei sempre quem foda a quem se gaba de foder.

Talvez porque como Pessoa e tantos outros a quem amo mergulho na submersa nascente do sujo. Pior: há tanta gente digna que se encharcou em vícios que é inadmissível alguém se arrogar ao desplante de produzir sentenças sobre o menor dos vícios.

24/07/2017

Mantive sempre com Mondrian um trato difícil. Em sonhos espancava-o e chamava-lhe bandalho, e voltava a dar-lhe no focinho, agora com cubos e rectângulos e quadriláteros e losangos. Eu, que nem sou viciado na violência – há porém visões ascéticas que me cansam, sobretudo as que se esquecem de que a vida é um funil ao contrário, em centrifugação; que a vida, expansiva, não admite mandamentos.

Então descobri-lhe as flores, nos antípodas da sua pintura abstracta. A sensualidade, os matizes de uma cor que procura o seu tecido ou a sua carne, a fulgente precaridade da sua dimensão corpórea, com caules sempre à beira de soçobrarem, pétalas na agonia de caírem, pedúnculos num fio, e uma pincelada láctea, às vezes hesitante, mas prenhe de um lirismo tangencial ao humano e que dá, afinal, outra densidade aos futuros ganhos expressivos da sua abstracção. Desde então, deixei de o espancar nos meus sonhos, temos tido até excelentes conversas sobre os relojoeiros de Samarcanda.

Um dia destes conto-vos os meus sonhos com a Ava Gardner. Sou o seu melhor amante de sempre – o Sinatra. onde ficou! Porque, geometrias, só as que se despenteiam ao vento.

25/07/2017

Não digam a ninguém, mas estou a construir uma Arca. Como a de Noé. Para financiar a operação apoiámo-nos nos emolumentos da cultura que me represou e que agora guarnecem as provisões da Arca.

Leiloámos as ligas e mais lingerie da última amante de Lacan a pala do olho de John Ford, e, recursivamente, o braço recuperado de Cendrars, as tesouras de unhas de Deleuze, o fígado restaurado de Malcolm Lowry, o pezinho em diamante de Moravia, o mistral de Joris Ivens, a Anne Karenine do Pierrot le Fou, a neve sobre a alameda de coqueiros, na Quinta de Santa Catarina, em Sines, onde o Al Berto espatifava os triciclos, o Casanova de Sollers, cinco rentéis de vinho de palma, as máscaras do mapiko, um pote com os pulsos das palavras de Guimarães Rosa e o lugar de onde a minha infância olhava a camisa-de-onze-varas que nos despia os fetiches: o Cabo Espichel.

E para quem acredite em Deus, leiloaremos por fim, a radiografia do pirilampo.

Falta-nos discutir o regime musical, pouco transigente

Impolutos não arrependidos é que nunca levaremos para a Arca.

27 Jul 2017

Ter galo e ser galo

18/07/2016

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez escrevi um sketch de teatro que contava o drama de um assaltante de bancos que amargou sete anos na cadeia sem ter dito onde havia escondido o bolo do assalto e que quando sai finalmente para a sua suprema recompensa dá conta de que houve na semana anterior uma alteração das células e que com a conversão perderá milhões.

Este tipo de situação – “ter galo”, chama-se na gíria – é-me comum. Vou dar um exemplo.

A semana passada fui a um congresso. Designava-se assim: “Cartógrafo de memórias: a Poética de João Paulo Borges Coelho”. Em Moçambique há um deserto no que toca a textos para teatro e à dramaturgia. Decidi então levar ao congresso não um trabalho de académico, mas de um prático, e intentar explicar como se poderia operacionalizar a tradução de um romance de Borges Coelho em peça de teatro. Enfim, só esquematicamente, porque não apresentei a peça mas uma sequencia sinóptica que inclusive só pode servir como ponto de partida pois o teatro é sempre um work in progresso.

Cheguei a Lisboa e estive três dias fechado a imaginar a coisa e a escrever a comunicação. No dia, fui até o primeiro a chegar ao Anfiteatro III, na Universidade de Letras, e enquanto esperávamos tive uma deliciosa conversa com a Ana Paula Tavares sobre o meu emérito bisavô, o explorador de África novecentista Henrique Dias de Carvalho, que lhe serviu como sujeito de tese.

E depois demos início aos trabalhos. Eu era o primeiro a falar, coloco o texto à frente dos meus olhos e espero que o moderador da mesa faça de lebre. Tiro da partida. E à primeira sílaba engancha-me, por causa do ar condicionado, uma irritação na garganta que me faz tossir, tossir sem remissão. Um verdadeiro nó de crude. Nos primeiros dez minutos (tinha direito a 20 m) tossi e fiquei áfono e só consegui ler a primeira página da comunicação. Cavalgo depois o texto, desenfreadamente, enquanto a moderadora da mesa me ia mostrando pequenos alertas, primeiro o cartão amarelo (FALTAM CINCO MINUTOS), depois o vermelho, vários (TERMINE A SUA COMUNICAÇÃO; POR FAVOR), que atrapalharam a menor hipótese de fluência e distraíram a recepção de algo que já estava a ser transmitido com ruído. Foi um verdadeiro acto não-comunicacional. Enfim, a moderadora fez o seu papel, eu tentei agonicamente fazer o meu, mas no ar condicionado havia um um diabo sentado.

Eis o que é ter galo! Veja o meu texto aqui: https://revistacaliban.net/teatralizar-as-m%C3%A1scaras-eab0401ef35b.

Mas desta vez o galo não é só meu. É uma vergonha haver um escritor do calibre de Borges Coelho (muito resolutamente um dos melhores no espaço da língua portuguesa) que é contemplado com um congresso internacional – com gente vinha de Moçambique, Brasil e Estados Unidos –, e não haver espaço nos jornais para uma notícia, não se ter deslocado um único jornalista para cobrir e divulgar o acontecimento.

Pelo contrário, temos páginas duplas dedicadas ao regresso de A Guerra dos Tronos e outras tantas que bordam sobre o falecimento de George Romero, o crânio que institucionalizou em sub-género os filmes sobre zombies.

Faz-me lembrar que uma vez no décimo segundo ano, na disciplina de Português duma filha minha, a professora pediu que eles escrevessem sobre um livro e autor à escolha e a minha filha escolheu um romance do Carlos de Oliveira, o que levou à perplexidade a professora porque não sabia quem era.

As prioridades mediáticas estão todas trocadas e assim de lixo em lixo vamos entristecendo.

Em Macau talvez não, que o escritor moçambicano vai deslocar-se até aí para a semana para, em companhia de Helder Macedo e de Carlos Morais José, oferecerem com certeza uma sessão magnífica a quem se atrever acompanhar tais ventanias mentais.

 

19/07/2017

Lisboa está mesmo transfigurada por causa do turismo. “Já houvera dizer”, como dizia o outro mas não há memória descritiva que assimile uma tal enxurrada. Filas intermináveis nas bilheteiras e um afã desfigurador nas tascas e restaurantes são sinais que exasperam.

Aconteceu-me duas vezes, esta semana, sentar-me com um amigo em restaurantes que frequento há vinte anos e ter de sair porque não reservara previamente uma mesa. Tudo muda, mas por que não poderá ser para melhor?

E há claramente um excesso de oferta cultural na cidade. É uma borbulhagem, um ziguezague que não pode obter qualquer inscrição, qualquer anelo para a memória – pois esta funciona como a arquitectura de jardins, só é despertada se a um nicho de árvores se suceder uma clareira. Se só houver uma mancha opaca de árvores estas tornam-se anónimas, anulam-se entre si. Como não entender isto?

Contra esta massa, densa como todos os equívocos, entrei na INCM e tive a inspiração de pedir o II volume da Obra Poética do Vitorino Nemésio (que me tinha sido surripiada por empréstimo). Há 15 anos que não lia o Limite de Idade e Sapateia Açoriana. Não têm uma ruga, o Nemésio continua a ser um dos grandes poetas do Século XX português, só precisa de leitores menos distraídos. Veja-se o início do poema O AFILHADO: « O meu afilhado epiléptico veio ver-me./ Veio verme. / Verme não é. E, se fosse, isso que tinha?/ Os anelídeos têm os seus anéis elásticos, / Num começo de élan superior, bem soldado,/

A blocos de controlo e direcção,/ Enquanto que ele a perde em centros altamente sinápticos/ E fica pobre e triste entre os apáticos.// O meu afilhado epiléptico/ Veio ver-me/ Veio verme, / Veio eclético (…)», e continua, numa liberdade que não acaba e que faria inveja ao Cesariny.

Sempre que adormeço a ler Nemésio, volto pela manhã a ouvir os galos.

Os que são, não aquele que se tem.

20 Jul 2017

Êxodos

09/07/2017

[dropcap style≠’circle’]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; aí é a sua pátria, onde ele não é profeta», anotou Blanchot em L´écriture du désastre e creio que ele entendeu tudo.
O escritor aí não é profeta, nem é emissário de nada e segue o sulco da humildade. Para ele não há outra pátria para além desse “espaço de suspensão” que o exonera da identidade ou que o desobriga de quanto não seja unicamente a porosidade e a fragilidade humanas, que o irmanam aos demais.
E que raio quer dizer “escritura”, e porque se obstinam alguns a preferir este termo a escrita? Simples, quando escrevemos com tema prévio (um cão-guia-para-cegos) exercemos a escrita e quando escrevemos no escuro, levados pelos ventos que despontam ali mesmo da página e urdem uma errância do pensamento, aí somos abobadados no domínio da escritura, e, neste caso sentimo-nos num êxodo feliz.

10/07/2017

Pato no tucupi. Especialidade de Belém do Pará, elaborada com tucupi, líquido de cor amarela extraído da raiz da mandioca brava, e com jambu, erva típica da região norte, diz o Wikipédia. O que importa é que a mandioca para se libertar de todas as suas toxinas tem de ferver sete dias. Com essa calda fervente no sexto dia faz-se o pato. O sabor é magnífico e o seu efeito físico nas beiças é inusitado porque estas ficam anestesiadas, como se tivéssemos saído do dentista após nos ter sido extirpados três dentes.
Foi o prato que o Adão inventou para anunciar à Eva: querida saímos do paraíso. O marido descobre que a mulher o engana e precisa de desabafar com um amigo. Vão ao restaurante e ele pede pato no tucupi. Depois conta a sua mágoa ronronando – é da anestesia. Das vezes que estive na Amazónia e que pude desfrutar deste petisco percebi o seu enorme potencial de sabedoria. O homem em queda no seu paraíso, numa guinada de resiliência, descobre logo esta receita – equivale ao consolo na filosofia.
Bom, mas Belém não tem só isso, nem histórias com botos que em noites de luar se convertem em homens trajados de branco e de borsalino e que seduzem e engravidam todas as mulheres, sem remissão. Belém, tem excelentes poetas e escritores, como o para-angélico Vicente Cecim, o António Moura, o Max Martins, o ensaísta Benedito Nunes. E ontem apresentaram-se-me mais dois, o Daniel da Rocha Leite e a Luciana Brandão Carreira, um casal simpatiquíssimo que conheci nos Poetas do Povo, ao Cais do Sodré.
Para a semana já tenho encontro marcado com outro grande escritor brasileiro, o Ronaldo Cagiano, que, com a sua esposa e igualmente escritora Eltânia André, resolveu romper com o país e mudar-se para Lisboa. E o Ronaldo já me prometeu apresentar um outro escritor brasileiro, de renome, na mesma condição. É o êxodo.
Entretanto, escrevo-me com o poeta e ensaísta de S. Paulo, Fernando Paixão, e conta-me que ele e a mulher Elaine Mores, ensaísta e especialista em Sade e literatura erótica, passaram meses em Paris e só agora voltaram a S. Paulo, antes de rumarem a Lisboa, em Setembro, por já terem cá apartamento e por só assim suportarem o país. É o êxodo.
O senhor Temer é que não parece nada preocupado pela deserção dos seus melhores patriotas porque pelos vistos não tem nem sentido da proporcionalidade, nem dignidade, desaparecida que lhe foi a probidade (- consta que ela fugiu com outro).
Para que não se diga que minto, transcrevo três poemas breves, cinzelados, de Luciana. Safra: eu em ti// úmida// somos o gole que deseja a fonte// as águas arrebentam na praia// ritmo e pulso// fluxos// tu em mim ; Aves migratórias: Migram as tuas asas até os meus pés./ Movem-se os contornos. / Revolvemos os nossos membros./ Minhas asas nas tuas mãos.//Híbrido caminho entre o céu e o pouso:/ sempre o mesmo movimento/ expansão e pausa.; Gume: Antes,/ desgastar o tempo/ puir seus fios/ sentir o veludo e o sagrado da espera/ arrematar o volume das sobras/ avivar o vermelho das artérias/ sem atrasar a hora/ ou perder o punhal/ com o qual o tempo se corta.
Abro entretanto o livro do Daniel, aguarrás, um poeta de voz plectórica e ao arrepio da sua expressão contida, lapidar, e descubro como as mais pequenas células poéticas podem conter uma virulenta leitura política. Veja-se este narcose: afogado// o teu silêncio ainda respira em mim. Agora pense-se no Temer.
Deve ser muito deprimente ser brasileiro neste momento.

