António Cabrita Diários de Próspero VozesBeat: mais do que um dizer Há uma passagem em “Pela Estrada Fora”, do Kerouac, em que os dois compinchas que estão à boleia, O Dean e o Sal, decidem que a partir desse troço mudarão não só de tópico como de estilo de conversa de cada vez que cruzarem um candeeiro, deixando «a mente saltar ao acaso do galho ao pássaro» (Kerouac). Este método de exercitar a imaginação sempre me fascinou e vim reencontrá-lo aqui, nestes escritos poéticos cheios de surpresas e de curto-circuitos; este testemunho/testamento em forma de cântico devolve-nos essa “indeterminação quântica”, que julgávamos dissipada no horizonte da poesia. Aliás, espanta no livro a energia que sustenta um fôlego pouco habitual e se aguenta na maior parte destas trezentas e sessenta páginas. Entretanto, uma das razões porque sempre nos demos bem, às tantas o Luís Filipe Sarmento, motivado pela alegria que lhe é inerente, vaticina: «Deixo os Apocalipses para os apóstolos da Derrota», o que é corroborado na página 251, onde se grafa: «A alegria é um repelente contra as ditaduras». Para quem julgue que isto não passa de uma boutade, de um slogan poético, refira-se, está documentado pela neuro-ciência como o sentimento da alegria abre o espaço. Falamos de uma mutação da percepção, evidentemente. E quando se abre o espaço as coisas que nele estão contidas não se organizam de uma maneira diferente, REORGANIMAM-SE, para usar um dito do pintor Roberto Matta, significando que a alteração que se introduziu aí na relação entre o espaço e as figuras não é apenas de nível sintáctico e antes supõe uma translacção simbiótica ou uma plasticidade metamórfica: «E ao espelho vi Kafka no berço de Dante». Daí que poucas páginas depois de nos ter falado da alegria, defenda o Sarmento: «O caos é a fonte poética da sublevação». Sim, o caos REORGANIMADO pela alegria que lhe dá a chave, uma pauta. Este livro, escrito aos 64, 65 anos, na leitura mais linear que dele se tenha, tece uma homenagem aos ícones literários de uma geração – o Ginsberg, o Kerouac, o Ferlinghetti, a Diana de Prima, o Gregory Corso, o William Carlos Williams e o Jack Hirschman (com quem o Luís Filipe privou), sendo cada um deles o motor dos diferentes capítulos – , os quais, mais do que remeterem para as descobertas da sua juvenília aparecem como expoentes de uma linhagem que, muito para além do seu modismo epocal, imprimiram certas práticas de escrita e de vida que continuam a ser pregnantes para tantos. Contudo, a densidade de “Beat”, com os vários estratos discursivos que se alternam e dialogam, polifonicamente, permite dilucidar outra leitura que é a do livro ser igualmente, como quem não quer a coisa, um ensaio sobre o tempo e a tensão que nasce das suas polarizações: «Tudo o que nos separa do dia seguinte é composto de ilusão e de desconfiança, de crença e luta infinita. Recuso as leis do manicómio. E o dia seguinte chega com diferentes repetições de expectativa» (pág.151) Neste livro celebra-se a escrita, precisamente como um acto de luta contra a matéria temporal, colocando-a em contramão e obrigando o Tempo a situar-se fora de si, em novas transparências que originam poros no seu tecido; a pulsão poética instaura no Tempo esse gesto detonador que traz «a surpresa do minuto seguinte». Levar o Tempo a surpreender-se a si mesmo é, em LFS, a luta contra o destino, o que gera inclusive o fantástico paradoxo descrito na pág. 198: «Escrever é ter o instinto do infinito, do inacabável (…) é o que nunca acaba (…) Quando se acaba continua-se a escrever na imaginação dos outros». Bela vingança ontológica que subtrai ao Tempo os seus trunfos. Creio surpreender outro motivo para que este “Beat” nos gratifique: tudo o que a geração beat nos ensinou – a imaginação que se gemina com a responsabilidade (numa perspectiva salvífica), os valores da dignidade do inaparente; a consonância entre a vida e a arte, num acordo entre a ética e a estética – isso que hoje se ensombra, em risco de dissipar-se, realça-se neste “Beat” com um inescapável furor político, o que o torna, além de contingente, necessário. É um livro híbrido, como diz o autor, e de tal modo que a sua prefaciadora, Graça Capinha, o lê como “uma autobiografia-poema-ensaio-testemunho-panfleto” e contém, nos seus cerca de 500 fragmentos de prosa poética, o pulsar de uma geração; a que apanhou de chofre o 25 de Abril à saída da adolescência ou nas primícias de ser adulto, e que mergulhou nessa latejante simbiose (a que conjugava os surrealistas, os poetas beats, a pop arte e o pensamento libertário). Uma geração de excessos, embora, uma das coisas que me agrada no livro, Sarmento não faça disso heroicidade, navegando pelo contrário numa margem ambivalente, que tanto sagra as euforias conquistadas (ao amorfo país que saía do fascismo) como critica algumas toxidades. Este livro alegra-nos, além disso, por motivos pessoais. Diz o Luís Filipe: «A chegar aos sessenta e cinco anos de idade e ainda estou convencido de que só agora percorri metade do meu caminho», o que é muito animador. Refira-se ainda um último aspecto do livro, as golfadas de humor que às vezes surpreendem o leitor e que o agarram. Demos dois exemplos: «Quando estou vestido questiono o espírito. Quando estou nu não há uma única oração que me eleve»; «O que resta é esse sentido abissal e cortante do humor, ferindo a paisagem repleta de homens de joelhos, em busca de uma eternidade ajardinada». O resto é o amor que também ganha cidadania no livro: «Ganhámos a pele e friccionámo-la até o labor do fogo».
António Cabrita Diários de Próspero VozesZELENSKY VS ZELENSKY 27/10/22 Um reformado ucraniano, com o mesmo nome do presidente, culpa Zelensky sobre o prolongamento do conflito que destruiu o seu vilarejo. Zelensky, o aldeão, que nunca saiu da sua terra, vive agora mortificado porque o seu coveiro preferido morreu no bombardeiro. Este Zelensky, aldeão, representa a metade do mundo que recrimina o outro Zelensky, o vilão, por não querer negociar com Putin. Negociar o quê? O invasor entra-nos pela casa, papa-nos a mulher e a filha (cf. recente relatório da ONU sobre as violações na Ucrânia, nesta “operação especial”), acto que nos obrigou a assistir, e depois dizemos-lhe: alto lá, somos pela paz, mas temos de negociar: ainda não disseste o nome que queres dar às crianças! Uma paz que não é digna não passa de uma cessação dos direitos. Tão grave como a russofobia que Putin inflige ao seu povo. 28/10/22 Num almoço com vários convivas ouço uma amiga, que se declara espírita, a explanar sobre as particularidades da sua crença, de uma forma serena e equilibrada, diria até, sem ponta de “irracionalismo”. Discorreu longa e serenamente, destituída de qualquer proselitismo fanático. “Aqui está alguém a quem a crença trouxe ponderação!”, pensei, uma aliança rara. Porém, a dado momento sai-lhe uma frase que me horroriza. Diz, “não existe acaso, nada acontece por acaso!”, e entrevejo ali as fauces vorazes do holismo. Porque o holismo tem uma vertente patológica como todas as coisas boas, um lado de sombra. Dois exemplos: no hinduísmo há uma menor sensibilidade aos dramas existenciais, se aquela criança sofre nesta vida isso é apenas expressão da rigorosa simetria kármica, um efeito dos actos que ela cometeu na sua vida anterior. Em África não se aceita que a morte possa ter sido acidental, e muitas mulheres são acusadas pela família do morto de terem causado a morte do marido, num acto de manifesta demência, e, na flagrante maioria dos casos, numa enorme injustiça para a esposa — loucura que se dissemina e infiltra no tecido social. O Budismo introduziu a Compaixão e o Cristianismo a Caritas, tentando romper com esta lógica, mas em muitas outras crenças e religiões a gaiola das causalidades prevalece sobre a sensibilidade à experiência, à necessidade de responder ao agora. É uma lógica tremenda que transforma o mundo num palco platónico, onde não passamos das sombras de algo — uma lei inextricável -, num determinismo que calcina todas as singularidades, mas que estranhamente fascina muitos. A conquista da modernidade ancorou na conquista do acaso e do aleatório, subtraindo as incidências de uma vida a esse determinismo feroz que encerrava o mundo numa teia. Quando a Renascença libertou o corpo da influência dos astros, nesse momento a sexualidade aliviou-se das culpas e o individualismo e a sua volição puderam emergir. Há uma inequívoca implicação moral na frase “não existe acaso, nada acontece por acaso!”, o que devia funcionar como chave para o auto-conhecimento e o auto-juízo, contudo, habitualmente, essa frase é manejada para se buscar uma razão para as coisas no exterior a nós, no outro. É um álibi. Corre hoje no mundo uma tentação holística, como na Idade Média houve uma tentação satânica, sem grande reflexão sobre as suas consequências. Porque não basta queremos ligar tudo numa ressoante cadeia de afecto. Até pelo mais inesperado: o próprio afecto pode matar. Dou conta, graças aquela mulher culta, equilibrada, inteligente, que “o combate” se deslocou no início deste século. Um dos grandes equívocos do século XX foi a falsa dicotomia entre «racionalismo e irracionalismo», debate que se estendeu a todos os campos, inclusive à arte. Primeiro, confundia-se racionalidade (o lado positivo da razão) com racionalismo (a feição patológica da razão), e articulada nesta falta de discernimento confundia-se irracionalismo com liberdade. Quase toda a arte do século XX, com o Surrealismo à cabeça, laborou neste erro. A falácia ainda existe apesar de se ter consolidado por toda a parte a emergência do «irracionalismo» e as consequentes correntes relativistas que se lhe seguiram. No essencial muito do que se passou no século XX girou em torno desse choque entre dois paradigmas: Racionalismo versus Irracionalismo. Agora, verifico, há que salvar a indeterminação, o acaso, o aleatório da terrível tentação da gaiola das causalidades. O holismo, na sua feição patológica, pode ser o reducionismo que se põe a jeito como uma nova «narrativa escatológica». Será «por acaso» que o holismo emerge no momento em que o neo-liberalismo e o seu cínico desprezo pela pessoa humana sitia tudo, todas as liberdades, todos os direitos adquiridos? A consciência holística trouxe de positivo uma maior consciência ecológica mas seguida com rigor escolástico abafa a realidade sob a manta de um determinismo que é muito mais do que incómodo: todas as grandes ideologias autoritárias são holísticas. A minha amiga saberá conjugar a sua crença holística e transpessoal com a liberdade e a responsabilidade que cada momento nos pede — mas quantos farão a destrinça, ao abrigo de uma Lei que tudo explica e abarca? Quantos não se abandonarão ao que é? A consciência do indeterminado traz a consciência trágica, como o sabiam os gregos, mas traz também o arbítrio e a coragem da decisão. E disto não poderemos abdicar. Para além disso, como mostra Drummond no poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade: «João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ que não amava ninguém./ João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,/ Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,/ Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes/ que não tinha entrado na história.» O Real corre sempre por fora da pista, na plena exterioridade aos nossos conceitos. É o que nos vale — desponta um J. Pinto Fernandes no exacto momento em que julgávamos ter tudo sob controle.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo Nobel e outros 9/10/22 Ao ler as reacções de muita gente quando se anunciou o Prémio Nobel da Literatura deste ano, não pude deixar de me lembrar deste reparo de Jean-Pierre Siméon, em relação a um outro Prémio Nobel: «Um editor de um grande jornal diário nacional escreveu cinco linhas de indignação por ter sido atribuído o Prémio Nobel de Literatura a Thomas Traströmer, um completo desconhecido. Mas desconhecido para quem? Como é que não ocorreu a este colunista literário, patenteado e pago para fazer o seu trabalho, que a sua aparente ignorância era uma questão de conduta profissional incorrecta? Tranströmer fora traduzido em muitas línguas, estava disponível em francês.» Há sempre o coro dos que esperam pelo anúncio do Prémio para reclamarem por não terem sido convidados para o júri do mesmo, há um subgrupo de irados que professa “nunca li e nem me vou dar ao trabalho de ler”; é uma fauna pouco humilde, a que habita as redes sociais. Eu nem sempre conheço todos os premiados – desconhecia a existência da Louise Glück, que acho uma grande poeta, ou da Olga Tokarczuk, por exemplo – mas isso só me traz o conforto de saber que o mundo não é uma telenovela onde toda a gente se conhece e a alegria de reconhecer que a bitola do mundo não se mede com a minha medida curta e que pelo contrário dá-me uma nova oportunidade para enfrentar o desconhecido e aprender com ele. E talvez a mais cretina das reacções tenha sido a daquele inteligente que escreveu, Mas ainda há quem leia francês?; confirmando apenas que hoje há um novo tipo de ignorância que se arvora com desplante: o daqueles que só lêem inglês. Também eu preferia que, em francês, fossem premiados o Pascal Quignard, a Linda Lê ou mesmo o Sollers, ou, de entre os novos, o Mathias Énard, mas isso não tira dignidade à obra de Annie Ernaux (e bastaria ter escrito o “Les Années”). Há livros dela de que gosto menos, como o vulgar “Uma Paixão Simples”, mas isso acontece com quase todos os autores, têm livros-charneira e outros que são como intervalos no seu itinerário. Aconselho a leitura de um belíssimo livro de entrevistas com ela, “L’écriture comme un couteau”. 11/10/22 Ontem saiu um artigo no matutino “Notícias”, de Maputo, a dar conta de que fora atribuído o Prémio Pen Club de Narrativa à minha mulher, a Teresa Noronha, pela sua novela “Tornado”, que já havia tido o Prémio Maria Velho da Costa. O resumo que fizeram do livro nem merece comentários, por patético, mas o que interessa realçar é a nota de desqualificação quanto à sua «moçambicanidade» ao chamarem-lhe luso-moçambicana. Não é que seja inexacto, mas, para quem conhece o contexto, é um toque sacana. Porque enfim, seguindo a mesma lógica, ao Adelino Timóteo devia chamar-se tsonga-moçambicano, ao Álvaro Taruma ronga-moçambicano, e macua-moçambicano aos escritores que forem do norte, etc., etc. O que não consta que aconteça. A dado momento, na novela, escreve ela: «A nossa cor nunca foi a dominante. No tempo colonial não éramos brancos, éramos arraçados de monhés, canecos de cú la¬vado, o termo pejorativo para falar de um filho de goês e portu¬guesa. No período pós-colonial, eu não era negra e se, em Lisboa, me tomavam por brasileira ou por cabo-verdiana, já em França perdiam-se em cogitações sobre de onde seria e espantavam-se quando descobriam que era africana. Lá tinha de explicar as deambulações do meu ADN antes de assentar arraiais em Mo¬çambique. Levei muito tempo a aceitar que era assim porque sim, e que não era nenhuma maldição que assim fosse; ao contrário, podia até descobrir padrões intensos de fantasia e liberdade neste manto de arlequim que é a nossa genealogia…» No Moçambique actual passa por ser branca… e isso sobrepõe-se logo ao que faz ou ao que é. É triste, mas como advertia o Naipaul, por estas paragens a raça é tudo e vive-se encharcado nela tão profundamente como, em outros lugares, na religião. 12/10/22 Morreu o Bruno Latour, um antropólogo que estudou as ciências e os seus procedimentos e legitimações, o direito, a técnica e as religiões e que se entreteve a virar as tripas aos dogmas dos “modernos”. Para ele o lugar, a função do especialista, definia-se mais pela perplexidade que encarnava do que pela suposta verdade que o sustentaria. Propunha, por alternativa às bondades do multiculturalismo e à sua equívoca senha chavão «todos diferentes todos iguais», o regresso à «diplomacia», dado esta, precisamente, não partir do pressuposto de que «somos unificados porque partícipes da mesma natureza» mas relevar simplesmente que nós «ainda não partilhamos um mundo comum»; sendo necessário lidarmos frontalmente com o «abismo de desacordo» que nos separa, em vez de querer iludi-lo. E sobre a política dizia, desassombradamente: «Se se exige transparência ao político, matamo-lo; se alguém exige fidelidade ao que o outro era ou ao que diz, mata-o; se se exige uma relação mimética entre o que a multidão quer e o que diz o seu representante, mata-se a representação. Estes devem, portanto, por definição, trair, enganar, modificar, distorcer a palavra. Sem essa capacidade de dobrar a palavra e de trair, a linguagem política não existiria. Ponho a hipótese perfeitamente plausível de que o vocabulário político se tornará tão inacessível quanto a linguagem religiosa dos últimos vinte, três ou cinquenta anos.» (em “Un Monde Pluriel mais Commun”). Creio que nos fará falta para decifrar este mundo freneticamente complexo que nos coube.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasClube dos procrastinadores Andando em releituras de Pascoaes, por causa de um artigo que preparo, dou com este excerto, extraído de “O Homem Universal”: «Cada homem, moralmente, é uno e absoluto; mas tem de conviver de atenuar a sua personalidade. (…) A convivência só é possível entre pessoas reduzidas a uma presença negativa ou oca, que ceda constantemente. Daí, o vazio da sociedade, imenso fantasma composto de inúmeros defuntos. Um homem superior é anti-social ou criminoso. O seu destino é o cárcere e o deserto». Hesito em pensar se Pascoaes reflecte aqui sobre a condicionante político-social que amordaça, e, pior, num país tristonho como era Portugal em pleno Estado Novo (e o livro é de 1931) onde se via coarctada quaisquer possibilidades de espontaneidade e franqueza nas relações humanas, ou se apenas empresta ao comportamento dos homens (oprimidos) uma moldura metafísica, uma “essência”, de logo declarada na presunção de cada um ser, isoladamente, “uno e absoluto”. Às vezes, a um excesso de Espiritualidade (ou de Saudade), soma-se em Pascoaes o faltar-lhe mundo. É um grande poeta, mas é um poeta que toma Ampolas-de-Grandes-Ideias e que por isso escreve amiúde acantonado por um furor programático, deixando de ter poros; não raro ergue-se um vidro entre ele e o real, o mesmo que o fez redigir em O Bailado, de 1921: «Tudo é fantasma. Há só nuvens, nuvens de vozes, nuvens de almas, de aflições e de tragédias! Nuvens e mais nuvens, aparências e mais aparências! E um relâmpago divino que as trespassa, a instantânea Aparição que surge e nos lança por terra, deslumbrados!» Às vezes apetecia lembrar-lhe, como o fez António Sérgio, no artigo “Regeneração e Tradição, Moral e Economia”, que dedicou a Pascoaes: «Pascoais, Pascoais meu querido amigo: você é um puro, excelso e nobilíssimo poeta, mas uma vítima também desse ambiente social, como nós todos: desse horrível isolamento que V. louva e eu maldigo». «Ainda criança, roubou dois melros», conta Jacinto do Prado Coelho, roubou-o de um ninho, e palpitou-lhe toda a vida o remorso por isso. A Pessoa, poucas mais travessuras se lhe conhece. Só em Álvaro de Campos lhe brota uma pontada de malvadez e obscenidade: «Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,/ Que emprega palavrões como palavras usuais,/ Cujos filhos roubam às portas das mercearias/ E cujas filhas aos oito anos – e eu acho isto belo e amo-o! –/ Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.» (Ode triunfal). Ambos os poetas assanhados por uma certa ideia de santidade, foi-lhes idêntica a inabilidade de romper o cerco da pele com o transbordo em dique alheio, a mesma maldição de sublimar a concreta ferocidade de eros com a mansuetude dos versos. Evidentemente que são os dois «bigger than life», mas às vezes enerva-me assistir, do meu posto de chapeleiro no Clube dos Procrastinadores, às birras entre ambos, só para ver quem ocupa, na organização interna, o lugar de Presidente e de Tesoureiro. Embora Pessoa tenha adivinhado mais coisas, por exemplo, isto que ele escreveu na menos conhecida Ode Marcial e que se decalca na situação que vivemos hoje, diferidamente, com o coração nas mãos: «ODE MARCIAL (…) Helahoho! helahoho! A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta… Ela cosia à tarde indeterminadamente… A mesa onde jogavam os velhos, Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues, Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror. Helahoho! helahoho! Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da [estrada, E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida. Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da [viúva que mataram à baioneta E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração. Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles Que matou, violou, queimou e quebrou, Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso como uma sombra [disforme Passeiam por todo o mundo como Ashavero, Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito E um pavor físico de prestar contas a Deus faz-me fechar os [olhos de repente. (…) Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos, Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores, Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou, E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que [tudo seja o mesmo. Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém! LÀ-BAS, JE NE SAIS OÙ…» O que é hoje claro, neste momento funesto em que Cristiano & Companhia falharam na sua missão em Braga, e em que a auto-sabotagem dos gasodutos da Rússia lembra que Putin estará mesmo disposto a tudo para manter o domínio sobre as zonas referendadas, é que, bomba por bomba, era preferível a “bomba” do Quinto Império. Porém, até nisto, meus caros, fomos irresolutos, um bocadinho mais para o pielas do que para o determinado, e procrastinámos.
