Derivas na língua

09/08/18

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] esquerda, na frente, as violetas, os violinos e os oboés; depois, acima, por detrás das violetas e dos violinos: a harpa, de viés, para que as cordas vibrem impelindo o ar na direcção do leitor. Atrás dos oboés: as trompas. Na frente, à direita: as flautas, os violoncelos, o contrabaixo. Atrás do violoncelista, na segunda fila: o fagote. Na terceira fila: o clarinete baixo e o contrafagote. Na quarta fila situam-se os trombones. Ao centro, à frente: o primeiro e o segundo corne; de ambos dos lados destes: à esquerda o piano de cauda sem tampo e, à direita, o baixo de tuba. Por trás do piano, de viés, o harmónium. E simetricamente, atrás da tuba: o órgão eléctrico. No fundo, ao centro, da esquerda para a direita: as precursões, as congas, a marimba. Ao corno di bassetto solista e aos dois clarinetes pendurei-os nos candelabros.

O catarro do violoncelista precede o silêncio absoluto.

Depois, eu, o maestro, à frente da orquestra, que amacio com a língua (bendito o dia em que lancetei o freio) os mais pilosos segredos da tua orquídea, ergo as batutas.

Inicia-se o concerto.

O leitor sorri, com a orelha encharcada.

11/08/18

Stockhausen, no livro de entrevistas com Mya Tannenbaum, fala da complexidade crescente da tarefa artesanal de compor e defende que o diálogo com um aprendiz, um assistente, pode ser útil para ambos. Depois refere os 4 assistentes que teve. E pergunta Mya: «Christ era, por assim dizer, o seu delfim. Que é feito dele?» Responde o músico: «Foi para mim um choque: reduziu-se a tocar como primeiro violetista na orquestra de música ligeira de Westdeutscher Rundfunk.»

Cheguei tarde aos (meus) mestres. Mas uma coisa aprendi com eles: não se pode ensinar aonde colocar os pés num terreno que não pareça minado, o risco é próprio e intransmissível. Do mesmo modo que ninguém consegue deslocar o lugar da sua morte, ninguém aproveita coisa alguma coisa ao tornar-se o velcro do seu mestre. Por isso diziam os budistas: se encontrares Buda, mata-o!

A escolha da música ligeira só traduz o tremendo susto que floresceu no caminho de Christ.

12/08/18

Ando insone. As palavras chegam-me como um coro fora de cena.

Durante décadas não reconhecia a depressão. Agora morde-me as canelas, enfia-se-me no sono, tem a odiosa gordura que acumulava o linóleo das mesas da minha infância. É um volume que insiste em ser carregado, sem conseguirmos corrigir o erro contínuo de avaliação da energia a despender, vítimas de um conceito mecânico de força.

Basta um homem para remover a grande pedra e empurrá-la colina acima, o mais difícil a acreditar em Sísifo é, num momento de distracção, não deixá-la rolar encosta abaixo.

Hoje até a insónia me parece um feixe dissipado, o cacto enterrado na duna pela tempestade de areia e que perdeu de vista a águia.

As esculturas gregas decapitadas, com o pénis cortado e as órbitas vazadas? Meia vida é assim, amorfa, conformada; sendo o fazer e o desfazer o domínio dos olhos que querem crer.

Paracelso disse tudo: a mente é quem faz ver os olhos.

E, entretanto, não fodemos tanto quanto seria desejável e o amor é sempre um carrinho de mão a equilibrar-se na corda do funambulo.

O acto criativo é que nos compensa, porque o que conta aí não é tanto produzir uma variante na bagagem preexistente como aderir ao processo originário da invenção. Aceder ao incriado, onde todas as possibilidades estão em aberto. E aí, num dia bom eu estendo telescopicamente o braço e apalpo as estrelas, sondo quais estão maduras (- aqui para nós, o rabo das estrelas é tão grande que se pode lá entrar como num celeiro). Diria o Rilke que não existe mais nobre ofício, porque não sou eu quem vai colher o fruto, eu só o testo e farejo.

Em dia assim chego a casa e o amor exorbita. É um puro acto de contaminação.

Em dia infértil, rezingo o suficiente para o próximo milénio, chego a casa e afio as facas na pedra que era do meu avô amolador, reajo por reflexos condicionados.

A incubação dos deuses teve também por fito acomodar-nos a algum modelo de constância. Porém, o corpo é uma espécie de arco que nos ejecta para vicissitudes realmente labirínticas. E o facto de nos empenharmos não garante automaticamente uma satisfação. Há lotarias para o sexo e outras para o amor, não é raro que coincidam, mas é inescapável que amiúde um é o estorvo do outro.

13/08/18

Excelente, a crónica do Paulo José Miranda sobre como o tempo se transforma quando se deixa de beber.

Como alcoólico sempre me penalizou que ao tempo lento da ebriedade se sucedesse a calcinação do tempo nas ressacas. Mas o meu prazer era físico, não psicológico, e, será uma das coisas que me atraía no álcool, há um certo cansaço que despoja.

Nunca estive sem beber o tempo suficiente para sentir a mudança. Mas quando cheguei a Moçambique senti fisicamente essa dilatação do tempo de que fala o Paulo – durante seis meses vivi, literalmente, noutra região do tempo.

Há realmente modulações do tempo e para as sentirmos não podemos cilindrar as suas hipóteses de serem percepcionadas. O álcool é uma antena ludibriadora e ao fim de algum tempo apodera-se do foco, sendo o mais pretexto para a sua anestésica litania. Pior, as intensidades anulam-se e confunde-se a exaltação na presença com a amizade.

Nos últimos anos aderi ao valor do não e do silêncio quando o álcool me chama. O que me permitiu disciplinar-me e recuperar o prazer de beber, embora o mais difícil tenha sido romper com toda uma mitologia incarnada.

O que é facto é que o álcool não acrescenta um grama de atenção ou qualquer microfone a catorze violinos que possamos ouvir ao natural. Apesar de termos acreditado nisso durante décadas, com as tripas. Afinal, ouvir o tempo manifestar-se nas coisas dobra-nos o tempo: triste é ter percebido isto tarde.

16 Ago 2018

A benzina de John Zorn

 

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma excelente jornalista portuguesa veio interrogar-me sobre a minha experiência de professor em Moçambique e agora publicou a reportagem – da qual gostei –, onde descreve a minha casa: «uma casa esvaziada mas com muitos livros».
Desconcerta-me o adjectivo: há quinze dias tivemos dificuldade em descobrir o buraco onde enfiar o piano da minha mulher, regressado a casa vinte anos depois. Não é inabitual que a percepção que o outro tem sobre nós nos surpreenda. Seja como for, ainda esta semana acrescentei trinta cds de John Zorn à minha discografia e uma casa com um piano e dois violinos (que são tocados, não são decoração), muitos livros, dois gatos, todas as sinfonias do Messiaen, do Lutoslawski, do Mahler, do Bruckner e do Beethoven, pode considerar-se esvaziada?
Parecerá uma casa de quem está de passagem, embora com milhares de livros e muita música? Na verdade, não temos carro, objectos decorativos, plasma.
Vou à estante, abro ao acaso um livro de Adam Zagajewski, e topo este poema: «BUSCA: Voltei à cidade/ onde fui menino/ e adolescente e um velho de trinta anos./ A cidade recebeu-me com indiferença,/ os megafones das suas ruas murmuravam:/ não ves que o fogo ainda arde?/ não ouves o estrépito das chamas?/ Vai-te./ Busca noutro lugar./ Busca./ Busca a verdadeira pátria.» Volto a arrumá-lo, por detrás de uma reprodução de Hokusai, olho em volta, e dou conta: o meu conforto resume-se a ter-me despojado de pátria.
Como Hannah, Arendt sou incapaz de amar uma pátria, só amo pessoas. A minha pátria está nas gargalhadas das filhas, no sorriso da minha mulher – um dos mais belos do mundo. E troco a pátria, qualquer, pela poesia do José Ángel Valente, do José Hierro, do Hugo Claus, do Mario Luzi, do Mark Strand, do Adonis, do Lezama Lima, do Milozs, de centenas de poetas que fui colecionando, na esperança de os reler, uma e outra e outra vez.
Sou despojado sim, sou mesmo um caso de estultícia-prima, o péssimo exemplo de alguém que emigra para ganhar metade do que recebia, em troca de ter agora o triplo do tempo para si. Para escrever, fruir a música, estudar arte e calafetar as lacunas.
Será arrogante declarar que me concentro mais no que importa desde que voluntariamente escolhi a “pobreza”? Que me consolei ao ler que o John Zorn, que vive numa casa austera, se sentiu libertar-se ao abdicar dos jornais, da televisão, e de inúmeras amizades laterais, para se focar no seu trabalho musical – e começa a ser um legado monstruoso. O problema é que não vejo como possa fazer-se de outra forma.
O Zorn. Tinha-o ouvido em Naked City e nos primeiros cds do projecto Masada, depois perdi-lhe o rasto, e agora, surpreendido por a Gulbenkian lhe dedicar uma semana à obra, resolvi ver o que apanhava no Youtube. É o que vos digo: já baixei trinta cds, preparo-me para baixar outros tantos; há cinco dias que obsessivamente leio sobre ele e lhe ouço a música.
Estou abismado, é para mim o maior poeta do século XXI. Entendendo a poesia como o que harmoniza momentaneamente o caos e desperta um padrão no informe, uma melodia que emerge de «um sentido para a existência que estava até aí fora do conceito» (Yves Bonnefoy), é um exercício que não precisa de residir na palavra. Além disso, se normalmente um autor é um rio, Zorn aparece como um inteiro sistema hidrográfico. O músico nova-iorquino interiorizou tudo sobre a energia e a tangibilidade da heteronomia e consegue escrever música para vários públicos, desenvolver plasticidades, texturas, ritmos e estilos distintíssimos, baralhar os géneros, mesclar o popular e o erudito, o jazz e o rock, o étnico e o contemporâneo, escrever música tonal, concreta, electrónica, atonal, integrar as dissonâncias e o ruído em harmonias mais amplas, ou cultivar esses géneros simultaneamente sem que se contaminem – é à vontade do freguês!
Que têm em comum Naked City, Bar Kokhba, Commedia DellArte ou Rimbaud, At the Gates of Paradise, Insurrection, Cobra ou Oo? Apenas o nome do autor e a sua inusitada destreza para demonstrar que o múltiplo e o sistema podem enriquecer-se mutuamente. Outra coisa liga a sua pluralidade: uma exorbitante capacidade conceptual que nunca perde de vista o visceral, os sentidos.
Quanto à inspiração literária – que evoca nos títulos – vai buscá-la aos autores que nunca perderam de vista o cosmos: William Blake, Rimbaud, René Daumal, os Gnósticos, por exemplo.

René Daumal, muito novo, intoxicava-se com benzina, para ver se a consciência desaparecia. John Zorn, que lança três, quatro, cinco cds ao ano, não precisa de benzina, “a sua consciência” (o ego) já se diluiu há muito na música que produz, em requintes transfronteiriços.
O que me magnetiza no poder total desta música é a facilidade com que dissolve todas as ideias feitas em que cresci. Pela sua complexidade – apesar de manter a espontaneidade intacta – pulveriza qualquer culto à juventude; é cada vez mais livre à medida que a idade apetrechou tecnicamente a impulsividade omnívora do seu autor: presume-se que será melhor quando Zorn tiver setenta e oitenta e por aí fora. O seu apetite para a serialização e o sistema não lhe inibem em nada a atenção que coloca no pormenor, no singular; o “rock’n roll”, nele, não lhe dispensa o rigor e a metafísica; o seu profundo espírito Dada, é concomitante de uma apreensão quase mística da música. Zorn cavalga todos os corcéis, simultaneamente, numa busca e curiosidade incessantes.
Esta capacidade para encarnar a pluralidade e a síntese não estará ao alcance de todos – Zorn está para a música como Cage para a divagação ou Eugenio Trías para a filosofia – mas acho-a extremamente cativante e inspiradora. A energia da sua música transporta-me. Uma casa vazia com muitas obras de Zorn faz o júbilo de Deus quando relaxa e o seu sistema arterial desenha o mais confortável sofá

 

9 Ago 2018

Improvisos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida, dizia alguém, é como um concerto de cordas que se executa em pleno palco, à medida que se vai aprendendo, que a sua partitura se inscreve em nós – em sangue.

Também o poema. Dizia o René Char: «coitado do poeta a quem o poema não ensinou algo que ele não sabia de antemão!», aludindo a esta experiência de jogar sem rede. E não é só bazófia romântica; impele-nos a necessidade de desfazer as imediações e as tramas discursivas para conseguir aquilo a que Derrida chamava “o deslocamento dos limites do cerco” (ele chamava-lhe “cloture”, que à letra seria mais “fechamento”, mas recorta-se um cerco em qualquer fechamento).

Não por acaso as vanguardas acabaram nos anos cinquenta e sessenta por querer diluir o hiato entre a vida e a arte. O que a sermos lúcidos nos levou a grandes equívocos, embora nos tenha indubitavelmente favorecido em ductilidade.

Mas hoje até a linguagem televisiva aprendeu a jogar com esta nossa necessidade de desfazer as imediações para nos tornar adictos. Como agora comprovei em cinco minutos. Paguei o café e levantei-me para sair mas dando-me conta que no plasma passavam os penaltis Espanha-Rússia, do campeonato do mundo, jogo que eu não vi, detive-me. E o que assisti no último penalti espanhol maravilhou-me.

Iago Aspas parte para a bola e bate-a e no arco de um segundo vemos o rosto dele mudar como um ecrã: primeiro contente por ver que tinha dado à bola uma direcção oposta à do estiranço do guarda-redes russo, o que prometia golo, chega mesmo a sorrir numa intensidade da expectativa vencida pois sentia que havia cumprido com o seu dever, e de repente assoma-lhe o espanto à face por ver que o pé do guarda-redes, uma réstia do mísero pé, acertara na bola e desce-lhe a decepção ao rosto por se certificar de que falhou o que meio segundo antes parecia certo.

Esta gama de emoções faciais deflagrada num segundo é o que é acolhido emocionalmente pelo espectador que – sem que faça uma leitura decomposta dos estados de animo do jogador – a recebe de uma forma directa e na totalidade do seu espectro.

Não há mediações, qualquer necessidade de um ajuste discursivo no fluxo das imagens, nada a compreender ali: basta acolher a imagem para se experimentar o inteiro valor dela.

Este segundo de televisão ilustra de forma genuína a transição epistemológica que hoje ocorre nas sociedades mediáticas, como foi diagnosticada por Hans Gumbrecht, de uma cultura do sentido para uma cultura da presença.

Já não são as olímpicas capacidades hermenêuticas que provocam a valorização e o desejo dos indivíduos na grelha das suas expectativas sociais mas sim a entronização de cada um na lógica de participação que faz do poder da performance e do sulco da presença as qualidades que agora são investidas no enlace entre o individual e as representações colectivas. Não admira assim que as actividades desportivas hoje sobrepujem sobre as intelectuais e que a imagem ganhe momentaneamente o estatuto de uma natureza.

Aquilo que os artistas dantes buscavam, no afã de romperem as barreiras e de inocentemente se aproximarem de uma concepção da arte totalizadora que transfigurasse a vida no acontecimento de uma expressão sublimada, é agora obtido em cinco segundos de televisão, por meios técnicos e sem pretensões artísticas. A televisão parece conectar a palavra à coisa e a imagem à vida sem mediações.

Sabemos que isto é ilusório mas o simulacro é impactante e ilustra o que defende a psicanálise, i. é, que o nosso inconsciente não distingue entre o facto e a coisa imaginada. E, pior, isto deixa-nos a sós com a pergunta: afinal passa-se alguma coisa no exterior da nossa cabeça? Poderemos alguma vez fugir à fatalidade de sermos solipsistas sem perdão? Ou, no seu inverso, à fatalidade de sermos prisioneiros como as personagens de Solaris das suas próprias imagens?

Creio que a saída está no amor. O amor dá-nos a prova de que o mundo existe fora de nós e pode ser benigno. Porém, para que essa exterioridade que o amor valida aconteça é exigida a coragem de ser vulneráveis e de nos propormos não controlar nada. Como aventei num apontamento que havia esquecido: «… não acho qualquer benefício na fusão, que anula não apenas o outro como a experiência do seu atrito em mim. Mesmo no amor, o outro deve respirar pela sua própria cabeça. E ainda que reconheça o atractivo das sugestões dos filósofos-terapeutas, como Samuel Buber e James Hillman, para quem um encontro é uma relação sym-bálica, ou seja, um plinto que ajudará a manifestar-se em mim uma propensão latente, ou que, no mínimo, ao levar-me a funcionar como reagente, me catapulta para a transformação, gosto ainda de me pensar como testemunha de um outro que me resiste, que não me é conjugável e pertence a outras dimensões e formas de ser, tão legítimas como a minha.»

Assisti esta semana ao vídeo do encontro entre George Steiner e António Lobo Antunes. E o Steiner confia a Lobo Antunes que o alinha entre os autores para quem o amor sobrepujou o ódio. E no contraponto dele coloca o Céline. Isto não faz de um melhor que o outro, no entendimento do ensaísta, mas em Lobo Antunes divisa-se um percurso do perdão ao amor e um respeito pelo outro e o mundo que pelo menos não o degrada, em Céline o ressentimento do autor sobrepõe-se ao mundo e oblitera-o, torna-o uma mera projeção dos seus fantasmas – espantosamente bem encenado como são todos os espectáculos de guilhotina.

Eu – que adoro o Céline, não é isso que está em questão – comprei momentaneamente esta dicotomia do Steiner.

Embora a xaropada da canção romântica do Roberto Carlos que começa a soar no café me faça debandar e fugir da crónica.