11/07/2017

Estava combinado que eu iria à EC.ON (Escolas de escritas) do Luis Carmelo ler uns poemas meus no sábado, ao princípio da tarde, sessão a que se seguiria outra com o Pedro Mexia, o qual chegaria da Colombia nesse mesmo dia. A EC.ON havia previamente combinado com o Mexia para o princípio da tarde, mas devido ao problema da viagem troquei com ele. Ontem fui avisado que voltava tudo à primeira forma, que ele faria a sessão do princípio da tarde e eu o do fim da tarde. Porquê? Para ir à Colômbia o Mexia precisava de passar por Miami, e necessitaria de visto americano, o que actualmente é uma espampanante improbalidade. E acabou por não ir à Colômbia.
Ocasionalmente, acabei de ler um livro do filósofo de arte Arthur Danto sobre o Andy Warhol, que ele dedicou assim: para Barack e Michelle Obama e o futuro da arte americana. Coitado do Trump que nunca vai conhecer este tipo de reconhecimento. Ou sim, no dia em que declarar Guerra à Coreia do Norte há-de um chicano embriagado querer escrever com a urina na caldeira de uma árvore, Trump es mi hombre!, porque também ele, desempregado e curtido pelos fracassos, gostaria de ter a fanfarronada que lhe permitisse esquecer os vexames sofridos.
E em fanfarronada mais uma vez caiu, o dito, desta vez felizmente para nós. Ontem acordou com Putin sobre cibersegurança, hoje escreve um twitt onde refere que tal acordo “não pode acontecer”. Face a esta volubilidade prevejo um êxodo dos conservadores americanos. Proponho que se mudem para a Sibéria.

13 Jul 2017

Do Trânsito da Lucidez

02/07/2017

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio uma longa e admirável entrevista de Susan Sontag à Rolling Stone, depois ampliada em livro, e, como sempre, há várias coisas que ela viu antes do tempo. Uma delas esta:

«(…) voltando a falar de ciência, acho que um dos seus maiores feitos é o facto de que hoje, pela primeira vez na história do planeta, as pessoas têm a possibilidade de mudar de sexo». E dá como exemplo o caso de Jan Morris, um escritor de viagens britânico que em metade da vida e carreira foi homem e depois mulher, o que o fez escrever sobre Veneza a partir das duas percepções.

Provavelmente a última grande aventura ontológica abissal talvez passe por esta mutação voluntária da identidade sexual.

Não falo desse reajuste do corpo à representação psíquica duma sexualidade virtual e longamente desejada, como acontece na transsexualidade, mas de uma aventura infrapsíquica que explora o lado oculto de um continente subitamente iluminado. Da mesma forma que imagino que este tipo de experiência não se associa à bissexualidade, mas à dimensão distinta que só pode ocorrer com a imersão da nossa identidade num corpo outro, diverso. Em vez de irmos aos anéis de Saturno mudamos de corpo.

Admito que o ser humano possa evoluir em urbanidade e empatia no dia em que, desviado da obsessão falocrática, lhe for comum atravessar ciclos de alternância na identidade sexual. Cresço como homem, sou depois transformado em mulher e volto a ser homem, até me instalar num estranhamento ao mundo que me induza a reparar nas singularidades que só uma outra percepção me propicia. Seria uma educação-para-o-outro radical mas talvez resolvesse insensibilidades profundas, um coeficiente de desatenção à vida, na sua textura plural.

Estou prestes a aterrar em Lisboa, onde voltarei a comer caracóis, criatura que pode à vez ser macho e fêmea. Hei-de perguntar-lhes. Brinco, mas eu raramente brinco.

Na mesma entrevista, Sontag discreteia sobre a sua viagem a Hanoi, em plena guerra do Vietname, e a sua reportagem, tão controversa, na qual não iludiu a sua perplexidade face à personalidade colectivista dos vietnamitas. E, numa demonstração de honestidade intelectual, refere:

«Senti que era importante reconhecer que os vietnamitas são diferentes de nós. Não gosto dessa ideia liberal de que todos somos iguais, acho que realmente existem diferenças culturais e que é muito importante ficarmos atentos a essas coisas. Então parei de lutar para que, de alguma forma, eles fossem compreendidos e me dessem algo que eu reconheceria como um acto generoso em relação a mim, porque o seu modo de expressar generosidade era diferente do meu. Eles têm o seu modo tradicional de agir e falar e o que entendem por intimidade não é o mesmo que nós entendemos. Era como se aprendesse um tipo de respeito pelo mundo. O mundo é complicado e não pode de modo nenhum ser reduzido ao modo que você acha que deve reduzi-lo».

Treze anos depois de aterrar em África subscrevo inteiramente o que ela diz. A cultura africana é-me absolutamente exterior, nele antevejo o rosto da alteridade, e felizmente aterrei demasiado tarde (com 45 anos) para ter a ingenuidade de tentar a fusão. Um dos itens que nos diferencia sustentar-se-ia na circunstância de eu, como europeu, ser filho da Revolução Francesa e do Iluminismo, mas o que nos separa é mais profundo e gramatical, e, como ela diz: o que eles concebem como intimidade, reciprocidade, amizade, responsabilidade social, fidelidade, liberdade, poder e mando, sobre o que seja a curiosidade ou para que serve o conhecimento, está nos antípodas das noções que adquiri e desenvolvi.

Foi o que surpreendeu Sontag: os vietnamitas concebiam coisas muito divergentes sobre o uso a fazer da revolução, da sua liberdade e autonomia, das que a escritora americana (imbuída no espírito de uma esquerda que nunca deixa de repensar-se), havia alguma vez imaginado. E percebeu que viviam em mundos paralelos, que podiam ter intersecções, mas nunca poderiam coincidir. Respeitar isso é uma das maiores lições da vida.

«Todos diferentes, todos iguais», um slogan que nasceu do multiculturalismo, foi um dos slogans mais enganosos das últimas décadas, que enfermou milhões de equívocos. Ē um slogan que nasce ainda como efeito de uma ferida narcísica, sobrevinda duma situação pós-colonial.

Precisamos de reinventar os Universais, para que possamos encetar um novo diálogo, mas primeiro teremos de lucidamente aceitar a irredutibilidade do outro e só a sua assimetria em relação a nós e aos nossos valores despertará a necessidade de compreendê-lo, sendo então possível negociar uma fronteira comum, na qual as nossas diferenças não colidam. Mas facto é: as fronteiras existem.

Algo muito distinto da ideia que é veiculada pelas indústrias culturais e o seu afã de uniformização global, mas isso é já outra conversa.

04/07/2017

Daqui a três dias o Boeing fará a sua manobra de aproximação a Lisboa e sobrevoarei o Tejo. Que foi para mim um grande foco de atracção porque eu cresci em Almada, na outra margem da capital. O rio representava o trânsito do desejo. E então fantasiava sobre ele, sobre a sua profundidade. Como acontece em certos troços do Nilo, menos de seiscentos metros de profundidade era algo de inconcebível para mim; espessura submarina povoada de criaturas tentaculares, assaz discretas e inenarráveis e que só em alturas de convulsão tectónica assomariam à superfície.

Um dia, já nos trintas e muitos, tive acesso a uma carta do rio e foi um choque: no seu máximo de profundidade o Tejo não ultrapassa os 40 metros, e a maior parte do leito, entre o estuário e o Mar da Palha, queda-se a uns míseros 10 metros. Embriaguei-me nesse dia em que o Tejo passou a ser um alguidar.

Face a uma tal decepção passou a ser difícil recuperar-lhe a dignidade. Um dia contando isto ao poeta Jorge Fallorca ele desatou numa gargalhada e acrescentou, Ē incrível como as pessoas alucinam, mas então tu quando chegas de avião nunca reparaste nas escunas e caravelas que se vêem no fundo do Tejo?

Evidentemente que ele gozava comigo, mas desde aí sempre que chego a Lisboa arrisco o torcicolo no frenesim de vasculhar as naus do Fallorca.

6 Jul 2017

Os jardins da língua

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] coração do canário dá mil batidas por minuto. O do elefante vinte e cinco. As minhas andam pelas setenta, mas a máquina acelera quando deparo com a estultícia que nos afoga.

Nestas bandas do Índico o tu cá tu lá com o sobrenatural, com os Espíritos e Antepassados é mato – a quantidade de médiuns e espíritas e de gente que paira acima do terreno é estarrecedor. Têm muito mais dificuldades com a língua, o português. E a minha perplexidade nessa contradição é do mesmo grau da que encontrava Bernardo Soares, em discorrendo sobre o que o separava dos ocultistas: «O que sobretudo me impressiona nestes mestres e sabedores do invisível é que, quando escrevem para contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento de que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa».

Interessam agora as razões para isso? Começou com o “brando” colonialismo português e o racismo – o tal que como Midas corrompe tudo o que toca. E continuou nas políticas pouco ambiciosas com que hoje os líderes moçambicanos – na sua maioria educados na bainha da oralidade – reforçam anualmente o orçamento do Ministério da Defesa (para o exército e a polícia política) em detrimento do da Educação.

Acontece-me cogitar nas aulas: Este marmanjo em changana ou macua se calhar é um orador formidável, para quê esquartejá-lo numa língua em que não namora e que aprendeu demasiado tarde?

Entretanto, para arredondar as contas faço revisões de livros e de relatórios. O português dos relatórios das ONGs devia dar direito a electrochoques. Ou a prisão perpétua, vá lá com pena suspensa!

E quando se quer mostrar que a “pesquisa qualitativa” se apoia em entrevistas à fatia de povo escolhido para “amostra”, a fórmula repete-se e transcrevem-se escrupulosamente as frases dos populares, tal e qual foram ditas e não conforme a intenção do que queriam dizer. Escrupulosamente carregam-se nos erros, nas distorções da língua, até extremos como este:

“…a maioria diz que eu não quero fazer planeamento porque vou matar o quê não vou nascer mais é por isso estou a nascer para acabar toda filha, é assim mesmo (risos), não vou fazer planeamento porque não vou nascer mais, vou fechar de vez, é assim (risos)…”.

A pobre quer explicar que deixou de fazer planeamento familiar e de tomar a pílula ou de usar qualquer contraceptivo por acreditar que tais métodos conduzem à esterilidade. Mas se o que ela quis transmitir foi percebido pelo entrevistador, por que fazê-la passar por inapta? Eu garanto que farei o mesmo papel se me colocam a perguntar por uma farmácia para camaleões em grego, sueco, ou se calhar até mesmo em inglês.

Há um escrúpulo “científico” associado ao esforço políticamente correcto de não se corrigir a gramática ou a sintaxe das pessoas e que me cheira a encapotada indiferença.

Uma vez pediram-me que redigisse as legendas para um documentário moçambicano. Revi o filme de trás para a frente para entender na perfeição o que as pessoas queriam dizer e depois enviei as legendas. Recebi um telefonema furioso, tinha colocado as pessoas a falar bem. Então meu animal, reagi eu, afinal para que é que querias as legendas? Queria porque elas falam mal, para se perceber o mínimo. Bravo, querias multiplicar o embaralhamento, os lapsos, os curto-circuitos verbais, duplicando-os por escrito… pois agora, pelo contrário, percebe-se melhor, porque os teus entrevistados, se pudessem, era assim que gostariam de formular as coisas.

Nunca transcrevi em dezenas de entrevistas uma calinada de um meu entrevistado, a não ser que isso fizesse parte da sua matéria expressiva ou da sua personalidade. Um erro, uma falha de sentido, uma má expressão não desqualifica as pessoas – conheço pessoas de uma sensibilidade de eleição que se debatem com dificuldades em articular. A prosa canhestra de Husserl não o torna mais estúpido do que Heidegger cujo estilo, ao pé da do seu mestre, é a de um sedutor.

Diferente será, obrigatoriamente, na ficção onde “escrever bem” pode implicar uma forte dose de agramaticalidade, um reforço da coloquialidade e dos seus desvios e desmandos.

Contudo, em todos os outros géneros que mexam com ideias, conceitos, com descrições que peçam detalhe e apuro, não vejo porque não ajudar o outro a traduzir o seu próprio pensamento. A não ser que cretinamente me queira distinguir dele, Reparem na minha excelência e na desarticulação do indígena! O paternalismo de reproduzir as frases desconexas do nosso interlocutor não é uma face perversa, mesmo que ingénua, do mal.

Conheço quem borde em torno da grande criatividade das falas e do vernáculo populares, etc. Também eu me pélo se ouço a ameaça, Vou-te aos gorgomilos, meu canguinchas! E fico à espera. Também já aproveitei algumas frases no ar, que incorporei, e até um título. Um dia em Nampula li num pasquim: “os crimes montanhosos que hoje se cometem na cidade”. Recriei logo ali um título que é o de um livro inédito meu: “O Corvo de Colarinho Branco e os Crimes Montanhosos” e estou contentíssimo com a oferta. Porém, sei que aquela aparente riqueza da expressão, naquele redactor que escrevia com os pés botos e emaranhava as frases numa sintaxe de feio empeno, veio-lhe por acaso, soprada por uma falta tremenda de vocabulário – não é fruto de um engenho que ele saiba repetir.