António Cabrita Diários de Próspero VozesGodard e o deus preguiçoso 18/09/22 Chove copiosamente em Maputo, como se de um modo espasmódico mil florestas procurassem o seu unicórnio. Leio num café, espero que a coisa abrande. Um ardina entra em passo de corrida, refugia-se, metade dos jornais estão uma papa. E então impinge-me um, “para compensar o prejuízo…”: pede. Cedo, compro o “Savana”, o mais antigo semanário da terra. E logo na página dois, no artigo intitulado, “Nyusi acerta posições”, leio, sobre as eleições dos membros para o Comité Central, ao nível das províncias: «Em muitas províncias, os documentos de alguns candidatos desapareceram dos processos submetidos às comissões eleitorais e a maioria deles só foi notificada nas vésperas da votação, facto que não abriu espaço para a regularização da situação. Na província de Gaza, por exemplo, os candidatos que foram confrontados com a falta de documentos nos seus processos, apresentaram provas, através de duplicados, que não havia nenhuma irregularidade na documentação, mas a comissão eleitoral não aceitou receber as suas reclamações. Desesperados, estes levaram o caso para o chefe da brigada central destacada para Gaza, liderada por Tomás Salomão. Este, por sua vez, ordenou a reverificação dos processos e constatou-se que estava tudo legal e que os excluídos poderiam concorrer. No entanto, antes da votação, no intervalo, estes foram coagidos a desistir da corrida, facto que veio confirmar-se. Em algumas situações, as manipulações e manobras para o afastamento de candidatos incómodos e não alinhados foram lideradas pelos próprios secretários dos comités provinciais. A compra de votos foi a outra estratégia usada para a conquista do voto». O problema da liberdade é que são mil florestas a correr afogueadas na perseguição de um unicórnio. Pode parecer uma ilusão, mesmo antes de cansar. O problema da democracia é que são mil florestas desgrenhadas à procura de um pente, fora a dignidade dos carecas, que, em protesto contínuo, incessante, bufam. Chove lá fora. A rodos. A temperatura baixou uns oito graus, de ontem para hoje. Ao fim de dezoito anos em Moçambique já nem lamento que não se queira aprender com os erros, que se delapidem gerações com o embuste, que todos os filhos da burguesia que vão estudar para fora não queiram voltar. A acção dos “insurrectos”, ao norte, alastrou para Nampula ao norte, mas não se tiram ilações, a causa-efeito não existe para a mentalidade da política local. Desde que haja dinheiro para se comprar os votos tudo se adia, tudo se vai empurrando com a barriga, como aqui se diz! Não admira que a invasão da Ucrânia nunca tenha conhecido por estes lados qualquer nota de repúdio. Se eles lá também comprarão os votos dos referendos nas regiões “conquistadas”! 19/09/22 Revejo o “Week-End”, do Godard, de 1967, o último filme da primeira fase do cineasta. Em “Week-End” retratam-se os escroques, são personagens que claramente Godard detesta, a nata mais perversa e venal da burguesia, cujo consumismo antecipa um apocalipse sem remissão. Ao casal de protagonistas só move o instinto sórdido de apressarem a morte da mãe dela, para se apoderarem da herança. E cada um deles tem um amante, com quem combina ficar depois de se apoderarem do dinheiro. Filme inclemente, é como um libelo cruel (foi aqui que chegámos: agora aguentem!) que expõe o triunfo dos porcos; aliás, simultaneamente, assistimos ao massacre programado e dantesco dos porcos, em nome do progresso, ou com o apelo ao assassinato simbólico e o canibalismo, que no final do filme se torna literal. Só os dez minutos a retratar a insanidade do engarrafamento na estrada vale o filme, onde em cada esquina há mortos e feridos e carros virados ou incendiados sob o olhar indiferente dos que estão em trânsito. Está-se já para lá do trauma de uma guerra civil, na sobrevivência agónica de quem vive a distopia e acorda em si o predador. É uma parábola sobre o Inferno interiorizado e climatizado, «um filme encontrado num ferro-velho», diz uma legenda ao princípio», e onde o Mozart é agora música para pasto (ou seja, estrume), para vacas e galinhas. Do ponto de vista formal é uma “desgarrada” menos dominada do que “Pierrot le Fou”, de 1965, e repete-lhe muitos dos processos, mas politicamente “Week-End” é de uma ferocidade inigual. Todo o desnorte moral e ideológico dos movimentos radicais de guerrilha urbana que hoje conhecemos está escancarado nesta comédia negríssima, com uma presciência e truculência buñuelianas. O que é “divertido”, em revendo-se o filme, para além do seu carácter profético, é imaginar como hoje seria objecto de polémica e de censura: a insídia dos seus temas “politicamente incorrectos” é superada em muito pelo despudorado “abjeccionismo” dos comportamentos. Diz Corinne/Mireille Darc ao amante, sobre o marido: «Eu de vez em quando fodo com ele e então o coitado julga que o amo!», e a pedido daquele (que também se quer excitar) conta-lhe durante dez minutos uma cena de orgia em que participou (cena extraída a um romance de Bataille): «Paul ficou de joelhos para me lamber o cu, não foi desagradável, o sexo molhado de Monique palpitava contra a minha nuca, os seus pentelhos misturados ao meu cabelo. E tive que descrever-lhes o que que sentia, para excitá-los. Ela beijou-me o sexo. Depois masturbamo-nos os três e Paul começou a gritar: “Para a cozinha, bebês!”. Na cozinha pediu-me para subir para o lavatório, foi buscar um ovo ao frigorífico, partiu-o e escorreu-o sobre a minha vulva …». E Corinne descreve como se excita partindo os ovos que contrai entre as nádegas, para depois sentir a clara fria no seu sexo. E imaginamos nós as vozes puritanas que se levantariam contra o genocídio dos pintainhos! Imensamente divertido é também o Anjo Exterminador (assim é designado) que os sequestra para lhe darem uma boleia (forçada) e que, entre os tiros com que vai eliminando alguns “escolhos” na paisagem, se apresenta deste modo deliciosamente herético: “Eu sou Deus, porque sou preguiçoso!”.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO Gato de Schrodinger Seis e trinta da manhã. Acordo e testemunho pela nonagésima terceira vez a caricata celebração das nossas gatas à minha mulher, que dorme. São duas, absolutamente idênticas, distingue-as uma pequena mancha preta que a filha tem nas narinas. Felizmente, a minha mulher dorme quase sempre de barriga para baixo. Quando se apaga de barriga para cima uma delas vai anichar-se-lhe no peito e vela. E, se acordo, dou um pulo – é invariável. A minha mulher tem sinais no rosto (como a Bambu de Gainsbourg), vivêssemos na Idade Média e há muito que tinha ido para a fogueira: a absoluta comunhão com os gatos e os sinais, provas suficientes quanto ao seu comércio com o Diabo. Vale sermos de outro tempo. Ou ser eu o Diabo, num formato pachola. E as duas gatas, dada a dificuldade em distingui-las na maior parte dos ângulos, evocam-me o gato de Schrödinger e o poema com que o Dinis H. Machado fecha o seu Eliot, É assim que o mundo termina, um lance onde se medita sobre o tempo e a sua face ondulatória e que para mim fecha o livro esplendidamente. Dinis funde a caixa de Schrödinger no corpo do poema e faz dela dispositivo para sondar a ambivalência do tempo e a sua pulsação contra o senso comum, no intervalo das difrações e da ferida que as bordas de qualquer decisão impõe sempre ao rasto dos existentes. O gato (sugere-se) metamorfoseia-se num homem, numa mulher, em dois amantes na lâmina do instante que separa ou vincula, numa criança que ainda vacila no primeiro passo, a única constante que o gato ilumina é que o tempo é uma parede de ladrilhos a que a varredura ocasional de luzes oblíquas muda os padrões. É um belíssimo poema de quatro páginas, uma digressão em torno da nossa fatuidade e da impossibilidade de não nos evadirmos pelo desforço de sermos múltiplos, ainda que retardados pelo erro, mas sem nunca se colocar na ponta dos pés, sem nostalgia nem pathos, e que termina assim: «Aqui estamos, novamente, junto ao promontório./ Falamos com as ondas que se atiram contra o rochedo teimoso./ Não é a primeira vez e, decerto, não será a última e derradeira./ Nós estamos aqui porque somos incapazes de aprender./ Para nós, apenas existe o que podia ter acontecido,/ o que podíamos ser e nunca o que somos ou fazemos./ Nós estamos fora do tempo. A nossa presença é insignificante./ Nada do que fazemos altera o que o destino nos reserva./ Vemos o nosso rosto debaixo de uma luz defunta,/ extinta num momento em que ainda não éramos./ Tudo o que vemos está morto e deixou de existir./ Esta é a terra morta. A terra que aguarda o decair da estrela./ Nascemos com os mortos e vivemos sob o branco/ nevoeiro que nos cega e encanta com uma canção de embalar./ No final, iremos morrer com o morrer da luz,/ como um sonho que nos abraça e seduz./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Esta é a forma como o mundo acaba./ Não com um estrondo, mas com um gemido./ O resto é silêncio./ Um silêncio profundo que antecede um novo início.» Uma primeira nota sobre a inteligência com que o verso repetido três vezes dá ênfase ao fecho do poema, pois se este é percorrido por um sentimento do “fatum”, o seu desfecho, num felino golpe de rins, renova os votos, relembra-nos que a decisão de considerar se o gato na caixa está morto ou vivo só depende de nós; sendo que mesmo a morte que nos atinge no singular não é afinal universal, como anuncia a coda de um poema anterior, A era das máquinas: «Esta impressão (o que o tempo nos faz sentir) é como um fantasma/ que nos persegue e assume a nossa forma quando o sono nos distrai./ Não há uma só morte que nos acompanha no fim,/ mas uma que é só nossa e nos acompanha desde o início.» Pertinente ainda que o verso que instala o silêncio restante seja o mais curto, o que interrompe a métrica, mas o que importa realçar é que se em Dinis H. Machado desponta, unha com carne, o acidental e o trágico que atravessam as estações da vida, o poeta sobrevoa, insurrecto («com uma subtil teimosia»), quaisquer tentações de cair na litania desairosa que antecipa o cinismo e sacode os mantos duma cristalização que de desconforto em desconforto nos alastre a impotência. Lembremo-nos que, como é dito no prefácio, este livro foi escrito numa dupla injunção, para celebrar e esconjurar o poeta de A Terra Devastada. E lendo este Eliot, só me acode um verso espantoso que Nâzim Hikmet escreveu na prisão: «sou feliz, sou feliz a toda a brida». E diante desta força da afirmação só podemos agradecer. A bruxa acordou, ao meu lado. Embruxemo-nos, que bruxuleantes ficaram as gatas e a manhã.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEliot 3 Sucinta, mas lapidarmente, diz-nos Jorge de Sena sobre Eliot: «é um defensor dos valores clássicos num sentido amplo, isto é, dos valores resultantes de uma disciplina aceite, de uma “ordem” em que as “aventuras” do espírito encontram a estrutura que tudo lhes rouba». E realçamos aqui como ao advento da disciplina se acrescentou algo que Elias Canetti definiu como ninguém: «a arte é encontrar mais do que foi perdido». Eis-nos num itinerário semelhante aquele que põe em movimento o novo livro de Dinis H. Machado e que teve como pretexto a mais preclara homenagem, logo no título: “Eliot”. No prefácio ao livro, declaram-se duas coisas fulcrais para a sua leitura. A abrir: “A vida, acredito, mede-se em séculos”, e, depois, numa cronologia das suas leituras e admirações, Dinis relata o estupor de que foi tomado quando embateu de frente, ainda por cima num encontro fortuito, com “The Waste Land” (“conheci o meu primeiro Mestre”): “Fui confrontado com a perfeição e resignei-me à condição de mero leitor”. Até aí, na esteira dos «beat», ou acompanhado por Baudelaire e Rimbaud, lograra fundir o impulso e a imitação, mas a descoberta da arquitectura em T.S.Eliot e da sua tremenda capacidade para conciliar abstracção e coloquialismo paralisou-o. E durante anos pôs o projecto da escrita de lado. Felizmente que o tempo (diria até: a má raça do tempo) o obrigou a reagir. Este livro, o sétimo da bibliografia activa do seu autor é um longo poema autobiográfico dividido em duas metades, “Eliot” (em quatro movimentos) e “Terra Condenada” (onde se sucedem cinco partes), e se por um lado nos reporta à “angústia da influência”, por outro denota um labor de síntese que faz da intertextualidade chão mas acrescenta novos elementos calóricos ao húmus que o nutriu, fazendo o autor descolar da sombra majestática do Mestre. O Dinis H. Machado, como Grabato Dias antes dele, como o seu coevo Daniel Jonas, é um poeta que gosta de se ancorar em modelos e não se furta ao desafio da rima, fazendo uso, com eficácia, de toda a técnica da prosódia. Bastaria lembrar o seu livro anterior “Heathcliff”: sonetos de factura técnica irrepreensível, que tomam a personagem de “O Monte dos Ventos Uivantes” como máscara, um exercício mimético de inegáveis conseguimentos expressivos. Porque Dinis encara a linguagem como jogo da totalidade e não recua diante de opções lexicais que, a uma vista desatenta, parecerão resíduos formais de uma tentação arcaizante. É um engano, trata-se de, a) recuperar as possibilidades e o espectro da linguagem para além dos seus usos epocais (“A vida, acredito, mede-se em séculos”: lemos acima), e, b) um jogo de adequação dramatúrgica às vozes a quem lhe interessa emprestar uma dicção. E até ao Hamlet se atreveu, num livro que ainda não li. Quem por exemplo pegar neste “Eliot”, logo na primeira estrofe estranhará o tom à Guerra Junqueiro deste verso: «Lisboa, cidade agrilhoada em fervor ditada», mas depois rapidamente percebe um humor subterrâneo, um jogo de intercepção de várias camadas estilísticas e textuais, e um trabalho de verosimilhança das vozes que vão aparecendo nos poemas, que o justifica. São múltiplas as entradas para um comentário a este belo livro, burilado e exigente com o seu leitor, que se defrontará com nove poemas em setenta páginas. Como o nosso espaço é curto, mostremos o modo paródico e dominado como o Dinis trata um dos “tópoi” centrais em Eliot, a questão do tempo, e a inteligência com que usou o Gato de Schrödinger e os seus paradoxos, no último poema do livro, como base para meditar sobre as ambivalências que concernem à própria existência humana, aos seus valores, e até ao domínio da arte. No derradeiro da primeira parte, no poema “Stern”, lemos: «Eu, embora jovem, um velho de apenas 20 anos,/ tinha em mim o tempo passado e o tempo presente./ Ouvia os pássaros que me indicavam o caminho,/ a direcção que seguia a música e o toque do tempo ausente. (…) Aguardo a hora primeira, a que antecede a luz e as constelações,/ e se esconde nas pregas de uma mão aberta e ainda inocente./ Ouço o lento rufar dos meus passos, olho em frente,/ e reconheço os ecos do tempo passado e do tempo presente./ Terá valido a pena? Terá valido a pena ter conhecido a beleza,/ e tropeçar nos frutos caídos sem os saborear?