2 Ago 2018

Para não ver claro

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] seis meses de fazer os sessenta sinto que continuo a não ver nada claro e que isso afinal é que me alimenta a curiosidade.
Se associarmos a idade ao hardwire, como um circuito que não pode ser reprogramado porque ficou como soldado a uma conexão anterior, não sinto nada que aos estímulos novos queira antepor alguma perspectiva de controlo. Estou nos antípodas da velhinha da anedota que procura a moeda que perdeu debaixo do candeeiro onde está a luz, na ilusão de que o problema se situe num perímetro em que o possa controlar.
Quando era novo actuava como um x-acto, fosse na crítica que exercia, fosse na vida, porque achava que tudo era questão de ver claro.
E via tão claro que aterrorizei a minha mãe durante anos com a obsessão de que me suicidaria quando fizesse vinte e três anos. Quando fiz vinte e quatro ela acordou-me e disse-me, Venho dar-te os parabéns que mereces, e esbofeteou-me com um furor idêntico à crueldade com que a mortifiquei durante um lustro.
Aos vinte e nove divorciei-me porque via claro e segundo me contaram amigos dez anos depois – eu tinha-me esquecido de todo – separei-me porque, justifiquei, “não consigo ser suficiente burguês para ter uma mulher e uma amante ao mesmo tempo!”. Dada a beleza excelsa da esposa rejeitada e a sua inteligência emocional, percebo que me precipitei como o cretino embriagado pela teia das suas próprias palavras e ainda a milhas de saber que a burguesia tem pelo menos a virtude de ter menos ilusões quanto aos seus próprios enganos.
Mas o fito era ver claro, bovinamente.
Felizmente retirei-me dos comandos de uma tão decapitadora luminotecnia e passei a aceitar que uma certa falta de controlo faz bem à vida e que muitas vezes não vemos claro e sobretudo não vemos em 360 graus, isto é com a lucidez exigível.
Hoje fascina-me que o documentarista Joris Ivens aos noventa anos tenha partido para a China para tentar fazer “um retrato” de algo verdadeiramente impalpável, o vento, fechando com o mistério desse elemento a sua carreira tão marcada pelo factor político.
Deixou de ter medo de não ver claro.
Neste campeonato do mundo confirmei. Das coisas mais penosas na tv é a redundância dos comentadores de futebol. Precisamente porque eles querem manter a ilusão de que vêem mais claramente do que os outros. A bola é centrada para a esquerda e repete o locutor: “a bola é cruzada para a esquerda”, como se fôramos cegos. “Em quatro minutos dois penaltis. Incrível, penalti claro, levou a mão à bola”, ouço, e que acabámos de ver? Dois penaltis e num deles a mão na bola. É um trabalho que se pode fazer com um olho nas costas. Um trabalho mecânico, com escassíssimas inflexões.
Como eles próprios, inexplicavelmente, não morrem de tédio com a vacuidade produzida, dado esse mistério são considerados especialistas. Especialistas da duplificação inútil das figuras, como se fosse uma revelação extraordinária anunciar “A múmia está morta!”.
É trabalhinho que dispensa o raciocínio, chega um vocabulário de 300 palavras, e ter engolido um megafone para ensaiar de cinco em cinco minutos os efeitos da ênfase: a dramatização é um ver claro.
O sonho do meu tio Isidro era fazer relatos de futebol. A Rádio Renascença abriu-lhe as portas. O meu tio Isidro prometia não gritar golo antes da bola estar reposta no centro do terreno para não haver enganos. E chegou o dia, uma partida para a taça, 16 horas à canícula: Freamundo-Casa Pia.
O que a seguir se passou ficou nos anais do jornalismo: o meu tio dividiu o campo em quartas e quartos (ao todo, explicou-me ele mais tarde, em 128 divisões) como na rosa-dos-ventos, estabeleceu que as balizas eram os pontos cardeais e os cantos os pontos colaterais, e a bola circulava de leste para nordeste, enquanto o ponta-de-lança corria de sudoeste para norte, numa angulação de 75º graus, o guarda-redes defendia por se ter metido nos cornos do Bóreas – um vento dos antigos – enquanto um tiro frouxo de fora da área era comparado a um Zéfiro esmorecido.
Não se entendeu nada do jogo, mas as pessoas tiveram bastas informações sobre como orientar-se com uma bússola.
Os actuais comentadores de futebol, pelo contrário querem “ilustrar” o jogo e mostrar como vêem mais claro.
Por isso é urgente lembrar que faz cem anos nasceu um dos génios do cinema, Ingmar Bergman, cujas personagens se debatiam no nevoeiro.
Num dos filmes, o Persona, uma enfermeira conta uma história a uma actriz em crise e que deixou de falar. Ouvimos o relato duas vezes. Primeiro sobre a imagem de quem o conta, depois sobre a imagem da actriz que escuta.
Perguntaram-lhe porque tal acontecia e ele explicou: a história que se conta nunca é igual à história que se ouve. Ou seja: existe o relator, o ouvinte e o intérprete. O intérprete é cada um que ouve o relato a partir do seu contexto e estória de vida, diferente para todos. E com isto Bergman descentra o espectador do eixo do filme para nos fazer descobrir que aquelas personagens existem para além do público, têm uma dignidade própria que ultrapassa a função de fazer passar informação para o espectador.
É isto que falta a muitos personagens de hoje, seja no cinema ou na literatura: tridimensionalidade. Mesmo que para tal as personagens, que tanto falam, deixem de ver claro para se emaranharem ainda mais. Mas há nos seus filmes um respeito pelas personagens, pela sua veracidade, que não se compadece com o espectáculo mas antes adianta a ideia de que vivemos num mundo múltiplo, onde às vezes é difícil o contacto humano. Ou encontrar, apesar da loquacidade, clareza no discurso.
Seria útil que os locutores de futebol percebessem que vivemos num mundo múltiplo e não uniforme. Talvez assim, sem saberem como chegar a todos, se calassem.

26 Jul 2018

As costas de Deus

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o belíssimo livro de entrevistas entre o poeta argentino Robert Juarroz e Fernand Verhesen, Poésie et Création, a dado momento o entrevistador comenta que o primeiro tomo da Poesia Vertical (a obra do argentino é unitária e teve sempre o mesmo título, só acrescentando um número aos diferentes volumes) é atravessado pela nostalgia de Deus, de um Deus visto de costas, de um Deus que vira as costas.

E responde o poeta: «O seu reparo é para mim de uma extrema importância; e concerne um ponto nevrálgico. Mas pede uma pequena rectificação. Mais do que de um Deus que vira as costas, eu creio falar da busca das costas de Deus. Porque o Deus da face, o Deus conhecido, esse das religiões, não nos serviu para nada. A obsessão que se revela no meu primeiro livro sob o nome de Deus e naqueles posteriores onde eu não o nomeio, significa isto: a parte visível das coisas, descrita, recontada, histórica, conhecida de todos, não nos serviu para nada. É o reverso das coisas que é preciso descobrir, e está aí todo o sentido da minha busca.» (pág. 37).

Acicatado pela curiosidade resolvi reler o primeiro livro de Juarroz e então encontro o poema 22:

As costas do homem estão mais nuas do que a sua frente,

e seguramente pesam menos.

Não parte o vento nem as palavras,

tão somente as sustém.

Mas nas costas do homem não está o homem.

Estão os outros homens e a morte,

os risos e os deuses,

a angústia dos mortos.

 

E aí está, também, o fumo de uma antiga fuga,

a forma de um leito demasiado tempo só,

a palavra que ninguém vai pronunciar,

a ausência disto que ainda não se foi

e sobre tudo a abóbada da ausência,

como uma rede perdida,

como um mar inútil,

como o fracasso de todos os abrigos.

 

Sim. As costas do homem estarão sempre mais nuas,

muito mais nuas do que a sua frente.

 

Gosto muito deste poema porque me projecta numa questão que sempre me fascinou: que tipo de nudez quis Deus mostrar a Moisés?

Moisés só divisou as costas de Deus, a afastar-se. Ainda bem para o judeu, se lhe tivesse visto o rosto ficaria calcinado como Sémele quando, após um implicativo rogo, viu o rosto de Zeus. Aliás, fora avisado: «Mas tu não poderás ver o meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar com vida». É um dos mistérios de Deus, o seu rosto é uma corrente impetuosa que não permite o olhar.

2500 anos depois, assegurou o cineasta Jean-Luc Godard «uma paisagem só se filma de costas», o que não passa de uma variante para a percepção de Moisés. Como se filma uma paisagem de costas, essa parte mais nua da sua visibilidade porque a mais desprotegida ou a mais oculta?

Algumas trilobites, concluíram os biólogos depois de lhes estudarem os fósseis, viam em 360 graus – o que corresponde a uma vigília insusceptível de abrandar. Ver tudo continuamente à nossa volta há-de gerar uma visão amorfa dado que a perpétua visibilidade de tudo obtura os níveis da atenção que de comum só se intensificam quando se particularizam, ou então pode degenerar num estado de paranóia, sem remissão, no qual o trivial e o raro se equivalem na significação. Algumas trilobites não tinham costas.

Creio que o que nos torna humanos se funda na opacidade que tem raiz no ponto cego das nossas costas e nos obriga, para superarmos o medo que lhe é latente, a uma suspensão da incredulidade: a apostar na confiança. Sem esse lado cego à nossa percepção nunca assumiríamos a confiança como um dos vectores que agregam os homens.

Aceitar a nossa vulnerabilidade, destiná-la ao outro, que constitui o nosso penhor é um acto magnífico e exige coragem e desprendimento.

Num filme do Hal Hartley, um ritual de um pequeno grupo de amigos era cada um deles, à vez, subir a um muro, meter-se de costas para os amigos e deixar-se cair de costas, confiando em que o grupo lhe sustém a queda. Não era para todos, não é para todos, mas é o que funda uma comoção, a sua sombra e a sua reciprocidade. Daí que, para lá da sexualidade, seja a confiança o combustível mais duradouro do amor.

Por outro lado, como podia Moisés reconhecer as costas de Deus? O que são as costas de uma paisagem senão o quiasma onde o nosso olhar se entrelaça e excita e faz resplandecer o oculto?

O que Moisés afinal vê nas costas de Deus são as costas do homem – as suas, as nossas – e nesse gesto Deus está a dar um aval absoluto ao livre arbítrio. Ao mostrar as suas costas, o que ali é pedido ao homem não é a obediência mas que se torne digno de confiança; ao ilusoriamente lhe figurar as costas Deus mete o livre arbítrio do homem em prova, pois quem pode impedi-lo de um gesto agressivo em relação a toda a fragilidade manifesta – sempre que os homens, entre si, se viram as costas?

Deus mete-se em jogo nesse dar as costas, supostamente indefesas, e cauciona com isso, irrefragavelmente, a razão e o livre arbítrio no homem.

É uma das atitudes mais espantosas de um Deus face ao homem, um gesto que no meu parco entendimento é mais digno de ser fundador do que a Tábua das Leis: eis um Deus que ao virar-lhe as costas oferece aos homem a sua  trégua.

O rosto é o ser irreparavelmente exposto do homem, diz Agamben; as suas costas seriam então o ser irreparavelmente inacabado do homem – essa metade do símbolo com que Aristófanes definia o homem e lhe prodigalizava uma busca incessante pelo Amor que o complete.

19 Jul 2018

Os contos do trânsfuga

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]uben Dario (1867-1916), praticamente, nasceu trânsfuga, numa Nicarágua natal que só lhe conheceu a infância, o começo da juventude e o ocaso.

Pelo meio, foi educado pelos tios, por extravio do núcleo familiar, e novo saiu da aldeia natal para visitar El Salvador; no trespasse da adolescência passa a residir no Chile – um pé em Valparaíso e outro em Santiago -, após o que assentou arraiais na Costa Rica e no Guatemala, aportou várias vezes ao Panamá, viajou até Espanha – dando então o primeiro salto a Paris; a errância fá-lo instalar-se ainda na Argentina, em Buenos Aires, (como cônsul da Colômbia), sem dispensar uma transumância permanente entre a América e a Europa, aonde igualmente visitará a Itália e Maiorca. Em 1910 desloca-se ao México, que está no umbral da grande revolução; seguir-se-á Nova Iorque, antes de regressar à Nicarágua, à sua aldeia natal, Chocoyos (hoje Ciudad Darío), morrendo aí em 1916 com apenas 49 anos, embora muito calcinados pelo vinho e o uísque que vazou a rodos.

Todo este cosmopolitismo fê-lo um partidário ferrenho da unidade centro-americano, utopia política de alguns e nunca cumprida, e a enjeitar os nacionalismos, declarando com humor: porque «ao homem, como aos cogumelos, não exige Deus a escolha de uma pátria» (frase colhida no conto Arte e Gelo, incluída na antologia que é pretexto desta prosa).

É desta criatura plectórica e vital no dealbar de um século para outro e que rompeu com o provincianismo colonial para se revelar um dos aríetes da literatura em qualquer coordenada em que tenha tomado assento, que agora se edita uma genicosa coletânea de contos, o volume Curiosidades Literárias e outros contos, com selecção, versões e notas de Rui Manuel Amaral, na colecção por si dirigida, a Colecção Avesso, para a editora Exclamação!, do Porto.

Curiosamente, muitos contos estão identificados com os locais que visitou, literalmente ou através de leituras, e temos o conto parisiense, o conto hebraico, o conto russo, o conto grego, o conto passado em Londres, a lenda mexicana, etc. Embora não haja nestes contos apenas um impulso mimético em relação aos lugares e aos diferentes estilos que evocam, antes se certifica neles, muito para lá da feição simbolista que de comum se lhe associa, o profundo ecletismo do autor. E temos narrativas de cunho simbolista, de cunho fantástico, de recorte realista, fábulas e até anedotas de amplexo mitológico. É isso que o torna uma fonte de surpresas e profusamente actual – isso e um humor subterrâneo que de vez em quando aflora:

«O asno (embora nunca tenha conhecido Kant) era especialista em filosofia, como se costuma dizer» (pág., 48);

«Orfeu saiu triste do bosque do sátiro surdo, disposto a enforcar-se no primeiro loureiro do caminho.

Não se enforcou, mas casou com Eurídice.» (pág. 52)

«Que doutor Z seja ilustre, eloquente, conquistador; que a sua voz seja ao mesmo tempo profunda e vibrante, e o seu gesto avassalador e misterioso, sobretudo depois da publicação da sua obra A arte do sonho, talvez se possa discordar ou aceitar com reservas; mas que a sua calva é única, insigne, bela, sone, lírica se preferirem, oh!, isso é indiscutível, estou certo!» (pág.93)

Darío é tão fascinantemente eclético que até antecipa Lovecraft, em O pesadelo de Honório, que, coitado, num sonho revisita todos mas todos os rostos, perfis, caretas, esgares, e máscaras que tiveram lugar numa sucessão formigante desde o princípio do mundo e que se guardarão no provável armazém que configurará o inconsciente de Deus – multidão que devém a interminável soma de singulares que aterrorizaria qualquer mortal -, ou antecipa os artifícios dos experimentalistas do OuLiPo, no conto que fecha esta antologia, Curiosidades Literárias, e que transcreve uma narrativa – deliciosamente intitulada Para Fracassar Basta Amar – que dá um bigode a Georges Perec, pois constrói-se a partir da interdição do uso não de uma vogal mas de quatro, só sendo autorizado o recurso ao a.

Para se perceber a riqueza do conjunto e como em Darío até as anedotas têm duplo sentido, citemos esta:

«No paraíso terrestre, no luminoso dia em que as flores foram criadas, antes que Eva fosse tentada pela serpente, o maligno espírito aproximou-se da mais bela rosa, no momento em que esta estendia, à carícia do celeste sol, a encarnada virgindade dos seus lábios.

– És bela.

– Sou – disse a rosa.

– Bela e feliz – prosseguiu o diabo – Tens a cor, a graça e o aroma. Mas…

– Mas?

– Não és útil. Não vês estas vastas árvores carregadas de bolotas? Além de frondosas, dão alimento a multidões de seres animados, que se detém sob os seus ramos. Rosa, ser bela é pouco…

A rosa – tentada como seria depois a mulher – desejou então a utilidade, de tal modo que houve palidez na sua púrpura.

Passou o bom Deus, depois do romper da aurora.

– Pai, disse aquela princesa floral, agitando-se na sua perfumada beleza – quereis fazer-me útil.

– Seja minha filha – respondeu o Senhor, sorrindo.

E o mundo viu então a primeira couve.»

É extraordinário esta anedota. Não somente pela sugestão de que não há funcionalidade desejável para além daquela que concerne a cada forma, mas também pela ideia herética de que cada ser, criatura, entidade, planta ou nuvem pode ter sido tentada no paraíso. O que pessoalmente, perdoe-me o leitor, acho uma ideia retumbante.

Para além dos contos referidos outros realçam, como a curta fábula Febea, na qual a pantera “domesticada” não mente a Nero sobre os seus dotes artísticos, até ao auto-irónico O último Prólogo, corrosiva diatribe contra a condescendência literária com um desfecho surpreendente, ou não, se o associarmos às contradições dalguns escritores do actual friso dos escribas portugueses que se querem “malditos”.

Reconheça-se por fim que a fluidez e eficácia destes contos devem muito à imperiosa qualidade da tradução de Rui Manuel Amaral, sem a qual esta diversidade e tensão frásica manquejariam.

12 Jul 2018

Séries e os Malogros de Deus

02/07/18

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou arredio à televisão e na generalidade às séries. A última que vi com agrado foi True Detective. A primeira temporada – já não espreitei as seguintes. Porém, como até em casa que não pratica a televisão tal frenesim chega, tive de trazer de Lisboa, gravadas sob encomenda, uma caterva de séries para a minhas filhas.

Este fim de semana espreitei uma das três que gentilmente, sem eu ter pedido, gravaram para mim: Homeland, que anda em torno do terrorismo e do regresso dos prisioneiros políticos de Al-Qaeda e cujos heróis são agentes da CIA. E papei a primeira temporada inteira, doze episódios em dois dias.

Gostei. Enredos bem estruturados, com personagens e diálogos adultos e, como é normal, bem ritmado.