Ē preciso desmistificar: o Hemingway não reproduziu nada as falas do quotidiano da sua época, ele criou apenas um estilo novo de diálogo que depois foi imitado, inclusive na vida. O Guimarães Rosa ou o Mia Couto não ouvem todo o santo dia aqueles neologismos que parecem reproduzir, eles inventam oitenta por cento das cabriolices que fazem com a língua. Se a vida depois lhes imita os livros, melhor.

A criatividade exige que saibamos articular a língua, mesmo que seja para depois a desaprender. Contudo, nada se faz ao contrário. Ē mentira!

29 Jun 2017

Do fogo e da pressa

18/06/17

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste será o meu primeiro texto escrito num tablet que a minha mulher me trouxe de Lisboa e que manejo com superstição e paciência. Para já mantenho o particular ruído do teclado que me lembra os saltos na mesa alemã, aquele zumbido de fibras elásticas em tensão. E será o primeiro de vários, tal como a clareira no bosque nos reeduca o olhar que passa a vasculhar os intervalos entre as árvores.

Lembro-me dos primeiros textos que redigi para o JL, em 82, numa velha Hermes de teclas redondas, aonde entalava folhas para as arrancar em fúria, na sequência dos enganos. As laudas jaziam pelo chão, epitáfios que o vento havia amarfanhado antes de conhecer campa.

O artigo começava a ser desenhado no café, depois do jantar, e a lide taurina durava até às 6h da manhã, com os rascunhos e tropeços a tumultuarem o chão. Era uma luta titânica contra o sono, o destrambelhamento das ideias, contra uma sintaxe claudicante. No fim, o cansaço lá me fazia atalhar os processos, ser mais eficaz e menos precioso.

Às seis da manhã tomava um duche, após o que descia ao café para engordurar as laudas com a manteiga da torrada, fazia as emendas definitivas à mão, e ia então para o jornal, atordoar-me com o espectáculo supersónico do Assis Pacheco a aviar três laudas em meia hora, só com um dedo, enquanto trocava anedotas com o José Manuel da Nóbrega.

Um dia não consegui acabar o artigo a tempo e lembro o sentimento de derrota com que fui ao café telefonar ao Pedro Borges às oito da manhã para lhe dizer: não fui capaz! Ele estava siderado, mas eu ao engenho ainda não associava a responsabilidade e fui para casa dormir.

De outra vez foi mais grave. Ia apresentar a novela de uma francesa. Foram vinte e quatro horas no espaldar, enfiava a folha na máquina e arrancava-a três parágrafos depois, por inépcia e insatisfação, e ao lado fazia rascunhos à mão, de cuja insuficiência me dava conta assim que os transcrevia para a máquina. Mas ao fim de 24 horas lá consegui chegar a um texto capaz. E para não me embaralhar fui rasgando os rascunhos. Cheguei às dez da manhã do dia da apresentação com o cansaço benigno do dever cumprido. E então acorda a minha namorada da altura. A tomarmos o pequeno-almoço, uma má interpretação de um sonho que ela tivera deixou-a furibunda e a discussão foi subindo de tom; meia-hora depois ela corria para a minha secretária e rasgou-me a apresentação em fanicos. Então tudo era grave e vivíamos sobre a lâmina da intransigência. Foi o pânico, como explicar isto ao editor? Eu tinha vinte e cinco anos e não me portei com grande decência.

E tão grave como a quebra do compromisso era o horror da Hermes.

O Garcia Marquez declarou que se tivesse conhecido o computador mais cedo teria escrito o dobro dos livros. Hesito sobre se isso teria sido um benefício. Há uma densidade da escrita que já não se busca, preterida pela lisura da “inteligilidade ” que o ecrã nos dá. Quando pego no Debaixo do Vulcão, do Lowry, ou na Obra ao Negro, da Yourcenar, para os reler fico abismado com a soma inacreditável de informação por parágrafo aliada a uma respiração pletórica da frase que só pode surgir da resistência, do conquistar a frase à força do atrito. Levava-se o dobro, o triplo do tempo, mas a própria duração do processo sedimentava outras conexões – o que se ganhou em rapidez e comunicação directa perde-se em subtileza, em filigrana, em níveis de sentido. O estilo marmóreo de ambos os livros corresponde ao vagar com que foram urdidos até ao polimento final. E como em Proust vemos amalgamadas na mesma frase a descrição e a reflexão sobre o objecto descrito. Uma trança perfeita que só a lentidão executa.

Não creio que seja um ganho estarmos tecnicamente mais apetrechados para vomitar um romance por ano e mais alacremente satisfeitos com as nossas suficiências e as suas ilusões.

20/06/17

As pessoas pensam “pisicologicamente”, como se fossem algo de separado, alheias a que vivemos num eco-sistema que age como um organismo e que integra a dinâmica dos elementos. O fogo faz parte de nós, pertence à nossa natureza, e vice-versa.

Um homem divaga na sanita, olha pela janela o balanço do cedro que comprou com a moradia. Vem um raio e o cedro incandescente entra-lhe pela janela, pegando-lhe fogo num ápice, dos cabelos ao calcanhar de Aquiles. Ele sai da casa-de-banho como uma tocha e em desespero agarra-se à mulher, para que o ajude. Ela desapega-se mas tarde, e corre pela porta fora e sucumbe junto a um grande arbustro de folhas secas. O vento faz voar uma labareda para o renque de plátanos do outro lado do outro lado da estrada que margina a moradia – rolos de fumo frisam a cabeleira dos plátanos.

O fogo tem uma velocidade de contágio estonteante, de que o amor carece. Mas então por que não se previnem os homens? Porque o fogo é um não-dito. Os bombeiros são as vogais do que não se quer pensar e dizer sobre o fogo. Que o fogo não conhece a mortalidade infantil e se revela logo adulto e é imortal e disputa aos homens a sua presunção. O fogo é quem mais ordena, da siderurgia à floresta, ou a Pompeia e marimba-se na propriedade.

Por que não criamos as condições para o debelar? Não cremos ainda que a humanidade não tenha preço. Provavelmente por ser o amor vagaroso a propagar-se enquanto o fogo (e o dinheiro idem) não. Ainda que um incêndio nos espolie de todos os aspectos, julgamo-nos no controle, superiores. Até que um dia os dedos do fogo brincam com os caracóis das crianças.

Conheci um pirómano. Chamava-se Cândido.

22 Jun 2017

Carta aos Ovnis 

10/06/17

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] de Hegel a piada sobre o judeu que colocado diante da escolha de obter a salvação imediata ou de ler o matutino todos os dias se decide pela leitura dos jornais.

Aí está um problema que não tenho. Os jornais moçambicanos são tão destituídos de sulfatos que não se perde nada – nem informação – em deixar de os ler. Mas estão cheios de opinião.

Lendo os jornais portugueses online também constato que a opinião é hoje o desporto-rei. Já nem falo do fb porque aí é o forum próprio para a opinião;  porém, que nos jornais o nível não seja um pouco mais elevado é que reside o drama.

Que tem de mal a opinião? O que tem de mal é ser na maioria esmagadora dos casos um simples veículo para as ideias recebidas. A maior parte dos escribas parece não ter um centro interior, uma personalidade, manifesta-se sempre como se fizesse parte de uma multidão, quando aquilo que era necessário, em tratando-se de dar um passo para emitir uma opinião, era exibir o que Stendhal chamava a coragem moral, a coragem de pensar por si próprio.    

Ora, não creio que quem tenha alguma coisa realmente própria a dizer o faça de um modo comum, impessoal, como se fosse um homem sem qualidades e em vez de respirar pelos seus poros, respirasse pela ideologia do consenso. Não há verdadeira opinião sem forma que a distinga. Se alguém abre uma crónica sobre a pena de morte escrevendo, “Sou a favor da pena de morte entre as moscas.” – sei que a seguir acrescentará algo ao tema e me fará reflectir, pois há desde a primeira linha o compromisso de um ponto-de-vista. Não se tratou de fazer humor fácil, quem ataca o tema de forma inesperada dificilmente degenera em lugares-comuns, só se chega à Forma através de uma mutação prévia no teor do húmus.

Se pelo contrário o artigo ou a crónica faz o rol dos argumentos sobre o dilema e depois de forma árida, vazia, expõe a sua ideia, como se de apenas mais um comunicado político ou institucional se tratasse, em 95% dos casos, estamos face a uma ideia recebida. E porquê? Porque aquela opinião cumpre apenas um impulso mimético, não é sustentada por qualquer ângulo de visão. Em 95% dos casos quem, ao escrever, denota uma paixão pela forma impessoal unicamente pretende descartar-se e não compremeter-se, estando sem o saber em pleno fingimento.

Nos antípodas, escreve Stendhal, em Memoires d´un Touriste: «Não é por egotismo que digo “eu”; é apenas porque não há outro meio de contar a vida». Como pôde uma simples evidência ter atraído tantas incompreensões, tantos e tão espalhafatosos nhurros?

Ao invés, quem em vez de particularizar um ângulo de visão manifesta opinião está apenas em heteromia, usando palavras-peruca. É contra a pena de morte, como poderia ser a favor, dependendo do consenso que lhe mobila a mente, e, tal como os sofistas na antiguidade clássica, confunde os jogos-de-palavras ou a pertinência do argumento lógico com a opinião.

A opinião que saia da doxa é muitíssimo rara, e quem realmente a tem tem-na porque como aos bebés é-lhe impossível deixar de bolçar, mas opinião era uma coisa de que se pudesse prescindiria.

12/06/17

O livro olhava para mim, da estante. Bebi o café e comi a torrada, repimpado na cama, mas o livro não desarmava. Fitava-me, de esguelha (ou de lombada), na estante. Depois da última golada de café decidi-me, fui buscá-lo. Uma antologia alentada do poeta polaco Tadeusz Rózewicz, nascido em 1921 e uma das vozes mais autênticas da “anti-poesia” universal. Como o chileno Nicanor Parra, que já traduzi, ou, nos Balcãs, o Vasko Popa, de quem hei-de de ensaiar versões.

Abro o livro ao calhas e sai-me isto:

Correcção: A morte não corrigirá/ nem uma linha de um verso/ não é uma correctora/ não é uma benevolente/ redactora/ uma má metáfora é imortal/ o mau poeta que morreu/ é um mau poeta morto/ o aborrecido trás a morte entedia/ o pateta vomita patetices/ e estupidifica a própria tumba.

Estupidificado na própria cama, apanho um susto de morte. Uma má metáfora é imortal. Já fui responsável de quantas centenas de más metáforas, de quantos milhares? Imortal? Como os vírus, afinal?

Há uma ecologia para o verbo a que de facto não ligamos. Devíamos ser mais parcos, posto que na verdade não ressuscitaremos para corrigir qualquer coisinha, enquanto as más metáforas são imortais.

Alguém tem por aí um aparador de relva que me empreste?

13/06/17

Era para escrever uma crónica sobre o ódio ao turista que começa a fustigar algumas cidades-ícones da Europa.

“Turist, go home”, “Gaudí hates you”, ou “Parai de destroçar as nossas vidas!”: mensagens que se lêem pixadas nas paredes ou grafadas em comunicados que se colam nas árvores, em Barcelona. Já foi baptizado este sentimento, turismofobia.

Também os lisboetas se fartam da presença maciça dos turistas, pois o sector turístico comporta-se como o organismo que produz um excesso de glóbulos brancos e rompe equilíbrios. Afinal, o meu espaço público da cidade está condenado a ser o mesmo do do turista, interroga o cidadão da cidade invadida, sobretudo se tal começa a ter como efeitos uma paradoxal descaracterização identitária e uma inflação estúpida, porque oportunista. Ē mais um problema que atinge as cidades históricas e que se varre para debaixo do tapete.

Para que não se instale uma onda xenófoba que inclusive degenere num novo tipo de terrorismo, só enxergo solução numa espécie de rogo cósmico, de Carta aos Ovnis. Proponho que cada um escreva a sua, a pedir que não nos abandonem e que de quando em quando levem alguns políticos de nível duvidoso e um contingente de turistas, sobretudo aqueles que apostem em não ter déjà vu. Só a inauguração do turismo cósmico nos aliviará esta sensação iniludível de, submergidos nos eternos problemas, estarmos mais fartos uns dos outros, ó compaňeros!

15 Jun 2017

Virgens e meninos rabinos

05/05/2017

Max Ernst – “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas” (1926)

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez, pensava na vida olhando a minha filha mais pequena que brincava com um pato amarelo, de plástico, e perguntei-lhe de chofre: Filha, o que é a mentira? Ela, entretida com o  pato, atirou: Uma tartaruga. Não me desmanchei: E quantas patas tem? Respondeu firme: Duas.

Depois, sob pretexto de lhe ler uma história, mostrei-lhe uma gravura com uma tartaruga. Ela concluiu o resto, não precisei de lhe dizer uma palavra. Chama-se a isto a racionalidade: a capacidade de mudarmos as nossas concepções quando confrontamos aquilo  em que acreditávamos com a experiência da realidade.