/ Terá valido a pena ter conhecido a noite e o toque frio da tristeza?/ A resposta encontra-se na queda lenta do fruto,/ no esvoaçar das flores e folhas que o vento incita./ Pudesse a terra contar os seus segredos,/ partilhar um pouco dos ossos que ninguém visita,/ e talvez o tempo presente perdurasse um pouco mais./ Mas que posso eu fazer? Eu que vivo entre os mortais/ e envelheço com o cair da folha e a mudança da lua. (…) Haverá tempo para espreitar o tempo indeciso? (…) Corríamos pela pradaria, com a pele nua a roçagar as papoilas,/ até pararmos junto ao velho sabugueiro. Aí, fazíamos amor,/ o tempo passado e o tempo presente baixavam o olhar,/ como quem espera por um amigo com quem brincar./ E ali passávamos o tempo presente, fugindo ao tempo (…) Mas o tempo futuro aguardava pelo sinal junto ao portão,/ escrevendo na pedra fria e fustigada pela estação/ os ecos da memória que a manhã vindoura sepulta.» (págs. 42,43, 44, sublinhado meu) É uma belíssima sequência de versos, com um humor subtil a introduzir um curto-circuito na cadeia do Tempo imemorial – apesar de o tempo de medir em séculos, será imemorial mas não estático –, ao mesmo tempo que o desdobra em epifanias, vizinhanças e reversibilidades: a haver uma transcendência, a perenidade ganha consciência de si mesmo na simbiose com o efémero, com a matéria e a carne efémera que nos coube.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEliot 2 E a influência de Eliot foi tão grande e universal que não admira que tenha sido um filósofo italiano, cinquenta e três anos depois da sua morte, no prólogo à edição mexicana dos “Cantos” de Ezra Pound, de 2018, a recortar com meridiana clareza o que se estava em jogo nesse livro seminal que foi “A Terra Sem Vida”. Falamos de Giorgio Agamben, que escreveu o seguinte: «Existem três momentos decisivos na poesia em língua inglesa do século xx. O primeiro, “A Terra Sem Vida” (1931), nascido da estreita colaboração entre Eliot e Pound («il miglior fabbro», a quem o poema está dedicado), foi lido como um texto enigmático e profundo, cuja compreensão necessitava de um deciframento preliminar de suas densas estruturas ocultas. Trata-se, na realidade, de uma colagem de frases e figuras provenientes de toda a história da cultura ocidental (e a que se juntam referências orientais), em cujo tecido se sucedem a Sibila de Cumas e o Graal, Ludovico II da Baviera e o Rei Pescador, Tirésias e S. Agostinho, Filomela e o baralho do Tarot, os sermões de Buda e Gérard de Nerval, Dante e as Upanishad, Ovídio e Flebas o fenício… Estes fragmentos não compõem, como sugeria Curtius, metendo em paralelo Eliot com um poeta alexandrino, um mosaico inteligível: estão, em vez disso, dadaisticamente isolados e desprovidos de qualquer correspondência recíproca, porque o seu único sentido consiste na sua incompreensibilidade. As tentativas dos intérpretes de sacar à luz um significado oculto através do paciente, inesgotável, inventário das fontes, só podem fracassar. A “terra sem vida” é, de facto, a terra da cultura ocidental, cuja tradição se interrompeu, e ao poeta só lhe resta juntar, mais ou menos ao acaso, os restos: these fragments I shored against my ruins, conclui Eliot, actuando aqui certamente como um filólogo alexandrino que recolhe os fragmentos que escaparam ao incêndio da grande biblioteca.» Mero registo duma falência soteriológica de cujas promessas só restam os fragmentos que escaparam “ao incêndio”. O que instaura a poesia como derradeiro contacto com o númen perdido ou o último e fugaz flagrante do Belo. Entretanto, não esqueçamos que o que torna o Belo intemporal e não descartável é o que Schopenhauer nele descobriu, e Hegel e uma série de estetas ulteriores corroborariam, e que se prende ao seu modo de operar. Diz Schopenhauer: «O prazer estético que a beleza produz consiste em boa parte no facto de, ao entrarmos no estado de contemplação pura, ficarmos de momento desembaraçados de todo o querer, isto é, de todo o desejo e cuidado, como que, de certo modo, livres de nós próprios.» O Belo é o que nos coloca fora de nós. Onde estamos quando ouvimos uma peça musical que nos comove e transporta? Fluímos com a peça, algures, no sulco do imponderável. A ausência de querer e de interesse detém o tempo, aplaca-o. Esta detenção ou dilatação do tempo (refiro-me ao tempo psicológico) é o que sucede na presença do Belo, diluindo-se aí a separação entre sujeito e objecto. O sujeito mergulha contemplativamente na obra e unifica-se, reconcilia-se com ela e consigo. «A experiência do belo desnarcifica o sujeito e desinterioriza-o», anota Simone Weil em “A Graça e a Gravidade”, que definiu os efeitos disso com exactidão: «a beleza exige de nós que renunciemos à nossa posição figurada como centro». Eliot encena este descentramento, mesmo que compelido, mesmo que seja o Inferno a olhar-nos e a deslumbrar-nos com a beleza das ruínas. Eliot, ao contrário de tantos, não quis alhear-nos do mal do mundo, mas dignificar a memória das ruínas, o seu modo decaído de oráculo fragmentado. Uma das últimas e inesperadas influências de “A Terra Sem Vida” sobre um artista, e num campo inesperado, encontro-o no filme “Ao Correr do Tempo” (1976), de Wim Wenders, que leio como uma paráfrase cinematográfica do poema de Eliot. Um homem, Robert, num Volkswagen a alta velocidade atira-se com o carro para dentro do rio Elba e, salvando-se das águas, é “recolhido” por um outro homem que nas margens do rio, na cabina do seu camião, tentava barbear-se, Bruno, conhecido por King of the Road. Sem uma explicação, Robert, aceita boleia no camião que Bruno (uma espécie de Rei Pescador) conduz e assim se inicia uma viagem pela Alemanha, ao correr do tempo… Qualquer dos dois lacónico q.b.; Bruno percorre a Alemanha no exercício de uma profissão à beira da extinção, reparando projetores de cinema pelas pequenas terras de província e levando bobines. É, por outro lado um filme sobre a nostalgia do cinema, funcionando a viagem como símbolo do reiterado on the road das imagens, ao som dos Velvet Underground, que toca numa music-box que Bruno leva no camião. Ambos são personagens absolutamente exaustos de si. Ambos carregam consigo as ruínas de dois mundos que já viveram o seu esplendor, o do cinema com Bruno, e o do amor com Roberto, uma espécie de terapeuta da fala. No final da fita os personagens passam a noite numa casa semi-destruída e cheia de marcas de guerra, onde os soldados americanos, trinta anos trás, picharam as paredes com dizeres e nomes, testemunhando a sua passagem por ali. E às duas por três, destaca-se um nome na parede, Eliot. Não é exactamente T.S. Eliot, mas quem quer saber o que significam as vogais, estas ou as outras que lá se encontram. Está lá o apelido do poeta como uma evocação, uma referência oblíqua (sim, no cinema, tudo é signo), para não dar a chave por inteiro. Tão oblíqua como essas duas letras que na cena final se grafam como um néon na vidraça do camião e onde se lê WW (como se fossem as iniciais de Wim Wenders) e que afinal são o reflexo de Weisse Wand (Parede Branca), o nome de um cinema. Este e “As Asas do Desejo” serão as obras-primas de Wenders, e Eliot anda por ali.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEliot 1 A arte não começa senão no instante em que resulta e não pertence à esfera dos objectos mas dos acontecimentos. Atesta-o o sucesso de T.S. Eliot e a sua influência por décadas, apesar de A Terra Sem Vida (1922) ilustrar a ruína do espírito humano. Para se perceber o grau de sucesso de que Eliot gozou, lembremos que, em 1956, catorze mil pessoas se juntaram no estádio da Universidade de Minessota para escutar a sua conferência sobre “As fronteiras da crítica”, ou, como dezasseis anos depois de ter falecido, em 1981, se estreou “Cats”, o musical de Andrew Lloyd Weber baseado em “Old Possum’s Books of Pratical Cats”, com um tal êxito popular (desiderato que o poeta, com sete peças escritas, havia perseguido em vão) que, após a sua estreia em Londres, se manteve em cartaz na Broadway por dezoito anos. Eliot foi uma figura unânime e tão grande a sua irradiação que na Europa central, na Polónia, um poeta central, como Zbigniew Herbert, escreverá: «Não muito permanecerá de verdade não muito/ da poesia deste século enfermo/ certamente Rilke Eliot alguns outros grandes xamãs/ que resgataram o segredo de conjurar/ uma forma com palavras que resiste/ à acção do tempo/ porque sem essa forma não há frase/ digna de ser lembrada/ e a linguagem se esboroa como areia». Aliás, podemos medir a inusitada transversalidade da sua popularidade pela deliciosa correspondência trocada entre T.S. Eliot e Groucho Marx, nos anos 60, e traduzida por Helder Moura Pereira, para o nº2 da revista “Magma”, dirigida por Carlos Alberto Machado e que eu coordenei. Transcrevemos, desse corpo de missivas, um excerto da final, de Groucho Marx para Gummo Marx, referindo o jantar em casa de T. S. Eliot, jocosamente, assinada como Tom Marx: «Junho, 1964, Querido Gummo: A noite passada a Eden e eu fomos jantar a casa do meu famoso pen pal, T.S. Eliot. Foi uma noite memorável. O poeta recebeu-nos à porta na companhia de Mrs. Eliot, uma senhora de meia-idade, loira e com muito bom aspecto, cujos olhos se enchiam de adoração sempre que olhava para o marido. Ele, por sua vez, é alto, magro e encurvado; não sei se isso se deve à doença, à idade ou a ambas as coisas. Devo dizer-te que este que te escreve chegou à casa dos Eliot completamente preparado para o que desse e viesse, no caso da conversa se tornar mais literária. Durante a semana li duas vezes “Assassínio na Catedral”, três vezes “A Terra sem Vida” e, pelo sim pelo não, li também umas coisas do “Rei Lear”. Bom, passou-se então, meu caro, que, enquanto serviam os aperitivos e durante um daqueles silêncios sempre inevitáveis quando estranhos se encontram pela primeira vez, eu, a propósito de coisa nenhuma (e “não com o som de um estrondo, mas com o de um lamento”), lancei para o ar uma citação de “A Terra sem Vida”. Isso demonstraria, pensava eu, que costumava ler umas coisas para lá das notícias do mundo do espectáculo. Eliot sorriu vagamente – como a querer dizer que sabia os seus poemas de cor e salteado e não precisava que lhos recitasse. Posto isto, atrevi-me a uma incursão pelo “Rei Lear”. Disse que o rei era um velho incrivelmente tonto, Deus bem o sabia; e que, se fosse meu pai, eu teria fugido de casa aos oito anos – nem esperava até aos dez. Também não foi coisa que impressionasse o poeta. Parecia estar mais interessado em conversar sobre “Os Galhofeiros” ou “Uma Noite na Ópera”. E contou mesmo uma piada – uma das minhas – de que já nem eu me lembrava. Foi a minha vez de esboçar um sorriso vago. Eu não ia deixar ninguém – nem mesmo o poeta britânico de St. Louis – estragar o meu serão literário. Assinalei que o discurso de abertura do “Rei Lear” era o cúmulo da idiotia. Imaginem (disse eu) um pai a perguntar aos três filhos: Qual de vocês gosta mais de mim? E renegar depois a mais nova – a doce e amável Cordélia –, porque, ao contrário da irmã mais nova, uma perversa, era incapaz de se desfazer em falsas bajulações. Além do mais, Cordélia era, lembremo-nos, a favorita do pai! Os Eliot escutavam educadamente. Mrs. Eliot começou então a defender Shakespeare e também Eden, lamento dizê-lo, se pôs do lado do Rei Lear, apesar de eu ser a única pessoa em todo o mundo que a apoia. (Para ser justo para com a minha mulher, devo dizer que, tendo representado o papel de Princesa numa produção escolar de “O Cisne”, soube reter da peça o calor humano que advém da dignidade). Quanto a Eliot, perguntou-me se eu me lembrava da cena do tribunal em “Os Grandes Aldrabões”. Felizmente que eu nem de uma palavra me lembrava. E assim chegámos ao fim do Serão Literário, que foi, apesar de tudo, muito agradável. Descobri que Eliot e eu temos três coisas em comum: 1. uma verdadeira paixão por bons charutos e 2. por gatos; e 3. pelo vício de fazer trocadilhos – um vício que tento deixar há muitos anos. T.S., pelo contrário, faz gala disso – até sente um certo orgulho. Inventou o Gus, por exemplo, o Gato do Teatro, cujo “verdadeiro nome é Asparagus” (Espargos). (…) Quando lhe disse que a minha filha Melinda andava a estudar a sua poesia na Faculdade de Beverly, ele afirmou que o lamentava, pois não tinha o mais pequeno desejo de tornar-se leitura obrigatória. Não ficámos até muito tarde, dado que ambos sentimos que ele não aguentaria uma longa noite de conversa – sobretudo comigo. Já te disse que o tratámos por Tom? Se calhar por ser esse o nome dele. Eu, como é óbvio, pedi-lhe que me tratasse também por Tom, mas só porque detesto o nome Julius. Teu, Tom Marx!