Contudo, ao dar o mau passo de ver a segunda temporada percebi como por intratável inverosimilhança a coisa baqueava. O que era qualitativo na primeira temporada era a plausibilidade humana. Na segunda temporada a lógica narrativa já é totalmente televisiva, impõe-se o esquema da dramatização (o espectáculo acima de tudo) e o inesperado é o que rege a acção; pior, com uma causalidade sempre justificada ao posterior (- é o dispositivo de Eurípedes convertido em matéria televisiva). Além disso, as personagens começam a caricaturar-se e a reflectir um mundo maniqueu e em derrapada islamofobia.

Tivesse a série acabado no 12º episódio, com tudo em aberto, e seria perfeita. Depois a lei do mercado arrasa tudo. Para além da débacle moral: os terroristas e os supostos defensores do Bem são cegos prisioneiros da mesma teia de aranha, num mundo embutido no friso cinismo dos líderes e de profunda raiz escatológica, pois escava fundo a ideia de que um mundo manietado por gente tão feia é melhor que acabe.

Duas coisas compreendi: primeiro, como Séneca tem razão ao alvitrar que pobres não são aqueles que têm pouco mas antes os que necessitam de muitas coisas, pois é uma intensidade emocional aditiva absolutamente artificial a que nos leva a não conseguir largar o osso na sucessão de episódios de uma série, seja qual for o lixo que se vai alastrando nas nossas retinas. É mais fácil criar dependência do que dispensá-la.

Segundo, o romance está condenado a sobreviver como uma estética gourmet, tal como o livro, e vocacionados para franjas do mercado. Sobretudo nas sociedades em que o dogma da comunicação e da sua suposta instantaneidade foi substituindo o mais árduo valor da transmissão do conhecimento. A transmissão supõe uma inacabável aprendizagem de códigos sucessivos, o que exige um maior labor hermenêutico, enquanto a ilusão da transparência comunicacional faz parte de uma sociedade em que o sentido é gradualmente preterido pela performance e a reverberação da presença.

O romance é um veículo narrativo por excelência do primeiro regime e a televisão do segundo.

Daí que a literatura se veja hoje sob pressão de uma novelização crescente, que a modela como avatar pré-filmico, o que acontece já a oitenta por cento dos romances que se publica.

É impossível a um romance fornecer em cinquenta minutos o mesmo volume de informação e obter uma igual densidade de efeitos emocionais. Até porque um bom romance não visa preferencialmente o tabuleiro das emoções e quer igualmente partilhar o jogo da inteligência: que por exemplo o leitor se aperceba dos actos de linguagem. Numa boa série televisiva ou num bom filme a linguagem é apenas veículo formal e quanto mais invisível melhor – o Godard foi uma excepção. Há, por outro lado, uma competência artesanal nestes produtos que “parece” substituir com vantagem os recursos expressivos da narrativa literária – quando os domínios da literatura, os seus meandros e objectivos, não se esgotam na trama e visam uma especificidade inabordável por qualquer outro modo. Um bom romance, por fim, dado que não se limita ao factor da identificação, pressupõe um encontro com o leitor de recorte mais apurado do que a mera “atenção distraída” que dedicamos à televisão.

Já para não falar da desonestidade de se começar com um registo ficcional, para agarrar o espectador, e a meio do processo se alterarem as regras do jogo para se explorar unicamente os mecanismos certos para o êxito. Mas, enfim, estes são pruridos que já a ninguém interessa, desde que se ofereça um suposto bom espectáculo.

Vendo esta série lembrei-me de um reparo feito por Abel Barros Baptista ao mais recente romance português. Dizia o ensaísta que dantes os ficcionistas reflectiam uma experiência de vida e que agora os romances lhe pareciam aplainados e semelhantes uns aos outros porque espelhavam a mera experiência de espectador dos seus autores. Concordo em absoluto.

03/07/18

A natureza é muito mais perfeita do que Deus, sobretudo nas oportunidades humanas que os seus erros propiciam.

Em Mary Shelley, o filme, não faltam as escorregadelas, mas dá um retrato vivo de um drama de género que devia ser mais ponderado. A Percy Shelley, o poeta romântico com quem Mary se envolve até à morte dele, apaixonam-no a inteligência e o talento dela mas, contraditoriamente, mostrou-se incapaz de empatia e de superar a mentalidade da sua época. E aceitou prefaciar Frankenstein (romance que devido aos preconceitos sobre as mulheres não podia ser assinado pela autora, obrigada a anonimato), mesmo sob o preço de erroneamente passar por autor do livro escrito pela sua amante. O que constituiu um vexame para ela.

Numa das lojas do prédio da minha infância havia um merceeiro que nascera hermafrodita. O sr. Virgílio foi educado como menina até aos doze anos, quando se denunciou o desenvolvimento do seu verdadeiro sexo. Dizia a dona Luísa, sua esposa, que vivia nas sete quintas porque o marido entendia perfeitamente as mulheres. O dom que lhe dotara aquela partida da natureza.

Julgo que, se nascêssemos todos hermafroditas para só nos definirmos mais tarde, ganhávamos em empatia e numa relação interpessoal mais consentânea e além género.

Deus não, situa-se aquém da ideologia, enquadrado na pauta da cultura que o moldou.

5 Jul 2018

Campeonato Mundial

25/06/2018

[dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]illiam Carvalho, intuo, passou a infância numa garagem que antes fora um galinheiro, daí que exiba no campo a velocidade da ervilha que mede pelo canto do olho o nervoso esporão do galo capão.

Diz o treinador que ele “andou perdido”. Em que labirintos não disse. Em que casa de passe? Em que casa de penhores, para onde um tio alcoólico lhe terá desviado o primeiro esférico de couro, oferta de natal? Em que crânio alheio? Eu há cinquenta anos que não conseguia ver num campo de futebol alguém disposto a demonstrar que o futebol se joga a passo, e para trás e para o lado e para trás, e que nada o distingue de um jogo de xadrez disputado por um caracol e uma couve galega. Nesta equipa que trabalha em slow motion, William Carvalho satisfaz todas as quimeras.

Eu é que “fico perdido” como espectador: os meus olhos correm para a frente no campo, à espera da bola, quando esta afinal revisitou a linha traseira e nela se demora em passes laterais. Não estranharia que levassem cartas para o campo e se entregassem igualmente os jogadores ao crapô ou à lerpa, o ritmo do jogo da equipa de Portugal autentifica que se podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, vamos supor: jogar futebol e fingir que se joga futebol. Ou “andar perdido” e estar em campo.

O craque nesta inércia é o antigo médio sportinguista, talvez seguido pelo João Mário que sendo igualmente do género forreta faz muitas economias de energia.

Não sei de que escola de futebol terá saído este William – palpita-me que duma escola de maquinistas. Em apresentando-se em miúdo ao chefe da estação, disse-lhe este, Rapaz, se queres ser maquinista vem amanhã às oito com uma bicicleta. E ele não faltou. Ao que lhe sugeriu o chefe: Equilibra-te na bicicleta sobre o carril e pedala sem nunca perderes a lâmina do carril de vista. E lá foi, hora e meia até à terra mais próxima, para lá sobre o carril direito, de regresso sobre o esquerdo, a 2 km hora.

Agora, perdidas as veleidades de guiar um TGV, reduziu a velocidade de ponta para 1 km hora e neste gotejamento faz as transições no campo, pastando, mesmo que às tantas lhe ofusque ainda a luz do sol no carril –nestas alturas fica “perdido”.

Se eu soubesse que era isto tinha-me candidato à selecção. Andaria por ali com menos sono e como não sei o hino sempre mo ensinavam.

Bom, a avaliar pelo Dinamarca-França que decorre enquanto escrevo esta crónica o drama de William Carvalho é ter-se enganado na equipa, devia jogar na França, composta por onze velhinhas entorpecidas que fazem tricot.

26/06/2018

Das coisas mais difíceis de encontrar é o brilho do crânio.

Não para Sebastião Barbosa, um professor de Português e História expulso do ensino oficial, e que empreende uma viagem a Moçambique depois de um divórcio conflituoso. Em terras africanas muda de nome e já com novo patronímico mergulha nas noites loucas de Maputo, enquanto tenta adquirir a cabeça do presidente Samora para ampliar a sua coleção de crânios.

Farto de Clotilde Maria Barbosa da Encarnação Monteiro Pignatelli Andersen dos Santos Aragão e Mascarenhas, que lhe engomava o pénis ao domingo, Barbosa ruma a Maputo, entronizando-se numa atmosfera de uma sensualidade sempre em delta que lhe renova o ânimo e lhe permite descobrir a grande generosidade do seu carácter: é um homem tão solidário que não se importa de ser enganado.

É o que o leva a adquirir uma dúzia de crânios, alavancando a economia do país – dos partidos políticos até às mais irrenunciáveis personalidades, toda a gente lhe impinge o “verdadeiro crânio” do fundador –, sendo coberto dessa “aura renovada” que voltará a Lisboa com Graça, a vendedora de caju com quem teve uma epifania.

Desta epifania nasceu Afonso Henriques, o pequeno mancebo que será baptizado em Guimarães e com o qual se iniciará um novo ciclo de uma simbologia restauradora, quiçá, o Quinto Império.

Com brilho e muito humor cumpre Manuel da Silva Ramos este seu novo romance, Moçalambique (Parsifal, 2018). É evidentemente uma farsa política divertidíssima, em que a trama – e em Silva Ramos são sempre originais e extravagantes – é penetrada por um inesquecível gozo com a linguagem, uma das suas marcas de autor.

Não se pense, contudo, que o clima do livro descambe em facilidades e num erotismo vulgar, sobre tudo releva a engenharia literária. É da forma mais elegante que o romance nos faz conhecer através de elipses as desenfreadas aventuras sexuais de Sebastião:

«Estava a pensar no seu pai sempre escondidinho, discreto, hipócrita e, por fim, louco, quando ouvir bater à porta do quarto. Foi abrir. Era uma belíssima jovem de 18 anos.

– Sou a Célia, a prima do Iniciazinho.

– Entra, vamos ver o que se pode arranjar!»

Sebastião não é gabarolas ou se identifica com os conquistadores: é quase relutante que se entrega ao sexo. E o esquema repete-se, em série, mas inventivo, muitas vezes com epítetos em latim atribuíveis às donzelas:

«Vamos ver o que se pode arranjar, minha themeda trianda!»

Triste foi saber que este autor de 23 livros, e alguns excepcionais – lembro Os três Seios de Novélia, Os Lusíadas, Beijinhos e As Noites Brancas do Papa Negro (esta trilogia sobre os emigrantes em França, em co-autoria com Alface), Jesus, the Last Adventura de Franz Kafka, Café Montalto, Ambulância, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, -, este autor inventivo que doseia sempre experimentalismo e uma inimitável capacidade de comunicação, tem um público reduzido contra tantos nabos que vendem como bananas.

O que me leva a concluir que só por abstracto acaso ultrapassaremos os oitavos de final no campeonato do mundo: os nossos melhores são invariavelmente trocados por um William Carvalho de escassa utilidade, ou com extrema função como fogueiro – desatentos a que os tempos sejam outros.

28 Jun 2018

Cenas do mundo flutuante, de Kenneth White

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara o Paulo José Miranda

1

Fiapos de bruma, brancos e pegajosos, retocam a baía

e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho –

dava tudo para não perturbar esta mansidão…

mas já o dia alça consigo as gruas giratórias,

as pessoas apressam-se e tossem, os motores

e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones

– Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas.

2

Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho

nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas

e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso

que pescadores exaustos até ao osso acendem

para agradecer a bondade da Rainha dos Céus

e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes

3

Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado

de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon),

o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito

por entre juncos, chalupas e wallas-wallas:

jornais impressos em vermelho e negro

e expostos às lufadas do mar da China

4

Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se

quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo

(i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK)

de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley,

amante de um próspero médico local, e que sonha

vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa

das horas de ponta, no ferry-boat da manhã

5

O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro

nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido

cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus

deixando atrás de si um rastro de vazio,

uma larga onda de riso e de vazio

que reflui até à Montanha Fria

6

No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar

a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos

e uma tonelada de coelhos chineses

é expedida noutra – enquanto nas ruelas

reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong

por entre um estrelejar de frituras, o fedor

dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos

7

No seu encavalitado gabinete em Mody Street

“Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês)

atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se

a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» –

e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores

e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos

uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos

8

Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe,

em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post

e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club

– passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas

de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura

9

Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton»

e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%),

Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road

pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga,

nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro

que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…»)

10

Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia,

sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui,

uma garrafa de uísque ao alcance da mão

e um caderno novo aberto sobre a mesa –

na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este»

e abaixo desta: «um romance impossível».

11

Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon,

Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa,

numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios

aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo

para marinheiros ianques empanturrados de cerveja;

enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico

se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong

12

Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas,

castanhas que fumegam ao ritmo do abanador;

um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango –

na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão

enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra

e as heroínas gemem no écran gigante

13

No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes –

esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se

um pi-pa chinês – Christopher Cheung

(«não sou um artista, eu sou um ser humano»)

serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto

14

No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho:

Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças

a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher

no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças,

depois regressa ao seu quarto, inconsolável

com o seu magazine ilustrado

15

Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro

esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais

os últimos jogadores bocejam e cospem,

num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes,

enquanto dois juncos maciços, a popa alta,

lavram as águas sombrias da noite

farejando a rota dos antigos lugares de pesca.

 

am a baía

e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho –

dava tudo para não perturbar esta mansidão…

mas já o dia alça consigo as gruas giratórias,

as pessoas apressam-se e tossem, os motores

e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones

– Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas

2

Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho

nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas

e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso

que pescadores exaustos até ao osso acendem

para agradecer a bondade da Rainha dos Céus

e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes

3

Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado

de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon),

o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito

por entre juncos, chalupas e wallas-wallas:

jornais impressos em vermelho e negro

e expostos às lufadas do mar da China

4

Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se

quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo

(i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK)

de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley,

amante de um próspero médico local, e que sonha

vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa

das horas de ponta, no ferry-boat da manhã

5

O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro

nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido

cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus

deixando atrás de si um rastro de vazio,

uma larga onda de riso e de vazio

que reflui até à Montanha Fria

6

No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar

a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos

e uma tonelada de coelhos chineses

é expedida noutra – enquanto nas ruelas

reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong

por entre um estrelejar de frituras, o fedor

dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos

7

No seu encavalitado gabinete em Mody Street

“Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês)

atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se

a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» –

e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores

e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos

uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos

8

Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe,

em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post

e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club

– passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas

de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura

9

Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton»

e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%),

Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road

pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga,

nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro

que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…»)

10

Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia,

sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui,

uma garrafa de uísque ao alcance da mão

e um caderno novo aberto sobre a mesa –

na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este»

e abaixo desta: «um romance impossível».

11

Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon,

Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa,

numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios

aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo

para marinheiros ianques empanturrados de cerveja;

enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico

se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong

12

Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas,

castanhas que fumegam ao ritmo do abanador;

um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango –

na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão

enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra

e as heroínas gemem no écran gigante

13

No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes –

esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se

um pi-pa chinês – Christopher Cheung

(«não sou um artista, eu sou um ser humano»)

serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto

14

No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho:

Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças

a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher

no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças,

depois regressa ao seu quarto, inconsolável

com o seu magazine ilustrado.

15

Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro

esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais,

os últimos jogadores bocejam e cospem,

num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes,

enquanto dois juncos maciços, a popa alta,

lavram as águas sombrias da noite

farejando a rota dos antigos lugares de pesca.

21 Jun 2018

Lisboa: Os espermatozóides trapezistas

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]venida de Roma: Acasala o ar com o néon, aquele rapaz de cabelo verde que esplende contra a luz da montra.

Jardim do Torel. Morremos porque somos alérgicos ao ar? É um dos emaranhamentos mais misteriosos. Entretanto, não desdenhava conhecer o primeiro que criar um teste para as alergias poéticas!

Uma vez, neste jardim, vi um ovni. Eu estava sóbrio, o ar à minha volta é que não.

Nunca ter sido este jardim aproveitado cinematograficamente é a prova de que os cineastas portugueses não sabem olhar a cidade. Alérgicos ao ar.

Café Orion: Há amores que têm borra e outros que se dissolvem sem ruído como asa de mosca na clara do ovo.

Nicola. Vejo-a sentada na mesa ao lado da minha – isto é, na mesa errada – e descortino uma função para a poesia: a da ortopedia. Corrigir os ossos ao ambiente. Ouço-a e percebo: o timbre de James Mason funciona no feminino, excita o punhado de anjos que falte cair. O estonteante arraso da voz dela – na sua tonalidade, ritmo, colocação e recorte das frases floresce uma civilização -, ao que se junta um rosto moreno de beleza lapidar, não se coaduna com os calções, o relaxe, o dedo a esgaravatar a cera no ouvido, a vulgaridade do viking que a acompanha, um calhordas ao qual só diviso uma qualidade, a de calar-se quando ela fala. E ela fala todo o tempo, adivinho, para afastar a agonia do desajuste que lhe coube. Na mesa ao lado – na errada -, aguardo pelo meu encontro e, para me alhear, penso na bela macaense que há dois anos alegrava o painel dos empregados de mesa deste Nicola, que sempre revisito em Lisboa. O que será feito da Águia de Prata?

Café Orion. Eis no que se tornou: o homem-vírgula. Esvaziado de conteúdo, mas gramaticalmente insuperável. Sossego, que seja amigo de outrem que não meu, porque também não teria conseguido ajudá-lo a evitar a esterilidade.