O que se denota pelo comportamento de Trump é que para ele as tartarugas ainda têm duas patas e continuarão a ter.

Dizia o presidente americano que os EUA abandonam o acordo por ser mau para o emprego nos Estados Unidos, pois afecta a indústria do carvão e de outros combustíveis fósseis. O que ele não diz – eis uma personagem em quem até as omissões mentem – é que o acordo, simultaneamente, estimula outras indústrias bem mais florescentes na economia dos EUA. Elucidam os jornais: «Segundo números do Departamento da Energia, citados pela CNN, a indústria do gás natural emprega 362 mil pessoas, a solar 374 mil e a eólica 102 mil. Já a indústria do carvão dá emprego a 164 mil funcionários, um número que tem vindo a descer há décadas. Os dados mostram ainda que a empregabilidade na indústria solar cresceu, em 2016, 17 vezes mais que o crescimento total do emprego.» Não são recicláveis os operários americanos? A tal da perna curta, etc.

Na verdade, a única coisa que lhe interessa são duas.

A primeira é exibir músculo para ver se ganha ao resto do mundo a discussão sobre quem estabelece as regras da relação, o vulgo “quem manda em casa!”. E as coisas não estão a sair-lhe bem.

A segunda é a que resulta disto: em Trump, neste momento, por detrás da máscara da arrogância, existe uma criança tremendamente assustada. Alguém que deu conta de que pode haver despistes mortais num triciclo.

Em estudando-lhe as expressões faciais, nos momentos chaves da sua exposição mediática, nota-se alguém tremendamente dividido entre o papel de que ele se acha investido e a mortificação de já não saber que máscara adoptar com precisão em cada ocasião. A urgência pomposamente solene com que empurrou Montenegro (a macia matéria do mundo) para depois apertar um botão do casaco em Grande-Plano não é congruente com o ar de pilhéria com que anuncia que se está nas tintas para que o planeta fique estufado – um ar de puto radiante por contrariar os outros.

A lição dura que Trump está a ter através de humilhações sucessivas, dentro e fora – e proporcionais à irrealidade com que as nega no twitter – é a derrota do homem comum americano: a sua impropriedade para enfrentar a complexidade do mundo actual, dado padecer da inércia de nunca se interrogar se a tartaruga terá mesmo duas patas.

Por isso jamais poderá agir Trump como diplomata e nunca almejará ser mais do que o ladino intermediário de alguns negócios, não coincidindo exactamente o seu primeiro interesse com os interesses da  América, antes fixando-os na manutenção do rating da sua imagem. Será que o triciclo se aguenta na curva?

Só este pânico explica a inadequação dos tuites em que desqualifica o mayor londrino. Não é a pertinência, a justeza da palavra que ele visa, isso é irrelevante, ele apenas roga, desesperadamente, por atenção e, quiçá, ternura.

Apetecia convocar aqui a “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas”, de Max Ernst (o quadro que ilustra a crónica)” – são imensamente friáveis as nádegas do Menino, seu filho. E, para já, tirar o triciclo a Trump. Quanto a mim prometo não voltar ao tema dos meninos rabinos.

06/05/2017

Esta Virgem e a crónica de há duas semanas do Valério sobre as 72 Virgens que aguardam por mártir de um Islão no Paraíso, fez-me pensar no tipo de virgens que quereria para mim, depois duma minha virtual conversão. Eis algumas que já me ocorreram:

  1. a) Têm todas de ter um certificado de garantia de que nunca estiverem em hotel russo ao mesmo tempo que um milionário americano, não quero hímenes restaurados;
  2. b) quero uma virgem com uma genitália que seja uma espiral de quatrocentos e cinquenta metros de diâmetro, com rochas negras de basalto, para que eu exercite os meus dotes de montanhista;
  3. c) outra com uma (sic) como a que descrevi exaustivamente num conto: com quatro cantões como a Suiça. Já que a nomeei mereço frequentá-la;
  4. d) uma virgem, como pediria o filósofo Agamben, de “uma beleza-por-vir” mas que não seja demasiado linguaruda como a Xerazade, podendo no entanto herdar-lhe as axilas, que diziam aromatizadas em jasmim. Melhor, que seja só axilas…
  5. e) uma virgem que, como queria o gnóstico Valentim, não obre e não urine e saia ilesa de todas as minhas fantasias;
  6. f) uma virgem cuja palavra menstrue, para que me lembre. Outra
  7. g) tão inteligente que, de cada vez que me veja nu, não sinta logo necessidade de chamar os bombeiros;
  8. h) uma virgem que tenha pomares nas virilhas e exsude em aparos moles;
  9. i) uma virgem tão feliz em sê-lo que a cole num postal para o Papa Francisco;
  10. j) uma virgem especialista sobre o vasto mundo do paguro;    
  11. k) uma virgem inautêntica, até sincera nisso, e duma fantasmagórica vacuidade para que eu possa dormir lá dentro;
  12. l) uma especialista em sânscrito que me possa ler o Kama Sutra, na língua que o incarna, sem precisarmos de nos cansarmos no espaldar;
  13. m) uma não-virgem, que pode ser a minha mulher (troco-a por vinte e cinco virgens), pra que naquela imensa eternidade tenha alguém que me diga que não;
  14. n) uma virgem que respeite a minha decisão de não querer ser informado sobre os pormenores da incandescente cópula do gafanhoto (16 horas de labor operático).

Por favor, recrutadores, passem a palavra.

8 Jun 2017

Perplexidades e equilíbrios

28/05/2017

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio no DN, com perplexidade: «Nesta semana, o candidato derrotado nas primárias republicanas, o neurocirurgião Ben Carson, atual secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, responsável pelos programas de habitação social, afirmou que “a pobreza é um estado de espírito”.

Ontem, um congressista republicano, questionado numa entrevista radiofónica sobre se considerava a alimentação como um direito de cada americano, hesitou, demorou e acabou por recusar subscrever essa afirmação. Trump é apenas a face mais visível de uma América que sempre existiu, mas que com o novo presidente parece ter perdido a vergonha

Leio e cogito: é difícil imaginar pior e um cenário mais tenebroso. Porque nos começamos a situar numa orbe perigosamente próximos desta descrição: «Não se dá os mortos à sua mãe, aqui, mata-se a mãe conjuntamente, e come-se o seu pão, e arranca-se o ouro da sua boca para se poder comer mais pão, e faz-se sabão com os seus corpos. Ou então enfeita-se com as suas peles os abat-jours das fêmeas SS». Quem o conta é Roberto Antelme, no seu livro A Espécie Humana, onde testemunha a monstruosa desumanização do universo concentracionário.

Políticos para quem a pobreza não passa de um estado de espírito e que não consideram a alimentação como um direito, já podiam ser carcereiros de um campo de extermínio. Já estamos a lidar com diferenças de grau mas não de natureza – isso é que se me afigura assustador. Falta pouco para começarem a falar de castas. E quando se pensa assim, igualmente o consentimento para se obter de uma mulher o que se pretende é um percalço menor, que se ultrapassa com a violência. Ē desta massa que se forma a personalidade dos novos líderes da direita. Se se associar a esta mentalidade a abstracção algorítmica, fica o futuro duro de roer.

Isto pedia aqui uma tirada de génio de Groucho Marx, mas (não digam a ninguém) o comediante perdeu a dentadura e nenhum osso se rói por delegação.

30/05/2017

A Maria João Cantinho ganhou o Prémio Glória de Sant’Anna com o seu excelente livro de poesia Do Ínfimo. Para se entender o que isso significa teria de se começar por saber quem foi a Glória de Sant’Anna, uma estupenda poeta portuguesa que teve “o azar” de ter feito toda a sua carreira poética em Moçambique. Ē uma poeta da geração da Sophia de Mello Breyner e não lhe deve em rigor e talhe poético. Terá menos volume de trabalho (a sua obra completa não ultrapassará as duzentas páginas), mas a qualidade pede-lhe meças. O problema é que poucos sabem e quando regressou a Portugal o seu caminho estava condenado a ser discreto.

Do Ínfimo é um livro à altura da sua patrocinadora.

A Maria João Cantinho é muito mais conhecida como ensaísta e crítica, e agora como directora de revistas literárias (cf. revistacaliban.net), mas este é o seu quarto livro de poesia. Como poeta, apareceu numa altura que lhe era adversa, nos anos noventa, um período em que tudo o que não fosse “poesia do quotidiano” era claramente descriminado. Houve uma ditadura do quotidiano e a sua poesia mais metafórica e de laivos existenciais e mesmo metafísicos foi silenciada. Até por causa das suas influências, mais alemães e francesas, contra a vaga anglo-saxónica que sobraçou o país. Do Ínfimo é uma magnífica oportunidade para a conhecer.

É um livro de grande equilíbrio, que tem arquitectura e é meditado, denotando ampla consciência do seu ofício. Sendo discursivo não cai no vício da retórica; o seu léxico medido e uma expressividade controlada não perdem de vista os seus efeitos emocionais embora prescinda de  se meter em ponta dos pés, no afã de cativar o leitor por um “sensacionalismo das imagens”.

Para além do conjunto, coeso, Do Ínfimo alia duas coisas que raramente casam com esta eficácia: a sobriedade não neutraliza a capacidade digressiva de quem reflecte e faz o poema reflectir-se.

Como disse atrás, nestes poemas a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras. São versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstracção de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surdam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social. E, característica tanto mais curiosa quanto o poeta alemão tem sido um dos objectos de estudo dos seus ensaios, dir-se-ia que contra o Paul Celan, estes poemas desencadeiam-se discursivamente, de forma articulada, por vezes apoiados em refrões que lhes marcam o ritmo, com Cantinho a procurar ainda balbuciar uma unidade (na sua leitura do mundo), um rosto, mesmo que amarrotado, como é o que se alude no primeiro poema do livro. Se este é um livro que coou de alguma tristeza (o mundo não está bonito) a autora não se lhe entrega num trânsito irreversível e final, da mesma forma que a clausura do círculo se liberta pela espiral, impondo a sua dignitas, uma ética.

E aqui deixo um dos seus poemas, DA VISÃO EM FILIGRANA: Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida/ que se celebra no avesso da noite,/ o olhar acossado no nada, esta raiva/ uma bomba prestes a detonar/ na flor amaldiçoada/ de um silêncio esventrado.// Porque passas tu sem ver/ as sombras e o escuro incêndio da folhagem/ o cheiro e o dia, onde tudo se entorpece/ as ruas antigas de um muro/ onde sentiste que as palavras/ te tinham abandonado em definitivo.// Para que nos serve a língua, o coração/ em salmo adiado, se a linguagem nos abandonou/ e nos sentámos na grande pedra/ a olhar o vazio/ a decifrar modos de sentido/ que nos traem, sempre/

fugindo na sombra dos dias.// Ē esta a pobreza/ que nos faz voar/ ao encontro das árvores/ e do céu.”

1 Jun 2017

Aragens & Divergências

20/05/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]um maravilhoso livro de entrevistas o idoso Marcel Conche, provavelmente o exegeta dos pré-socráticos em França, confessa, aos 80 anos, que o encontro intelectivo com uma jovem mulher aos 78 anos abriu brechas na sua vida de sage.

Ela, pouco afeita às venerações académicas, chegara aos pré-socráticos por via do Oriente e procurava relações de parentesco entre os feixes conceptuais da filosofia clássica e os do sufismo e do taoísmo, que conhecia de forma erudita. O abalo foi grande e Marcel Conche, que se pensava jubilado e à beira do elevador que lhe alçaria directamente a alma ao sétimo céu, descobre-se aos 80 anos com faltas de ar e a estudar o sufismo e o taoísmo com o afinco dos vinte, para uma revisão implacável das pautas e do repertório adquiridos por décadas de estudo. Anos depois, após esforçar-se no chinês e no taoísmo, Conche lançaria um livro sobre Lao Tse. Imagine-se a energia que pode ter alguém com o ímpeto para aos 78 anos se lançar na aprendizagem do chinês e surfar entre nuvens no Lao Tse!?

E eis uma filosofia à procura de si mesmo, sem parapentes, que não teme lidar com as lacunas e dúvidas em que a despenham as aporias do impasse.

Pode a literatura ter menos honestidade? Pedir menos coragem? Vitorino Nemésio, Luis Lezama Lima, Jaroslav Seifert, Ted Hughes, ou Zbigniew Herbert não empalideceram com a idade e escreveram obras notáveis naquele que para muitos é um período de senectude.

Há que nos libertarmos do «complexo Rimbaud». O que importa é – cientes de ser a arrogância, como dizia Tchekov, uma qualidade que fica bem aos perus – avaliar a parcela de verdade que cada homem aguenta. Quanto menos auto-indulgência mais possibilidades se abrem de tornar-se mais extenso o arco da sua fecundidade poética.

Vem isto a propósito de uma figura deste jaez que aterrou aqui em Maputo e que proporcionou um diálogo de alta voltagem sobre “Literatura, Cultura e Identidade”, com um parceiro local e igualmente um excelente escritor, o João Paulo Borges Coelho. Falo de Helder Macedo.