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPerante o teu rosto 2 Desde o princípio, instala-se no filme uma impressão de latência: um sonho que é aludido mas não contado; um regresso cuja causa fica silenciada; o que se declara ter ficado por dizer, pela irmã da protagonista e em casa de quem esta se hospeda, nas suas visitas anteriores e cujo teor volta a não ser esmiuçado… como se a relação entre ambas não tivesse por esteio qualquer intencionalidade declarada e antes fosse feita de intervalos, do que, estando ainda invisível, engendra o movimento da vida. Aliás, o filme começa com o despertar da protagonista e acaba com ela a velar o sono da irmã. Terá tudo sido um sonho? Será a vida um sonho? A estrutura da trama conta-se numa linha – ao retorno da filha pródiga sucede-se o desfazer das ilusões – e resume-se a quatro movimentos: as irmãs tomam o pequeno-almoço, passeiam um pouco nas imediações (fazendo tempo), a visita solitária da protagonista à casa de infância, o seu encontro com o realizador. Como há um prelúdio e um epílogo, o filme poderia chamar-se Entre Sonhos. Nada do que habitualmente denominamos acção, intriga, permeia este filme, pura música de câmara, ensaiada à medida que se apresenta à nossa frente, ao jeito de uma conversa em surdina entre “ressonâncias”. E, no entanto, não despegamos do filme e comove-nos. Primeiro, um espantoso “efeito de presença” compensa-nos da escassez das incidências: de hábito, nos filmes, seguimos uma história que as personagens ilustram, melhor ou pior. Aqui prendem-nos as microtonalidades da expressão que desponta do jogo das personagens, como se em vez de um propósito, de um engatar da acção no mecanismo do seu “plot”, nada mais houvesse para além daquele presente nascido à nossa frente. Há tensão, mas fomos dispensados de um suspense expectável. O que é comum aos filmes é colocarem-nos num estado de ansiedade. Hong Sang-Soo subtrai-nos isso; no seu lugar impõe-nos um estado de imanência, sendo esse, de antemão, um conseguimento. Chega então o encontro com o realizador. Aí ficamos a saber algo mais da protagonista: que foi uma actriz de relevo e a sua aura marcou a memória desse espectador que é agora um realizador experimentado. E o espantoso é que quando emerge o nó que constituirá o verdadeiro “atractor” da fita, já aceitáramos à narrativa o seu fluir-“desinteressado” (onde aquilo que emerge “espontâneo” nos dispensa de ansiar por um fio causal para o ethos das motivações); o assombroso, nesta narrativa, é que, no momento em que a revelação que muda tudo é feita, esta é mais um bónus que o factor determinante para iluminar a motivação das personagens; já nos acomodáramos a que criaturas simples mas soberbas transpirassem à nossa frente, sem mais. Portanto, esse “segredo” de repente exposto consegue ser, à vez, ou uma “certa” verdade sobre a personagem ou uma segunda história que surge sob a primeira: ela não pode participar no filme para que ele a convida, diz-lhe, porque vai morrer. Está condenada, diz. Regressou dos EUA (a “terra dos sonhos”) à Coreia para morrer. É uma regra: em grande parte das melhores narrativas acabará por emergir uma segunda história, até aí invisível, do subsolo da primeira. Mas, neste caso, outras ambivalências se desatam, de imediato. Será verdade o que ela conta, ou provoca o realizador, mede-lhe o pulso e à sua declarada máxima ambição em fazer um filme com ela. Afinal, não há prova quanto ao que ela diz, não sabemos se é uma rábula para, pelo extremo da razão emocional que a sua revelação coloca em cena, mais facilmente arrancar ao realizador a confissão da secreta intenção em dormir com ela. Ademais, num contraste vivo, ela conta-lhe uma história espantosa: a de como a proximidade da morte carrega de brilho e intensidade os rostos que a rodeiam e como isso a deixa grata; por uma vez como “espectadora”, sente-se, face à realidade, num estado de unicidade. Repare-se: ela conta-lhe que “está a morrer e como se sente mais viva”. Nunca saberemos se não estará a ser irónica em relação às cenas de filme que ele citara como os momentos dela que o haviam marcado – evocando na relação com tais rostos iluminados o transe de identidade que caracteriza o espectador no escuro da sala de cinema -, posto que as cenas do filme que ele referia eram afinal planos mais icónicos e atmosféricos do que propriamente exemplos do seu particular talento para a representação. Esta ambivalência nunca nos abandona, subjaz à tensão do filme. Ela diz-se em ars moriendi mas há uma grandeza no comportamento dela que simetricamente só pode ter uma resposta deceptiva, o realizador não tem, como ela, a vida para apostar; ele recua, desejava apenas a fugaz vantagem do sexo e não o compromisso com a efervescência do espírito que se apazigua com a beleza. Será então a matéria do conflito do filme o rosto verdadeiro da actriz perante o da mentira do realizador? É verdade o que ela conta, o que vimos, ou tudo não passou de um sonho, visto que no princípio e no fim ela está com a mesma roupa de dormir? Uma das qualidades do filme é que podemos lê-lo das duas maneiras. Outra razão porque “Perante o Teu Rosto” é, para mim, uma obra-prima está em que, como detectou Marc-Mathieu Münch em estudos comparados sobre obras de arte de todo o mundo, se encontra nele uma das invariantes que atestam uma qualidade superlativa nas obras artísticas: o “efeito de vida”. O que este seja (a começar pela “poética” que funda) explicá-lo-ei noutra crónica, mas talvez se comece a elucidar neste pronunciamento do Livro do Desassossego: «A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade.”
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPerante o teu rosto 1 De Hong Sang-Soo e da sua trintena de filmes só me calhou ver cinco filmes e felizmente que um deles é o Perante o Teu Rosto, a muitas milhas dos outros, e definitivamente uma obra-prima, no seio do “sistema” Hong Sang-Soo, e fora dele. Podia o cineasta não fazer mais nada, mereceria sempre a nossa gratidão. Para explicar porquê, vou começar por falar de um conto breve de Dalton Trevisan, A Sopa, e lembrar uma verdade de La Palice: o crédito dado a uma narrativa não falece enquanto se mantiver um clima no qual os personagens estão predispostos a aguentar um máximo de tensão. O que falta a demasiadas fitas que vemos e esquecemos no dia seguinte. Porque a tensão não nasce de uma montagem rápida ou de um suspense tecnicamente logrado, mas de um fluxo onde colidam expectativas emocionais e valores morais traduzíveis em atritos ou nas expectativas reflectidas numa conduta. O brevíssimo conto de Dalton Trevisan –do livro Histórias Nada Exemplares –, onde, à roda de uma mesa de cozinha, se mostra a fugaz discussão entre pai, mãe e filho, oferece mais conflito, intensidade e aceleração emocionais que muitas perseguições de carro em filmes medíocres. É assim que começa: «Subiu lentamente a escada, arrastando os pés. Estacou para respirar apenas uma vez, no meio dos trinta degraus: ainda era um homem. Entrou na cozinha e, sem olhar para a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa. Ela encheu o prato de sopa, colocou-o diante do marido. Olho vermelho de dorminhoco, o filho saiu do quarto e atravessou a cozinha. O homem batia as pálpebras, embevecido com os vapores capitosos. — Aonde é que vai? O filho abriu a torneira do banheiro: — Fazer a barba. — Hora da janta. Vem comer. Demorava-se o rapaz, torneira fechada. Com a toalha no pescoço, não olhou o pai. — Não quero jantar. Sem fome. O homem suspendeu a colher: — Não quer jantar, mas vem para a mesa. Todas as noites, esfomeado. Enchia a colher, aspirava o caldo de feijão e, fazendo bico nos lábios; grossos, tragava-o com delícia. O filho desenhava com o garfo na toalha de flores estampadas. A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo. — Dar uma volta. O homem sugava ruidosamente e, a cada chupão, o filho revolvia a ponta do garfo no coração das margaridas.» A concisão desta escrita é como uma pirâmide que esconde em sombra outra invertida; a sua rede de imagens subsume um feixe de interacções emocionais que, de um modo posicional, motiva cada palavra e contribui para esticar a tensão entre as personagens. Em dezanove linhas apresentam-se quatro conflitos: a do pai com a sua condição física e com a sua imagem de poderoso pater familias (“ainda era um homem”; “sem olhar para a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa”), conflito com o filho, condensado em acções mudas (“Demorava-se o rapaz, torneira fechada”; “a cada chupão, o filho revolvia a ponta do garfo no coração das margaridas”), conflito não declarado da mulher com ele (“A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo”), enquanto ela mira a chama que, inconsumível, crepita no seu íntimo, até à explosão final. Cada palavra em Dalton Trevisan leva o sangue à guelra do peixe. Veja-se o oposto disso. Se alguém escreve: “Adalberto viu Rita pela primeira vez na esplanada” e assim continua, sei-me diante de um burocrata do aparo com hábitos de voyeurismo. Nada se implica na frase, nem o narrador, nem as personagens entre si; nada se desencadeia: a descrição é um arabesco na congelada pista dum mundo reificado. Se, ao invés, o relato se iniciasse assim:”Os seios dela olharam argutamente para mim”, o escritor situava-nos face a uma relação, algo se pôs em movimento e envolve ambas as personagens, sem a intermediação distanciada do narrador. E a frase imprimiria uma aceleração narrativa: a primeira hipótese exige mais dez linhas antes de se chegar ao ponto (o telos), nesta hipótese parte-se do ponto. A primeira frase nada comunica e a sua famigerada mensagem é tão vaga como a abstenção do narrador, que aí não mete prego ou estopa. Encontraram-se na esplanada e so what? Que se passa em seguida, quais as motivações das personagens, que as vai unir ou separar, etc? Foi tudo adiado, a mensagem patina no vazio, ou antes, processa uma procrastinação. Já na segunda hipótese presenciamos um acto de economia narrativa: as motivações das personagens imbricam-se na forma da frase, tornam essa expressão a única possível e, inclusive, de forma implícita, a frase comunica-nos a temporalidade da acção: se fosse inverno os escultóricos peitos da rapariga estariam tapados por sobretudos e cachecóis e não teriam o efeito devastador que aí se adivinham, provocando mudanças na vida das personagens. Adoptando a sinédoque, tomando a parte (os seios) pelo todo (a Gisela, para lhe dar um nome), numa frase menos vulgar, comunicamos afinal muitíssimo mais, em intensidade e de chofre. Afinal, não estávamos a falar de seios – ainda que seja exaltante a sugestão de Alexandre O´Neil de que pela manhã nos deveriam servir seios em vez de pãezinhos quentes – mas de procedimentos narrativos. E se a narrativa de Trevisan parece jogar-se num tabuleiro realista, num registo refém da objectividade, é apenas um engano: não há uma única frase no conto que não esteja prenhe da emocionalidade referente a cada personagem – é esse o génio do narrador. Como na fita de Moebius, o que é dado a ver como morfologia das acções objectivas, exteriores, só incarna afinal o não-dito das interacções humana, o seu subtexto, uma inconfessada intencionalidade vertida num “estilo indirecto livre”. Este mecanismo engendra uma tensão interna à narrativa e imprime-lhe um ritmo. O mesmo se passa num filme e este pode até passar-se à mesa que o seu ritmo interno funciona como um acelerador na percepção do espectador.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPaula Rego 07/06/22 Raramente se encontra um melhor argumento para a necessidade da arte do que este, avançado pelo humanista e cientista Jorge Wagensberg: «Olhar para trás é uma tarefa complacente, mas certas paisagens debotaram e, enquanto não se melhorar muito as técnicas de leitura, já não é possível saber quantos coices deu o cavalo de Napoleão; outros lampejos, em troca, como a Sinfonia Concertante de Mozart, permanecem claros e nítidos». Em tempos de guerra como este, este argumento vê reforçada a sua pertinência, porque à guerra – como nesta disputa se tornou claro – motiva-a o passado e a vã ilusão de fixar o número de coices que deu o cavalo do Napoleão. É a obsessão que orientou Putin, como, antes dele, inspirou outros corifeus da guerra: ressuscitar o império, reencontrar a pureza da alma eslava ou concretizar o velho sonho da Euroásia, não passam de facetas duma mesma crença, a saber, a solução para o mundo expressa-se no número cabalístico incarnado pelos coices que deu o cavalo de Napoleão. Compromete-se a dignidade do presente e a do futuro quando insistimos em querer esvaziar o mar com uma forquilha. O passado não volta. A oportunidade que se gorou no passado não volta. O instante que acabou no momento em que digito esta frase não me tornará mais novo. Suponhamos que a guerra se alastra e os beligerantes tiram das gavetas as bombas de neutrões. Daqui a cinquenta anos aterram os extraterrestres e encontram Paris, Moscovo, Joanesburgo ou Nova Iorque semi-devastadas e habitadas pelos ratos e o vento, sem sombra de humanos. Saberão ler nos vestígios a insanidade da guerra, que o homem não assimilou que se na natureza tudo é possível nem todos os acontecimentos virtuais são desejáveis ou plausíveis; que existem leis para restringir o caos e que devem ser seguidas. Mas encontram estátuas, um ou outro lance arquitectónico, arquivos, livros, imagens, e, num velho aparelho que activam, ouvem Bach, o Love Supreme de Coltrane, a nona Sinfonia do Mahler; são atraídos pela Notre Dame, de Paris, que, face à vacuidade de tudo, se ergue então como um alento misterioso. E percebem pelo contraste entre a dor que o homem infligiu a si mesmo, extinguindo-se, e aqueles exemplos de uma exuberante fluidez harmónica, ou mesmo dissonante, que realçavam momentos de algum ajuste, de algum sentido para figurar uma busca de infinito, que se a insanidade havia vencido no planeta isso não representava em exclusivo o homem. O que nos degradou não havia eliminado a energia que nos arrancava do chão em busca de um equilíbrio, talvez cósmico. Entram num museu de arte e vagueiam por entre as imagens, atentos ao halo que as obras humanas resgatam, aqui e ali, como testemunho de um certo viés para a beleza ou de um sentimento de exílio, mas ao arrepio da destruição. Não era muito, mas esse testemunho repunha alguma dignidade. E resolvem levar algumas obras, uma pintura da Paula Rego, outra com uma estranha arquitectura de Robert Matta, onde curiosamente se sentem retratados, a dança dos estilhaços em Cold Dark Matter de Cornelia Parker (- antes, noutra sala, os extraterrestres haviam aproveitado a Fonte, de Duchamp, para urinar, e num relance às Sopas Campbell, de Warhol, não lhe descortinaram a validade, o que me faz desconfiar que estes extraterrestres se alimentam por fotossíntese). Daqui a cinco séculos, a treze, ou naquilo que nos recordar e for levado pelos visitantes da Constelação de Orion, o que será digno de memória são as pinturas de Paula Rego e não os mísseis de Putin e Biden, por muito que isso custe a quem nos agride só perdura o que dá a vida. O mais são os coices e os flatos do cavalo do Napoleão – pó, sem terra onde poisar. 08/06/22 À procura de outra coisa, encontro esta afirmação de Simone Weil: «No mal, como no sonho, não existem leituras múltiplas. Daí a simplicidade dos criminosos. Crimes lisos como os sonhos dos dois lados: lado do carrasco e lado da vítima. Haverá algo mais aterrador do que morrer num pesadelo?». Eis o portador do mal refém do seu olhar unilateral, dogmático, da sua impossibilidade em reverter os efeitos da sua própria crença. De cada vez que perpetra o mal, só se rebaixa, esgarçando ainda mais a possibilidade de conseguir ler o fio da relação entre as coisas. Paranóico, devido à suspeita de poder haver algo que possa não controlar, apega-se à inteligência. Só que esta, noutro dizer luminoso de Simone Weil, «não tem nada para descobrir, tem sim para terraplanar». Como não pensar nos Senhores da Guerra. Entretanto, volto a Jorge Wagensberg, que me ensina outras coisas surpreendentes. Por exemplo, que as crenças não são o produto de conclusões, mas, em qualquer caso, de estímulos. Mas igualmente que, se já sabíamos que as crueldades mais absurdas aparecem justificadas por uma concepção determinista do mundo, não demos conta que também muitos artistas e escritores ilustram os seus actos com as leis do determinismo: «O meu romance escreve-se sozinho, tal pintura, tal escultura têm a sua própria dinâmica, obedecem às suas próprias leis, algo guia a minha mão… ou o “Eu não procuro, eu encontro”, de Picasso.» – surpreendente, não é, como nunca tínhamos associado uma coisa à outra? Leituras múltiplas, e responsabilização nos actos criativos: procuram-se, mortas ou vivas, 10 000 euros de recompensa.