Aquário Vasco da Gama. Ilusão minha, ou abaixo do funil da lula gigante do Aquário Vasco da Gama, umas estranhas estrias entre os olhos desenham a carta astral de Fernando Pessoa? Não pude partilhar este meu provável engano com o meu neto que tem oito anos e a quem já basta ter passado, num ano, de rapaz eléctrico ao perfil dos meditativos. E capaz de rigores. Esclareceu-me ele diante do meu espanto de ter estado com ele numa semana sem mazelas e de o ir encontrar na semana seguinte de braço engessado: Está descansado avô, foi só o rádio.

Confeitaria Cister. Fico boquiaberto: as rosas que nós conhecemos e amamos têm uma data de “fabrico”, 1867. É um produto de muitos cruzamentos e do pendor dos homens. Existem as silvestres, mais antigas, mas as que nos prendem a atenção começaram a ser cultivados pelos chineses há dois mil e quinhentos anos, foram depois trazidos pelos persas, e acabadas de aperfeiçoar só no século XIX. Igual estupor só o ter aprendido, há décadas atrás, que os oásis são uma bolha inventada pelo homem e não um implante produzido pela natureza ou por Deus para consolar a rudeza dos desertos. Dois magníficos exemplos de natureza alterada e melhorada pelo homem. Nem tudo é mau.

Café Dragão Vermelho. Há dois anos escrevi: “A nomeação de Bob Dylan como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra. Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores, identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões.”

E, agora, no deguste duma tosta mista, leio, em Da Miséria Simbólica, de Bernard Stiegler: «Hoje, nas sociedades de modulação que são as sociedades de controle, as armas estéticas tornaram-se essenciais: trata-se de controlar essas tecnologias da aisthesis que são, por exemplo, o audiovisual e o digital, e graças a este domínio das tecnologias, trata-se de controlar os tempos de inconsciente dos corpos e das almas que os habitam, ao modular através do controlo dos fluxos esses tempos de consciência e de vida». Tinha-o intuído.

Café Coimbra, com a mão atrás da orelha: ” Uma árvore que dura mais do que eu? Um castanheiro durar mais que eu? Era o que faltava. Uma árvore é para um gajo mijar. Vai logo à serra. É assim a natureza, os superiores governam os destinos dos inferiores. No outro dia comprei um kit com várias bactérias, um amigo meu tem uns conhecimentos na Secreta e vendeu-me… Para mim é assim, vai de fungos, vírus, cancros, tudo… não devia haver mais árvores do que homens. Um gajo não pode correr à vontade. Corre e bate. Vocês já viram árvores num campo de futebol? E é um exemplo de natureza, a relva, de socialização, o jogo, e de cultura, o árbitro. Para mim é um must. Percebo que tem de haver árvores por causa do papel, mas se formos a ver publica-se muita merda neste país. Há uma árvore de que gosto. Quando é grande. O abrunheiro. E dá um bagaço de arromba. Agora um gajo ler que a castanha está na moda e que daqui a vinte anos é um negócio tão rendoso como o vinho do Porto, não dá – é um embuste. Vinte anos é o tempo que um castanheiro leva a produzir castanha capaz. Um homem responde por si, aos treze, aos catorze… eu por acaso aos doze já enchia um balde. Nem sei se tenho gente do circo na família mas os meus espermatozóides são trapezistas…”

Cacilheiro & Brown: “Adoro malta de cor com um bom pau. Telefona 919357430”: foi assim que soube, apopléctico, a mijar ao meu lado, das inclinações do filho.

14 Jun 2018

Franguinho no churrasco

03/05/18

Há gente que sabe aproveitar todas as oportunidades para se mostrar inconveniente. Como aquele padre que em todos os enterros improvisava em torno de um tema que só ele considerava fascinante: a história do ataúde, desde os sumérios até hoje. Como o presidente do Sporting, que se julga o criador do Jurássico Parque; como Hércules, que desflorou numa noite as 50 filhas de Téspio, sem que nenhuma delas tenha gozado; como o chato que apareceu na Feira do Livro e que me exigia a oferta de um livro em memória de uma bebedeira acontecida há trinta anos, o mesmo tempo há que não o via.

Escrevo esta crónica depois de o ter tido de aturar meia hora até que o mandei às favas.

E aproveito o incómodo para contar como esta feira do livro de Lisboa me entristeceu pelo excessivo número de stands e de promoções onde se “liquidam” livros – de um euro a cinco.

Excelente para o leitor que sou, pois com 50 euros compro uma dúzia de livros de arromba, mas deprimente como sintoma do que se passa na área dos livros.

Dia 31 fiz a apresentação de um livro de Carlos Alberto Machado, Puta de Filosofia.

Um senhor policial com feroz incidência política e onde, sobretudo, se cria uma personagem, coisa mais rara do que se crê.

Foi porém descoroçoador constatar – sabendo que o Carlos, como responsável pela Companhia das Ilhas, já editou mais de cem autores, e soma como autor inúmeros livros, entre os quais uma colectânea de poesia na Assírio e Alvim com excelente fortunata crítica – que ele veio da ilha do Pico, onde vive, para a Guilherme Cossoul para lançar o seu livro face a 7 pessoas presentes na sala, sendo que duas lá aterraram porque me queriam ver.

Há algo que está realmente doentio na esfera da literatura e da sua recepção.

Depois, a explosão de pequenas editoras com tiragens diminutas é simultaneamente salutar e um sinal de tribalização preocupante. A cidade está dividida, o meio literário está pulverizado, as leituras andam dispersas. Cada um fica com os seus e uma perspectiva geral afunda-se.

Contaram-me que ia para guilhotina a biografia de Alexandre O’Neill da Maria Antónia Oliveira, editada pela Don Quixote.

Espero que seja falso.

Seria outro péssimo sintoma. Se nem já o O`Neill atrai leitores apetece deitar a toalha ao chão.

O que é facto é que os média ajudam este estado das coisas: uma má comédia, um mau filme, uma má exposição de pintura, despertam sempre a atenção da imprensa. Um livro quase nunca.

Quem deu conta da nova edição de poemas de Carl Sandburg, com versões de Vasco Gato a juntarem-se às de O’Neill  da livraria-editora Flâneur? Como é que ainda não esgotou?

Quem topou a edição do belíssimo texto de Paul Auster, Espaços em Branco, com uma boa tradução de Maria da Conceição Sendas, da (não) edições?

Foram devidamente celebrados os últimos livros de Alberto Pimenta, na Pianola, uma figura absolutamente central em quarenta anos de experimentalismo literário e um pensador sobre literatura com poucos émulos à altura em Portugal?

Já se falou sobre a tão “extravagante” como bela aventura editorial da Livros de Bordo, da Maria João Belchior, uma editora devotada à divulgação da cultura do Oriente? Vá lá, saiu uma referência no Diário de Notícias. Já nem se pede que se leia Wenceslau de Moraes e O Bon-Odori em Tokushima, que há meio século estava esgotado, experimente-se a História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros, de Carpini.

A cultura definitivamente só é encarada como divertimento. É o franguinho no churrasco no reino do comissariado político.

 

04/05/18

A propósito, o O’Neill, este esteve sempre mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, e fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora.

Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas:

 

O GRILO

O grilo

não só de ouvido

eu cri-qu´ria sabê-lo

não só de gaiola cati

vá-lo mas dáctilo

grafá-lo copiar

seu abc de pobre

 

o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o a imaginação do leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria-a.

Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se amam com a linguagem das coisas que se ama.

E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia.

Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação: é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação e o diferimento, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.

7 Jun 2018

Dos glúteos: recomendações

[dropcapstyle=’circle’] S [/dropcap] ou de uma geração que ainda não tinha descoberto os glúteos. E que ainda não lia nos dicionários: Os glúteos formam a parte mais apreciada pelos homens.

Não me lembro de Ginsberg a gabar os glúteos, embora tenha belos poemas de elogio ao caralho, ao qual também podemos classificar como artefacto, se o entendermos como  um objecto desenvolvido a partir de uma produção mecânica e para uma finalidade específica. Posto o repetitivo e maquinal adestramento das mãos convocado pelo membro masculino podemos encostá-lo à ordem dos objectos de mais uso, ainda que uma vez por outra seja o plinto para um modo relacional.

Cada palavra nova tem o seu Bartolomeu Dias, aquele que a descobriu e potenciou e socializou, ao proferir: Que belos glúteos!

Em Moçambique há um herói para o primeiro tiro, aquele que inaugurou os actos de guerrilha da Frelimo.    

Quem será o cowboy que enrolou primeiro a língua nos dentes, para soltar a sentença: Àqueles glúteos, mordia-os todos! Se soubesse quem era oferecia-lhe um cd dos Penicos de Prata.

O que é certo é que foi, com certeza, contraindo os glúteos (ou relaxando-os?) que António Costa confidenciou aos militantes: «Estamos onde sempre estivemos e estaremos exactamente onde estamos!». Melhor e mais substancial era difícil porque ao vazio da ideia acrescentou-se o glúteo.

Tomada pelo glúteo foi igualmente Ana Catarina Mendes, que alçada sobre os seus três empinados músculos, arrancou aplausos da plateia com o inaudito:

«vamos ganhar as próximas eleições legislativas porque António Costa merece continuar a ser primeiro-ministro e porque os portugueses merecem António Costa!».

Bem, o vácuo a pedal nos glúteos talvez dê uma câmara-de-ar! Está garantida uma bicicleta para cada português na campanha! Sempre adorei gente com imaginação. Faz-me lembrar quando me contratam por causa das minhas supostas qualidades e depois afinal só querem o pior de mim, só me restando observar: está bem visto!

Está bem visto que com tanta imaginação o Costa terá a merecida maioria absoluta, porque o povo mais não pede que um pedestal para pousar o glúteo!

Há glúteos do catatau. Infelizmente não conheço todos.

Só há uma condição em que os glúteos são inservis: em estátua.

Contava-me o meu amigo João de Deus (onde foi ele buscar aquela ideia que depositou no livro A Paixão Segundo João de Deus, de que «o ouro é o minete da alma!»?) que uma filha do Imperador Augusto se entregava toda a noite ao desfrute das vergas em pedra das estátuas do templo de Minerva. Membros inapelavelmente erectos – que pensam vocês! – onde os seres carenciados podem ter a sua jangada.

Já os glúteos de uma estátua não favorecem manobras similares. É uma pena, visto que politicamente têm outro potencial.

Eu já decidi, depois de me finar terei um gesto politicamente correcto e doarei os meus glúteos à ciência.

Esperem, passou agora por mim um glúteo que me fez sonhar. Tenho de ir aos lavabos.

A sarapitola, vocês conhecem?

29/05/18

Dia cinco, na próxima terça, no Bar Irreal, em Lisboa terá lugar o lançamento do primeiro volume da minha obra poética, Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia 1, que reúne dois glúteos, perdão, dois livros empinados: Harpo Marx na Jaula dos Leões, de 2013, e Os Testamentos Apátridas e Outros Cordéis sem Alma, de 2017. Este último livro foi um livro feliz que escrito de um jacto, como só é autorizado fazermos depois de trinta anos de rodagem, e poucas alterações conheceu, para além da habitual dança dos adjectivos.

É dele o poema que aqui deixo, Talvez um gonzo:

Na específica área da gandulagem/ progredi pouco além do que seja próprio a um zingarelho./ Não consegui ser firme a aceitar que o mal/ é o látego do ar./ O desnorte deste pífio desempenho não é só meu./ Na Idade Média, os monges compuseram os Cantos/ Gregorianos acreditando ser a música cantada por anjos/ e santos, no Céu./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo.//

Desconfio que à consciência de que herdamos o mundo/ como o oco de um lugar mudo/ que a palavra escava ou preenche com pão d’água/ se segue que confundimos esta acção com o silêncio, /erro tão grotesco/ como julgarmos que é a espuma/ da escuna o que faz mover a quilha.//

Estamos desde que nascemos a sós/ com as nossas inconfessáveis inabilidades/ e a tal ponto assustados que amiúde dizemos amo-te/ quando se abriu no dique a fissura./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo. 

    

        

31 Mai 2018

Um tremendo fotógrafo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ncontra-se ainda no Camões, em Maputo, uma excelente exposição antológica de José Cabral, o primeiro fotógrafo moçambicano a assumir uma postura de “autor”, fugindo do foto-jornalismo e da “epicidade colectiva” que foi apanágio da geração anterior – cujas figuras de proa foram Ricardo Rangel e Kok Nam – para dar o salto “da fotografia testemunhal e de intervenção” e adoptar, no dizer de Alexandre Pomar “uma outra forma expressão de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e íntima ou intimista”.

Por isso se tornou José Cabral numa ponte entre a velha geração e a nova geração – Luís Basto, Mauro Pinto, Mauro Macilau e Filipe Branquinho.

À entrada da exposição lêem-se duas declarações do fotógrafo. Diz uma delas: “O acto fotográfico? Há dois tipos de potencialidades, as que estão dentro de mim e as que estão fora, e quando estas duas se encontram há a fotografia”.

Ora, isto é análogo ao que defendia Cartier-Bresson: “Fotografar, é pôr a cabeça, o olho e o coração no mesmo ponto de mira”.  

Ambas as frases apontam para uma indivisibilidade entre o corpo e o acto de fotografar, que tornam o observador e o observado um. Quando isto acontece a fotografia capta a essência do momento, isto é, acontece nela uma espécie de dobra pela qual o reconhecimento documental do assunto ou tema fotografado se duplica na organização rigorosa das formas, percebidas visualmente na composição que reitera e ilumina esse facto.

Dou três exemplos. A foto do cartaz do Museu Al Capone, onde por “um acaso objectivo da luz” (como diriam os surrealistas) a silhueta da cidade se reflecte na parte de baixo do vidro que protege a foto do gângster, como se a cidade estivesse contida no seu ventre – e assim se transformou a imagem na metáfora do poder que o gângster teve sobre Chicago. Só um olhar muito treinado percebia o valor expressivo dos reflexos no vidro para sustentar o que a figura simbolizava.

Na fotografia escolhida para a capa do álbum que a exposição complementa – Moçambique, organizado por Alexandre Pomar -, a força do “dito” é um efeito da composição da foto: um casal, ela de trouxa na cabeça, passa ao lado de uma montra com uma cortina que lhes esconde o que esteja à venda, como se o direito ao que lhes está lá lhes fosse vedado. As pregas da cortina prolongam a infinito o eixo horizontal. Mas a dignidade com que eles caminham, quase hieráticos, confere-lhes uma verticalidade que os coloca acima das circunstâncias (leia-se sociais) de que padecem. Leitura que só podia dar-se naquele momento de centralidade em que eles se encontram em relação à montra, dois passos antes ou dois passos depois e essa “dimensão oculta” e estrutural da composição da fotografia diluía-se.

O terceiro exemplo é um caso de pundonor. A foto pertence ao ciclo “Os Americanos” e foi captada em Santa Fé, no Novo México. Um cowboy orgulhoso é fotografado contra uma montra onde, à exacta altura da sua cabeça, se encontram outros chapéus de vaqueiro. O seu olhar, colaborando com a foto, é de orgulho, ou seja, naquele momento ele representa um tipo humano, de bem consigo; naquele momento deixa de ser um cowboy singular para se tornar um ícone.

Nos três casos as figuras representadas têm uma enorme “qualidade de presença”, um rasgo imprescindível para detectar uma obra de arte, segundo Walter Benjamin. Contudo, faça-se a ressalva, pois para o ensaísta alemão, uma fotografia, por ser um objecto reproduzido mecanicamente não podia ter uma presença genuína.

Entre outras características, esta exposição demonstra-nos que Benjamin nem sempre estava certo. E a qualidade desta exposição torna ainda mais trágico que não haja uma verdadeira circulação de bens culturais entre os rincões do mundo onde se fala o português.

24 Mai 2018

O que volta em farsa

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ambém a mim aconteceu que a minha vida mudou no dia em que me vi desintoxicado do frenesim da paixão amorosa. Até aí frequentei o mundo das cabeçadas a esmo.

Não, não renunciei a nada, nem me vi desprovido de entusiasmo. A grande mudança foi ocasionada simplesmente por uma alteração na minha percepção quando comecei a distinguir entre o entusiasmo e a paixão e separei uma coisa de outra; foi como conseguir alternar finalmente o dia e a noite, ao invés de tudo me parecer governado pelo regime nocturno como antes.

Depois, deixei de idolatrar a paixão, ou de a isolar como exclusivo motor do desejo, para começar a desviar parte da sua energia para outros âmbitos fora de mim. Para a arte e a escrita, é um supor. Para o amor filial. Para a responsabilidade, uma descoberta em mim tardia. (Hoje, ser responsável permite-me ir mais a fundo quando folgo com uma irresponsabilidade, é mais pertinaz o crime daquele que habitualmente pratica o bem; mas isso não se sabe antes, quando apenas petiscávamos na irresponsabilidade por nos faltar a coragem para sermos responsáveis.) E logrei aí o movimento de quem converte um deus monogâmico às vantagens do politeísmo.

Ganhei nesta minha desintoxicação uma tremenda qualidade de vida, ao aceitar a imensidão de um mundo fora de mim e que eu não tenho de possuir tudo. Primeiro passo para começar a desejar poucas coisas. Os “votos de pobreza” podem mesmo dar uma tremenda liberdade.

Por outro lado, a vera pobreza avivou em mim o mecanismo da memória, ou a consciência da sua importância para nos mantermos à tona de uma época naufragada na irrelevância, como diria o Castoriadis.

Os desequilíbrios da vida, para quem não tem bens de raiz e tem de experimentar o que a vida vai dando, trazem muitas oportunidades para hipotecarmos x e y. Aprendemos rapidamente que só uma coisa nos faz realmente falta e que a essa não podemos hipotecar: a memória.

Ora, ficamos atolados na mais aviltante das sociedades de espectáculo quando tudo se reproduz como se memória não houvesse.

Piero Manzoni nos anos sessenta assinava as peanhas que os visitantes da galeria galgavam para fingirem que eram as esculturas. Vinte anos depois Philippe Thomas, escudado por detrás da agência que fundou, Os Ready-Made, editava um cartaz propondo a seguinte fórmula: “História de Arte Procura Personagens… não espere por amanhã para entrar na História”, e na imagem via-se uma fila incompleta de grossos livros de arte, sendo cada leitor convidado a imaginar o seu próprio nome na lombada de um livro, ao lado daquele onde já se lia Pop Art e Warhol”. Pagando, está claro.