O diálogo foi uma aragem que entusiasmou todos os presentes na sala do Instituto Camões. Eloquência, espontaneidade, conhecimento e um elegante curto-circuitar dos estereótipos sobre os temas em presença, precederam a abertura do diálogo ao público, que terminou em contágio e em semi-levitação e até a interrogar aspectos que são tabu para a terra.

Helder Macedo demonstrou porque na viragem para os oitenta lançou três dos seus melhores livros – Tão longo amor, tão curta a vida, romance, Romance, poesia, e Camões e outros contemporâneos – e promete não parar na sua “desmedida”. O Borges Coelho, o escritor moçambicano que prefiro, cortês e vivaz, foi um bom parceiro nesta viagem.

Este debate, a pretexto da diversidade cultural no centro das convergências linguísticas, foi apoiado pela Gulbenkian – representado pela doutora Helena Borges -, e trouxe igualmente a Maputo outra figura, Elias José Torres Feijó, um filólogo galego, que actualmente é professor titular de Filoloxía Galega e Portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela (USC), onde dirige o grupo de investigación GALABRA (que trata dos sistemas culturais galego, luso, brasileiro e africano de língua portuguesa) e preside à Associação Internacional de Lusitanistas, e a cuja palestra infelizmente não pude existir.

Mas qual o sentido de falar-vos disto?

Ē que esta mesma equipa, incluindo desta vez na comitiva o Borges Coelho, deslocar-se-á a Macau, em Julho próximo, para novos actos de prestidigitação e para exercer a inteligência com as suas artes de Cícero. Os macaenses que se previnam!

23/05/2017

Escreveu Andy Warhol, em 1975: “O bom deste país é que a América começou a tradição pela qual os consumidores mais ricos compram essencialmente as mesmas coisas dos pobres. Podes estar a ver televisão e ver a Coca-Cola e podes saber que o Presidente bebe Coca-Cola, Lyz Taylor bebe Coca-Cola, e pensar que tu podes beber Coca-Cola. Uma Coca-Cola é uma Coca-Cola e nenhuma quantidade de dinheiro pode brindar-te uma melhor Coca-Cola do que a que está bebendo o mendigo da esquina. Todas as Coca-Colas são iguais e todas as Coca-Colas são boas”.

Suspeito que o inferno climatizado em que, neste momento, se vive nos States começou nesta pequenez (esperemos que ao menos Warhol tenha recebido algum dinheirinho da Coca-Cola para exibir um “raciocínio tão elaborado”), que à altura parecia, paradoxalmente, uma mensagem de verdadeiro afã democrático.

Alguma arte começou a baixar os braços com a Pop Art que, apesar da legitimidade dos seus melhores elementos, abriu a caixa de Pandora mediante a qual um vendaval de lixo tonitroante invadiria o mundo, segregando uma tendência à uniformização e ao homogéneo que fez da universalização do consumo uma celebração sem restrições ao mesmo.

O resultado foi a pós-verdade e o botãozinho em que Trump carrega para ver chegar o mordomo com a sua Coca-Cola (gosto que divide com o Red Bull).

Como preveniu Adorno, o ganho com a “industrialização da cultura” tem por creme uma trivialização que envenena.

Trump é o expoente de uma educação calibrada pelos valores da cultura de massas, reduzida a níveis tão baixos que beber uma Coca-Cola ao meio-dia da tarde representa uma espécie de turismo da “ialma”, sendo o epítome da inconsistência que tem a sua expressão na forma airosamente espectacular como hoje se confunde o público e o privado. Daí que pareça normal ao casal presidencial americano ir a Israel exibir em público as suas desavenças.

Até gostei da atitude da Melania quando, vendo que o marido lhe dava a mão só para imitar o outro casal, lha sacudiu, rejeitando a mentira, a hipocrisia.

O problema é que aquele cenário não era o do Big Brother. Ou era? Fétido o clima. Parece que a negociata das armas foi boa – mas virá primeiro o impeachment ou o divórcio? Aceitam-se apostas.

25 Mai 2017

As profecias de Horacio e de Duchamp

13/05/2017

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem estive atento às manobras de Trump, que, enquanto o ar lhe falta, procura o pipo.

A direcção dos meus binóculos tem uma razão de ser: li uma profecia segundo o qual o desdenhoso americano lançava os cães contra a Coreia do Norte no dia 13 de Maio.  Transcrevo:

«O místico Horacio Villegas, que previu a vitória de Trump nas presidenciais, declarou que a terceira guerra mundial vai ser iniciada este ano. Uma guerra, onde serão envolvidos os EUA, a Rússia, a Coreia do Norte e a China, e que terá início em 13 de Maio de 2017 por iniciativa de Trump.

Ele precisou que a guerra não iria durar muito e acabaria já em 13 Outubro de 2017, mas causará muitas destruições e mortes.

​A data de 13 de Maio não foi escolhida acidentalmente: é o centenário das Aparições de Fátima em Portugal. Por outro lado, o dia 13 de Outubro de 2017 marca a sexta e última aparição mariana de Fátima que, segundo a lenda, tinha declarado que “a guerra vai acabar e os soldados vão regressar para suas casas”. Há 100 anos, estas palavras foram interpretadas como uma profecia sobre o fim da Primeira Guerra Mundial. Hoje em dia, Horacio Villegas aplicou estas palavras para apoiar sua teoria. »

Ora, eu acredito piamente em todos os Horácios, menos no poeta romano, dado que os poetas, como se sabe, mentem. Este é místico e nas acareações com o divino algo lhe será transmitido – é assim que eu penso.

A profecia não se cumpriu.

Porém em Portugal, no mesmo dia, completou-se um ternário: o Papa canonizou os pastores, o Benfica somou o tetra (e o 4 introduz aqui a quaternidade) e um cantor português ganhou a Eurovisão, com o singular nome de Salvador.

Se eu acreditasse no pensamento mágico diria que isto anda tudo ligado e a configuração desenhar-se-ia assim: numa espécie de efeito borboleta a ida do Papa a Fátima despertou um novo ciclo de fé que levou o Criador a lançar um relance misericordioso sobre o tão nefasto globo tendo, num piscar de olhos, desviado os dedos sápidos de Trump do alcance de alguns botões mais nocivos que a peste, e dado oportunidade a que uma nova ressonância quaternária reintroduza no mundo a harmonia e a cura das almas, como o atesta o indubitável transe que ontem se deslocou de Fátima para o Marquês de Pombal. E a prova de que o Espírito Santo esteve entre nós é certificada pelo nome do cantor, muito mais do que uma coincidência, o qual nos devolveu a espontaneidade, a crença no impossível e a alegria primordial.

Claro que tudo isto já fora anunciado pelos pastorinhos… e por Agostinho da Silva.

E como nesta explicação saturada de sentido devolvi ao mundo alguma dignidade profética (dei-te um bigode, ó Horacio!) vou já abrir uma conta bancária para colher alguns contributos para uma (merecida) vida de folia. Logo, logo, informo-vos sobre o iban da conta.

15/05/2017

É curioso como nunca vi lavrada qualquer reflexão sobre a estranheza do mictório do Duchamp se chamar Fonte. As fontes emanam de dentro enquanto para o urinol confluem os fluxos, de fora. Os ready-made são um gesto cujo sentido último mostra de forma paródica que não existe uma essência da arte embora, paradoxalmente, Duchamp tenha designado o seu como Fonte. Mesmo que ironicamente o dadaísta não saiu da orbe do sagrado. Talvez o Bataille tivesse sido o homem ideal para nos falar desta ambivalência, pois afinal por detrás da negação do emérito xadrezista vislumbra-se uma aporia. Deus (que é ateu como eu) deu-lhe xeque-pastor.

Em 1912 Duchamp, em companhia de Brancusi e de Fernand Léger, visitou o Salão da Locomoção Aérea e dissera aos amigos, «Acabou-se a pintura. Quem pode fazer melhor do que esta hélice?». E foi consequente com esta rendição quando, poucos anos depois, enviou a Fonte ao Salão dos Independentes, em Nova Iorque, mercê de cujo gesto a arte se tornou aquilo que livremente o artista decide que seja arte. O autor, a partir daí, converte em obra de arte qualquer objecto, bastando assiná-lo. Com graça e petulância diria depois Warhol: «Eu assino tudo, bilhetes de banco, tickets de metro, inclusive um recém-nascido em Nova Iorque, (nas nádegas suponho). Em tudo acrescento ‘Andy Warhol’ para que se converta numa obra de arte».

Tem graça a imodéstia, mas não passa disso.  O drama é que se acreditou. E da frivolidade engenhosa associada à frivolidade com que os media procuram novidades nasceram os Jeff Koons, os Paul McCarthy (o do dildo gigante na Place Vêndome em Paris, a que deu o soporífero nome de Árvore de Natal – e nada me move contra os dildos, acentue-se), as Joanas Vasconcelos, os Claes Oldenburg, as Sophie Calle deste mundo, que, numa concepção empobrecedora do que seja a arte (afinal, basta-lhes a sua assinatura, só comigo a coisa é mais trabalhosa), limitam a sua criatividade a uma  reprodução  mecânica dos jogos de deslocar e de multiplicar (cf. “galo de Barcelos” de Joana Vasconcelos que os coitados dos chineses têm de pagar).

Contra este embuste, apetece lembrar que Eduardo Chillida e Jorge Oteiza, por exemplo, inventaram maravilhosos objectos que superaram na sua expressividade formal e ilimitada abertura perceptiva  as linhas funcionais das hélices dos aviões (profecia, de que até o Duchamp se alheou não voltando à pintura mas produzindo posteriormente algumas peças extraordinárias – o problema está sempre nos epígonos), ou que, mesmo para a pintura, houve excelentes saídas e tão diversas como as de Matta, Tapiès e Soulages.

Mas seja no domínio da crença como no da arte, a farsa emerge porque há sempre um profeta peremptório que nos obnubila a capacidade de pensar e de acreditarmos no valor da nossa experiência. Continuamos no geral a preferir a imitação à invenção, estigma de que temos de nos salvar. Salvadores à parte.

18 Mai 2017

Intervalos

05/05/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a Mongólia, o sonhador pode sonhar por um outro, ou até sonhar por numerosas outras pessoas. Leio e pasmo.

Aí estava um negócio – fosse eu um xamã de igual qualidade.

De qualquer dos modos esta é a única explicação que encontro para um sonho que me perseguiu durante anos, ao ponto de se ter cunhado como uma recordação que eu reportava ao vivido. Durante uma década estive convencido de que quando me casei com a minha primeira mulher tínhamos ido viver para uma casa emprestada, na Avenida Todi, em Setúbal, até a nossa, oferecida pelos pais da noiva, estar pronta.

Era um apartamento, num primeiro andar de grandes janelas rasgadas – a casa fora em tempo adaptada a loja –, um T-0 com kitchnet. O facto é que aí vivi – seis meses – o único período de pacificação do casamento, ternos, unidos, degradando-se tudo quando nos mudámos para a nossa casa.

Anos depois, sempre que voltava a Setúbal, palmilhava a avenida, procurando a casa, em vão. Todavia, eu tinha presente cada pormenor do seu interior, a mesa redonda de mogno com flores de marfim embutido, os cadeirões com almofadas vermelhas, a estante de boa madeira que em noites ímpares acordava em mim sonhos de larápio, a Clara no balcão da cozinha a rechear as beringelas, o tapete com dois peixes em 69… A avenida é que teimava em desmentir-me.

Quando eu e a minha ex-esposa nos pudemos reaproximar sem dano ou atribulações, perguntei-lhe pela casa, e jurou-me que fôramos para a casa nova no próprio dia do casamento.

Ainda não estou convencido, apesar de a partir de hoje ter por certo que um sonho de outrem me visitou e que não passamos do atelier de alguém.

07/05/17

Bom, só estão volvidas duas semanas sobre o 25 de Abril e por isso aproveito para contar uma das suas engasgadelas ocultas menos conhecidas.

Nessa madrugada os tanques saíram dos quartéis para irem tomar os Ministérios, e – ao descerem a via magna que é a Avenida da Liberdade em Lisboa – paravam nos semáforos.

Foi uma Revolução em que os tanques – o respeitinho é muito bonito! -, estacavam nos semáforos.

Nada define tanto os portugueses como esta oscilação, ou antes esta dupla injunção de carácter: o medo à autoridade foi-lhes de tal forma inculcado que mesmo no curso de uma revolução se res-peita escrupulosamente a lei.

Parece-me que os portugueses eram na generalidade, e supinamente, norte-coreanos.

O extraordinário e incomodativo filme de Susana Sousa Dias, Natureza Morta, que passei esta semana aos alunos, mostra o júbilo profundo com que as massas ignaras se empanturravam quando eram visitadas por Salazar ou pelo cardeal Cerejeira: vê-se no lampejo dos olhos, na adesão de cada poro, o fascismo confortava-lhes em festas e ritos a irrelevância quotidiana, o sentirem-se um «zero à esquerda»; era um carnaval investido de beatice, e onde cada cidade competia com o seu santo. Os portugueses moviam-se como espectros sequiosos de alegria.