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasOferenda de massacres 23/05/22 «O quadro Mona Lisa de Leonardo da Vinci foi alvo, no domingo, de um ataque de vandalismo no Museu do Louvre, em Paris. Revela o El País, um visitante do museu atirou um bolo à famosa pintura a óleo, que estava protegida por um vidro de segurança. O autor do ataque estava disfarçado com uma cadeira de rodas e uma peruca. Antes de ser expulso do local, gritou: “Há pessoas a tentar destruir o planeta. Pensem na Terra, pensem sobre isso”.» Um pastel de nata, um queque, quiçá, um russo? E qual é a verdadeira pegada ecológica da Mona Lisa para ser objecto de um atentado? Está por aferir. Com tanta moldurinha, acho que um saquinho com térmitas abandonadas num canto absconso do museu causava um efeito mais duradouro. Ainda por cima se a ideia era chamar a atenção sobre si, o disfarce deixa-o anónimo. E imagino do que este acto será precedente: de um novo atentado, que baldeie com cinco quilos de magnum de chocolate algum encardido torso de Victor Hugo, em nome da reparação devida ao Egipto por ter sido um francês a decifrar a escrita egípcia, ou o roubo de todos os cartazes que ainda existam do filme Táxi Driver para serem queimados em praça pública em nome da má influência que o Travis terá tido sobre a educação de Putin. Já nem Deus nos dá guarida contra esta loucura humana. Bom, há século e meio que foi demitido por Nietzsche, mas ainda confiávamos no discernimento e na equidade que podem emergir com o exílio. 25/05/22 Os americanos foram alimentando em Zelensky a ilusão de que havia entre ele e Putin uma paridade, i.é, a hipótese da dança que pode ocorrer entre um elefante arrogante e um roedor teso quando se encontram numa loja de loiças. Só que aquele elefante foi educado para fazer a autópsia a roedores e não se assusta. Agora o combativo roedor tenta tudo e até vai a Cannes pedir emprego, já investido numa certa aura de predestinado que aqui e ali lhe diminui a lucidez. Estou a ser um pouco injusto mas há um nítido registo de overacting na condução de Zelensky e às vezes parece que entre Biden, Putin e Zelensky se combina uma oferenda de massacres. Eu, se fosse a Zelensky, dizia a Putin: queres a região de Donbass, toma-a, queres Mariupol, toma-a. Entregava-as, de mão-beijada. Está já tudo tão destruído que os russos ficavam diante do vazio do que haviam conquistado. Daqui a dez anos, face ao desenvolvimento da outra parte da Ucrânia, em contraste com a zona conquistada, os de Donbass e de Mariupol ficariam tão revoltados contra os russos que a estes só lhes restaria devolver o que haviam tomado. Eu jogaria mais com o tempo e uma boa gestão dos recursos que choverão sobre a Ucrânia e que lhe favorecerão o desenvolvimento acelerado do que com os mísseis, em nome de um nacionalismo que é a obstinação dos tolos. Nada como um bom e um paradoxal exemplo para virar o jogo. 29/05/22 Uma nota para a aula: Quando era miúdo o meu pai começou a pintar. O meu pai, que era tipógrafo, foi a casa de um doutor e viu lá um quadro dum boi pintado à maneira dos impressionistas e ficou banzado. E pensou: mas isto também eu faço. Chegou a casa e foi comprar tintas e telas. E a primeira coisa que pintou foi um palácio. O que é isso pai, perguntei eu que nunca tinha visto um palácio na vida. E ele responde-me, é um boi. Quando eu fui a casa do dr., senti-me um boi a olhar para o palácio… Mas a casa do dr. era num palácio, perguntava eu sem perceber nada. Não, tinha lá um boi. Um boi dentro de casa, pai? Um quadro com um boi, e eu é que me senti um boi a olhar para o palácio porque nunca me tinha passado pela cabeça que fosse tão fácil. Por isso cheguei a casa e pus-me a pintar. E queria reproduzir aquele boi, mas só me sai o palácio. Sem saber o meu pai tinha-me esclarecido sobre a deslocação que se produz na arte, fazendo-me «descobrir aquilo sobre o qual se pode, no poema, dizer que isto é como isso» (Badiou), ou seja que uma palavra significa noutra, respira melhor em trânsito. É o que faço neste poema de um só verso: “Um vidro: enche de cerejas a mão!” Falo do quê? De uma ferida na mão e do sangue que escorre. Embora o raccord mental que me autoriza aqui a elipse, aparentemente tão simples, teria sido absolutamente incompreensível há século e meio, antes da invenção do cinema ter fragmentado o espaço e nos ter habituado às imagens descontínuas no tempo e no espaço – a elipses e raccords. Foi preciso um século para que esta imagem deixe se ser hieroglífica. Ou no começo de um poema feito na Macaneta, olhando as ondas a rebentar na praia: «É nítido, antes de rebentar, espreguiçam / as suas malhas de leopardo.» Basta olhar para reparar as malhas de leopardo nas ondas, mas só a poesia nos dá a lente para «ver», o que é diferente de olhar. Outra nuance. A poesia ajuda-nos a duas coisas: – a voltar a ver, isto é a detectar as intensidades no horizonte amorfo, – e ajuda-nos a re-ligar num padrão inesperado o que parecia separado, a pele do leopardo na onda do mar. (Admirava Mallarmé em Gautier “o dom misterioso de ver com os olhos”.) Deus, a existir, seria o arquitecto desse padrão que re-liga tudo, dar-lhe um nome é que equivale a dar um passo de recuo para aquilo que separa. Já a poesia é uma lente que, no dizer do brasileiro Mário Quintana, nos ajuda a fugir para a realidade, isto é, a unir.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasLeituras 18/05/22 A necessidade de reler a Odisseia faz-me vasculhar na net. Fico deliciado com a capa que reproduzo na imagem. É a mais bela capa de todas as edições que conheço da Odisseia. Por dentro, como era comum na Cosac Naify, a paginação corresponde. Só tenho a elogiar, do ponto de vista gráfico. O longo prefácio também me parece bastamente informado. Mas passo para o texto do Homero e sai isto: «Do varão me narra, Musa, do muitas-vias, que muito vagou após devastar a sacra cidade de Troia. De muitos homens viu urbes e a mente conheceu, e muitas aflições sofreu ele no mar, em seu ânimo, tentando garantir sua vida e o retorno dos companheiros. Nem assim os companheiros socorreu, embora ansiasse: por iniquidade própria, a deles, pereceram, tolos, que as vacas de Sol Hipérion devoraram. Esse, porém, tirou-lhes o dia do retorno. De um ponto daí, deusa, filha de Zeus, fala também a nós.» Compare-se com o mesmo trecho, na tradução de Frederico Lourenço: «Fala-me, Musa, do homem versátil que tanto vagueou, depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada. De muitos homens viu as cidades e a mente conheceu; e foram muitas no mar as dores que sofreu em seu coração para salvar a vida e o regresso dos companheiros. Mas nem os companheiros salvou, embora o quisesse. Pereceram devido às suas próprias loucuras, tolos, que o gado de Hiperíon, o Sol, comeram; e este lhes negou o dia do regresso. Destas coisas, a partir de um ponto qualquer, ó deusa, filha de Zeus, fala-nos também a nós.» Nem sequer comento qual a que vou ler. 20/05/22 Incrédulo, volto atrás, gaguejo, releio: «Juan Carlos, monarca del Estado español, impuesto como gobernante aunque hoy sea más bien una figura decorativa, nos ha salido con que “nunca fue la nuestra lengua de imposición, sino de encuentro; a nadie se obligó nunca a hablar en castellano: fueron los pueblos más diversos quienes hicieron suyo, por voluntad libérrima, el idioma de Cervantes”. Uff. El dislate es, literalmente, regio.». De facto. Há sempre um pequeno colonialista que nos habita a sombra e que mete a cabeça de fora e os seus irreais à primeira oportunidade. 21/05/22 Sergei Loznitsa, o realizador ucraniano que se demitiu da Academia Europeia de Cinema (a 28 de Fevereiro) pela posição tímida à invasão da Ucrânia pela Rússia, foi agora expulso da Academia de Cinema da Ucrânia por ter manifestado o seu apoio aos cineastas russos e ser insuficientemente leal ao seu país de origem. Loznitsa fez os filmes mais esclarecedores quanto à farsa dos argumentos russos sobre Donbasse e Maidan, mas a sua utilidade não foi reconhecida por simplesmente lembrar, justamente, que a cultura russa não é o Putin. Foi então acusado de ser um “cosmopolita”. É vergonhoso e absurdo – a prova evidente de que a guerra nivela tudo e que a sua duração só promove uma irracionalidade que passa a operar em 360º. Talvez um excerto de um poema de Tomas Transtömer seja o melhor comentário: «Os portões altos fecham-se novamente/ Eis-nos dentro do pátio da prisão/ Numa nova temporada». 23/05/22 Extraordinária, a biografia de Marina Abramovic (Pelas Paredes, Editora José Olympio, 2017). Mesmo para alguém, como eu, que mantém uma reserva em relação à prática artística que circunda as “instalações” e as “performances”, é inevitável que o livro desperte um extremo respeito pela senhora. É, além do mais, uma narradora nata: «A fixação de Danica (a mãe) pela ordem penetrou no meu inconsciente. Eu costumava ter um pesadelo recorrente sobre simetria – que era extremamente perturbador. Nesse sonho estranho, eu era uma general que passava revistando uma enorme fileira de soldados, todos perfeitos. De repente, eu tirava um botão do uniforme de um deles, e toda aquela ordem desabava. Eu acordava num pânico total, tamanho era o pavor que tinha de destruir a simetria das coisas.» Este sonho é claramente inventado, surgiu-lhe das amiudadas leituras de Marina das parábolas sufis, mas encaixa à perfeição. E a dado momento Marina conta-nos a história espantosa do encontro entre Tsvetaeva e Pasternak, que escreviam sonetos um para o outro, ela em Moscovo, ele em Paris, e sobre o destino trágico da poeta: «E então, como era casada com um russo-branco que fora encarcerado pelos comunistas, ela teve de deixar a Rússia com seus dois filhos pequenos. Foi para o sul da França, mas seu dinheiro acabou, e precisou voltar para a Rússia. Tanto ela quanto Pasternak decidiram que, depois de quatro ou cinco anos dessa correspondência apaixonada, ela faria uma parada na Gare de Lyon em Paris, no caminho de volta para casa, e eles de fato se encontrariam pela primeira vez. Quando acabaram se encontrando, ambos estavam num nervosismo terrível. Ela carregava uma velha mala russa, tão cheia de pertences que estava estourando. Ao ver sua dificuldade para fechar a mala, Pasternak saiu correndo e voltou com um pedaço de corda. Amarrou e fechou a mala. Agora, os dois estavam simplesmente sentados ali, mal conseguindo falar. Seus escritos os tinham levado tão longe que, quando eles se viram de fato na presença um do outro, as emoções eram avassaladoras. Pasternak disse-lhe que ia comprar cigarros. Foi embora e não voltou. Tsvetaeva ficou ali sentada, esperando, esperando, até que chegou a hora de embarcar no trem. Pegou a mala consertada com a corda e voltou para a Rússia. Ela retornou a Moscou. Seu marido estava preso. Tsvetaeva não tinha dinheiro. E, assim, foi para Odessa. Lá, desesperada para sobreviver, escreveu uma carta para o clube de escritores, perguntando se poderia trabalhar para eles como faxineira. Eles responderam que não precisavam dos seus serviços. Então ela pegou a mesma corda que Pasternak tinha usado para consertar a mala estourada e se enforcou.» O poder, por aquelas paragens, nunca mereceu os seus artistas.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA construção do poema Porque o poema é menos a bisca que o bridge, fui a uma escola explicar a engenharia do poema. Um dia fiquei chocado com uma notícia: por causa do H5N1 (a gripe das aves) os cisnes dos lagos e jardins europeus apareciam mortos. Abri o caderno e verti o seguinte poema: A eufonia dos cisnes infiltrados de H5N1/ invadiu os Museus de Arte da Europa. / Ledos, os guardas e as lídimas, canoras/ guias turísticas, repetem, “eis-nos no debrum // do Casal Ventoso”. Pelo ar, lamenta-se Barroso,/ num francês de estufa, todas as fronteiras, / inclusive as mais abruptas, são porosas. / Quem amnistia a brutal epizootia (frioleiras // de uma tia que arrasta à Casa dos Répteis, / Horácio, o epiléptico?) que lança no Averno / os lagos da Suíça, as margens de salgueiros / onde a súcia gozava estiagem, o pistácio // e o matutino, e ficavam surdos aos ralhos maternos / (e quase alados) os dedos dos petizes? Quem,/ no desatino de uma paixão suicida (Werther / faz duzentos e trinta anos), sacudirá a fogueira // da Europa? Poupem-se ao menos as perdizes!/ Os apoios externos estão garantidos, anuncia-se/ em Maputo – tudo a postos contra os lampos/ frangos da Nigéria. Entretanto, desatino oportuno, // lambuza-se o vírus nas bibliotecas da Grécia e bica / a polpa exangue dos sonetos de Yeats e Mallarmé. / Rien de rien, meu amor (vê-me, please, s’algum bicho / me picou na nuca), as nossas crias sorvem o seu capilé. // Coisas da Europa caduca – do seu espírito erudito / que, canzoada arrepiada, é hoje pasto para o mosquito / – (enquanto a fufa da tia – que raio designa uma epizootia?- / empurra de mansinho o Horácio da balaustrada). Comente-se agora: a) «eufonia». O cisne morre cantando e canta morrendo. Decorre daí a escolha do vocábulo “eufonia” – antecipando o desejo de fusão que a música autoriza -, condicionando o poema, pois obrigá-lo-á ora a rimas soantes ora a aliterações. b) «os Museus de Arte da Europa»: o cisne é um dos animais mais representados no bestiário da pintura europeia. c) “ledo”: risonho, contente, alegre, jubiloso. Mas o adjectivo foi escolhido pela homofonia em relação a Leda, uma rapariga cuja beleza provocou tais convulsões em Zeus, que este se metamorfoseou em cisne para a possuir e fecundar. d) “ledo”, por contiguidade, “metamorfoseou-se” em “lídimo” (legítimo, autêntico), pois as guias-turísticas são quem autenticam as “histórias do lugar”, nas visitas turísticas. Por outro lado, associando “canoras e lídimas” associo, por extensão, a beleza dos cisnes à das guias turísticas, geralmente belas ragazzas. e) “eis-nos no debrum/ do Casal Ventoso”. Introduzi o vocábulo como rima do 1 de H5N1, mas também como ideia de limite, pois o Casal Ventoso era um bairro de Lisboa de grande degradação. O Casal Ventoso é, aqui, o inverso da ordem dos Museus. f) Barroso: Durão Barroso. Uso a frase dele que a notícia cita para falar da impotência da Europa face à calamidade: «por ar todas as fronteiras são porosas», o que além do mais me permite a aliteração: oso e osa(s). g) Uma palavra que aparecia na notícia e que desconhecia: “epizootia”. Como a desconhecia de todo, uso uma liberdade poética e concedo-lhe um significado meio absurdo: “frioleiras de uma tia – a fufa!-/ que arrasta à Casa dos Répteis, Horácio, o epiléptico?”, que por um lado introduz uma segunda trama no poema e por outro é uma crítica à imprensa sensacionalista que invadiu o quotidiano da Europa. h) «… que lança no Averno/ os lagos da Suíça»: Averno, um dos nomes que se dava ao Inferno na antiga Grécia, e a Suíça é o símbolo da estabilidade burguesa europeia. i) Werther (1774), o primeiro romance burgês original, que cria o tipo de intelectual burguês jovem desadaptado à sociedade e que entra em conflito por causa da apreciação elevada de si próprio e do desajuste a que o sistema social o obriga, acabando por suicidar-se. j) Um poema circunstancial, que parte de uma simples notícia, pode ser o pretexto para falar (parodicamente) da perda de aura de uma certa ideia de Europa como força civilizacional, o que leva ao comentário irónico (e pessoal, por questões de gosto): «Poupem-se ao menos as perdizes!», pitéu gastronómico, vocábulo que mais uma vez não está ali só para rimar com petizes. l) Lampo, parente fonético de frango: “o que vem fora do tempo, temporão”. Uma crítica ao “deixa-andar” e à permeabilidade com que em África mais facilmente a perspectiva de um bom negócio para alguns pode fechar os olhos à calamidade pública que a sua execução acarreta. m) «nas bibliotecas da Grécia…»: a mitologia grega legou-nos a lenda de Leda e do Cisne (Zeus), daí que seja nas bibliotecas da Grécia que os cisnes enlouquecidos começaram por esfacelar os poemas de Yeats e Mallarmé. n) A quadra final (depois do descanso privado do capilé, pois o mundo não pode ser só desesperança) reforça a denúncia do estado de absurdo a que as vicissitudes da vida contemporânea nos impelem. O poema brotou de uma notícia de circunstância, mas não prescinde, na sua construção, de um cabedal de referências que fazem parte tanto do sistema cultural em que cresci como de um estranho jogo entre a necessidade e a liberdade, que é o acto criativo. Embora essa cultura me esteja imbuída; o poema foi escrito de impulso, sem preparação prévia: o primeiro rascunho, no café, uma segunda versão quando o passei ao computador. É poema de valia? Nem isso importa. Só publico um terço do que escrevo, o resto é para ginasticar a imaginação. Ramon Gómez de La Serna escreveu uma vez um longuíssimo texto sobre pregos que lido é um fabuloso exercício, mas que nunca coligiu na sua obra completa, porque senão todas as cópulas dariam filhos, o que seria um tremendo disparate.