No caso de Manzoni ainda tínhamos uma natural extensão dos “efeitos Duchamp”, com a agência Os Ready Made já estamos diante da degeneração de um acto criativo em dejecto comercial. É o triunfo da farsa em que tudo volta, segundo Marx.

Contudo, já Duchamp embarcara num equívoco. Reclamava ele: “Eu dou aquele que observa (a obra de arte) tanta importância como àquele que a realizou”. A dúvida coloca-se em saber se em trocando de posições haveria depois alguma coisa para ser observada. Talvez o observador afinal não saiba executar a escultura de Rui Chafes. Esta foi uma das ilusões do Modernismo mas como todas as coisas iniciais eram então necessárias.

Voltou a coisa em farsa.

Vem isto a propósito do festival de Eurovisão, a que assisti ontem, e do seu desfecho.

Foi um espectáculo agradável e houve duas canções boas, a lituana e a alemã, e a representação portuguesa esteve muitos furos acima da sua classificação. Mas a soma do voto dos júris deu a vitória a uma assim-assim, a da Aústria (que era mais do mesmo e lembrava-me John Legend), tendo ficado em segundo e terceiros do piorio que lá se encontrava. Depois a votação popular esclareceu-nos como o “princípio da realidade” é o ocaso da memória afogada na latrina das galinholas.

Ganhou Israel e uma canção e cantora que só imitam em farsa grotesca o que já foi sublime.

Há 25 anos apareceu uma cantora que além de uma grande compositora revelou dotes performáticos notáveis e que pegou na pop e na música electrónica para a trançar com enorme riqueza expressiva em alguma música contemporânea. É um marco de excelência. Falo da Bjork, um caso de luxo criativo.

Ninguém deu conta porque a sociedade telemática nos mantém reféns do eterno presente das sociedades orais, mas a miúda de Israel (de uma gentil feiura) procurava imitar em tudo a Bjork, só que agora em kitsch, em farsa grotesca, do penteado (lembro-me do desgosto que tive quando a Bjork teve aquele penteado, que odeio), ao figurino, e até aos experimentos vocais. Embora tudo o que é excelente na outra aqui seja ridículo, pura escória.

Se as pessoas se lembrassem da Bjork quem votaria naquela paródia grotesa, mesmo que tingida de humor?

Coitado do Sobral, na véspera havia declarado que a canção de Israel era uma merda e depois teve de ser politicamente correcto. Não lhe caíram os pergaminhos mas deve ter sentido um profundo alívio por se descartar daquele meio.

O que se passou ontem é um sintoma de algo há muito diagnosticado. A única coisa que choca foi verificar que a maior parte daqueles cantores tinha estudos musicais “desde criança” aceitou interpretar canções da treta. Gostaria de não ter de saber que no Conservatório estudam Messiaen e que ali se entregam à vulgaridade, espetando a navalha nas costas da arte. Tudo em nome da fama, que como diria o Camões é “a vã cobiça dessa vaidade a que chamamos fama”. Eis a prova de que o Mercado não tem atributos, é como o tamboril – o gosto é-lhe emprestado.

Era o mesmo comigo quando me apaixonava a torto e a direito, como o feio tamboril. Agora felizmente já separo os ímpetos do entusiasmo da filigrana da paixão.

16 Mai 2018

Do Nobel, sem pruridos

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]em quórum, o Nobel da literatura arriou as calças.

O culpado foi Jean-Claude Arnault (marido da poeta Katarina Frostenson, que é membro da Academia do Nobel) e os seus arremessos sexuais à esquerda e direita – oh lá, lá, nem a princesa herdeira, Victoria, nos seus imaculados vinte anos, escapou de ser “tocada nas nalgas”, dizia a notícia, pelas suas mãos inquiridoras. Resultado do tumulto e das demissões que provocou: a Academia ficou sem quórum.

Na verdade, consta que o empoleirado na esposa também influía na filtragem dos nomes dos candidatos ao Nobel – impondo o seu voto por delegação -, tendo com isso minado o crédito da Academia, mais habituada ao recato melancólico das esposas dos membros da Academia.

«Sou levado na sombra/ como um violino/ no seu estojo negro», escreveu Tomas Transtromer, o último grande poeta laureado, e por acaso sueco. Não sabemos se este violino ocultado na sombra já aludia a Arnault, mas no caso do poeta sueco o estojo transportava uma espessa substância lírica. Porém, este ano o estojo do Nobel está vazio, por causa do tanto que vazou Arnault, à esquerda e à direita. Falo dos zunzuns em que era especialista e que matavam sempre a confidencialidade do prémio (- contava às amantes, que depois contavam ao porteiro do prédio, etc.)

Em relação ao Nobel, temos de perguntar como o fazia Rilke ao jovem poeta a quem, endereçou cartas: morre a literatura se não houver o Nobel (- o poeta alemão perguntava ao seu destinatário se ele morria, caso não escrevesse poemas, sugerindo que se assim não fosse ele deixasse de escrever porque nenhum poeta brota da presunção mas sim duma necessidade interior, vital e inescapável)? Qual o peso específico do Nobel na manutenção do capital simbólico que a literatura, talvez, ainda represente? E é relevante o seu papel, em relação à literatura, ou ao comércio de uma parte dela, quando por exemplo favorece o reconhecimento sobre a descoberta – como no caso de Dylan?

Na escolha dos últimos premiados notava-se ter havido um pequeno desvio ao paradigma do prémio, inflectindo para uma maior aproximação ao “mercado” e à ”cultura de massas”. Era uma espécie de “literatura à Hollywood”. Ou seja, os critérios que premeiam a Física, ou a Matemática, por exemplo, não têm sido exactamente reproduzidos na Literatura. Aí premeiam-se investigadores de ponta, gente que experimenta e arrisca “cegamente”, como é próprio da ciência. Na literatura têm-se escolhido vozes em concordância com o “mercado”, que oferecem segurança, escritores de qualidade mas que conduzem com airbag. Patrick Modiano, Bob Dylan ou Kazuo Ishiguro, são bons, mas decididamente não tanto.

Alguma vez a algum génio foi dado um Nobel – a um «génio sem espinhas»?

Vejamos quatro exemplos: Pessoa e Henri Michaux, Borges ou Ezra Pound. Não lhes emprestaram a bola de ouro. Embora fossem avessos às agremiações literárias que tornam a coisa possível.

Mas não dramatizemos. Para o meu gosto, a poesia não tem estado mal servida nos Prémios Nobel. Se ao irlandês Seamus Heaney eu preferia o britânico Ted Hughes, a poesia do primeiro atinge um nível altíssimo na tradição que representa. E não tenho dúvidas, tanto o polaco Czeslaw Milozs, como o mexicano Octavio Paz (que se tem de ver como um todo e não unicamente como fazedor de versos), o russo Joseph Brodsky ou o poeta da Trinidad, Derek Walcott, cada um no seu género, são poetas que roçam o “génio”, no sentido em que todos atingiram picos altíssimos no sistema das suas cordilheiras.

O Derek Walcott, por exemplo, que nem teve direito a tradução em Portugal, provavelmente por ser negro, nem em Moçambique, suponho que por não ser moçambicano, mas é um poeta extraordinário, capaz de ímpeto, improviso e arquitectura, isto é, capaz de embarcar no mais puro beat jazzístico como na cadência clássica. Ainda por cima, é igualmente um dramaturgo de monta.

«Ao longe no caminho, avisto o Poder./ Tal e qual uma cebola,/ os malabarismos do seu rosto/ a caírem um após o outro.», escreveu, entretanto, Transtromer e é extraordinário como de forma tão simples fala da nossa tumultuada época, afinal de todas. Mas mais da nossa. E é tão universal isto.

Era esta a função ideal do Nobel, fazer-nos confiar que existia uma Academia que premeia os melhores e não os que mais vendem ou os que são bons a fornecer entretenimento. Dado que o entretenimento é uma das funções da literatura mas não deve ser a única; às vezes é uma dimensão mesmo dispensável. O Nobel era uma espécie de Realeza Republicana, de fátua e transitiva celebridade mas que nos apresentava um modelo de excelência. Esperemos que com este ano de jejum corrija a rota.

Quem não espreitará este ano o vestidinho decotado da Glória do Nobel, uma moça como se sabe com predicados, é o meu amigo Zetho Gonçalves, poeta angolano, que se tinha anunciado no FB como candidato ao Nobel deste ano. Nem neste nem nos próximos. Sabem porquê? Ele é misteriosa e ironicamente parecido com Arnault – quase podiam ser gémeos ou sósias. Por caminhos díspares terá andado o pai do poeta. Contudo, o camarada Zetho terá de rogar ao seu sósia para fazer uma operação plástica, senão será sempre vetado por antipatia!

Enquanto não nos chega o Nobel reabilitado por “personal training” e os exercícios para trapézios, deltóides e quatro grandes peitorais fiquemo-nos por um poema de Transtromer, De Julho dos Anos 90: «Assistia a um funeral/ e senti que o defunto/ lia os meus pensamentos/ melhor que eu.// O órgão estava calado, os pássaros gorjeavam./ A vala inundada de sol./A voz do meu amigo estava/ a minutos das minhas costas./ No regresso a casa, ao volante, senti-me/ desmascarado pelo esplendor do verão,/ da chuva, pela serenidade/ emitida pela lua.»

10 Mai 2018

A Arca de Noé

24/04/18

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enras cabeças que o vento tatuou. As que encontro ao espelho, matinalmente. Emerge a cada manhã uma cabeça, frágil como a do cravinho no seu esquiço de energias antes de lhe acudir a primeira palavra, esse primeiro contacto com a resina.

Oh, oh, o que eu gostaria de ser um filósofo comerciante em chá, como Vasily Boktin, é o que vos digo, em vez de perder tempo a cismar onde devo, na frase, trocar ¨cochila¨ por ¨tartamudeia¨, palavras agrafadas ao pulmão crepuscular dos flamingos.

No rádio passam Monteverdi.

Outro dia sem álibi. Chega o vento e tatua-me os sonhos.

26/04/18

Passou o 25 de Abril. Um espírito litoral, mais do que à letra do continente, a que serei sempre fiel. Lembro a alegria a nascer no olhar do meu pai, habitualmente pétreo.

«Quando novo – diz Platão na Sétima Carta – aconteceu comigo o que se dá com todos: firmei o propósito, tão logo me tornasse independente, de ingressar na política».

Não me aconteceu a mim, apesar do entusiasmo e das intensidades políticas que se sucederam a 74 (tinha 15 anos e portanto todo o meu crescimento humano e intelectual gizou-se nesses anos loucos), nunca quis ingressar na política. Destituído de qualquer jeito para a elocução pública. Demasiado tímido, além de anarquista. E sentia mais afinidade com os vagabundos, com os santos ou os reclusos, com todos aqueles que se evadiam de se entregar a qualquer acordo prévio e de se render à populaça dos sentidos.

Nunca quis ter carro, carreira, telefone pouco (e queixam-se-me muito os amigos), tenho fb porque gosto de rir, sem fazer da obsessão da partilha um dogma (aliás, acredito muito pouco na instantaneidade da partilha), uso a net porque me permite incursões no conhecimento da arte. Já a minha televisão está sem pio há seis anos e a minha reforma é nula.

Creio que pacientemente trabalho para o suicídio. Admiro o de Séneca, maravilho-me com a determinação de Antero que teve o sangue frio para dar o segundo tiro não tendo sido fatal o primeiro.

Impede-me por enquanto, desse último acto, o amor. Mas pode o elo do amor também quebrar-se e a miséria do amor é a única que não devemos consentir.

No dia em que me fatigar das letras e as minhas filhas estiverem todas formadas, e sentir que a razão se me esburaca enquanto o desejo já só semeia fadigas, creio que o método antigo de voluntariamente pôr um termo à vida é uma digna escansão. Porque esta é igualmente, entre outros motivos, uma questão de ritmo. Mantenho a convicção de que o suicídio pode ser – enquanto gesto pessoal e intransmissível -, uma celebração da vida, em vez de uma marca de desespero.

Hoje, entretanto, catei em Nietzsche esta coisa maravilhosa: «Agradecidos a Deus, ao diabo, ao carneiro e ao verme que há em nós».

Suspeito que não há mais nada a acrescentar.

Ou há. Entra-me olhos dentro que acontecimentos como o 25 de Abril, o Maio de 68, a Revolução Francesa são Arcas de Noé, no sentido em que lhe deu Saramago.

Já lá iremos. Façamos agora um pequeno desvio para contar que fui fulminado pela mesma insólita evidência que abalou Roger Caillois quando leu detidamente sobre o Dilúvio e Noé e com estupor compreendeu que afinal Deus não pretendia acabar com o mundo mas antes e unicamente favorecer os peixes. Só um antropocentrismo decapitador nos impede de ler as evidências.

Esta semana também me arrombou outra informação: Páris tinha o dom da profecia. Compreendem como isto altera tudo? Compreendem mesmo?

Mas voltemos a Noé. Gostei da leitura que dele fez Saramago e sobretudo da desopilação do último capítulo do romance Caim, inapelavelmente herético. Deus queria dar cabo da raça humana, ainda que com ressalva, salvando Noé e os seus. Saramago fez Caim cruzar o caminho da Arca e Deus num gesto de exibição da sua bondade eterna perdoa-lhe e ordena que Noé o aceite, até para garantir que as fêmeas da Arca sejam fecundadas. A partir daí é um regabofe. Caim fecunda-as a todas, contudo lança-os, aos homens e a elas pela borda fora (com a excepção de Noé, que se suicida), e quando a Arca acosta, depois do desfile dos animais, sai sozinho e confronta Deus com a impossibilidade de perpetuar a raça, pois só sobrou o macho.

Na verdade, o romance é profundamente nietzschiano, dado que à severidade de Deus sobre a raça Saramago contrapõe uma radical convulsão gramatical e transforma um castigo numa impossibilidade genética.

Como dizia Nietzsche, Deus não morre enquanto não dermos cabo da gramática e este Caim fere fundo a omnipotência de Deus.

Todos os grandes acontecimentos políticos tendem à mesma agramaticalidade: é um momento em que a História sacode as suas regras e escamas e se produz a si mesmo, liberta de tutelas, numa nova configuração. Daí que fundem uma fidelidade que mobiliza alguma dinâmica na continuidade dos processos.

Para duas gerações inteiras o 25 de Abril representou um período de liberdade sem abstinências e não há como estarmos suficientemente gratos por termos conhecido uma tal peripécia (raríssima) no curso da nossa vida.

27/04/18

CONJURAÇÃO: «As insónias são para o que servem:/ planificamos o negócio sobre bonsais/ que nos vai confortar a reforma/ ou enlouquecemos; outra hipótese // é relermos algo que nos emocionou/ para lhe escalpelizar a mecânica da escrita/ antes que a geringonça (eis-me à la page) / da insónia nos triture vivos.// Do ralo da noite, entretanto,/ brota a crista do galo e o seu esporão/ ferra-nos porque para ele / só em nós é espúria a manhã.». Poema de Os Testamentos Apátridas e outros Cordéis sem Alma, um dos dois livros reunidos em Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia, com edição da Douda Correia, daqui a um mês.

3 Mai 2018

A vaidade e o sexo oral

[dropcap style≠‘circle’]C[/dropcap]ito: «O Presidente de Uganda, Yoweri Museveni, conhecido pela posição homofóbica, prepara-se agora para proibir a prática de sexo oral no país. Meseveni culpa “os estrangeiros” pela banalização da prática, que considera “muito errada”, e revelou que já está a preparar uma campanha, com cartazes e anúncios de televisão, contra o sexo oral. “Deixem-me aproveitar esta oportunidade para lançar um aviso público sobre as práticas erradas (…) A boca é para comer, não é para fazer sexo. Nós sabemos qual é a ‘morada’ do sexo, sabemos onde é que deve ir”, defendeu o presidente do Uganda. Em 2014, ano em que introduziu a lei anti-homossexual, o presidente defendeu publicamente que a prática de sexo oral causava lombrigas e outros parasitas.»

Uma das lombrigas é a vaidade. Aquela que levou José Sócrates a bradar, ufano e peremptório, contra o Procurador-Geral (numa das infamantes reportagens com que a SIC transformou a justiça em devassa pública) aquilo que o movia: “Eu sou vaidoso (…) a única motivação que encontro para a actividade política é a vaidade, aliás dos políticos em geral. É uma característica humana…”.

Esta afirmação é uma generalização falaciosa – a vaidade não é uma característica humana virtuosa e digna de ser imitada – e (não é em vão que rima) quase criminosa: alguns milhões votaram nele apesar da vaidade, julgando que o moviam outras qualidades mais misantrópicas. Que, mesmo que coxo, um ensejo de justiça, de regulação de alguns desequilíbrios sociais, lhe fosse prioritário. Constata-se que isso seria apenas a projecção dos inocentes, num país onde tanta gente gosta de exibir um broche de ouro na lapela.

A vaidade esquarteja qualquer ilusão e torna compreensivo que Sócrates tenha escorrido, de forma espasmódica, da JSD para a calha socialista. Não foi uma questão de re-focagem ideológica – como com a arquitecta Helena Roseta, ou até com Freitas do Amaral, por honestidade intelectual – mas de oportuna medição do terreno ideal onde a sua vaidade se podia expandir, ter eco, ganhar uma corte.

E de facto porque há-de um político ser um espartano? Já é diferente querer ser esperto como um alho para afinal apenas se assemelhar à cebola que se gaba de saber trinchar a lebre e a galinha.