Há uma geometria suplicante, invariável, naqueles olhares de júbilo que associo à esquadria sem falhas com que se marcha nos dias de desfile na Coreia. É inimitável o que consegue a cegueira das massas, sendo por isso inesquecível.

No dia 26 de Abril já ninguém era fascista, só os Pides (os esbirros da polícia política de Salazar), e mesmo esses foram rapidamente perdoados.

Quarenta anos a serem malhados pelos torcionários da Pide, ou a serem afeiçoados pela sílabas amendoadas da catequese, deram aos portugueses “a visão” de que eles não passavam de “rapazes desviados”, a merecerem redenção. E por isso, na generalidade, os pides nem sequer foram julgados. Os que fugiram, na maior parte para o Brasil, não tardaram a regressar e a encontrar acolhimento, como empresários ou especialistas da segurança.

09/05/17

Vagueio, intervalado pelo mundo, acácias vermelhas, libelinhas, por um “tô a pedi” tatuado nas costas, e pelo ronrom das viaturas, plácidas como a tarde. E seguindo-me o passo abranda um jipe, novo, enquanto se baixa um vidro.

– Doutor… – Uma jovem bonita, que apesar de familiar me escapa à lembrança.

Sorri e rebola os olhos – Sou eu…

Gaguejo – Foste minha aluna?

Sim. Diz-me o nome. Faz-se-me luz, mas conhecera-a de cabelo rapado e não com umas extensões à Beyoncé… e sem aparelho nos dentes.

– Já sei. Foste minha aluna de…

Adianta-se: – Do corpo e quê, quê, quê e tal e tal…

O tal e tal é da sua autoria, o quê, quê, quê… é um bordão de linguagem das gentes da Beira. – Estás muito diferente… – Observo, e provoco – E vê-se que estás bem na vida.

– Não é? – Concorda ela, e justifica – Sou doutora!

– Também eu, mas não ando num carrão destes…

– O profe? O profe só gosta de ler…

– E tu… – gracejo – continuas a aprofundar o quê quê quê quê, ou deixaste-te de leituras?

– Xii, professor, não tenho tempo para me coçar e tenho um niño

– Falamos espanhol?

– Não é? É do trabalho, trabalho numa empresa espanhola…

– Boa. E qual é a área da empresa?

– Consultoria e quê, quê, quê, quê… Repete, accionando a ignição: – Então vai lá à tua vida…- Rebolo os olhos para o interior do carro, para que ela perceba que aprovo o fausto de um consultor – Gostei de te ver… Olha, já agora, que achaste das eleições em França?

– Xiii! França é maningue longe. Aquilo tem alguma coisa a ver com a nossa realidade, profe?

– Talvez quê, quê, quê…- Replico, pensando – Estamos tramados Senghor, para eles não há nem a mosca nem teia…

Ela mete a mudança e acena, feliz.

– Sucessos… – desejo-lhe. Um txopela segue-a, em tosses. Quê, quê, quê, tropeça ele, como quem diz.

11 Mai 2017

Uma ética para naúfragos

30/04/17

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]deias que valem ouro, que quebram o ciclo do mimetismo, do qual estamos reféns. Como a que sustenta o plot do filme Arrival, de Denis Villeneuve, o mais interessante filme de ficção cientifica da última década: a soma que não dá resto zero.

Tentemos explicá-la. Comecemos por definir que um jogador de somas a zero é alguém comprometido até ao tutano com a tese maniqueísta de que em todas as situações da vida só há duas possibilidades: ganhar ou perder, não existindo uma terceira hipótese.

Na maior parte dos desportos é assim e a dinâmica político-militar da história do mundo pautou-se pelas somas a zero. Até Hiroshima, a guerra era um jogo de somas a zero, pois o estado que perdia cedia territórios ou ficava sob tutela, sujeito à “ganância” do vencedor.

A ameaça nuclear mudou tudo, é um jogo em que todos perdem. E toda a diplomacia democrática valida o princípio de que vale a pena fazer concessões, (o que um jogador de somas a zero consideraria uma derrota) – estabelecem-se assim compromissos estáveis, em vez de soluções insidiosas e finais.

Ao tentar uma ilustração do conceito da soma que não dá zeros (explicitamente referido num diálogo) o filme é pertinentíssimo na actual contingência político-militar.

Uma pequena sinopse: uma frota de discos voadores chega à terra, posiciona-se em lugares estratégicos do planeta – mas por que não agem? Por todo o lado se procuram intérpretes, cada potência reage da sua maneira. O filme segue o que se passa do lado americano. E aí, à beira de ser ordenada a nível global uma agressão aos alienígenas, os dois cientistas lá decifram a linguagem e as intenções daqueles.

Os alienígenas afinal só trazem uma mensagem. Propõem uma ética para náufragos: a humanidade só sobreviverá se romper com a lógica da soma a zero e os homens interiorizarem, a) só unidos produzirão vantagens, b) só pela generosidade o conhecimento se esclarece. Dizem os alienígenas com as mãos em forma de estrela: abandonar o orgulho da força e de se «querer ter mais razão» é a via, só pelo «impoder» nos salvamos.   

Sem ser militante de nada, não me parece uma má ideia.

01/05/17

Para que serve afinal a arte? Recordemos Bruno Munari, o que ele contava sobre o comportamento das limalhas de ferro quando sensibilizadas por uma vibração sonora:

«Use-se uma chapa de zinco quadrada, com cerca de trinta centímetros de lado, com limalha de ferro espalhada na superfície, passe-se um arco de violino contra um dos lados da chapa, como se se tocasse violino (em lugar de passar o arco nas cordas passa-se num dos lados da chapa) e veremos que a limalha de ferro se disporá em desenhos geométricos provocados pelas vibrações sonoras. A própria matéria da textura forma imagens adensando-se ou deixando mais a descoberta o que nós consideramos o fundo».

Espantosa esta propensão da matéria se organizar em padrões anti-entrópicos se sensibilizada por uma vibração sonora. O caos foi irradiado por um sentido.

Mais espantoso ainda que a matéria inanimada se auto-organize em padrões se estimulada por uma onda sonora não aleatória é que os homens de comum não dediquem atenção ao facto de que uma especial arrumações das palavras, como na poesia, que um particular ângulo de luz numa fotografia, ou a combinação feliz de duas cores na composição de um quadro que pulsa à nossa frente, possam despertar em nós níveis diferentes da realidade e uma lente nova para a leitura do mundo, fazendo com que a nossa percepção realize uma dobra.

Portanto, respondendo à pergunta de para que é que serve a arte, penso que servirá para afastar de nós a ideia do desencanto do mundo.

Ideia que Calasso corrobora: «O mundo – já é o momento de dizê-lo – ainda que seja do desagrado de muita gente – não tem a menor intenção de desencantar-se de todo, ainda que só o fosse porque, se o fizesse, cairia num extremo aborrecimento.».

Talvez e unicamente para lutarem contra o seu próprio aborrecimento, dão-nos o universo e a natureza a melhor das razões para sermos optimistas: o universo não era obrigado a ser belo e no entanto é-o. Sim, a beleza do mundo constitui mais um enigma. Um enigma que, a avaliar pelo que acontece com os fósseis, nos é favorável: a espiral nos fósseis dos búzios foi-se aperfeiçoando de era para era, o que confirma que as mulheres, no futuro, serão ainda mais bonitas.

Entretanto, não nos iludamos, apreender o belo depende do gosto, que consideramos kantianamente como a faculdade de julgar desinteressadamente um objecto ou uma representação mediante um prazer ou uma repulsa. E o gosto  adquire-se, não é um dado imediato à consciência face ao qual se reaja. Para que se entenda o que aqui se joga lembro uma história deliciosa do Picasso.

Certa vez um soldado olhou pela montra a vernissage de uma exposição de Picasso e pensou, Que bodega, vou já denunciar este gajo. E acotovelou convidados dentro, até encontrar o pintor, com a sua boina basca e o seu copito de vinho. E interpelou o pintor, Você é uma farsa, por que pinta as pessoas de frente e de perfil ao mesmo tempo, as pessoas não são assim?

O Picasso, impassível, replicou, Você tem noiva,

Tenho sim, respondeu o soldado, com muito orgulho!

Tem uma fotografia dela?

O soldado tirou da carteira uma fotografia da rapariga e mostrou-a, ufano.

Picasso olhou fixamente a fotografia, fingiu um assomo de espanto e observou:

É muito bonita… pena é ser tão pequenina!

Ou seja, o que pensamos em geral da arte e da vida depende em grande parte da convenção, dos códigos que aprendemos como particulares à sua linguagem – mas temos de os adquirir, reconhecer e aceitá-los.

O mundo não está desencantado, mas temos de aprender a reconhecê-lo.

4 Mai 2017

A beleza e o mal

21/04/17

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje, a ideia dominante no mundo desenvolvido, que devora e regula tudo, já o dizia Zygmunt Bauman, é a segurança. Mas promover a segurança não tem sido ir à raiz dos problemas, preferindo-se tomar os sintomas pelas causas.

Nada de tranquilo nos pode chegar por este método, pois tentar forçar a segurança a todo o transe é o equivalente a acreditar que o elefante se esconderá atrás da palmeira – uma obstinação insensata. A segurança absoluta reside na certeza de que o perigo que se quer evitar não existe. Como a probabilidade disto é ínfima, inventamos o artifício de desenhar mapas sem território, com a mesma objectividade e convicção com que farejamos a malária na Gronelândia. Ébrios pela idêntica eficácia com que os médicos em Moliére esclareciam que o ópio dava sonolência por ter «faculdades dormitivas».

A necessidade de segurança, estranhamente, não se tem aliado à prevenção dos conflitos ou à negociação de concessões, pendendo antes para a intransigência de pensar que a simples existência de outros sistemas é irreconciliável com a nossa segurança. É esta a atitude de Trump.

Neste mundo supostamente globalizado e onde a vigência dos Direitos Humanos se tornou a últimas das ideologias universalmente aceites, emerge, contraditoriamente, uma agónica alergia ao Outro e uma crença enternecedora de que a «verdade» só a mim assiste. Voltámos de novo a desejar identidades monolíticas, alheias ao contágio e ao dialógico. Daí que já não se estabeleçam compromissos, exerce-se de novo a chantagem da força, num inglório retrocesso civilizacional.

E eis que, distraidamente, abro um livrinho de Paul Watzlawick – um dos “filhos” mais produtivos de Gregory Bateson – O mal do bom ou as soluções de Hécate, de 1986 – ,e descubro isto: «O lógico austro-canadiense Anatol Rapoport, em 1960, no seu livro Fights, Games and Debates recomendava uma técnica interessante para solucionar problemas. No caso de um conflito em vez de pedir que cada partido dê a sua própria definição do problema, Rapoport propõe que o partido A exponha a opinião do partido B em presença deste, e que o faça de um modo exacto e detalhado até ao ponto em que o partido B aceite esta exposição e a declare correcta. Depois toca ao partido B definir a posição do partido A e de um modo satisfatório para aquele. Rapoport supõe que esta técnica de negociações conseguirá em grande parte atenuar a acrimónia e o problema entre as duas partes, antes que se ponha sobre a mesa a discussão do problema propriamente dito. A sua suposição é exacta; aplicando esta técnica sucede não poucas vezes que uma das partes em litígio diga, com assombro, à outra, “nunca tinha imaginado que você pensasse que é assim que eu penso”, o que supõe ter-se dado um passo para além da convicção ingénua: “Sei exactamente…”.»

Tão simples, tão simpaticamente racional este modo de fazer da empatia um dispositivo de relação. E por que me parece lamentável que esta técnica de negociação não tenha vingado, implantada por exemplo como regra primeira nas Nações Unidas e no palco da política?

O homem, quando quer, ainda é capaz de inventar umas soluções que não sejam finais – devíamos estar mais atentos, ao invés de nos entregarmos às delícias de uma ‘

automoribundia” que hipnoticamente nos desilude a possibilidade de enxergarmos outras saídas.

23/04/17

Ouço o resultado das eleições em França e viro as costas ao ecrã, prefiro deliciar-me na net com as obras de Bernini, escultor e arquitecto, e um dos mais brilhantes artistas do barroco italiano; alguém que na escultura rivaliza sem favor com Miguel Ângelo.

Talvez porque creia, com o sino-francês François Cheng, que o mal e a beleza são os dois pólos contrastantes do universo vivo, isto é do real. Defende Cheng: “Compreendo por instinto que sem a beleza, provavelmente, não vale a pena a vida ser vivida e que, por outro lado, uma certa forma de mal chega-nos justamente do uso terrivelmente pervertido da beleza”.

O Belo foi uma categoria abandonada pelos caminhos da arte do século XX e é um náufrago mais solitário que Robinson Crusoé. Mas vivendo numa cidade que se degrada a olhos vistos e onde se descuram quaisquer mínimas regras de planificação urbanística, ao ver a urbe transformar-se em monstro apocalíptico de cimento, lixo e zinco, confesso que tenho saudades do Belo, de um banho de horizontes onde, salvaguardadas as proporções e a harmonia, os elementos sensíveis e sensoriais tomem uma orientação precisa.