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPara onde vamos? À acusação de que a ONU não actuou em relação aos crimes cometidos pela Ucrânia no Donbass, António Guterres, bem, ripostou com o óbvio: “Não temos tropas ucranianas no território da Federação Russa, mas temos tropas russas no território da Ucrânia”. Justificou-lhe depois Putin, “o problema com a Ucrânia começa com o golpe de Estado que teve lugar em 2014. É um facto inequívoco.” E repetiu a lenga-lenga da nazificação que apaga as referências à cultura e às línguas russas do território. Palavras em conserva. Seria útil que a Assembleia Geral da ONU, os russos algemados às cadeiras, visionasse os filmes de Sergei Loznitsa, o cineasta ucraniano, sobretudo Maidan, de 2014, precisamente sobre os movimentos populares que levaram ao golpe de 2014, e Donbass, de 2018. Ambos os filmes proibidos na Rússia. Ideologias à parte, os filmes ajudam-nos a compreender o que se passa hoje e o nível de incompatibilidade cultural e emocional entre os dois países. Em Donbass, o filme sobre a guerra civil na província homónima, uma coisa ressalta: é um filme verdadeiramente incómodo, exasperante para os dois lados (- pelo subentendido do que possa ter gerado a crueldade que nele se expõe). Só que, enquanto o filme foi proibido na Rússia, o “nazi” Loznitsa condenou há dias, de forma veemente, na revista Variety o boicote ao cinema russo – imensa diferença. Duas sequências se destacam em Donbass: a do “exterminador nazi” que é exposto ao linchamento popular e a do incauto comerciante chamado às autoridades locais – em “zona libertada” pelos separatistas – para recuperar o jipe que lhe havia sido roubado e é confrontado com “formalidades” que “formalizam” a “doação” do seu carro ao Governo Popular, ao que se acrescenta uma chantagem para extorsão de dinheiro. E os argumentos são redondos: “Você ou apoia esses monstros, esses fascistas, ou está connosco?”. Ou cede, ou irá para o linchamento. A grande máxima da vida prática que os líderes do Novo Poder patenteiam é “conservar o que se tem, apanhar o que se pode”. E fica claro a corruptela dos termos nazi/fascista, gastas senhas para justificar de antemão as arbitrariedades do novo poder. Conceitos em conserva. Como, antes do encontro com Putin, para Bolsonaro e vários milhões, comunista significava: aquele que come criancinhas. Alguém admite dúvidas quanto aos comunistas terem sempre uma criança de reserva no congelador? Não se trata de uma questão de pontos de vista, mas de mundos diferentes, duma total assimetria traduzível na discordante relação quanto ao valor e aos significados atribuíveis às palavras. Para Putin, como para Trump ou Bolsonaro, consoante o desejável predomínio da vontade deles sobre a realidade, as palavras travestizam-se, ou mudam em conserva. Para os russos nem sequer há guerra, a Ucrânia submergiu num momentâneo estado de sonambulismo (como marionete do Ocidente) que não a deixa identificar os trilhos da paz e os ucranianos estão a ser salvos de si mesmo. Ocorre-me a história que P. Jacob conta no seu livro O Empirismo Lógico: «O físico Szilard anuncia um dia ao seu amigo Hans Bethe que decidiu escrever um diário: -Não tenho a intenção de o publicar; vou simplesmente catalogar os factos para que Deus seja informado. – Tu não achas que Deus conhece os factos? – pergunta-lhe Bethe. – Sim, anui Szilard, mas ele não conhece esta versão dos factos!». Em faltando Deus à loquacidade da fé, o que levou o Papa a desistir de tentar a sua chance como mediador, seria esclarecedor que os renitentes vissem os filmes de Loznitsa – e já agora também o Enterro de Estado, de 2019, sobre a morte de Estaline, porque é nesse estado de canonização que se imagina o Novo Czar – para que conhecessem essa versão dos factos. É na direcção desse imenso retrocesso que queremos ir? Mas quanto ao perverso deslize das camadas tectónicas da semântica e aos seus efeitos no comportamento das instituições, valeria a pena lembrar que isto começa lá atrás e é de todos os lugares, como se atesta em A Mancha Humana de Philip Roth, ou neste facto que agora se noticia: «O tribunal de Fairfax, no estado norte americano da Virgínia, tem sido palco do julgamento de difamação contra Johnny Depp e Amber Heard, duas estrelas de Hollywood que revelam um ex-casamento de brigas violentas, uso de drogas e palavras cruéis. O julgamento tem captado multidões à porta do tribunal. A maioria são fãs do actor, que criticam a postura de Amber. Depp processou a ex-mulher por difamação e pede 46 milhões de euros em danos. Amber Heard avançou com a mesma acusação, mas exige o dobro: 93 milhões. A actriz ainda não foi ouvida em tribunal. O julgamento deverá continuar durante as próximas quatro semanas.» O que é que falta a este ominoso casal? Interiorizar o visco da palavra Vergonha. E o mercado da comunicação que transforma a vergonha e a frivolidade em espectáculo, não é menos venal (ainda que diferidamente) que o mercado da guerra: corrompe, avilta, faz desejar a “verdade” da violência. Perante a condição de sem-abrigo da existência humana a que o horror da guerra nos propende, Amber Heard exige 93 milhões ao seu marido porque, como prova um vídeo que levou a tribunal, Deep bate com as portas dos armários da cozinha. Que democracia resiste a tanta falta de senso? Palavras em conserva. Como fascista (uma tragédia, a trivialização do conceito). O Jünger, que supostamente o terá sido, tendia a afirmar a necessidade de manter o niilismo à distância. Nada mal, para um fascista. Melhor que a visão progressista de quem diz combater o fascismo e a uma proposta de tréguas contrapõe: «Moscovo não aceita esse tipo de propostas», numa despeitada letalidade não declarada. Porque, matar à fome e à sede aqueles (civis e militares) que escaparem aos bombardeamentos de Mariupol, à puridade, apenas significa Encomendar-lhes as Almas – exultemos!
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDa Rússia, com amor Segundo Chesterton, os anjos conseguem voar porque se enxergam a si mesmo com leveza. A leveza que a guerra nos retira, imersos num clima inamistoso que nos recorda a advertência de Confúcio em Analectos: nenhum país é governável quando nem os amigos se entendem. Um desalinho que não nos deixa sorrir. Bastou a Putin acenar com a mijinha territorial e levanta-se o clamor contra o famigerado desequilíbrio que (na selva) a Nato quis provocar. Esquecem-se, entretanto, de referir – aqueles para quem a Nato, na esteira de Putin, teve movimentos expansionistas adentrando-se nas fronteiras de influência da Rússia – que os países que se candidatam à Nato, não são aliciados; pelo contrário: é por pedido expresso dos países que a sua entrada na Nato tem lugar. É um pormenor: pede protecção quem não se sente seguro em relação às “boas” intenções do vizinho. Demonstradas na Geórgia e na Crimeia. São os países (soberanos) que pedem protecção à Nato. Ainda ontem o porta-voz do Kremlin ameaçou suecos e finlandeses, hoje já as tropas russas se avolumam nas fronteiras finlandesas. Com que direito? Nas entrevistas de Putin com Oliver Stone, o posicionamento do novo Czar é muito claro: ele rejeita o comunismo e capturou o sistema para forjar um novo regime, mais próximo dos nacionalismos tradicionais e místicos que ramificam na extrema-direita. Daí as ligações de Putin a Marine Le Pen. É difícil entender a adesão de tanta gente de esquerda às teses de Putin a não ser por reflexo de uma nostalgia patológica face a uma referência revolucionária de todo perdida. Para ilusoriamente se manterem fiéis aos “princípios” aterram nos hangares da extrema-direita. Mesmo com a “saudosa” União Soviética a solidariedade da Internacional Socialista era uma cilada com aspectos tão reprováveis como as manobras dos países doadores na sua “ajuda” aos países africanos. E assim, “legitimamente”, a União Soviética rapava todo o peixe das costas moçambicanas e deixava aos camaradas moçambicanos o carapau, com tal exclusividade que nos anos oitenta (à falta de outros espécimes na mesa) até sobremesas de carapau se inventaram. De modo semelhante, os chineses hoje rapam as florestas, os espanhóis o marisco, os franceses o gás e, etc. Cada “apoio” ao orçamento de estado corresponde sempre ao interesse velado de mamar em qualquer matéria-prima. Daí que os países africanos não se sintam “gratos” o suficiente para alinharem com o repúdio do Ocidente à agressão russa: têm sido espoliados por todos. Há também a fobia aos EUA, convulsiva, na escolha de muitos. Aí, entre uma adesão decapitadora e uma rejeição epidérmica, irracional, instala-se um ímpeto cego de crença. É a prova definitiva de que a disputa política raras vezes escolhe a razão como ringue. É igualmente preocupante o facto do Ocidente estar a pôr todos os seus trunfos num peão que lhe despertou uma chama heróica, mas que igualmente não é impoluto. É provável que, em não sendo a guerra, Zelensky estivesse a contas com alguma crise no seu governo, dado o que foi revelado nos Panama Papers, e a sua bizarra aliança com o sinistro batalhão Azov. A guerra foi-lhe favorável, e fica mais difícil penetrar na obscuridade com que as informações e as contrainformações saturam de luz o palco. Porém, há coisas que são muitíssimo claras, para além da inaceitabilidade da invasão da Ucrânia. A primeira agressão de Putin é ao próprio povo russo. Para perpetrar a invasão, Putin mentiu aos seus recrutas e enviou-os para uma armadilha. Os atarantados lá foram, sem saber ao que iam. Neste momento, anulada a mínima liberdade de informação, o russo foi massivamente arredado de qualquer noção da realidade. Proibido de inteirar-se do que se passa, o povo russo é tratado como uma massa infantil a quem se proíbem os bombons porque apesar do espelho reflectir corpos franzinos o regime dita que estão obesos. As notícias indirectas chegadas através da inflacção galopante, do desaparecimento dos produtos no mercado, ou do estranho sumiço dos filhos idos para os exercícios militares, fazem-lhes pressentir algo que, sob pressão de uma ansiedade habituada a reprimir-se, os leva a ceder à paranoia: como no estalinismo, os russos já denunciam colegas e vizinhos (e professores) pela posição crítica em relação à guerra. A vergonha desta bufaria levará gerações a ser ultrapassada. A segunda agressão de Putin ao seu povo é a denegação da morte. Os nazis encobriram o máximo de anos possível a existência de campos de concentração e a sua indústria de morte programada. Da Rússia, com um mês de combates, já sabemos que – se, em relação ao inimigo, visa sem escrúpulos os civis – incinera os seus militares mortos para que o grosso deles “desapareça” em combate, adiando o mais possível a entrega do cadáver aos familiares. Para Putin, a morte, sempre exterior, nada significa. Como para os nazis, os mortos deixaram há muito de ter nome, são exclusivamente números, abstracções dispensáveis. Mas quanto a isto, se o seu inimigo já o sabe, os russos que não participam directamente da guerra estão a leste duma consciência clara sobre o estado volátil dos seus mortos. Apesar da democracia ser um sistema imperfeito, há uma diferença abismal entre a persuasão retórica e a repressão que coage os próprios pensamentos, entre os desequilíbrios sociais que renhidamente vão sendo denunciados e os desequilíbrios fundados em castas duma instância política inamovível, entre a corrupção que vive na ilegalidade e a que impele (sob risco da miséria) toda a gente a participar do esquema; etc., etc. A democracia ainda permite a disseminação de simulacros culturais que moldam novos ritos e mediações, o actual regime russo vive na e da lei da selva. A da impossível reparação. Não creio que possa haver escolha. Escreveu uma criança ucraniana para a mãe, morta: “Mamã, desejo-te boa sorte, no céu”. Depende, se aí ainda houver leveza.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasLa vache qui rit 28/03/22 Hoje percebemos como o século XX foi o rio das utopias sanguinárias (do fascismo e das revoluções comunistas às vanguardas artísticas) e da ignomínia programada – o resto é a lactescência das margens. Nessas margens leitosas rumorejavam as bolhas da paz, a fraternidade da música e a magna ilusão do cinema, assim como o sonho da educação para todos, prendadas remanescências do progresso, sob as saias da Ilustração. Bolhas que se revelariam frágeis, face a três investidas, que correspondem às três Virgens anunciadas certamente no Quarto Segredo de Fátima: a primeira, a Virgem do pós-colonialismo e do “politicamente correcto”, que fez cair as malhas na meia do universalismo; a Virgem do neo-liberalismo que abriu brechas no ideal democrático ao preterir aos valores a economia (daí ter-se abolido as minissaias da minha juventude); e a paradoxal investida das redes sociais que sob a face risonha (que também têm) mostrou ter duas faces e mostrou ao espelho o aspecto de uma Virgem Negra de uma comunicação sem ética (- a piada de Chris Rock e a estalada de Will Smith: duas faces da mesma moeda, no “vale tudo” sem comedimento). Se quisermos parafrasear o célebre mandamento de Lenine, segundo o qual «o socialismo é igual aos sovietes + a eletricidade», «esta invasão da Ucrânia é igual à violação das três virgens + a bondade com que o Putin nos quer livrar do fascismo». Tendo ido o ano passado à Beira dar uma formação para professores (da primária ao sétimo ano), saí de lá deveras apreensivo: a maior parte dos docentes não sabia, literalmente, o que era um “ponto de vista”. Portanto, os professores não logravam alcançar o reconhecimento de si que supõe a escolha de um “ponto de vista”, o que pouco campo lhes deixava para a generosidade da empatia; além disto simplesmente minar qualquer habilitação para o exercício democrático. A ignorância pode ser inocente? Lembremos, com Deleuze, que perverso é aquele que vive num mundo sem o outro. Alertado, fui detectando em graus diversos este mesmo estado ante-Gulliveriano por todo o lado e como alastrava pelas redes sociais e o Facebook: aí, a um estado de deficiência cognitiva generalizado junta-se a “tirania do indivíduo”. Um dos sinais de intolerância e de inadaptabilidade argumentativa é a efervescência com que se procura acima de tudo ter razão e a última palavra, numa postura heliocêntrica. A mim não me incomoda nada, rigorosamente nada, estar equivocado sobre algo, ou iludido, por me faltar qualquer informação que me fará contemplar outra perspectiva – é-me evidente, não vemos como as trilobites em 360%. Posso ser veemente na forma como armo a argumentação lógica, não confundo a (minha) opinião com o conhecimento. Procurando ser persuasivo, isso faz parte do jogo da comunicação, mantenho em aberto a possibilidade do erro e não invisto cegamente na validação narcísica. Tal como perder ao jogo não me muda a disposição. Fico inclusive contente se me apontam um ponto de vista de que não me apercebera. O que não me abstém de ficar abismado com algumas reacções, mais do que enérgicas, inflamadas, como se quem me interpela jogasse ali a vida. Já me aconteceu, se é amigo, recordar à criatura que o argumento que exponho é fruto dessa “terça-feira”, que na quinta-feira, fazendo jus à afirmação de Picabia de que temos a cabeça redonda para permitir às ideias mudar de direcção, poderei pensar diversamente. Sem que isso me roube um centímetro na defesa de algumas causas por que estas são o resultado de um pensamento sedimentado no imenso laboratório que a vida e a idade nos faculta; havendo, portanto, ideias que, como os rins e pâncreas, se tornam interiores: órgãos a que não podemos renunciar. Um exemplo: não me custa nada concordar com o sr. Biden quando ele diz que esta é uma guerra das democracias contra as autocracias, mas gostaria de o interpelar em relação ao cinismo com que ele, como arauto do Ocidente, agora deplora o “despertar dos carniceiros” que usam as armas que o Ocidente lhes foi vendendo, irresponsavelmente, em nome da economia. E gostaria de o inquirir sobre a sordidez de cada míssil Javelin custar 150 000 dólares, e um carro blindado ou um tanque 2 000 000 de dólares, tendo em conta a fome no mundo e a falta de escolas, de livros e vacinas no terceiro mundo; se esse é o seu conceito de avanço democrático. Coisas tão simples como manter-se higiénico o cu de um mandril. Em querendo acreditar que a democracia é, terá de ser, a garantia de um incremento da biodiversidade que de todo não se compatibiliza com a guerra e os seus negócios. Entretanto, estando o caldo entornado, leio: «Nas duas próximas semanas, Canadá, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Estados Unidos estarão juntos num exercício que simula a ameaça russa a território da Aliança. Os pilotos vão voar contra sistemas de defesa aérea de origem russa que alguns dos países da aliança operam. Quem participa quer que esta seja uma mensagem clara para o Kremlin.» E, do ponto de vista do meu sofá, que adora simulações, não sei se hei-de rir, se chorar! 