O pequeno ensaio de Montaigne que se intitula Da Vaidade das Palavras começa assim (cito de memória), «Dizia um retórico do passado que o seu ofício era fazer que as coisas pequenas parecessem grandes e assim fossem julgadas. Eis um sapateiro que, para calçar pés pequenos se gaba de fazer sapatos com a medida de Hércules». E aqui engana e lisonjeia, e pior, – pois quem não quer ser Hércules? -, manipula.

Alguém que chega ao poder por virtude do muito que foi envaidecendo só pode tornar-se pernicioso. Nem imagino a quantidade de medidas tomadas não porque fossem as mais razoáveis e necessárias mas porque em qualquer disputa de argumentos uma criatura de tal ego quer ter sempre a última palavra! Como acontece com Trump. Quantas vezes, em decisões chaves, se abeirou Sócrates da irracionalidade para alimentar a sensação de que controlava, de que a sua vaidade imperava?

A soberba começa devagarinho tal como as tentações foram tomando conta de Giges depois dele ter achado o anel.

Giges, sabe-se, é um personagem da República de Platão que um dia achou um anel que ao ser rodado sobre o eixo o tornava invisível. A inesperada graça de ficar invisível tomou conta do seu comportamento e, por estrita curiosidade, começou a ir visitar, na clandestinidade, as casas dos seus amigos. Rapidamente uma pontinha de inveja acompanhava as suas incursões secretas: ah, aquela cigarreira de prata, belíssima a ânfora de Esmirna, invejável a pulseira da mulher do seu amigo e como era muito mais animado o sexo com ela. Assim, de sexo oral! Giges, até aí considerado o mais recto dos homens, começou a congeminar modo de se apoderar da mulher do amigo e entregou-se aos pequenos furtos. Quem ia notar? O anel apossou-se da alma de Giges, mudou-lhe o carácter.

O anel de Sócrates é a vaidade, que ele, inexplicavelmente, julgava invisível ou que camuflava com uma retórica grandíloqua e que por vezes tinha o aspecto de coincidir com o curso das necessidades do país. Afinal, só lhe importava o pavoneio próprio, para além das ideologias. Como tantos outros políticos-espectáculo da mesma igualha.

Que triste paradigma a de um horizonte político que só tem por causa a vaidade individual. Os chineses da dinastia Ming tinham um antídoto para aqueles que ambicionavam a vaidade do poder – por exemplo, os grandes almirantes da frota imperial. Castravam-nos. E os seus testículos eram exibidos em relicários nas costas do trono do imperador para que ficasse à vista o que lhes faltava e a fraca proporção do seu poder. A chegada ao poder pagava-se com um sacrifício.

Parece-me ser isto um justo preço. Bom, e que se não invalida o sexo oral, o inibe!

Outra solução me parecia crucial: que a primeiros-ministros pudessem chegar os menos eloquentes mas melhores preparados tecnicamente. O melhor era até serem mudos. Acabava-se o espectáculo televisivo. No parlamento tudo seria mais ponderado, pois as respostas ao hemiciclo haviam de ter o ritmo lento da escrita numa pequena ardósia. O qual oferece tempo para reflectir, para corrigir, para mudar de ângulo e não ser aquilo que se diz unicamente da boca-para-fora. Brinco e não.

Países-da-boca-para-fora (do mais caprichado sexo oral) é o que temos com estes mealheiros da vaidade que nos calharam como líderes de um tempo caprichosamente fútil. Yoweri Museveni tem razão: fora com a lombriga da vaidade!

Que cada país leia na exacta proporcionalidade do uso de broches de ouro na lapela dos seus políticos um sinal simétrico de tropeço do seu futuro no fosso do descalabro.

26 Abr 2018

Pobre Atmosfera

[dropcap style=’circle’] J [/dropcap] ohn Berger comparou uma vez o espaço do atelier com um estômago, ainda que o processo da arte seja o inverso daquilo que se passa com o sistema digestivo – o que entra é merda, o que sai é uma oferenda.

Agrada-me muito a ideia que isto nos sugere: a arte é a inversão do processo digestivo. Corolariamente, creio que aonde se produz a oferenda advém o acontecimento. Aquele que importa e que amplia o âmbito das relações e, melhor, fideliza.

Situamo-nos aqui no oposto do espírito que se retractou nas latas de Piero Manzoni, com os dizeres: Merda de Artista.

Manzoni expôs esta sua “invenção” em 1961, um ano antes de Warhol nos propor as suas latas de sopa Campbell.

Nessa altura os laços sociais já não assentavam em “imperativos categóricos” mas antes em “imperativos atmosféricos”. As ideias andam no ar, não obstante é difícil não suspeitar que o americano, informadíssimo, não haja afinal reagido à provocação do italiano: para haver muita Merda de Artista haverá combustível melhor que o feijão?

Disto não nos falou Arthur Danto.

Posteriormente, muitas das 90 latas em que Manzoni defecou explodiram, resultado de corrosão e de gases em expansão. O que teve lugar uns anos antes da lataria que se tem feito rebentar nos céus e nas cidades da Síria reduzindo um país a uma mortalha – embora vivamos manifestamente sob influência.

Diverte-me imaginar que o Manzoni chega às fronteiras do Paraíso com as suas latas e tenta enrolar São Pedro, que controla as mercadorias:

São Pedro, posso entrar?

Que traz consigo?

Merda de artista.

A própria?

Precisamente.

Não creio que precisemos dessa merda…

Foi o que me deu fama e notoriedade!

Quantas latas são?

Noventa.

Cagou pouco.

Quantas teria de fazer?

Pelo menos o seu peso em biomassa, essa quantidade ao menos definia-o… Com tão baixa produção mostra-se um homem hesitante e sem capacidade de auto-crítica…

E o Manzoni voltava a nascer, afocinhado num curral de porcos.

Depois de Manzoni é fácil intuir que se hoje fizéssemos uma exposição de 90 latas com a efígie dos actuais líderes mundiais nos rótulos toda a gente adivinharia o que conteriam as latas.

O design das latas é que mudou entretanto: é fusiforme.

Porque é este o maior orgulhoso do homem, EU DEFECO, LOGO SOU!

 

16/04/18

Na longuíssima conversa entre Tobie Nathan e Catherine Clément que se fixa em Le Divan el le Grigi, livro que recomendo vivamente, refere-se esta ao enterro de um actor na Índia «especializado nos papéis de Deus».

Aí está um ofício que me convinha.

Enquanto tal sorte não me chega eis-me embaçado com as notícias do mundo, alheio e próximo, em estado de torresmo mental.

O ataque da Síria, houve. Dois presidentes da coligação precisavam absolutamente de reavivarem um inimigo externo que desvie a atenção das borradas internas, o terceiro, coitado, julga-se De Gaulle.

Nem se trata da legitimidade de defender as populações contra ataques de armas químicas, mas de tudo ser pretexto para brincar aos vídeo games. Como é fácil pôr a mão no gatilho quando conhecemos os mapas mas o nosso corpo desconhece o território.

Os pretextos da guerra são sempre hipócritas dado que denunciam o tanto que não se fez no devido tempo, são sempre respostas ao fundo da escada, passada já a ocasião. Um ditador é a víbora que não se matou no ovo.

O resultado é a inescapável hecatombe das cidades e a derrocada dos mitos. Que Deus sobreviverá às ruínas da Síria, que não se assemelhe a um caudaloso e freático rio de caca?

Seria para isso que servia a cultura: para nos alegrar com a criatividade dos vivos e fazer respeitar os mortos. Voltámos a um tempo sombrio em que queremos sepultar a própria memória, reduzi-la a pó. Cobrimos o respeito devido aos mortos com a infâmia.

Karen Blixen, num texto anómalo ao seu percurso de narradora, “A Verdade e a Política”, sustentava que uma das características da condição humana é a nossa capacidade para suportar praticamente tudo; podemos afocinhar nas abjecções mais tortuosas sem perder a alma, desde que tenhamos uma perspectiva de futuro e uma narrativa integradora do que está a acontecer. Agora o que não suportamos é o absurdo.

O absurdo instalou-se no mundo.

Vou-vos dar dois exemplos. Um universal, outro local.

Uma das coisas que o presidente Reagan fez, mal chegou à Casa Branca, foi mandar retirar os painéis solares que lá estavam pois considerava que a energia solar não traduzia “o espírito americano”, que o petróleo e o carvão representariam melhor.

Não impressiona que em 2018 o novo presidente americano considere igualmente o petróleo e o carvão moedas irrenunciáveis do “espírito americano”, sem atender às vitais necessidades de mudança para fontes de energia menos poluentes e sem demonstrar a menor capacidade de aprendizagem?

Eis um sinal de “identidade doentia” que chega a uma absurdez montanhosa e, para além de cretina, estúpida.

O outro mau exemplo foi-me contado hoje. Um médico do Hospital Central de Maputo evita estar fora nos fins-de-semana. Porque quando passa dois, três dias fora do serviço as enfermeiras, se as famílias dos doentes não lhes “pagam por fora” (o que é de regra por causa da pobreza), deixam imediatamente de substituir o soro do doente e de seguir as prescrições, farejando a comissão que as funerárias lhes pagarão.

As autoridades não desconhecem – os rumores sobre esta monstruosidade corriam na cidade mas só agora o vi confirmado por um clínico de dentro – mas mais um pobre morto é menos uma parcela na estatística da pobreza e além disso arredonda as contas de uma classe insatisfeita, sem haver necessidade de lhe aumentar os ordenados.

Se conhecerem algo mais cínico e perverso que isto, contem-me, um escritor encontra sempre um viés. Ou calem, porque a parte humana do escritor não quer ouvir.

 

19 Abr 2018

Pagar o galo

1/04/18

[dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]ar La Fontaine: um livro acondicionado ao mofo da gaveta. Recuperei o título para capítulo de outro que sairá em Maio. Mas fica um lote à deriva e desencaixadas algumas traduções de que gosto. Como a do indiano, Lokenath Bhattacharya, que o Henri Michaux admirava:

«DOS CEGOS MUITO DISTINTOS

Numa palavra, eis a proposta: deves subir lá acima, e fazer soar a trombeta. De imediato, alternância do visível no invisível, e mudança de estação na floresta. Este é o programa do dia. Mas eu não sou mais que um homem vulgar, que mantém a sua oração, as mãos em prece. Se os velhos temas são mencionados – e sê-lo-ão -, se ele se compraza em repetições – é inescapável -, que se lhe queira, por bem, perdoar as deficiências, naturais para um incapaz.

Nenhum obstáculo, o minarete ergue-se à tua frente. No caminho para o seu cume, resplandecem os degraus, um após outro, de mármore branco. Do exterior, o ar quente não penetra. Desde que puseste o pé sobre a pedra – Que frescura! Lembras-te de tocar o ribeiro? – começa o louvor da viagem.

A escadaria não oferece nada de verdadeiramente tortuoso, não é sinuosa. É mais como um bom rapaz, um coração ordeiro. Sob os teus passos, desdobram-se os degraus, generosos, companheiros de um caminho desimpedido, que o esplendor chama. Se não te resolveste a subir até ao cimo, a tua respiração será amena, quase igual do princípio ao fim: treparás em brandura, amigo!

É a escadaria de um minarete, assim não te cansarás de virar. A cada volta o teu olhar esmaltará novas paisagens azuis, os teus ouvidos serão sondados por murmúrios preciosos, sempre novos e doentes de amor por este mundo de poeira. Sobre os muros: cenas dispostas uma após outra, desde a primeira hora. A cada etapa da viagem: assistência completa com cantores, instrumentos, músicos.

Subirás ao cume e soarás a trombeta, a nova há-de espalhar-se por si.

Então o pôr-do-sol deixará de exalar, o pavão esquecido de tudo selará uma imagem; ambos – atrás da porta, à espera, longe dos olhares – a roçam. Às cores, não as vês ainda, não é? E como as verás? Deitar-te-ão o meio-dia ou a tarde? Que importa? Surgirão, ao primeiro som da trombeta, cintilantes.

Vês como flui tudo, a que ponto tudo é fácil, sem obstáculo, amigo!? Inútil até transportar o instrumento, degrau após degrau. Assim que chegares à pequena plataforma, lá em cima, tendo essa minúscula cúpula, como um guarda-sol, sobre a cabeça, tu verás, junto à balaustrada de pedra lavrada em flores, a trombeta deitada sobre o chão liso. Não te restará mais que tomá-la nas mãos; depois, de pé, bem direito, na posição requerida, a perna esquerda avançada, a cintura encolhida, levar os teus lábios à embocadura.

E não cai de imediato uma chuva de flores, como convém a uma obscuridade que já se palpa, dilacerando o torso negro do céu com um foguete imenso, deslumbrante?

Lá estamos, hoje, para assistir à festa, meu amigo! Todos os da nossa cidade, jovens e velhos. A nova voou da boca à orelha. De uma ruela para outra, a vida pulula. Que se vê agora, do alto do minarete?

Tão longe quanto alcança o olhar, todas as casas estão decoradas: grinaldas de empolas vermelhas e azuis, desenhos propícios sobre os jarros, diante das portas. Sobre os caminhos, a multidão aperta-se. Nenhuma agitação. População fervente alinhada sabiamente, trajada de branco, exibindo na testa o ponto de sândalo, maxilares e queixos recobertos por tatuagens de um desejo ardente.

Neste pátio, junto à porta que conduz à torre, eis a tua estreia – a sós, bem entendido. Atrás de ti, em semicírculo, a turba dos tocadores de búzios espera pronta. No seu séquito, chegados num passo firme e confiando honrar com a sua presença o lugar reservado aos convidados de marca, alguns cegos de grande distinção. Eles ouviram uma mensagem divina: hoje, recuperarão a vista.

Não há sinal de obstáculos, em parte alguma. Simplesmente, nesse momento silencioso, de espera, tu sobejas, escultura perfeita. As tuas pestanas não se mexem. Se o teu coração bate ou pelo contrário cala, não o deixas transparecer.

Subirás ou não – a escadaria? Não o queres dizer. Não a sobes.»

02/04/2018

Mais um jornalista moçambicano raptado, Ericino de Salema, e abandonado atrás dum silvado, depois de severamente agredido. Teve sorte, uns garotos iam aos pássaros e encontraram-no agonizante. O medo entulha a cidade.

Dizem-me que é um jogo de xadrez, que um antigo presidente mandou perpetrar o acto para inculpar o actual, posto o jornalista ter alfinetado na televisão o comportamento irresponsável do filho deste.

É um enredo que Shakespeare aproveitaria, como outros movimentos deste jogo de sombras. Pena os candidatos a dramaturgos moçambicanos andarem entretidos com o teatro dos espíritos e não captarem os sinais que se camuflam atrás das aparências do visível.

Milagres precisam-se, nesta “Chicago anos 20” en retard.

04/04/18

Milagre, o que aconteceu com Eva de Vitray-Meyerovitch, na França ocupada. Batem vigorosamente à porta. Eva abre e vê Frankenstein, de olhos vítreos e pronto para a degolar. Acompanha-o um oficial da Wehrmacht, que arvora um ar maçado. E perguntam-lhe pelo marido, como ela, um operacional da Resistência.

Em pânico, ignorando absolutamente a língua, Eva apanhou-se a proferir no mais castiço calão berlinense: «Esse, deu à sola com uma galdéria qualquer e, sabe que mais, estou-me nas tintas!», e continuou num arrazoado tão convincente que o oficial lhe deu os parabéns pelo alemão antes de despedir-se, resignado.

Não parou Eva de tremer, depois de saírem, e amassou numa bola o maço de tabaco que reservara para a troca de um pão.

Foi após este espantoso milagre que Eva se aproximou dos sufis e traduziu o Rumi e o Iqbal para francês e uma luz lhe embrenhou um astro nos olhos.

E pagou o galo a Asclépio.

12 Abr 2018

A dupla face do escritor

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que me liga à minha mulher, sem muito custo (embora isto não seja isento de pequenas tensões), para além do óbvio das filhas e das afinidades, foi ela ter aceitado implicitamente que vivemos em adultério e que a minha “legítima” é o isolamento que penhoro na escrita.

A escrita exige esta dimensão da exclusividade, nada saudável, e não admite rival, ou só a espaços quando, por cansaço, nos alheamos mutuamente. Melhor: em tempos normais, na escrita sou polígamo.

Entretanto, não tem nada de humano o desapego a que a escrita nos confina – é o contrário das tretas que ensino em Comunicação Interpessoal, ó meu querido George Bateson perdoa-me lá – e lamento reconhecer que troco um contacto humano de terceiro grau pela escrita de um conto que me satisfaça ( – embora se dissesse o contrário também seria verdadeiro).

Se a disciplina da escrita me trouxe um aparente apaziguamento dos instintos – sou fiel ao “amor único” – é porque na verdade apenas sublimo momentaneamente (e constato como o D.H. Lawrence que está por estudar a força da sublimação), não se espere de mim o menor acatamento dos meus “penchements” selváticos, aprendi apenas a dizer não e a regatear o tempo, sendo certo que se fosse católico estaria frito por pecados de pensamento e omissão.

Na verdade estou, pelo meu lado, absolutamente encurralado pelo egoísmo da escrita que me acua e trepana e devora a pouca inteligência às colheradas, como faz Hannibal aos seus incautos.
Se houver um escritor que diga que se quisesse dispensava esta crueldade é porque ainda não é um adicto, e vive em pura bazófia como um artesão de best-sellers que está carimbado da medula às sinapses pelas fórmulas.

Há, por outro lado, um bocadinho de balela romântica na afirmação de Aragon de que nunca terá escrito uma história de que não conhecesse previamente o desenvolvimento e que terá sido sempre, ao escrever, como acontece ao leitor, que ele contactou pela primeira vez com uma paisagem ou com as personagens de que vai descobrindo o carácter, a biografia e o destino. É uma espécie de heroísmo à rebours. A verdade fica-se pela metade, apesar do mais importante estar de facto no que desconhecíamos antes de ter acontecido a escrita.

