Penélope: Crónica de um encontro

Creio que inventámos o amor para que Deus não se suicide. Não te importas que tudo isto seja ao contrário? Acredita, o que perdemos melhora-nos. Sim, é uma espécie de felicidade para náufragos. Hei-de ser capaz de explicar-te. Espera, tenho de me desconectar, preciso de ir à farmácia comprar um remédio para as miúdas, ligo-te mais logo.

Perguntavas, Como é que se agarra a primeira frase, numa narrativa? É ela quem nos bica duma vez só, como o pombo ao grão-de-bico, ou o gavião que faz um looping sobre a pequena lebre para a arrebatar num ápice, respondo-te, e olho-te as mãos.

Sondo nelas uma réstia de sombra, a mais miniatural, das minhas. Quantas vezes as tuas mãos seguraram as minhas no cinema?

Não se esquece o beijo que foi pasto de chamas na última fila da plateia do Incrível Almadense, um desses beijos que o Doisneau prontamente imitaria, numa urgência de fim-do-mundo. Porém, na verdade, nunca nos faltou lugar e ocasião para namorarmos e, por isso, era-nos mais comum, mais do que com os nossos amigos, seguir as fitas até ao fim e embrenharmo-nos nelas e no sentido que tivessem, num entreolhado cúmplice, sem que a cadela do desejo desencaminhasse da retina as bobinas.

Lembro-me, isso sim, em sendo a fita pavorosa, de te tocar, no escuro, a tua camisola de lã, larga e comprida escondendo a incursão no vértice desapertado das tuas calças; aí desencadeávamos uma nova montagem para o tempo. Tínhamos dezassete, dezoito anos, e lá fora o mundo mudava, tanto que eu queria ser escritor e tu psicóloga.
Decerto que milhentas vezes as tuas mãos desaprenderam as minhas, essas mãos com que tacteias agora no teu ventre a cicatriz da cesariana de um filho que não é meu.

Sobressalto – assalta-me aquele filho que nós não tivemos, desmanchado por enfermeira especializada. Está em que grampo, na tua cicatriz? Nunca lhe demos nome, mas, sei, chamar-se-ia David.

Como é que se agarra a primeira frase de uma narrativa, insistes. Digo, quando algo se põe em movimento a partir de um lugar que não é o do reconhecimento.

Interrompe-nos o velho Meireles, O meu amigo, vai desejar outro jarrinho? Anuo, De um quarto de litro… Observas, antes mesmo do jarro de vinho ter chegado, A Mena ia-me dando conta dos teus filhos, olha nasceu mais um… Cinco, sorris… Pressinto os comentários sobre a minha leviandade: Do que te livraste, ironizo.

Sirvo os copos. Seria o tempo para lastimar, Nós não chegámos ao primeiro, não tivemos a coragem e resolvemos o assunto, no mesmo despacho com que na época nos críamos imunes ao tempo, ao destrambelho da morte… Limito-me a declarar, Talvez não chegue, o jarrinho… Fixo-te, deve incomodar-te que o meu olhar te perfure, quero perguntar-te, Alguma vez pensaste naquele filho que não nasceu, mas calo. Ao fim de trinta anos, teremos de reconquistar a espontaneidade. O que teria mudado das nossas vidas se o tivéssemos deixado nascer? Seria eu escritor e tu uma pintora brutalista que derrama vida pelas telas?

E um quotidiano em comum, as rotinas que ensurdecem o mundo, compensaria este momento de nos reencontrarmos trinta anos depois, pudicamente, com a minha emoção fixa nos seus olhos, que se dão e fogem?

Compreendo, avalia ainda o que pode partilhar, quem serei, três décadas depois. E eu, sugado por uma aleatória esquina do tempo para um sentimento que julgava desalojado, quem te fui?

Disse-te, na rua Cândido dos Reis, se vieres comigo cinco minutos a minha casa dou-te o meu último romance. E tu aceitaste.

Tomámos chá, eu olhando as mãos dela pela primeira vez, desde há trinta anos. Não me ocorria mais nada senão aquele trecho de Cortázar: «Põe a mão em cima da mão de Michèle. Michèle põe a mão em cima da de Pierre. Pierre põe a outra mão em cima da de Michèle. Michèle tira a mão de baixo da dele e põe-na em cima. Pierre tira a mão debaixo da dela e põe-na em cima. Michèle tira a mão de baixo e apoia a palma contra o nariz de Pierre.»

Ou talvez fosse mais acertado dizer: face a mim estavam as mãos de Penélope, a que tece e desfaz as tapeçarias. Isto, se as mãos dela não enxotassem quaisquer insatisfatórias semelhanças.

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