29/03/22 QUEM FICA POR ÚLTIMO FAZ AS ACTAS DAS CIDADES DERRUÍDAS Ao fim de trinta anos de porfia/ nas fontes mais áridas e obscuras/ tendo inclusive decifrado os dísticos/ até aí secretos de Gilgamesh, na finisterra, // após trinta anos de genuflexões na água/ e de experimentar sucessivas, novas, tatuagens,/ alheio ao risco de não distinguir auto-profecia/ do que realmente cauteriza; em variações // da pedra que esposa a veia e da pedra/ sem trapaças e da pedra que escolta o silêncio/ e da pedra erudita que vai aos rins // galgar no azul e nas nuvens;/ montou finalmente a sua bicicleta/ de ouro – já não tinha era pulmão.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasALMA Elon Musk é uma personagem da Marvel e desafiou Putin para um duelo ao sol. Quem ganhasse decidiria o que fazer com a Ucrânia. É, convenhamos, um medievo, quase ingénuo no desplante com que aposta os trunfos na bondade do homem providencial. Já não é uma questão de princípios, mas de destinos. O anjo bom, contra o anjo mau. A um dos seus seguidores, que escreveu este desafio não passaria de uma brincadeira, o fundador da Tesla respondeu que falava “absolutamente a sério”. “Se Putin pudesse humilhar o Ocidente com tanta facilidade, aceitaria o desafio. Mas não o fará.”, acrescentou. Para já não houve qualquer reação do Kremlin. De forma bem mais razoável, Musk já havia oferecido o seu apoio a Kiev, através do Twitter. E depois de ter escrito “Mantenham a Ucrânia forte” e de ter dado as “condolências ao grande povo da Rússia, que não quer essa guerra”, Musk activou o seu serviço de internet Starlink na Ucrânia, enviando equipamentos para ajudar a melhorar a conectividade em áreas atingidas por ataques militares russos. Cremos que este é um «efeito Zelensky», a aspiração à heroicidade tenderá a tornar-se capilar. Contudo, a coragem do presidente ucraniano forjou-a a situação. Zelensky não pode medir os passos, a sua coragem é um aço temperado na chama do desespero e um intérmino pedido de socorro. Encurralado, só lhe resta ser digno. Não há ali um grama de fanfarronada. Não se é um herói por heteronomia – não é por acaso que o único líder pró-ocidental que não se mostra acagaçado é o que está encurralado. Por que é que o menino rico, ávido de protagonismo, não pega nas suas espadas de laser, reúne um regimento, e se oferece como voluntário para o combate – experimentando a longa duração da guerra? O que lhe interessa é a propaganda. Ele já percebeu onde está o futuro, está a posicionar-se. Na outra trincheira temos Putin e a sua crença em Pavlov: o homem é um cego escravo dos estímulos, mais apegado aos condicionamentos do que à virtualidade raciocinante da sua emoção. Está a lixar-se. Todos os dias haverá mais um jornalista a rebelar-se, ou crianças que irão colocar flores no muro da embaixada da Ucrânia. Todos os dias alguém que leu Dostoievsky e Gogol e Mandelstam, Soljenítsin e Svetlana Aleksiévitch, há-de interrogar a pertinência do país só gerar tiranetes e ter vergonha por si ou alheia – a areia foge por entre os dedos de Putin. Tudo se repete. Lemos este resumo de “Meninos de Zinco”, de Svetlana Aleksiévitch, publicado em 1991: «Entre 1979 e 1989, as tropas soviéticas envolveram-se numa guerra devastadora no Afeganistão, que causou milhares de baixas em ambos os lados. Enquanto a URSS falava de uma missão de “manutenção da paz”, levas e levas de mortos eram enviadas de volta para casa em caixões de zinco lacrados. Este livro apresenta os testemunhos honestos de soldados, médicos, enfermeiras, mães, esposas e irmãos que descrevem os efeitos duradouros da guerra. Ao tecer as suas histórias, Svetlana Aleksiévitch mostra-nos a verdade sobre o conflito soviético-afegão: a destruição e a beleza de pequenos momentos quotidianos, a vergonha dos veteranos que retornaram, as preocupações com todos os que ficaram para trás», e adivinhamos a vergonha destes novos imberbes “veteranos”, que mais uma vez tornarão ao regaço da Mãe Rússia, dispostos a esconder-se sob os sete folhos da matrioska para chorarem o arrependimento. E esta violência que os povos em guerra exercem sobre si e os outros começa invariavelmente na distorção da linguagem, nas cambalhotas semânticas. Faz-se a guerra em nome da manutenção da paz. O que se pretende é “desnazificar” e instalar a “verdadeira democracia”, etc., etc. Tudo começa no relaxe da linguagem, talvez desde esse momento em que um espirituoso se lembrou de dar o nome de ALMA à superfície interna dos canhões. Há cinco anos escrevi num romance, “Fotografar Contra o Vento”, este diálogo entre os protagonistas: «- Posso fazer-te uma pergunta? – Força. – Não gostas de tourada. E és contra a fiesta? – Não… – Porquê? Seria natural que fosses contra… – Olha, Petra Stoering, um cientista, mostrou que o primeiro acto de consciência de si é o que permite à célula ou ao vírus alimentar-se de outro em lugar de autofagocitar-se, quer dizer, quando começou a distinguir-se do seu próprio alimento… Percebes? – Não sei se atinjo onde queres chegar. – É simples, por trágico que seja, estamos condenados à violência sobre os outros… para não nos auto-devorarmos. Iludem-se muito os homens, mas não há guerra e paz, há apenas a guerra, ponto. No meio disto, o ritual da tourada é como uma trégua neste massacre, e às vezes, a cruz dele, o toureiro, morre com ele. E, se assim tem de ser, prefiro que seja uma violência controlada e ritualizada… antes isso que a indeterminação da violência à solta, como acontece na guerra, ou no terrorismo. Porque, à violência, o ser humano não a vai conseguir extirpar de dentro de si, o mais natural é que seja a violência a arrancar das suas mandíbulas esse dente apodrecido que é o homem… – Deves ter visto muitas coisas violentas? Cosmo engoliu a aguardente de um trago, antes de redarguir, definitivo: – Bom, é tarde, são três da manhã e precisamos de descansar…» Não defendo a tourada – nem tenho de a defender nem de a atacar, isto é uma conversa entre os personagens do livro e obedece à lógica deles, não à minha – mas, contra todas as abomináveis gamas do politicamente correcto, acho que necessitamos absolutamente de voltar a uma certa e mútua “franqueza” interpessoal, de desenvolver novos ritos e modulações do atrito na comunicação que equivalham a formas de violência controlada e ritualizada, de modo a suster a nossa propensão para a guerra. Pelo menos enquanto o interior dos cilindros dos canhões se chamar ALMA.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasSinais implodidos 01/03/22 Eu ainda andava desvairado pela Jane Fonda. Tinha trinta anos, estava desempregado de amores, e deslocava-me todos os fins de semana a Coimbra, onde colaborava com o grupo de teatro A Escola da Noite. Ao cabo de oito meses constatei que a cidade me resistia. As suas mulheres, novas, velhas, viúvas, divorciadas, estudantes ou trintonas, as actrizes, os travestis, as coxas ou mesmo as barbudas, como a do Ribera; a cidade havia-me riscado do seu leito. Em oito meses, só me tocava conversar sobre o Grotowski, o tango argentino que vitimara um amigo de Manuel Bandeira ou as nuances do adultério do Heidegger com a Hanna Arendt, amanhos do espírito, enquanto o esperma se me coavalha, em espesso glaciar. Nesse sábado desci à baixa para ir buscar à Valentim de Carvalho um disco do Keith Jarrett, que encomendara. E entrei descontraidamente no Santa Cruz, desarmado por dentro e por fora. Tencionava comer um prego e beber duas cervejas e apanhar um táxi para casa, onde passaria uma tarde plácida a ler e a ouvir o cd. Sentei-me na única mesa que estava livre. Ao lado de três belíssimas estudantes de direito, uma delas uma mulata com olhos verdes que era a irmã bonita da Sade Adu. Riam a bandeiras despregadas porque ao balcão havia um toureiro em traje de luces a tomar uma bica. Era uma figura caricata, o que a sua excelsa concentração no café que bebia de lábios em bico e o seu mindinho levantado acentuavam. Mas o melhor é que isso nos permitiu três relances e a partilha de um sorriso. Dez minutos depois, ouço a bonita mulata contar às suas divertidas mas estupefactas amigas que tinha chegado à Europa para o desejo maior de encontrar e conhecer (biblícamente?) um vampiro e pude então lançar a deixa: Ó cara doutora, mas se é por isso eu levo-a aos Carpátos. Tudo corria sobre rodas, os olhos verdes dela cravejavam-se nos meus, os seus lábios seguiam o fio da minha voz, o riso dela, o riso dela, meu deus, refrigerava como um leque valenciano o calor dos corpos, enquanto a dança dos dedos nos precipitava no enlace. Só estranhava que ela, que bebera o mesmo, aguentasse de tal modo o álcool – a minha euforia já roçava o patético. Em casa, fui brevemente à casa de banho molhar a cara, a nuca, e enfiamo-nos no quarto. Fui à cozinha buscar uma derradeira garrafa de vinho, que abri com esmero e delicadeza, servia-a, bebericámos no cálice, e pus o disco. Entreolhamo-nos longamente, já não havia nada a dizer e nos olhos verdes dela acendiam-se néones. Um longo beijo aplacou as disputas, desapertando de rajada todos os botões. E é tudo o que me lembro desse inglório apagão. No dia seguinte, acordei sozinho, às onze da manhã. Havia um bilhete em cima da minha secretária, em que se lia, Adorei a música, obrigado. Um beijo da tua Rainha de Sabá. Nem número de telefone, nem qualquer referência. O Keith Jarrett voara com ela. Na sexta seguinte, assim que depositei a mala no quarto, apanhei um táxi para o Santa Cruz. As duas amigas lá estavam, estudando, na mesma mesa, e foram amistosas. Ela é que não, pois, contaram-me, fora de urgência para Moçambique por causa da morte súbita do pai, e nenhuma delas tinha o contacto de Maputo. Só a voltei a ver dez anos depois, na televisão, num debate sobre política africana. Era Secretária de Estado do governo de Moçambique. Vinte anos depois, em Maputo, assistia em casa a um telejornal da RTP/África e passam uma reportagem sobre o Café Santa Cruz, em Coimbra – e vejo-a aperaltada ao balcão (que missão a fizera deslocar à cidade onde estudara?), no exactíssimo sítio onde estivera o toureiro, a beber um café, o indicador levemente levantado, em asa delta. A culpa disto tudo, creio, é da Jane Fonda. 03/03/2022 CELEBRAR A GUERRA? AGAIN? «arde a minha alma como um jornal», Hugo Claus A guerra é o pasto em que arde a soldadesca/ enxameada de vermes, línguas roxas, pus,// enquanto de olhos reboludos as vacas, / extraviadas da lembrança da mãe Ío, ruminam,// alheadas, entre cadáveres. É um éden só de puros / (só aos nossos as nozes, aos outros os ossos), //que provém dos lençóis freáticos de países imaginários./ Na guerra o tempo tem o tique-taque de uma véspera // que já escalda e por isso supura a linha do amor / nas palmas e anseia-se pelo errante ladrão-de-orvalho // que rapine à eternidade um lampejo de cruel felicidade./ Era já assim no tempo dos meus avós na II Guerra Mundial.// Os bombardeios circuncidavam as cidades /e enchiam-se baldes de maçãs, salvo-condutos e tripas gordas,// enquanto o noivo desapanhava a noiva sob os escombros / e a criança adivinhava no relógio esfacelado // da mãe a sua pungente ausência. / Será assim na época dos meus filhos, já pretérita // nas cabeças que faz rolar como se de cravinho fossem, / e no cerne da qual se esfuma a razão, // escarnecida pela fé dos tolos; carecas de saber / que é medieval o costume de coser a bainha // do sol com fios de sangue. A guerra reacende-se / quando o justo e o ímpio desentronizam // os prazos e trocam de posições, confundindo / o ritmo do escalpe com o do tango. //Até que um deles inventa o éden. E eu, tão feliz / no meu inferno, tão em paz que encadernei // com esperma o Novo Testamento, discretamento tusso, / perguntando-me: e a nós, por quanto tempo // nos será autorizado esquecer, como Orfeu? Por quanto / tempo sobreviverá um homem aos 400 mercenários?
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasUrbe Sub Rosa 20/02/22 “Vá e impeça a guerra, Jair…” – apela o cartaz, num reforço evangélico da campanha do Bolsonaro, que tem dado frutos, visto que ele tem subido nas sondagens. Na imagem vemos como as costas do ignóbil Bolsonaro estão resguardadas pela figura de Cristo. Embora na Rússia, a figura inspiradora que terá estado por trás da acção de Bolsonaro haja sido Judas, já que a benignidade natural do presidente brasileiro não desviou Putin um centímetro dos seus planos de invasão. O pobre falhou a todo vapor a sua estóica missão. Mas há outros feitos que se poderão atribuir a este novo Mensageiro de Cristo: o regresso de Trump, que vai dividir o país com as suas profecias sobre a guerra na Ucrânia, sopradas pelo Messias brasileiro; a estátua do Cristo Redentor não desabará nunca no morro do Corcovado porque o olhar beatífico do Capitão o impedirá; e na esfera do plano internacional a acção benfazeja de Bolsonaro apagará da lembrança o terremoto de 1755 em Portugal, esse trauma funesto que só continuará a existir nos livros do historiador Rui Tavares, como se sabe um feroz produtor de fake news. Estou encantado com as possibilidades que este novo baluarte do cristianismo abre. 22/02/22 Melanie Daniels (Tippi Hedren), uma jovem socialite com o desejo estampado à flor da pele chega a Bodega Bay e fica cativa. Duplamente cativa. Por causa do advogado Mitch Brenner (Rod Taylor) – um dos mais fragorosos erros de casting da história do cinema – e dos pássaros e aves que estão como ela à solta, mas numa espasmódica pulsão maligna. A dado momento, um derrame de gasolina e um descuidado charuto provoca um incêndio na povoação e uma massa de gaivotas, atraída pelo fogo, ataca os transeuntes. Melanie é forçada a refugiar-se numa cabine de telefone, toda em vidro, enquanto as aves criam o caos lá fora. É um dos momentos fortes do filme, ela em pânico naquele precário refúgio contra a voragem das gaivotas que bicam o vido tentando atingi-la. Se nós quisermos essa imagem é semelhante à condição que hoje experimentamos, acossados no interior duma caixa de vidro contra a histeria dos media que nos assaltam e exacerbam com os seus dramas sangrentos. No filme há três passarinhos inofensivos, cujo comportamento é confiável: os dois canários da filha de Mitch e a passarinha de Melanie, que apesar de descomandada pede gaiola. O filme mais não é a que a figuração no espaço e nas aves da flagrante sexualidade de Melanie à procura de pousio. E neste item Tippi Hedren é perfeita. No filme, apesar de tudo, a natureza é domesticável, apesar de irritadiça, inflamada e agressiva, sugere Hitchcock. Isto nos bons tempos em que não era tão nítido que a natureza mais selvagem é a do homem e que esta se encarniça contra si mesmo, na irracional vontade da guerra. Esta crise mundial chega no pior momento, aquele em somos rodeados pelos líderes ora mais fracos ora mais velhacos. Num péssimo momento para todos nós e também para os americanos que vão encontrar-se rapidamente divididos entre a liderança oficial de Biden e a alucinada de Trump – diante do recrudescimento da tensão vai ocorrer uma guerra civil não declarada nos States, e Putin joga com isso. Apertado pelos tribunais, é a oportunidade para Trump jogar todos os seus trunfos. Já começou. 23/02/22 Nesta sexta-feira, dia 25, na livraria Barata, apresento o livro que reúne a selecção que o Paulo da Costa Domingos fez de cinquenta anos de poesia publicada, desde 1972, “Urbe Sub Rosa” (com umas extraordinárias capa, lettering e contracapa de Patrícia Guimarães). Cinco anos mais velho que eu, o PDC era um dos meus heróis quando eu tinha dezasseis, dezassete anos e o seu “Uma Orelha Sem Mestre” inflamava a minha atenção, tal como o “Crítica Doméstica dos Paralelepípedos”, do Nuno Júdice, e “A Luva in Love”, do Jorge Fallorca – três livros que me marcaram numa época de aprendizagem da liberdade. É um livro denso (e não só pelo tamanho, 700 páginas) mas que constitui uma verdadeira aventura porque permite entrever os elos na sua obra que uma leitura livro a livro, plaquete a plaquete, deixava mais na sombra e a novidade é que a consistência que ressalta do conjunto reafirma uma voz e autentica a sua rebeldia, resgatando-a da margem, para firmar um dos mais interessantes e incomplacentes percursos da poesia portuguesa nas últimas décadas. Aqui deixo um poema: «GARANTO/ Garanto que o norte magnético/ já não é nada do que era,/ o carrocel roda ao invés, a vertigem/ mantém-nos na linha. Dos ventos// a rosa cobre-me os ombros/ e o nosso diálogo é o sentido, por isso/ vos digo: o norte magnético foi-se,/ glaciou-se, entre bacalhoeiros e arenques// que transportam agora nos dorsos os vírus/ do último esquimó/ e o imerecido ódio do/ último viking. Garanto-vos bebida quente/ no ápice trágico que anteceda o suicídio, // e o estilete que apontareis a quem vier/ violar vosso domicílio. Porque convém,/ cada vez mais, arreganhar o dente,/ dedicar um dia inteiro ao veneno.”