Esta ignorância é como uma lapa que simbioticamente se confunde com a pele e nos faz desejar a insegurança de um pensamento em estado nascente, em látego.
Quem conviveu comigo nos jornais durante vinte anos sabe que eu nunca estive “integrado”, sempre um bocado à margem, o que me tornava suspeito, pois quem é que este gajo se julga, pensavam.

Nunca me julguei assado ou cozido, sentia-me apenas em liberdade condicional e um tipo entre comas porta-se de outra maneira e não dá excessiva importância ao que está a fazer. Por isso seria incapaz reunir os artiguelhos e as minhas suspicazes opiniões em livro. Alguns bons artigos hei-de ter escrito, mas irritam-me mais as opiniões que ao Valter Hugo Mãe o Herberto Helder ( – e já repararam como está parecido o escritor com o vate?).

Há antes algo de que padeço e está para além da minha inteligência ou do aparato, e o que faço agora é unicamente um meio, uma travessia.

O melhor só pode estar para vir, posto que nas costas fica o rasto dos meus fracassos. Todos os poemas que publiquei até hoje, todos as narrativas, carecem ainda do ímpeto do arpão do capitão Ahab. Só me resta não parar de lançar o arpão até que da sua ponta nasça a baleia.

Porque o escritor almeja, como lembrava o Proust, embora isso esteja esquecido, inventar dentro da língua uma língua nova, e para que tal enxurrada suceda não são permitidas folgas.
Enfim, mais ao menos. Na verdade, só se entra no “paraíso” pela porta dos fundos, tirem o cavalinho da chuva os que ambicionam lá penetrar pelo portão da frente – só a quem se distrai do seu propósito lhe acontece penetrar.
Permitir esta distracção é o que visam as correntes alternas da vigília. Afinal (como no amor) só lá penetra quem já é transparente.

A muitos títulos preferia viver em Paris do que em Maputo, mas a vantagem de estar em Maputo é que somos irrecuperavelmente o outro e ficamos extensivamente sujeitos à pressão do olhar “nativo” – como irredimíveis estrangeiros. Esta condição mantém no ponto uma tensão que nos situa e não autoriza que alguma vez sejam amorfos os lugares. Ficamos então adequadamente desconfortáveis, gerando-se um clima propício à criação.

É claríssimo que o meu isolamento em Maputo me fez crescer como escritor, que o meu anonimato me desencadeou uma energia nova, que a distância me recuperou o pleno sentido das proporções (ainda que a distância gere equívocos e provoque silêncios e mal-entendidos: quem não me conhece como pessoa e não vê os meus gestos, o meu riso, toma às vezes por literal o que é irónico, pura paródia, e confunde-me com meu personagem momentâneo) e que mesmo em termos humanos ganhei um lastro que não tinha. No fundo, saí da esfera da literatice para a do vivido.

O que visto de fora me parece acrescentar uma pele áspera e insensível, como a do Rinoceronte de Ionesco. Sócios iméritos da vida.

Bom, há duas horas que me mantenho na esplanada, garatujando e lendo, enquanto a Teresa se ocupa das crianças na piscina. Há que ir substitui-la durante um pedaço, dar umas braçadas com as miúdas, ver como a Jade simula o mecanismo das ondas com o chouriço ou sonhar que um dia ouvirei a Luna tocar violino debaixo de água; riremos com algumas partidas durante cinco minutos, até que o chapão de uma boer na água me lembre uma freira a mergulhar num charco de rãs e isso me arranque à piscina para vir anotar num caderno encardido e já de língua de fora mais um cabotino canteiro de flores.

29 Mar 2018

Sangrar a Oriente pelo lápis do poeta

«Melhor que conhecer uma coisa, amá-la!»
Confúcio
«Só o corpo obedece à fé porque nele se opera a
metamorfose involuntária»
Carlos Morais José, in Anastasis

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Visitações, pequeno livrinho lançado uns meses depois de Anastasis, ambos de 2013, reforça-se a suspeita de que em Carlos Morais José (1962) o exercício poético é uma gnose lapidada por um diálogo com uma tradição e não um mero jogo lúdico. Ao qual não pode deixar de convergir uma mão cheia de responsabilidade e outra tanta de atrevimento.

Lembremos a propósito que uma das “debácles” desconcertantes da poesia no século XX, correspondendo a um tiro no pé e mais absurdo ainda ao identificarmos quem empunhou o revólver, teve lugar quando T.S. Eliot escreveu que a poesia mais não era do que um divertimento superior — pronunciamento a que posteriormente procurará emendar a mão em Os Quatro Quartetos e que provavelmente enformará a excessiva solenidade deste livro.

Porque se a poesia não tem de ser solene encurralá-la como um mero acto de dimensão lúdica — de cujo wit não estará obviamente afastada — premedita uma amputação, a mesma que seria patente se interiorizássemos que o engolfamento da paródia só autoriza degradar as referências e nunca superar-se e magnificá-las.

Em Visitações, Carlos Morais José desenha um paideuma, no sentido poundiano, convocando uma constelação de autores (nem todos poetas, como Camus ou Kafka) que se inscrevem como sombras chinesas no biombo em que decorre o seu diálogo com o filamento poético dessas vozes, e o que talvez mais surpreenda, além da escolha heteróclita dos poetas — onde se “recupera”, por exemplo, Raul de Carvalho, um grande poeta esquecido -, é certificarmo-nos que Morais José não receia nem mimetizar procedimentos poéticos, nem servir-se de todos as modulações métricas ou inclusive cultivar a rima.

O que o leva a textos tão diversos, como o que lhe desancorou do cais de Camus:

ALBERT CAMUS, Circuito da Guia

Saímos do tufão para uma temperatura insuportável, mesmo para mim que sou uma espécie de magrebino acinzentado. Hoje palmilhei uma colina, por uma estrada alcatroada. Os carros silvavam rente mas isso era-me indiferente: só cascatas de suor me troavam nas têmporas. Dei por um rio a descer-me pelas costas e agradeci aos deuses por ter um corpo semelhante ao mundo.

Ou, por contraste, este, “sacado” a Garret:

Almeida Garret Mong Há
Como é triste ver a chuva,
Por detrás destas vidraças,
Afagar de manso a rua
Fazer de mim presa sua,
Quieto, pupilas baças,
Mãos trementes, visão turva.
(…)

Deste livrinho de homenagens, que roça o hábil e divertido pastiche mas adquire uma outra leitura e seriedade quando visto à luz de Anastasis, talvez realçasse as glosas feitas em torno de Ruy Cinnati, do urdu Hafez, de D. Dinis, de Almada Negreiro (de quem mima o espírito guerreiro e as imprecações), ou o de Ângelo de Lima, que aliás termina com uma nota em que imagino sustentar-se um dos pilares de uma poética cara a Carlos Morais José:

«Agrada-me a ideia de um pensamento inútil, que não vise um fim, que não se esgota em funções e genuflexões. Utilidade e pensamento criam monstros. Goyadixit e se não o dixit, desenhou-o.»

Anastasis, um livro a todos os títulos excelente, é um projecto de outra ambição, uma prova de fôlego de 220 páginas, mas sobre o qual não dei ainda conta de qualquer texto. Provavelmente por ter sido publicado em Macau, por o seu autor ser figura renitente à auto-promoção (pedi-lhe os livros três vezes, sem resultados, e tive de ir a Macau para ele se resolver a dar-mos) e por estar inculcado, por inércia ou sobranceria, uma ideia de menoridade quanto ao que chega da Diáspora e não é emanado pela capital do velho império.

Acresce que em folheando o livro se torna evidente que a linhagem em que pisa Carlos Morais José não é consentânea com os ditames da época, o que lhe dificultará a recepção: ele não cabe nas grelhas de leitura já estabelecidas. E que linhagem é a dele?

Talvez a dos poetas menos preocupados em cultivar um imediato reflexo epocal e afinidades temáticas e estilísticas com uma sua suposta geração do que em buscar uma conformidade do sujeito com o seu daimon e as suas chaves de sentido.

Anastasis (o termo grego para Ressurreição, e que no fundo corresponderá a um Segundo Nascimento, ideia muito cara no Oriente onde o poeta vive há quase trinta anos) reproduz na capa A Conversão de S. Mateus, de Caravaggio, o apóstolo que pregou pela Judeia, Etiópia e Pérsia e morreu na Etiópia, apedrejado, queimado e decapitado, e que podemos entrever como o símbolo de um andarilho.

O livro, coerentemente, deixa-se ler como um itinerário, compondo-se de dez capítulos que na generalidade se associam a um destino: Abertura, Patmos, Istambul, Syria, Pérsia, Índia, Sião, Terra Khmer, Mekong, e Final.

A este tour de force afluem textos de diversos modos e géneros — poemas, aforismos, anotações de viagens, tradução de poetas orientais ou transcriações em entretecido verso, versículo ou em prosa poética; meditações diarísticas ou trechos de recorte “jornalístico”, etc — mas releva que o feixe se caracteriza por uma comum escrita tensa, ritmada, polvilhada aqui e ali de aliterações (começa assim O Felino: Faz-me fera falta essa certeza) e de rimas internas à prosa (e, aliás, metade dos poemas rimam), num sulco transfronteiriço entre os géneros no qual a sombra poética sempre avulta.

O itinerário que aqui se evoca não é unicamente físico, material, mas nutre-se da espiritualidade dos lugares, assumindo o texto as personas, as máscaras poéticas que lhe sejam próprias, sendo embora de advertir que o respeito ao locus… não é contagiado pela reverência cega, pelo que no trânsito do livro abundam os “desvios”, as anfractuosidades, e as suas ambiências não desdenham o álcool e outros derivativos, aliás como o sexo e as dúvidas existenciais, ilustradas neste belo trecho, de Resafa — em Syria:

«No templo de Júpiter, os áugures explicaram-me a vida. Como sempre não percebi. Está tudo aqui nesta pedra de leite ofertada. Seguro-a. Ardente na mão. Mas nem o sol me faz entender a escrita persistente das areias, nem o vento me ensina a língua áspera dos imortais.», pág. 72;
registe-se contudo que em Anastasis não se leva a cabo uma “viagem encapsulada” à maneira de Raymond Roussel.
Anastasis traceja, antes, as diferentes tradições do território percorrido e — vê-se pela nomeação geográfica como o leque é extenso, dos poetas sufis aos urdus, dos gregos e hebraicos aos chineses e malaios, dos profetas hebraicos aos místicos –, escapando a identificação dessa linha às referências habituais para se encharcar nómada na experiência carismática duma topografia do espírito com assento a Oriente.

A haver uma tradição reconhecível para este livro encontro-a mais do lado de Claudel, um dos autores convocados em Visitações, ou das Estelas, de Victor Segalen, nos livros do Kenneth White, do que em qualquer outro exemplo do lastro português. Mesmo Ruy Cinnati é mais localizado e ateve-se a Timor.

Daí que Anastasis seja tão diferente do que se encontra no panorama da actual poesia portuguesa e merecesse uma atenção que lhe destrinçasse os fartos motivos de interesse; eu não tenho dúvidas em afirmar ser este um livro de referência, de sempre, no âmbito da Diáspora, e como a singularidade que introduz merecia outro eco.

Engana-se, entretanto, quem julgue encontrar na entoada desta escrita que em inúmeros passos se aproxima do versículo e, já vimos, não teme usar a rima nem estruturas frásicas tradicionais uma dicção “antiga”. Só uma leitura negligente e apressada produzirá este juízo. Antes acontece haver em Carlos Morais José um tão apurado domínio da língua que o poeta (e neste particular aproxima-se de Grabato Dias), prescindindo de exibir um estilo faz antes cabotagem, usando-se das máscaras, adaptando o de outros.

O que se atesta, por exemplo, nos inúmeros gazel que permeiam o capítulo Pérsia, onde o leitor é, por fim, restituído ao hedonismo “metafísico” de Kahayyam. Porém, avisa Morais José, e antevejo aqui outro preceito da poética que lhe imagino cara: «O nosso afã não é copiar, nem cumprir. O paraíso será sempre a reescrita» (pág. 138).

Depois, Anastasis, como se disse atrás, nas suas imprevistas meditações está repleto de curto-circuitos, de erupções dissonantes que rasgam os laivos neo-platónicos (presentes) para os “infectar” com a imanência das rudes intersecções do quotidiano e do real — isto é, há no texto o desejo da ideia mas não a sua primazia.

Neste aspecto, o livro é tremendamente pós-moderno e testemunha o itinerário de uma poesia que — se se infere como aventura espiritual, no sentido de uma evasão ao trivial e da consequente busca, mesmo que intermitente, desse Absoluto de que falava Paz (que está não aquém mas além das religiões) — já não pode abster-se do que foi desmistificado pelo século XX e cunhado pelo paródico; pelo que, arredada de qualquer dogma, a poesia há-de vasculhar no profano e no circunstancial rastos do sagrado e vice-versa, sabendo-se como as religiões calcificam enquanto a poesia re-humaniza os gestos do celebrante.

Demos alguns exemplos das dissonâncias, como estes colhidos em Sião:

Sukhumvit, Soi 1
«À hora sexta, é um alvorecer de pássaros
e não o grande motor que acorda a cidade.
São cantos, estribilhos: toda uma poesia de jardim
que se evola dos bairros.
A rapariga que risca a rua
como um estremecer de asa.
Da janela do automóvel,
o homem do táxi chama o colega
com um beijo repenicado.
Não são maricas,
sequer efeminados:
falam como os pássaros.» (161)
ou, Sukhmuvit, Soi 6:
«A mãe sentou-a no meu colo.
“tem 14 anos, mas já é experiente”, garantiu.
“Obrigado”, retorqui, “pode trazer mais um
uísque?»

Citemos o desconcertante fecho de Cisterna, em Istambul:

«Em parte discreta da velha cisterna bizantina, duas cabeças de medusas servem de base a medusas. Uma está invertida, a outra de lado, apoiada na face direita, Não se sabe porquê. Provavelmente porque assim dava mais jeito ao construtor. Mas o que fazem ali as duas górgonas?

Há uma terceira medusa, de que ninguém fala, muito parecida com as suas irmãs da cisterna. Está no Museu de Arqueologia, perto do pequeno quiosque onde, depois do café (“à turca, com o pó todo”), os teus cabelos se transformaram em serpentes.
Agora sou a estátua que aguarda a inscrição: um nome, uma sentença, um epitáfio:

TEVE PÍFIA VIDA
ALBERGOU NO SEU SEIO
UM MONSTRO
Alien (o filme) ou a iconografia do amor.»

Ou ainda o fecho de Café Roozegar, em Pérsia:

«Se a poesia desvenda, tal não surge como prenda no vinho ou nas mulheres. Há na rosa uma maldade que embeleza a cidade, mas que em mim só apoquenta como o cruzar da tormenta de velas bem levantadas. Vou lá fora… fumo um charro… é melhor de que um cigarro…
Impossível regressar.»

Cruzam-se para além disso neste livro, incessantemente, a memória poética e a memória etnográfica (Carlos Morais José é antropólogo de formação), entrançadas no tecido duma cartografia pessoal que de modo inescapável se condensa em pontos irradiantes duma certa herança cultural onde ainda se manifestam resíduos da sua origem (e mesmo geracional, como na evocação a Morrison), embora na sua generalidade já se apresente híbrida, desterritorializada e transgeracional:

ALLEPO/Hotel Baron

«Nesta varanda de pedra, bebi um uísque com soda, brindando a Lawrence que conheci da Arábia, mas que pertencia ao meu país. O barman, de calça clássica, colete de risca escura e irrepreensível laço, serve como um cavalheiro de outros tempos, fazendo corar o turista. Sorriu-me e percebeu: “Está ali naquela sala”: a conta assinada pelo punho do Inglês, o homem sem pai que conquistou para si mesmo uma Pátria.
Sorri-lhe, cúmplice, de uma traição que só grandes homems cometem. E, rapidamente, beberiquei o uísque, voltando à varanda donde, ontem, e hoje se vê passar a Syria.»

E como isto não pretende ser uma crítica mas apenas uma chamada de atenção para um percurso singular no panorama actual da escrita em língua portuguesa, fecho com um excerto de Allamut:

«Amo a visão destes montes descarnados, de puríssima geração, intocados de árvores ou vegetação rasteira, forma primeira do planeta do início. Hoje de humano sobra-me o vício.
E se assim embaciado permaneço, não é temor nem doença que padeço. Para tal bastam a beleza que invoca e a teimosa dor de não se dar a troca.
*
Dizem os historiadores que o paraíso dos haxixins nunca existiu. Provavelmente terão razão: percorridos os jardins, fumados os cachimbos e amadas as belas huris, ainda assim não me deu para matar.»

Com um excerto de O haxixe:
«(…)
Com Walter Benjamin no terraço, esgrimindo
frio no oiro do ar. Electricidade perpassa nessa
espessura loira e informe.
Como ele, esqueço-me de certa lotaria e esfrego
outra vez o joelho, sentado na anti-gravidade da
cadeira, no centro cósmico da cidade; um cego
inundar-me-á de música e isso bastará para me
erguer em radical felicidade.
Não serei milionário. Está, contudo,
ao meu alcance uma torre áurea,
edificada sobre as ruínas de um violino.
Walter significa: um automóvel nascente…
o túmulo vegetal… uma assunção do poente… a aura
caída das eternidades por haver. Um anjo para
entreter…»

Sigo para Patmos, II Skala:

Nos cafés do porto espera-se pelos navios, o desembarcar lento dos passageiros e a largada ufana dos grandes motores. Os turistas dão uma volta à ilha, visitam as principais atracções e raros são os que aqui pernoitam. Outras ilhas os esperam. É isso que as ilhas sabem fazer.