E então refugio-me nesse armazém da arte que é a net. Detenho-me nas obras de  Bernini, nos seus detalhes, enquanto ouço os meandros da política francesa.

E descubro duas coisas fantásticas.

A primeira é que para além do pormenor da pressão dos dedos de Plutão na coxa de Proserpina (no momento de a agarrar, para raptá-la), numa fabulosa transfiguração da textura da pedra em carne macia, os dedos de Plutão – um estuprador de deusas, e no oposto do seu rosto hirsuto e brutal – são finos, graciosos e espantosamente femininos. Também para Bernini, só a beleza, a tangível delicadeza das suas formas, pode ser um antídoto (brotado de dentro, da sua própria natureza) contra o mal que a figura de Plutão representa?

A segunda está no gesto de outra mão, igualmente talhada em mármore pelo escultor, desta vez no inesperado anelo da mão da beata Ludovica Albertoni, a qual – nesse êxtase que supostamente seria o estado da alma numa união mística com Deus e pela suspensão do exercício dos sentidos – afinal não prescinde de tocar o seu seio, que se adivinha excitado, tal como inclusive parece estar todo o drapejado da santa, encantado, ondulante, e vibrátil de gozo. Nem no transporte da morte Bernini deixa de homenagear a alegria do corpo, o que me faz evocar outro barroco, o Francisco de Quevedo, que fechava um soneto dizendo «Pó se tornarão, mas pó enamorado».

Ah, pois, as eleições francesas. Que comentar?

Por que não continuar com Bernini?

27 Abr 2017

A lotaria do nada e da morte

15/04/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma dramaturgia respeitamos o ethos dos personagens mas introduzimos umas buchas. Como Os Pilares da Sociedade era para ser representada em Moçambique, onde campeia o machismo, eu puxei um pouco pelo feminismo já de si pioneiro de Ibsen e introduzi na emancipada Lona Hessel alguns juízos que lhe sublinham o carácter.

Quem ia representar Lona era Graça Silva, uma das fundadoras do Mutumbela Gogo,  que morreu de repente este fim-de-semana, aos 51 anos, sem que nada o adivinhasse, muito perto da estreia da peça. E eu tinha escrito algumas deixas para a voz dela e a clareza da sua dicção. Quem poderá agora projectar a voz, no tom e no timing certos, e explorando a fundo os seus efeitos no público, replicar com a mesma autoridade: «CÔNSUL BERNIK – Se olhares para dentro de qualquer homem, seja ele qual for, hás-de sempre encontrar pelo menos uma mancha que ele quer ocultar.

LONA HESSEL (olhando-o bem de alto abaixo, alteando a voz, escarnecedora)Um coalho! Um pobre coalho de sangue, urina, caca e presunção… E são vocês que se dizem os pilares da sociedade!».

É lamentável ser ceifada assim, aleatoriamente, uma artista que há trinta anos se entregava ao palco e tão à vontade nas figuras populares como em Gertrudes, a mãe de Hamlet. Pior num país que não cultiva a memória ou patrocina tantas vezes o popularismo fácil e o embuste, negócio a que ela sempre se furtou, preferindo ganhar menos e fazer melhor – um percurso que nem todos entendem. Ou ainda: um percurso que nem todos merecem.

Morreu uma senhora actriz, e apetece dizer: a vida é nesciamente merencória porque nos esmurra até que deixemos de distinguir entre o falcão e a garça!

16/04/17

O mecanismo do sorteio e a lógica do casino infiltraram-se no imaginário global. Talvez devido a que o homem, já não acreditando no equilíbrio das simetrias entre o trabalho e a recompensa, ou entre a boa-fé e a benignidade social, parece agora apostado em recuperar pelo jogo da sorte e do acaso uma ideia de destino.

No entanto, o sistema de sorteio já teve efeitos positivos na História dos homens. Em Atenas, na Grécia antiga, os 500 membros do Tribunal dos Heliastas eram eleitos por sorteio entre os cidadãos livres. E para minimizar aí qualquer juízo imponderado, associado ao risco de que o cidadão com mais de 35 anos chamado para o desempenho de uma função pública fosse imprestável, deu-se um impulso galvanizador à educação, em todas as áreas.

Hoje prefere-se produzir tele-sorteios ou programas de busca de “talentos”, promovendo a “lotaria genética”, a apostar previamente na formação.

Na semana passada um grupo de hackers fiéis ao DAESH, o UCC (United Cyber Caliphate) divulgou uma lista de mais de 8700 nomes e endereços de norte-americanos que espera ver mortos pelas mãos dos lobos solitários. “Matem-nos onde os encontrarem!”, incita.

A novidade é que a lista inclui nomes alegadamente escolhidos ao acaso, enquanto as listas anteriores se focavam em nomes de responsáveis, como políticos, chefes religiosos, etc. Agora não, veio o vento de Deus de que nos fala o Ezequiel e sopra de onde quer.

Quando a culpa fica indeterminada, o que atacamos? A inocência. É estranho que tal se arrogue em nome de Deus. Que já não se busque nem a justiça, nem quem determina. E em nada diminui o crime saber que os ossos do defunto são a consolação das violetas.

Entretanto, se pensarmos no que declarou David Altheide, professor jubilado do Arizona, ao DN: «Trump apelou a um passado que nunca existiu. Com o seu slogan “Fazer a América grande de novo” (…) quando foi isso mesmo? (…) De certa forma, Trump apresentou uma espécie de quadro em branco e as pessoas podiam preencher as suas próprias ideias acerca do que o ser grande era.», compreendemos que nos situamos num sistema de lotaria em que cada um já “imagina” o seu próprio prémio.

Miséria franciscana que redobra quando lemos: «A obra, intitulada “Votar nos Democratas: Um Guia Completo”, da autoria do jornalista Michael J. Knowles, tem 1235 palavras e 266 páginas… quase todas elas em branco. O livro tornou-se bastante popular no seio do Partido Republicano, incluindo junto do presidente Donald Trump», porquanto, sendo natural que a piada tenha tido sucesso, deprime constatar que isso celebra a suficiência com que se admite como ganho um zero de imaginação, tal e qual se depreende do que se segue: «O livro estará a ser um sucesso entre os conservadores americanos, depois de um outro livro de páginas brancas se ter tornado popular entre os liberais, de seu título: “Porque é que Trump merece confiança, respeito e admiração”.»

Afinal, entre os ganhos que só eu imagino, as páginas em branco, as convicções que eu alucino, a sorte e o descaso e o défice total de imaginação – rimos de quê quando a roleta rola?

18/04/17

Não era a lua quem cruzava a perna, era ela. E não havia nuvens naqueles joelhos. Que belo avental seria eu para a sua nudez, desejei. Chegou a minha filha ao café e baixou-me a gripa, desviando-me da sombra dos salgueiros, mangueiras e jacarandás, dos recônditos e miríficos leitos onde se escrutinam os buracos que existem numa agulha. Pai, posso ir passar o fim-de-semana a casa da minha amiga? A entrada da miúda já me tinha eliminado a vantagem inicial, agora, nas costas dela, via-la retirar-se, a dos joelhos cor de cobre, rompido o fio da oportunidade. Responde rápida, já estou atrasada; a minha amiga está no carro lá fora, com o pai, estão à minha espera. Percebo aí o sentido do verso de Rene Guy Cadou:”Je suis en retard sur la vie.” Crescer é isto: ficar em atraso com a vida. E então respondo: não, não podes! Mas porquê? Porque a prontidão do livre arbítrio é um dos direitos inalienáveis de ser pai!

Quem é o porco-espinho que me bufa junto à prata dos cabelos?

20 Abr 2017

Ressonâncias: conversas com o meu gato

[dropcap style≠’circle’]- N[/dropcap]ão me digas que acreditas nessa treta das estéticas comparadas!

– Não é treta, existem leis comuns. Olha, neste verso de Eluard, «há nos bosques árvores loucas por aves», surpreendemos uma boa parte da mecânica do cinema. Não falo só dos processos, e citaria a «montagem das atracções» do Eisenstein, evoco uma das duas pulsões que regem grande parte das narrativas: neste caso o «segredo».

– E como é que desse verso partias para um filme? Não te entendo…

– O enredo do filme partiria da dificuldade (o motor de uma história é o que a estorva) em desenhar um mapa com as árvores que no bosque são loucas por aves. O antagonista seria o guardião de uns ovos de ouro maciço com inscrições em sânscrito, escondidos no bojo de uma figueira-da-índia quase milenária, os protagonistas um casal de ornitólogos aparentemente inocentes – ele tem um grave problema com o fisco que ainda não confessou à sua amada. O que lhe dá motivações secretas…

– És engenhoso, mas estás a gozar comigo!?

– Claro que brinco, mas inúmeras narrativas reduzem-se mesmo a dois modelos, o do segredo (aquilo que motiva a investigação), e o da viagem (a experiência que transforma as personagens no itinerário do auto-conhecimento). Blue Velvet é um bom exemplo para o segredo, Taxi Driver ou Apocalipse Now para os da viagem.

– Hum, ontem li uma página do Saramago, que me espantou. Foi nos Cadernos de Lanzarote. Tem uma entrada onde ele dá forte e feio no Drácula… do Coppola. Fala inclusive em embuste. Concordas?

– Olha, trabalhar no cinema é, e até mais do que contar as fábulas, fazer multiplicar as ressonâncias. Quanto melhor o filme mais elaborada ou subtil é a sua rede de ressonâncias entre os vários níveis de construção (plástica, diegética, sonora) que o compõem e que capturam a emoção dos espectadores. Às vezes os espectadores mais inteligentes não dão conta. Talvez nunca dispam a inteligência, será o caso do Saramago. Ora, esse Drácula tem, mesmo descontando o Keanu Reeves, pelo menos um raccord que vale o filme inteiro, bastariam esses sete segundos para o justificar.

– Explica-te…

– A expedição do dr. Van Helsing está de partida para a Transilvânia e a aristocracia londrina oferece-lhes uma festa. Convivem no jardim do palacete, na véspera da grande aventura. Dois pavões cruzam o plano e isso origina um olhar subjectivo que vai fechando o plano sobre uma das aves e a sua cauda até se enfocar num dos “olhos” negros. E de imediato vemos, já na Transilvânia, o comboio que os transporta a penetrar num túnel da montanha. A rima plástica do olho da cauda do pavão a penetrar no túnel com uma forma idêntica (o raccord) ganha uma transversalidade isomórfica (o isomorfismo é a similitude de estrutura que se dá entre fenómenos superficialmente muito diferentes): eles vão entrar no lúgubre curso subterrâneo das suas almas, de onde não sairão mais. E temos o jogo das ressonâncias a actuar em pleno.   

– E essa coisa das ressonâncias, onde a vês mais?

– Olha, na pintura oriental. Na poesia. Na poesia uma grande metáfora é como um passe vertical no futebol, atravessa de um só golpe vários níveis de realidade e abre novas perspectivas…

– O golo…

– Sim, uma metáfora bem concebida equivale a um golo…

– Dá-me lá um exemplo…

– Repara nestes dois versos do Amadeu Baptista: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar». Como é que se chega à ausência de uma praia, perguntarão os racionalistas. Provavelmente de pára-quedas, como os anjos. Mas esta questão é similar ao enigma que é discutido há décadas por físicos quânticos e monges budistas e que se resume ao seguinte: quando não há ouvido humano por perto, o galho da árvore que se parte faz barulho? Este enigma é o que desperta nos versos de Amadeu: «Acredito que chegas à ausência desta praia/ para despertar o mar.» Como é que dois versos escritos avulsamente, sem preparação prévia, se sintonizam com o que tanto perturba cientistas e monges? Que tipo de memória desponta nessa intersecção, onde mar, audição, sujeito e leitor se tornam um? É um caso de ressonância…

– Eh, pá! E servem-te para alguma coisa essas macaquices?

– Para nada, não fazem parir as lecas na conta bancária, não te habilitam a quatro quintos das posições do Kama Sutra… Não curam a sífilis. Só me dão um cansaço…

– Um cansaço?

– Sim, há cansaços benignos, que te fazem baixar as defesas, a censura… e propiciam a meditação… Quando trabalhava nos jornais, bebíamos muito. Hoje sei: era uma forma mecânica de baixar a guarda, de nos colocarmos sem censura nem pressão para que o texto aflorasse e se desenrolasse a si mesmo…

– Como a inspiração?

– Não, isso é um conceito romântico e perigoso, porque laxista. Mas existe uma espécie de inteligência não circunscrita, isso sim… E que actua por ti, se a deixares.

– O célebre daimon do Sócrates?

– Aí já te pões num plano de acareação com o divino, um tu cá tu lá… Sejamos humildes … E o teu inconsciente talvez não precise de tutela…

– São tretas dessas que vais ensinar no curso de guionismo que vais dar no mês que vem?

– Antes fosse, mas eles quase sempre só querem saber como é que se conseguiu dar três seios à mutante no Total Recall  Só se interessam pela cosmética…

– E há mais do que isso?