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasComboios astrologicamente vigiados Nada me preparara para o sonho que me enovoou, entre Coimbra e Aveiro: «Duas mulheres belas, altas, desengonçadas, ainda na leveza dos vinte, mas com a airosa gravidade dos trinta a poisar-lhes suavemente no semblante, uma loura e outra ruiva, conversam no banco ao meu lado. Num à-vontade que se exala ao arrepio da máscara. São manequins e adoram o que fazem, embora a covid lhes esteja a ratar os planos: – Oh pá, é mesmo azar, tinha três desfiles de grande expressão nos próximos meses, um em Santander, outro em Paris e o último em Roma… – Não digas nada, amiga, eu estava combinada para Barcelona e Biarritz no próximo mês. Tenho marcada uma sessão para a Vogue que, talvez, se realize, o resto é uma banhada… – E o teu agente? – Que tem? – Ainda te responde? O meu anda aos soluços… – Felizmente, mas tenho amigas que se sentem abandonadas. – Shit para este tempo que nos coube. Resolvo interrompê-las: – Desculpem meter-me na conversa… mas estes tempos só exigem novos palcos, está tudo por reinventar… – Desculpe, como assim? – pergunta a loira. – Pensem no efeito de usar-se o comboio como passarela, em sessões contínuas, da carruagem 2 à 23… – Seria o caos…- reage a ruiva. – Não vejo porquê? – insisti – seria uma mera questão de disciplina e de horários. O vosso público mais aficionado, pelo inédito da iniciativa, tomaria o comboio por curiosidade, e teriam além disso um público novo, o dos viajantes normais… – Já viu a confusão, com as entradas e saídas de pessoas? – voltou a loura a objectar. – O Alfa Pendular só pára três vezes, os intervalos entre as estações seriam o período ideal. E admitamos que se faria à noite a passagem de modelos… Vocês representam a beleza, o glamour… Já viram o vislumbre, quantos milhares de pessoas viriam às janelas de sua casa a essa hora para vos ver passar? Na beleza fosfórica que seria a vossa, à passagem veloz do comboio? – Como cometas…- admitiu a ruiva. – Sim, cometas concretos, com nome, rosto, e uma beleza intangível… A junção improvável que alimenta o sucesso. – Gostei… – ponderou a loura – O que faz o senhor. – Sou poeta, mas isso não importa agora… Sabe que nome daria a esses desfiles? – Não… – mostrando-se ansiosas. – Comboios astrologicamente vigiados. – Não sei se entendo. – atreveu-se a ruiva – Porquê vigiados? – Vigiados pelo bom-gosto, no sentido de estarem superiormente devotados à elevação do olhar pela beleza. O que é comum é a cultura de massas nivelar por baixo a educação estética, vocês, como anjos, irradiariam a excelência que nos pode salvar… Cromaticamente, pelo relâmpago dos figurinos e a elegância que os estilistas emprestam aos modelos, e depois pelo vosso natural… Astrologicamente, porque vocês são estrelas de bons augúrios… – A ideia é muito boa… – concedeu a loura, entusiasmada – poderíamos falar com alguns estilistas de renome… – Eu sou amiga pessoal da Victoria Beckhman. Vou telefonar-lhe, tenho a certeza de que vai entusiasmar-se…- reforçou a ruiva. – Isso, eu falo com a Anabela Baldaque e a Fátima Lopes… – prometeu a outra. – Tenho a certeza de que com alguns nomes sonantes a CP aderia ao projecto, … Mesmo em época de vírus, algo precisa de salvar a soturnidade em que estas viagens se tornaram… Se quiserem escrevo-vos o projecto e vocês apresentam… – E como poderíamos agradecer-lhe? – perguntou a ruiva, de olhos brilhantes. – Isso é simples… – brinquei – se “tatuassem” uns versos meus, no colo, num braço, na perna, no ventre… plantados nalgum lugar visível do vosso corpo, já me sentiria bastante recompensado… Já deram conta da variedade de formatos nos média em que vocês aparecem, que melhor montra para a poesia? – Outra boa ideia…- espantou-se a loura. – Sim, cada modelo adoptaria um poeta. Sabem, pode ser essa a salvação da poesia… Vocês gostam de poesia?» Acordaram-me nesse instante, as duas majestosas mulheres. O meu caderno caíra no chão e uma delas devolvia-mo. Agradeci-lhes. Iam sair em Aveiro e o comboio entrava na gare. – Desculpe acordá-lo… – disse a loura. Mas agora vai entrar muita gente e temi que o seu caderno fosse pisado… – Obrigado… – balbuciei, num sorriso tímido. Teria ressonado? Preocupou-me a imagem com que teriam ficado de mim. Nada me preparou para esse sonho porque há três meses que essa campanha abrilhanta as viagens nocturnas na CP. A operação revelou-se um sucesso internacional, sendo repetida nos países do núcleo duro da moda internacional. E também a minha ideia de cada modelo adoptar um poeta foi seguida como lei. Com um sucesso de arromba. Cada poeta escolhido passou a vender milhares de livros por edição, num rompante. Em Portugal foram oito os poetas escolhidos. E nenhum verso meu aflora a clavícula de qualquer modelo, orvalha um decote, ou torneia a barriga de alguma perna. Até o nome copiaram – e o copyright internacional do projecto pertence às duas modelos portuguesas, mais à Victoria Backhmam a quem com certeza elas ludibriaram dando por sua a ideia. Há três meses que assisto atarantado ao êxito retumbante, por toda a Europa, da campanha dos Comboios Astrologicamente Vigiados. Tentei chegar a acordo com elas, mas riram-se na minha cara quando lhes assegurei que fora eu quem tivera a ideia e lhes transmitira num sonho. Processá-las num sonho e receber a indeminização na vida real será igualmente possível? Já dois ou três jornais zombaram da minha história, como ridícula. Há três meses que sempre que ouço, a meio da minha insónia, alguém meter uma chave na ranhura da porta, para me vir assaltar, grito, possesso: – Entre Irene, a casa é sua!
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPlotino e a bibliotecária Afirma Plotino, preto no branco, que nunca o olho lograria ver o sol se não contivesse, de certo modo, ele mesmo o sol. É um conceito mágico de identificação do sujeito e do objecto, de coincidentia oppositorum. A óptica confirmou este facto. Mas, antes, a Grécia mitológica registou dois momentos em que, pelo contrário, se tramou um recuo do olhar em relação ao objecto, instaurando, uma disjunção, quer por encapsulamento onírico, quer como vinco naturalista. O primeiro corte ocorre no episódio em que Hermes, com melífluos acordes de flauta, devolve ao sonho a última pálpebra de Argos. Argos é decapitado em virtude de a música ter produzido um curto-circuito entre a sua vontade (programada para tudo ver) e o desfrute contemplativo a que a melodia o arrastava – que, com notas e harmonias imprevistas, pregueava a suposta lisibilidade do visível. Argos não estava preparado para a abertura ao desejo, ao devaneio, e o seu olhar, enublado pelo apreço às volutas da música, começa a sentir como um estorvo a sua missão… e desata a querer descolar do que «vê» – reconduzidas as suas visões apriorísticas ao sonho. O segundo caso teve lugar quando Perseu, pelo reflexo no escudo, surpreende Medusa de olhos fechados. Perseu, atónito por não ter sido imediatamente transformado em pedra teve um momento de dúvida e quase embarca no desvelo da promessa de harmonia que as pálpebras cerradas de Medusa desenhavam. Reagiu a tempo e antes que ela abrisse as pálpebras cortou-lhe a cabeça. A Górgone não acolhia o olhar do outro – sem admitir o contágio, a afectação recíproca, tatuava de uma vez na retina alheia a sua cartografia para a memória. Górgone é o símbolo das imagens cristalizadas num repertório auto-centrado, imune a variações: «Na face de Górgone opera-se um efeito de desdobramento. O voyeur é arrancado de si mesmo, destituído do seu próprio olhar, investido e como que invadido pelo da figura que o encara; (…) o que a máscara de Górgone nos permite ver, quando exerce sobre nós o seu fascínio, somos nós mesmos no além (…) a verdade do nosso próprio rosto» diz-nos Jean-Pierre Vernant. No além: no núcleo mesmo de uma radical ausência a si mesmo. Apelo da pedra, poder de morte. Górgone representava a Hollywood do seu tempo, uma máquina de converter paisagens em moldes de produção e em receita. Nos sonhos da Idade Média cabia ao corpo inteiro ser o próprio olho do Diabo, embora o optimista Pedro Damião acreditasse que em cada um dos cinco sentidos havia uma porta que o decoro e uma vontade férrea para rejeitar os impulsos hedonísticos podiam fechar (tempos infelizes, aqueles). Inúmeros são também os olhos que a mãe de Dante, com susto, atribui ao filho. Segundo um sonho de grávida, relatado por Boccacio, Bella vê o filho metamorfosear-se num pavão real e abrir a cauda com os seus mil olhos. O Renascimento, ao invés, projecta-se como uma alba compadecida e avulsa, à parte de qualquer diabolização: o corpo devém senhor da imagem e a perspectiva espacial inscreve-se na medida (anatómica) do gesto. A partir daí o olho vê o que o corpo mede. Essa transparência, na inocência que a neutralidade da perspectiva encena, anuncia o écran cinematográfico. O século XX abriu uma nova fenda na visão pois começou por tratar a figura pelo excedente que a sua relação com outras figuras introduz. Um corpo isolado passa a ser um perjúrio. Era a reacção da pintura contra os moldes realistas e a imobilidade calcária da fotografia, atraída pelo enlace da narrativa e a inter-relação dos movimentos. Entretanto, a “arte do raccord” reforçava a suspeita sobre a identidade unívoca das figuras, fazendo prevalecer sobre os gestos o intervalo rítmico entre eles: assim se capturaram, escondidas na ambivalência das imagens, algumas insuspeitas invariantes, uma intencionalidade não declarada. Um filme de Tarkovski é uma rede que erra em busca do Peixe do Invisível e o tempo mana nele como as turbulências num rio ou as dobras nos panejamentos de Leonardo. Por outro lado, a publicidade entreteve-se século XX adentro a alternar variações para a máscara de Baubó: um sexo dissimulado de rosto, ou, antes, um rosto reduzido ao gracejo de sexo, sem dar conta de que se ia favorecendo a ferocidade dos animais que se entredevoram e que com isso se aboliam as leis da hospitalidade. Talvez se prenda aqui a razão para Blanchot nos prevenir de que todos os dias há uma coisa para não ver. No visionamento de um filme catalão permeado pelo trabalho do luto ocorreu-me esta possibilidade: imaginemos um povo sem palavras, mas cujo olhar ritualístico, intencional, de cada geração por alguns objectos e totens, restitui, com a atenção que os seus progenitores já haviam escrutinado, a temperatura das coisas que permitem o apelo da memória, que o mundo se torne sustentável. Só a plena vigência do olhar, confirmando o detalhe, a invisível pulsação das nervuras ou da sua geometria, na árvore ou nas pedras, as descongelaria do seu estreme esquecimento. E, contudo, apesar de avisado, ceguei, logo ao primeiro encontro, nas badanas do labiríntico desejo da bibliotecária de olhos verdes a quem calhou ir perguntar que edições haveria de Plotino e em que línguas; grácil e voluptuosa bibliotecária que, nos meses seguintes, se revelou uma amante de um pródigo desregramento como talvez só da Cleópatro haja registo. O meu olho está embutido na sua carne como o ar molda as vagas que se sucedem na oceânica pélvis de Deus. Coincidentia oppositorum. A óptica confirmou este facto.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasVamos ao Nimas II “Don’t look up!”: um produto genuíno e bem calibrado da indústria de que emana, sem merecer nem as paixões que move nem o descaso de tantos. Aliás, talvez mais interessante de analisar seja o debate que provocou e ter-se descoberto que, afinal, sob as pedras da calçada não há a praia mas uma legião de críticos de cinema. A fita é uma paródia aos filmes-catástrofe a que juntou uma oportuna sátira política à mentalidade e à pauta de comportamento dos neo-liberais. A narrativa expõe logo as suas premissas, por um lado o seu espartilho e por outro a garantia de que o esquema se cumprirá. Daí a estereotipia das personagens, só existem para ilustrar o tema e não para evoluírem para algum tipo de autonomia orgânica e existencial – simetricamente, as suas diferenças complementam-se e justificam o estado das coisas. Não podemos deslindar no filme os traços do seu género – a paródia – e a meio do jogo esperarmos que se mudem as regras. Também os géneros são condutivistas. Esperar que este filme nos reservasse surpresas é como supor que um lavagante escorregará à vontade nos intestinos de Bolsonaro, se afinal um simples camarão o obstrui. Há regras aristotélicas que não se compadecem com as mudanças. A alguma eficácia satírica de “Don’t look up!” depende de tudo ser previsível na sua estrutura, é o que torna aqueles políticos ou aqueles pivots televisivos abjectos – i. é, incapazes de grandeza, de reconhecer que há coisas sérias e fora da dimensão do espectáculo ou de serem susceptíveis à mudança (, já que ser dignos está-lhes vedado: o show off devorou-os, como ao cientista a pivot televisiva). O molde que os conformou é rijo como as carapaças dos caranguejos, que anda para o lado quando quer avançar. Aquilo que, ainda assim, “Don’t look up!” nos apresenta em modo crítico é-nos servido em “Homem-Aranha – sem volta a casa”, de modo jubilatório. Os filmes da Marvel estão para o cinema como os placebos para os remédios. Uma semana depois de ter abandonado a fita aos 40 min, ainda continuo atordoado. Por que há-de ser o prazer néscio? Escrevi por descarga, no Facebook: «Se visse esta fita com o meu neto mergulharia na culpa infinita de o ter estupidificado, se o visse na cama de hospital desejaria morrer por não haver redenção para este grau -zero em matéria de gosto… Que Deus (que é ateu, como eu) perdoe aos milhões de carrapatos que tornaram este “filme” um mega-sucesso de bilheteira. O que só indica que a frivolidade e a menstruação das múmias congelaram os cérebros. Trump vai voltar, melhor sintoma do que este não há!» – mas a coisa é mais triste. Bom exemplo de cinema, para traçarmos um contraste, é “O Poder do Cão”, de Jane Campion (o melhor da realizadora em muitos anos). Este western, para além de nos arrebatar pelo modo como nunca se esquece do espaço como dimensão cénica (em vários planos as montanhas ganham a maciez de uma pele de animal), sufoca-nos com a teia psicológica que o carismático vaqueiro arma em redor daquele adolescente irresoluto e de dúbia sexualidade. Como as aparências nos enganam. Durante uma hora vivemos a angústia do cordeiro que sente a águia a pairar. O espectador é penetrado pela atracção e o conflito entre as personagens, bem enfatizado no choque entre a escala das paisagens e a intimidade do drama. Não há um plano neutro, uma cena neutra, tudo é indício numa escalada natural da emoção e, neste filme, a inteligência finta-nos, surpreende-nos, sidera. Nos filmes da Marvel já é indiferente a posição da câmara (intenta-se o olhar ubíquo de Deus, no afã de tudo mostrar e de tomar o espectador por idiota) e os seus enredos não oferecem um verdadeiro conflito, um prévio determinismo associado aos poderes dos super-heróis reduz o Mal a papel-bolha. Não há limites físicos para os heróis, a dor, neles, é uma mera questão turística – os obstáculos atrasam apenas a rendição do Destino à eficácia dos seus poderes. Ora, justamente, como na tragédia grega, o cinema vive do conflito entre a irrevogabilidade do Fado e a vontade das personagens, sendo aquele um obstáculo a que nem os deuses escapam. Hollywood inventou os finais felizes, mas não raro as mais magníficas personagens derrapavam num sentimento da perda, só lhes sobrando a dignidade, uma redenção nada isenta de sacrifício. Há pouco assisti com deleite e susto a um vídeo onde o Tarantino enumerava os 20 melhores filmes deste século, na sua perspectiva. Vi depois o filme japonês que ele elege inequivocamente como a obra-prima do século, “Battle Royale”, e conclui, o Tarantino percebeu que na América ganha mais se der sinais de não ter crescido e exalta filmes muito imbecis para que se realce que ele é melhor cineasta que os seus modelos. É uma boa estratégia. Já nem se procura que a técnica sirva adequadamente o ethos da história e a tessitura emocional das personagens. O marketing e a pirotecnia tecnológica abafam tudo. São grandes espectáculos mas são derivados do cinema, tal como o néon tem a forma da salsicha sem lhe atingir o sabor. Se senti um desequilíbrio em quase todos os últimos filmes de Scorsese, tão virtuosos tecnicamente como vazios na espessura e no interesse humano dos personagens (e estou a falar de um dos melhores), como encarar esta vaga de fitas da Marvel? É um equívoco procurar aqui uma correspondência da “arte pela arte” que, noutras disciplinas artísticas, desencadeou algum amaneiramento estilístico. O Tarantino, com a eleição de “Battle Royale” pôs as cartas na mesa. As indústrias culturais já não servem a arte – a memória desta é um escolho e por isso apostam agora todos os seus trunfos na fraude. Entretanto, já pensaram, o mesmo argumentista que deu aos primeiros filmes de Scorsese um carácter especial, uma profunda densidade humana, é o cineasta da “moda” nos últimos anos – Paul Schrader?