Desabafos do cantineiro

11/10/2021

 

Não é o melhor da Uma Thurman, os pés. Num deles ameaça o joanete e as unhas, “piquininas”, mate, velejam a custo num mar de carne, despontam ridículas como os narizes redondos dos anões da Branca de Neve recortados contra aqueles gorros inomináveis. A elegância do corpo, do rosto, daquele olhar malicioso como o gume de um sabre, tropeçam-lhe naqueles trambolhos – que custava ao Tarantino ter-lhe arranjado um duplo para aquele plano de “Kill Bill”, penso.

Contudo, aquilo que vejo na tela não é o Tarantino, mas “Nhanguitimo”, de Licínio de Azevedo, o último filme do cineasta moçambicano, onde ele adapta um conto de Luís Bernardo Howana e eu faço mais do que uma perninha, dado ser um dos dois protagonistas. É isso, faço de mau da fita.

É a vigésima vez que vejo o filme, nesta apresentação pública para algumas entidades oficiais (como a ministra da cultura e o presidente da república, os patrocinadores, e algumas figuras), em que em solidariedade com o realizador tive de cumprir agenda pública. Eu é que já não suporto ver-me e já só vejo os defeitos. E zás, introduz-se-me num insert, os joanetes de Uma Thurman, com que adormecera de véspera.

De qualquer maneira, os ecos do filme na imprensa moçambicana extirpam qualquer hipótese de cultivar um grama de narcisismo: procurando na net fotos do filme para ilustrar estar crónica, constato que os jornalistas só deram realce à presença do presidente Nyusi na sessão, nem uma só imagem do filme. Critérios.
E afinal como é a cereja?

É uma curta de vinte e cinco minutos destinada a fazer uma bela carreira nos festivais de cinema; um daqueles exemplos felizes de um magote de boa gente que se junta para remar tudo para o mesmo lado. Costumo dizer a brincar que só não ganho o Óscar de melhor actor porque o meu antagonista me papa as cenas todas, e é verdade, o Antonio Sitoe veste de uma forma superlativa a pele do “indígena” a quem o cantineiro Rodrigues (moi) tem de lixar (para lhe ficar com as terras de cultivo). No filme ganho eu mas na vida real faz-se justiça. Eu não vou mal como colonialista façanhudo (aliás, aproveitei as autoridades presentes na sessão para pedir uma “escolta vitalícia” assim que o filme passar nas televisões moçambicanas), e sou um convincente salazarista de uma ambição sem escrúpulos, mas o puto, que protagoniza já a revolta que incendiará a colónia poucos anos depois, come-me as papas na barriga.

E surpreenderá a câmara exímia (tanto nos enquadramentos como na luminotecnia, num preto e branco “agarrado”) do “Pipas” Forjaz e a música do João Carlos Schwalbach. Assim como o bom ritmo da edição. O resultado final é gratificante.

Aprendi bastante, sobretudo que o “overacting” só fica bem ao Gene Hackman.
Pessoalmente, acabrunha ver o cabelo que perdi com a covid (a rodagem do filme teve lugar duas semanas antes de ter sido contagiado). Face a isso até os joanetes da Uma Thurman são desculpáveis.

12/10/2021

Uma livraria perto de casa anda a fazer saldos com o que definitivamente não vendeu ao cabo de vinte anos e que já só atravancava o armazém. Numa semana comprei o volume onde se reuniu toda a obra édita do Raul de Carvalho por três euros, igual preço que paguei pela obra compilada do M.S. Lourenço, o livro do Viriato Teles sobre o José Afonso, por um euro e vinte, todas “As Tisanas”, da Ana Harteley, e o “Do Extermínio”, do Jaime Rocha, por idêntico dispêndio, o “Terra Nostra”, do João Miguel Fernandes Jorge, por oitenta centavos, dois volumes da Irene Lisboa por um euro e vinte, um volume de ensaios de homenagem ao Virgílio Ferreira, por dois euros… e continuarei atento às novidades que se forem depositando naquela mesa de refugo. Eis-me muito egoisticamente grato a que só eu saiba quem é aquela gente e a mais que sobre aquele tampo pingar.

Quarenta anos depois da independência a literatura portuguesa em Moçambique é um fantasma sem tripas nem leitores.

13/10/2021

Esperam que os clientes chamem. Mas vão afeiçoando o corpo, os quadris, os joelhos, o balanço dos pés, ao jeito da música. Não é ensaiado nem instruído, são apenas incapazes de não o fazerem. Os colegas homens, procuram ser mais sóbrios, mas o movimento do queixo sob a máscara denuncia-os: acompanham o ritmo da batida.

Vê-los em perspectiva, nesta ampla cervejaria de Maputo, é engraçado e contrasta com a pose hirta dos empregados de mesa das cervejarias da minha memória, a norte, que tinham a postura de pinguins petrificados e saudosos de que o frio os obrigasse a mexer.

Eu degusto lentamente a cerveja e folheio, pela décima vez na semana, um livro de João Pedro Grabato Dias; incubo para o prefácio da antologia dele que terei de escrever e que sairá em Lisboa até ao fim do ano, numa iniciativa do Pedro Mexia e da “Tinta da China”.

Um cheirinho: «Chegámos. / O meu morto é o primeiro do dia/ e é bonito isto de ser o primeiro em qualquer coisa/ algo que tanta gente pode verificar num balancear aprovador/ de perfis quási dignos, quási belos. / Passa mais fresca uma aragem de estádio/ um não sei quê de desportivo de goal de meta/ sem o cronómetro da metafísica, de pódio olímpico/ de alegres cem metros planos, de veloz velocipédico estrelato/ o da frente, o primeiro, o ás, o melhor o maior/ o maior morto do dia, o maior morto da semana/ o maior do mês, do ano, do biénio, do triénio/ do lustro, da década, da centúria/ do milénio, da era, da história, do universo…/ Em toda a simplicidade, o morto da minha vida/ o meu morto.» Excerto de “O Morto/ Ode Didáctica”, 1971

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Alvaro Carmo Vaz
Alvaro Carmo Vaz
15 Out 2021 18:42

Estou ansioso por ver essa curta-metragem do Licínio. Bela notícia, essa de que vai sair uma antologia do Grabato Dias, com prefácio seu, é da maneira que não fico limitado às Quibirycas e ao Eu, o Povo. Onde é que é essa livraria que está a saldar livros tão bons? Espero que ainda sobrem alguns quando estiver de volta a Maputo, daqui a duas semanas. Abraço, amigo António Cabrita.