– Há um milhar de obras em todos os domínios que me faz crer que sim, há a experiência atestada de milhares de pessoas que me faz crer que sim…

– As coisas que tu pintas…

– Não pinto nada, são constantes. Quem quiser vê-las…

– Diz-me lá, que procura uma mulher no amor, que constantes?

– Um Don Juan cego…

– Sim?

– Alguém que venha pelo menos precedido pela fama de ser uma fera na cama e que como é cego a trate como se fosse única… E esta é a mais benigna ilusão do amor.

– Balelas…

– Talvez. Mas o meu epitáfio vai ser: “Eu que fui tantos, não fui aquele que mordeu o pescoço da Winona Ryder!” e isto é um lamento sério, diria mesmo que é cancerígeno.

13 Abr 2017

Pinturas de Batalhas

02/04/2017

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]erá a altura de revelar aos amigos de Macau que a mais atrevida representante da literatura feminina luso-macaense viveu vários anos em Lourenço Marques, nos anos 40 e 50, e provocou escândalos porque, além dos seus poemas serem incandescentemente eróticos, era publicamente suspeita de se ter entregado biblicamente a dois irmãos, Duarte Galvão e Bruno dos Reis.

Assinava a diva Lee Li-Yang e radiografou em poemas licenciosos o seu amor, sobretudo por Duarte Galvão, um poeta com uma voz à James Mason e propenso ao dom juanismo, e que despertava nela a sensualidade e a paixão mas igualmente a ira, o ciúme, a crueldade ou a ironia – provocados pela infidelidade dele. E tudo isto se grafa nos poemas.

Estes versos que, com escândalo, saíram em vários jornais e revistas da época foram finalmente compilados em livro em 2009 numa edição que prefaciei e foi publicada pela Escola Portuguesa de Moçambique, intitulada Meu Mar de Tochas Líquidas. Devido ao seu erotismo foram, de novo, motivo de desconforto. Eis breves excertos da sua pintura de batalhas, que explicam o embaraço:

“É nua sobre a cama que te espero noite/ e enquanto o diabo me não liberte/ não se perca e me perca este fito –/ meu frágil coração de anjo e bruxa/ reclama a quatro patas teu vendaval/ de carícias e saques os teus/ clarins de guerra.”; “Na minha extrema e endiabrada/ vulva de prazeres e contrições/ convulsiva vulva de frémitos/ redivivos e onde de luxúria e raivas/ vi nascer e morrer deus e o diabo/ vergas de sal cegas de furor/ geografias do infame do insólito/ e gemas do mais familiar decoro modulei os diapasões e/ fiz do impossível/ meu perdão”; ”Sei que no antes/ a meio e no final/ de cada assalto serei eu/ quem te estrangula e/ serás ínfima expressão do teu/ cadastro enquanto vista de cima eu sou/ o mastro e tu por baixo/ a vela”.

Lee-Li Yang foi um heterónimo do poeta moçambicano Virgílio de Lemos, tal como os outros dois nomes mencionados (os seus amantes); um raro heterónimo no feminino, como posteriormente só me lembro com a Marichiko, uma jovem poeta japonesa que, em 1978, o americano Kenneth Rexroth (depois de ter feito várias antologias de poesia clássica japonesa) inventou, ou, em 1998, ou com Violeta C. Rangel, a prostituta espanhola que cavalgou uma centena de poemas do andaluz Manuel Moya.

02/04/17

Fascinam-me as pinturas de batalhas. Nos anos 90, vi uma enorme exposição de pinturas de batalhas no Prado, da qual nunca me arrependi o suficiente por não ter comprado o catálogo.

Procurando na net por um dos magníficos do género, Alphonse de Neuville, descubro que um dos seus quadros mais célebres, La Bataille du Cimetière Saint-Privat, é propriedade do Musée des Invalides, em França. Fascina-me este humor, igual só o das térmitas quando sabem a família em férias.

03/04/17

Assinei contrato para o meu terceiro livro de ficção a ser editado no Brasil, mas noutros países nada. Afinal, o que são e como são os leitores da estranja?

Não me imagino lido em inglês. Uma vez recebi um postal de Miami onde apenas constava, redigido em espanhol, “Me ha gustado mucho!”, e assinava um Chris (desconheço quem seja, se é macho ou femea), que não sei se me encontrou na esquina de um verso se nuns lavabos, e após anos a matutar, tanto a jusante como a montante, o meu sono ficou mais inclinado. Bom, e escreveu-me um professor de Oxford, “full of urgency”, ou algo semelhante. Quando lhe respondi, a carne aparatosa do silêncio impôs-se.

Também em francês os meus castanheiros nunca floresceram. Falo dos bonsais que cultivei em vários poemas e que já me saem em ramadas pelos bolsos, sem que um gascão se apiede e traduza. Fazia grande empenho em ver como se traduzem os meus bonsais na língua de Voltaire, mas continuo interdito, desde que o meu tio Manuel Domingues, emigrante, se perdeu no metro de Paris, estonteado pelo tufo de pêlos que uma normanda exibia nos sovacos e a minha tia amaldiçoou toda a família por várias gerações. Adoraria que me calhasse em francês (como ao italiano Sanguinetti) um tradutor com o apelido Marchand-Kiss.

Em flamengo tive fortuna e parece que foram muito elogiosos mas o meu entendimento da língua é uma locomotiva a vapor e antes de 2023 não conseguirei elucidar-me.

Em espanhol quis casar com a tradutora e o marido puxou da faca na liga. O outro tradutor, que soube depois ter um lábio leporino, não se mostrou tão dedicado.

Já o que me aborrece nos meus leitores chineses é que estejam sempre a descobrir vidraças rachadas nos meus poemas. Uma vez escrevi: “na China, as gotas que se formam na boca das torneiras são quadradas”. Também não é preciso acreditar em tudo o que um homem escreve. Recebi um milhão e meio de cartas, tive de mudar de casa. De outra vez, num artigo, lamentei que na China nenhuma saia se levantasse até ao ilíaco, pois na altura em todas as representações as chinesas vestiam as calças do grande timoneiro – afinal, quantos pares de calças tinha Mao no seu guarda-fatos? –, e foi um “suhyung xiravirá”. Conhecem a expressão? Significa: uma gestão seca de uma explosão de fluxos, e foi a única expressão que me ensinou uma rapariga de Macau, que me engomou uma camisa num hotel em Braga e que voltei a encontrar em anos recentes como empregada do café Nicola, em Lisboa. Bonita. Ou será “hai’ti schirati’ctin”? Já me falta a lembrança?

Em brasileiro saí muito e por felicidade minha nunca me mexeram na sintaxe nem me meteram os móveis no tecto, como já vi a alguns autores e em outras pinturas de batalhas.

Não tenho tido muita sorte com as traduções mas se pensar que a minha amiga Maria Velho da Costa nunca foi traduzida (há maior crime?), aí dou-lhe um bigode. E, como garantia Montale, ”é possível amar uma sombra, sombras nós próprios”.

Ah, isto consola-me!

6 Abr 2017

Almas tenras

23/03/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz Solzhenitsyn sobre um amigo, nos diálogos que teve com o cineasta Alexander Sokurov, em 1998: “Ele tem uma alma tenra, amável e pura”. O primeiro adjectivo faz-me imaginar que, na cadeia dos seres, as almas variam de consistência, desde as cremosas como leite-creme às duras como o aço.

Já conheci almas de puro minério, tipos ruins e ufanos disso. Em África conheci o mal. Simples acaso, tive sorte na Europa e lá se camuflará mais o que aqui será exposto? É irrelevante, lidei aqui com o problema, desde situações de ostracismo a cenas de extrema crueldade que, tanto pessoal como profissionalmente, vivi ou presenciei. Ter resistido ao cinismo que quer infiltrar, espesso, a personalidade por causa do inusitado que nestas regiões se enfrenta foi claramente uma das provações da minha vida.

Ora, o fabuloso destas conversas com o autor de o Arquipélago de Gulag é perceber que quando fala do amigo no fundo fala de si. Metem-no no Gulag durante anos (num dos dias trabalhou a -35 graus) e o homem toca harpa. Confiscam-lhe os seus cinco diários de guerra e o homem toca harpa. Interrogam-no, torturam-no, por mesquinhez e maldade, censuram-lhe os livros, o homem toca harpa. Obrigam-no a viver uma miséria vexatória. Consegue que os seus manuscritos saiam clandestinamente do país e uns anos depois ganha o Prémio Nobel. Nem lhe serve de nada ter-se abstido de ir a Estocolmo, o regime soviético expulsa-o em 1974. Passa a viver em Vermont, nos EUA. Em 1996 regressa à Rússia.

E a criatura que no documentário se apresenta é a mansuetude em pessoa, sem um grama de ressentimento, sem poses, sereno, capaz de uma compaixão e de uma compreensão sobre os seus verdugos que desconcerta. Entretanto, os direitos da venda internacional de o Arquipélago de Gulag, aplica-os em auxiliar os que como ele viveram tal inferno. Pior, com convicção recusa, apesar da insistência de Sokurov, dar qualquer relevo à crueldade humana na textura das comunidades humanas e contrapõe: “se um homem cruel encontrar um homem bom perde terreno para se exercitar e acaba a sua natureza por atenuar-se!”. O que me faz lembrar como para Saramago era a bondade a primeira qualidade do humano.

O chato com a grandeza, quando a encontramos, é que não possamos imitá-la.

Leio, entretanto, que está a sair em Portugal uma nova tradução do Arquipélago de Gulag.

26/03/2017

Uma é loura, outra morena – as minhas filhas. A loura tem nove e a morena doze. A loura ensaia uma peça na viola-d’arco. A outra discute a lei da gravidade com a mãe. A loura interrompe um acorde e pergunta:

– Não percebo nada, afinal os raios são atraídos ou caem na terra – como as maçãs das árvores?

– Que raio de pergunta… – redargue a morena.

– Se for por causa da gravidade caem, não têm escolha. Uma coisa atraída ainda tem escolha.

– Não, olha os teus ímanes… são atraídos e não têm escolha.

– Mas a Miranda da minha turma era atraída pelo Vitor e preferiu não o beijar, quando ele lhe pediu… Ela sentia-se atraída mas escolheu…

– Que têm os raios a ver com as pessoas?

– Pois, por isso acho esse Newton um chato, faz-nos querer ligar maçãs com raios e agora com pessoas… E sabes, para mim, que as maçãs caiam não vejo nisso nada de especial… o que me intriga é que elas adocem.

Cala-se e volta a atacar o seu trecho na viola-d’arco. Até que o rosto se lhe ilumina e vota o baixar o arco. E atira sorridente:

– Já sei para que pode servir a gravidade?

– Diz lá, deve ser boa…

– Foi a gravidade quem engravidou a Miazinha (a nossa gata)… E lança uma gargalhada.

27/03/2017

Umas das consequências mais erróneas que se segue ao abandono dos «mitos do progresso» é deduzir-se daí que nada é passível de evolução, pelo que não haveria culturas mais avançadas do que outras. É o pretexto para uma abjecta preguiça que degenera numa violência não declarada.

Cansa ter de explicar o óbvio: ser um mero utilizador de gadgets e electrodomésticos é inferior a ter a capacitação técnica para os inventar e reproduzir; que uma cultura laica, no interior da qual cada qual pode escolher livremente a sua crença, é superior a uma cultura que de antemão sujeite o pensamento a uma forma única, condicionando-lhe os possíveis e as virtualidades; que a astronomia exige mais estudo e uma propensão para o pensamento abstracto mais complexos do que aqueles a que obrigam a astrologia, etc., etc.

Em resultado do pensamento débil do relativismo vejo, junto dos meus alunos, que se galvanizou um retorno total à superstição e à feitiçaria – mergulham na “tradição”. Nenhum aluno em dramaturgia me apresenta o esboço de uma história urbana. Lembrava uma aluna num colóquio que teve lugar na universidade, na semana passada, como os temas se socorrem invariavelmente «do caminho fácil do exotismo», ou seja, encharcam-se em histórias de curandeiros. Está presente no quotidiano, é relatado sem crivo nos media.

Em 2008 tive de explicar pacientemente a três turmas na universidade que era deveras improvável que uma mulher pudesse ter parido um bule e três chávenas, como foi noticiado em todas as televisões do país, e em 2011 o parlamento da vizinha Suazilândia aprovou uma lei que proibia as bruxas de voarem acima de cento e cinquenta metros de altitude para não chocarem com as aeronaves. Não melhorou desde então.

Simultâneos ao assomo da superstição, crescem os sinais de riqueza material – o parque automóvel de Maputo abisma pela presença maciça de últimos modelos e de carros de luxo -, de aumento da pobreza – sou assediado diariamente por uma dúzia de pedintes – e da inflação – um pequeno frasco de molho de soja custa hoje uns inefáveis 10 dólares – enquanto, agora mesmo, se assiste a um surto de cólera em todo o país; o que demonstra que, pelo menos em termos preventivos, os curandeiros trabalham pouco.

30 Mar 2017