A importância do café

Depois da morte dos cafés, sobraram as ténues
esplanadas sem lua nem metafísica, na sombra
de navios de outros tempos. A tripulação fugira.
Gatos apardecem as vielas por detrás dos bares.
Onde talvez se beba qualquer coisa.
O café permanece belo como dantes.
A mesa é curta. A melopeia interrompida.
(…)
Onde estão os barcos? Por que demoram?
Quero partir agora, que se chega a minha hora.
No café estrela um relógio de navio? Por que me rio?
É igual navegar ou estar sentado.
Sonhar acordado como os meninos.
Das vésperas: sorver taninos, as nuvens de veludo,
o entrudo avermelhado, a parte do céu quebrada em
anis de desespero. Não choro.
Por que me rio? Vai já longe aquele navio…

E termino com o primeiro de Dois aforismos:
«A primeira palavra desfez o mundo. Ainda hoje nos entretemos, com as suas irmãs, no trabalho de o recriar.»

29 Mar 2018

“Complexo de Trump”: Primeiro Caso

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho uma rotina matinal, abro a net, vou ao Google e digito: Trump notícias. Nunca me desilude, é um verdadeiro circo. Nunca fica nenhuma mulher barbuda por revelar.

E como o Trump é um génio e pelo meu lado nunca ganhei nenhum jogo de xadrez na vida, estudo todos os casos de hirsutismo (a doença que lhes faz crescer os pêlos ao triplo da velocidade), a ver se topo como ele acerta à primeira.

A semana passada fui assombrado por dois sinais hirsutos no seu olho vivo.

O primeiro. Disse Trump aos fuzileiros navais em San Diego: “O espaço sideral é um domínio de guerra, bem como a terra, o ar e o mar.” E continuou, “talvez precisemos de uma nova força a que chamaremos “Força Espacial” – fez um silêncio, após o qual comentou o que acabara de dizer – “… bem, eu não estava a falar a sério, mas esta é uma ideia fantástica!”.

Fala alguma vez a sério, o Donald? E quais são as unidades de peso que usa para as suas palavras, ou brinca consoante o vento? O espaço sideral é um domínio de guerra? Donde lhe chegam aquelas ideias sempre em madrepérola? Com que clareza detecta os indícios de guerra entre Júpiter e Urano, por exemplo? Os Stephen Hawkings deste mundo procuram sinais de vida inteligente no espaço, Trump já divisa rasto de lança-chamas entre os meteoros, o rebentamento de mísseis no focinho dos selenitas e o sulco dos submarinos nos anéis de Saturno. Os antigos falavam da “música das esferas” (os planetas) para contrapor a harmonia do mundo à disparatada propensão para a discórdia entre os homens e Trump vê cowboys na ponta dos telescópios a laçarem os chineses e os russos de um planeta tão vermelho como Marte.

Só encontro uma explicação. Ele entrou uma vez numa sala de cinema, em Philadelphia, ainda no primeiro episódio da Guerra das Estrelas e o seu clone foi resgatado pelos bombeiros de Hong-Kong vinte anos depois, perdido entre a “Força” e o “Buraco Negro” (os “pequenos lábios” e os “grandes lábios!) de Annie Jones, a hirsuta galáctica (cf. foto) – daí o cabelo ionizado que ele carrega. Provação mais grave do que andar perdido nos sonhos de Darth Vader. E agora só vê camuflados nas poeiras galácticas.

De qualquer dos modos, a notícia ajudou-me a deslindar um enigma. Havia guardado esta notícia, do ano passado:

«Uma tragédia chocou os moradores de Rubiataba, interior do Goiás (Brasil). Um adolescente de 16 anos morreu após se masturbar 42 vezes.

Segundo relatos, ele teria começado por volta da meia-noite, e masturbou-se toda a noite sem intervalo. Terminava uma e começava outra. A mãe do menino já desconfiava de sua compulsividade por praticar o acto: “Era de hora em hora”, contou a mãe do jovem.

No computador do adolescente foram encontrados cerca de 17 milhões de vídeos eróticos e de 600 milhões de fotos.»

É chocante este jovem não ter chegado pelo menos às cinquenta. Há metas que não se devem falhar. Teria lido que o Hércules desvirginou as 50 filhas de Téspio numa noite? Era esta façanha que ele queria imitar? É improvável. Já ninguém lê as mitologias gregas.

A sermos rigorosos, o seu feito é irrelevante se comparado com a cópula do gafanhoto, que dura 16 horas… E se ao menos tivesse sido previamente treinado para a ejaculação prematura teria sido tudo mais leve e o coração ficaria menos exposto. Mas as mães hoje não educam os filhos.

Por outro lado 600 000 000 de fotos é o suficiente para atapetar um pequeno país como a Suazilândia. Este detalhe impressionou-me.

Contudo, et voilá!, num acervo de 16 milhões de vídeos é impossível que não estivessem lá todos os filmes com a actriz Stormy Daniels, a diva porno que o Trump quer silenciar. A causa da morte é-me evidente: o ingénuo quis imitar a potência do presidente americano e impressionar a actriz.

Foi abatido pelo «complexo de Trump». Os seus espermatozóides entraram em guerra uns contra os outros e ejectaram-lhe o coração para o espaço sideral.

Foi o primeiro a querer imitar a virilidade titânica de Donald e a ser emulado no teatro de guerra onde se representa o Poder da Imitação.

Eis agora o segundo momento hirsuto, que me deixou de cara à banda: o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, gabou-se de ter inventado dados estatísticos sobre comércio numa conversa com o primeiro-ministro do Canadá.

Para ilustrar a mentira de que havia um desequilíbrio na balança comercial entre os EUA e o Canadá, Trump inventou uns números e depois gabou-se disso, de ter sido um espertalhão.

Desde Maquiavel que este tipo de manobra não será incomum na retórica política, às vezes inventa-se no fito de baratinar o outro. A novidade é que o manhoso a seguir se gabe, publicamente, e sobretudo se é o presidente da maior potência do mundo, o qual devia parecer, aos olhos de todos, não impoluto mas confiável.

A minha alma está burra – dizia a minha avó.

Este jogo é mais perigoso que o de sugerir batalhas galácticas num espaço sideral que ele nunca terá o prazer de sulcar, porque deita às favas qualquer moral política e vai induzir mil oportunistas sem escrúpulos, por todo o mundo, a imitá-lo.

O René Girard há cinco décadas que adverte sobre a imitação como mecanismo (inconfessadamente) privilegiado na pauta de produção de valores. Foi sempre subestimado, embora demonstrasse as suas teses em várias áreas, da análise literária aos estudos societárias. Creio que começa a ser urgente ouvi-lo (agora em mesa pé-de-galo) mais que não seja porque, como o sabia Nietzsche, quando nos falta uma tradição respeitável é preciso inventá-la: “dar-se modelos para saber o que buscar” – e nos últimos tempos rodeiam-nos ferozes felinos disfarçados por orelhas de lebre.

22 Mar 2018

A Palavra e o Silêncio

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]urante a minha infância vivi com uma tia surda, que me levava à missa. O verdadeiro enigma, para mim, tornou-se o da distribuição da Palavra de Deus. Como é que o Sopro de Deus lhe chegava aos ouvidos? E, se ela lia nos lábios do padre, como mensurar o quilate da Palavra nessa comunicação semi-adivinhada?

A partir desta minha experiência deixei de considerar o silêncio como algo de mítico para o qual toda a palavra conflui, ou de reduzir a palavra a um trampolim deficitário para a expressão do inefável. Eu tive uma educação pelo silêncio, como uma experiência material, inapelável, concreta, que ainda por cima se mesclava com o afecto, e essa relação fez-me perceber que existem modos de comunicação que estão fora da consciência, no sentido de prescindirem de verbalização, intuindo aí o que dizia o Bateson sobre a impossibilidade de existir a não-comunicação.

O silêncio pode bem ser uma comunicação ainda sem mensagem, da mesma forma que há pensamentos que procuram os seus pensadores-veículos, e nele não se manifesta o oposto do som ou da palavra mas antes uma posição embrionária, que prepara e antecede a expressão.

Por outro lado, a circunstância de ter vivido com alguém que fazia as consoantes com o corpo e as vogais com os olhos mas a quem poucas palavras saíam claramente articuladas, ensinou-me que a palavra é um luxo que não se pode desperdiçar, nem pela mentira, nem pela frivolidade, e que nos cabe a responsabilidade ética de não deixar por formular uma única palavra que seja necessária.

A partir daí o que me interessa não é tanto o esforço de definir o silêncio, mas, de modo mais prático, como acomodar-lhe a cama, a transpiração e o trajecto que o silêncio faz em nós. O americano David Thoreau iluminou tudo o que eu desejaria dizer: «Não é a forma que o escultor dá à pedra que importa mas o que a escultura faz ao escultor».

Até porque só há inefáveis relativos e não absolutos e como acredito que começamos de uma maneira e acabamos de outra impõe-se uma nova dimensão anteriormente indiscernível em cada ciclo da nossa evolução ontológica. Passamos da madeira, ao ferro, para usar uma metáfora, e nesta passagem, ao mudarmos de configuração atómica isso ocasiona que não reconhecemos as constelações, pelo que precisarmos periodicamente de uma nova carta astral.

Falo metaforicamente, mas alvitro, como dizem alguns antigos, que o caos é quase sempre uma ordem por decifrar, a ventania que despenteia a estatística. E sublinho o «quase» porque, por uma questão de sanidade mental, devemos conservar uma margem de liberdade para o aleatório e para nunca nos esquecermos dos limites da racionalidade.

Do que advém, no meu caso, que o silêncio seja o outro nome com que se nomeia o acto mediante o qual a concentração nos esvazia. Do mesmo modo que a dança se intensifica quando se apodera do corpo, ou a sonata soa mais expressiva quando o seu intérprete se esquece de si mesmo no acto, o silêncio é o acto de esvaziar, e de nos pôr à escuta, e a partir daí a palavra e o silêncio retroalimentam-se e todo o real potencia-se no processo desse engendramento recíproco, diria até, desse entusiasmo recíproco.

Entusiasmo que gerou males-entendidos e que Platão escrevesse: «o poeta é uma coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão». Confesso que só lhe perdoo porque quando vou ao talho, aponto a máquina do fiambre, e digo sempre a mesma piada, “corte-me cem gramas de Platão mal passado, por favor!”.

Mas incompatibilidades com o Platão à parte, por muito que quisesse não posso escamotear que sou agido pelo silêncio de uma forma concreta, fertilizadora, sendo que nesse estado de fluidez só existe o perigo de o entravar, quando, estupidamente, desato a perguntar pelo sentido do que estou a escrever.

Para que nos continue a nutrir, o silêncio necessita de encontrar em nós um pouco de inocência e diria até de idiotia. Dado haver um kairos do silêncio, um sentido de oportunidade em relação ao momento de calarmos.

Talvez não seja o melhor modo de acabar, reconhecer que às vezes se desprende uma tal bazófia, uma tal solenidade no uso e na evocação do silêncio que me vem logo à cabeça, em contraponto, um verso de Haroldo de Campos: “O redondo oceano ressona taciturno”.

E por isso, para apalpar o território movediço do silêncio sem nos colocarmos em bicos de pés, lembremos que em todo o século XX houve uma valorização estética do silêncio, seja pelo lado da desconstrução como no movimento Dada, seja pelo inescapável fascínio que fazia da arte uma disciplina votada ao silêncio, condensando-se neste uma meta inatingível mas sempre almejada, como se fosse o silêncio o propulsor que nos ejecta na região inefável. Em ambos os casos o silêncio é uma ferida em aberto.

Talvez pelo facto de sermos portadores da palavra e de estarmos convencidos que o pensamento é linguagem, alheados de que não pensamos exclusivamente por palavras, embora pensemos às vezes em palavras, sendo estas arquipélagos flutuantes e esporádicos.

Vezes há em que me interrogo como nos expressaríamos se não houvesse uma palavra para designar o silêncio e fico receoso. Pode aí o desejo libertar-nos destes embargos, tal como se deduz neste poema de Brecht: REMO; DIÁLOGO: «Fim de tarde. Passam deslizando/duas canoas, dentro/ dois jovens nus. Lado a lado remando/ Conversam. Conversando/ Remam lado a lado.»

Nada foi dito, tudo permanece na sombra do sugerido, na ambiguidade que o silêncio também requer e, contudo, que a minha tia surda desvie os olhos neste momento grave, imaginem os meus amigos, como se pega nos remos, e na pesada analogia de tal gesto, embora o poema explicitamente silencie o que mete em presença.

E agora, se me permitem, vou andar à vela.

15 Mar 2018

Hemorróidas de Ouro

05/03/2018

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] convivência fraternal, eis um princípio que, como as bolotas, nenhum porco deixa incólume. Imagine-se o gáudio de Putin, ao anunciar que tem no seu arsenal a arma invencível. Deve ser um míssil que despoleta orgasmos à sua passagem (parece que a seis vezes a velocidade do som) e desperta na matéria inanimada as sensações de Zeus quando penetrava a alva novilha Io. E, em delíquio, os poderosos sistemas antimíssil americanos abstraem-se da sua missão. Eu também fiquei gago quando, no balcão de um café em Paris, o meu ombro se encostou à ombreira de Grace Jones, confesso.

Até compreendo a gabarolice de Putin (- Trump, nenhum twitter?). Coitado, calhou-lhe ser contemporâneo do americano intimorato e de Xi Jinping.

Trump já demonstrou que não consegue assimilar uma regra simples: às vezes para ganhar é preciso perder. (Eu vou mais longe, ainda que o jogo seja perigoso: só se ganha quando se perde. Um bom exemplo na História é a forma como os gregos perderam a sua soberania para os romanos em troca de colonizarem o espírito do império romano, até ao seu término; outro exemplo, o modo como o irrelevante Fernando se transformou na indústria Pessoa. E diga-se, ele sabia.) Este é um tipo de lucro inaceitável para Trump que só tem olho para as imediatas vantagens materiais, descura as reciprocidades, e sofre do Complexo de Midas.

Quanto ao novo imperador chinês, passou a aplicar-se-lhe tudo o que em 2011 escrevi no meu blogue sobre o anterior presidente norte-coreano:

«De acordo com a agência noticiosa da Coreia do Norte, a KNCA, novos estranhos fenómenos naturais têm sido testemunhados, agora um pouco por todo o mundo, desde a morte do Líder:

No México, um ácaro matrimoniou-se com uma lâmpada de 100 watts, resignado por, desde a morte de Kim Jong-II, ter deixado de fazer qualquer sentido a distinção entre matéria orgânica e inorgânica.

A camela (afinal era uma) que em Jerusalém atravessava há dois mil anos o buraco da agulha desatou a parir.

Um selo de dez ienes imolou-se em frente à sede da ONU, em Tóquio.

Um panda deu um concerto de bateria na messe dos soldados que guardam a fronteira com a Coreia do Sul mas estes, compungidos pela morte do Grande Líder, não arredaram o pé das guaritas.   

Na lua irromperam da terra as melancias e houve uma súbita chuva de ósculos.

Sacudido pelo luto, Deus, para afastar de si a funesta ideia do suicídio, começou finalmente a ler o Kapital do Karl Marx.

Em Lisboa, o arroz carolino mudou de sexo.

Na Califórnia, o miado dos gatos mudou para miu!

O cadáver do Michael Jackson teve uma polução nocturna.

Nevou pez no resto do mundo, só na Coreia a tempestade de neve manteve a sua alva pureza!

O fecho-éclair de Kim Jong-un quase soçobrou aos encantos da lascívia mas manteve-se firme.

Uma lágrima encetou a travessia do deserto do Saara.  

Na capital chinesa, as peças do Mahajong desataram a florir.»

O pragmático Putin, pode sentir-se seguro entre dois profetas de tal monta? Mais do que um gesto de bravata, o seu anúncio premedita a intenção de restaurar a confiança – a sua, de um volúvel homem entre imortais, embora também já se anuncie que os seus genes são de outro tipo de gema.

Por outro lado, se fosse aos russos não confiava num homem tão inseguro de si que em vez de usar o seu poder de influência para incitar os homens à fraternidade e ao diálogo insiste em querer provar-nos que Deus tem dentes cariados.

Que Este responda e na sua ira Se imole como mártir (para assinalar a loucura dos homens) frente à sede onde pontua o mano Guterres, ou, então, como no Primeiro Livro de Samuel, castigue a cupidez dos Grandes Líderes com Hemorróidas de Ouro.

06/02/2018

Entre tantas coisas que havia esquecido encontrei esta espantosa Carta de Lygia Clark para o seu filho – datada de 1970: «Meu filho,/ Você é um ser./ Existe na medida do mundo./ É pouco./ O mundo é a constatação da realidade exterior que te cerca./ É a tua medida inicial./ É o teu começo mas não o teu fim./ É o chão da tua expressividade pois você é um ser vertical./ Para cima do chão há o “invisível”./ Você pode olhar os seus pés mas não a sua própria imagem./ Esta você a percebe./ Na verticalidade está a medida da sua procura.»

No que sublinhei está para mim a chave da carta. O invisível associa-se ao que não se vê na aparência e só se capta parcialmente pela percepção que os outros adquiriram de nós e nos transmitem, porque o próprio não vê o que nele é uma propensão e não uma jactância. O homem bondoso age assim porque sim, idem para o generoso ou para o homem criativo. Porém eles não têm a certeza da sua medida. São assim porque não conseguem ser de outro modo e não por cálculo. E só este desinteresse faz a verticalidade do homem e exalta os valores e não as coisas. Só isso está “acima do chão” e molda uma dignidade sem freio.

07/03/2018

Um poema extraordinário do poeta sueco Tomas Tranströmer (a versão é minha): «Farto dos que chegam atulhados/ em palavras e nomes – uma algazarra,/ mas nada de linguagem – parto para a ilha coberta de neve.// O indomável não tem nomes. // Brancas, as suas páginas / encadeiam em todos os sentidos. /Dou de caras com as pegadas / de um cervo na neve: / nada de palavras mas uma linguagem.»

É um poema que me diz muito, neste momento.

A despropósito, esta quinta-feira 8, às 18h, lanço em Maputo um livro de poesia, que co-assino com o poeta moçambicano Mbate Pedro. Chama-se Os Crimes Montanhosos. E estão os meus amigos convidados.

8 Mar 2018