Para onde vamos?

À acusação de que a ONU não actuou em relação aos crimes cometidos pela Ucrânia no Donbass, António Guterres, bem, ripostou com o óbvio: “Não temos tropas ucranianas no território da Federação Russa, mas temos tropas russas no território da Ucrânia”. Justificou-lhe depois Putin, “o problema com a Ucrânia começa com o golpe de Estado que teve lugar em 2014. É um facto inequívoco.” E repetiu a lenga-lenga da nazificação que apaga as referências à cultura e às línguas russas do território. Palavras em conserva.

Seria útil que a Assembleia Geral da ONU, os russos algemados às cadeiras, visionasse os filmes de Sergei Loznitsa, o cineasta ucraniano, sobretudo Maidan, de 2014, precisamente sobre os movimentos populares que levaram ao golpe de 2014, e Donbass, de 2018. Ambos os filmes proibidos na Rússia. Ideologias à parte, os filmes ajudam-nos a compreender o que se passa hoje e o nível de incompatibilidade cultural e emocional entre os dois países.

Em Donbass, o filme sobre a guerra civil na província homónima, uma coisa ressalta: é um filme verdadeiramente incómodo, exasperante para os dois lados (- pelo subentendido do que possa ter gerado a crueldade que nele se expõe). Só que, enquanto o filme foi proibido na Rússia, o “nazi” Loznitsa condenou há dias, de forma veemente, na revista Variety o boicote ao cinema russo – imensa diferença.

Duas sequências se destacam em Donbass: a do “exterminador nazi” que é exposto ao linchamento popular e a do incauto comerciante chamado às autoridades locais – em “zona libertada” pelos separatistas – para recuperar o jipe que lhe havia sido roubado e é confrontado com “formalidades” que “formalizam” a “doação” do seu carro ao Governo Popular, ao que se acrescenta uma chantagem para extorsão de dinheiro. E os argumentos são redondos:

“Você ou apoia esses monstros, esses fascistas, ou está connosco?”. Ou cede, ou irá para o linchamento. A grande máxima da vida prática que os líderes do Novo Poder patenteiam é “conservar o que se tem, apanhar o que se pode”.

E fica claro a corruptela dos termos nazi/fascista, gastas senhas para justificar de antemão as arbitrariedades do novo poder. Conceitos em conserva. Como, antes do encontro com Putin, para Bolsonaro e vários milhões, comunista significava: aquele que come criancinhas. Alguém admite dúvidas quanto aos comunistas terem sempre uma criança de reserva no congelador?

Não se trata de uma questão de pontos de vista, mas de mundos diferentes, duma total assimetria traduzível na discordante relação quanto ao valor e aos significados atribuíveis às palavras. Para Putin, como para Trump ou Bolsonaro, consoante o desejável predomínio da vontade deles sobre a realidade, as palavras travestizam-se, ou mudam em conserva. Para os russos nem sequer há guerra, a Ucrânia submergiu num momentâneo estado de sonambulismo (como marionete do Ocidente) que não a deixa identificar os trilhos da paz e os ucranianos estão a ser salvos de si mesmo.

Ocorre-me a história que P. Jacob conta no seu livro O Empirismo Lógico:

«O físico Szilard anuncia um dia ao seu amigo Hans Bethe que decidiu escrever um diário:
-Não tenho a intenção de o publicar; vou simplesmente catalogar os factos para que Deus seja informado.
– Tu não achas que Deus conhece os factos? – pergunta-lhe Bethe.
– Sim, anui Szilard, mas ele não conhece esta versão dos factos!».

Em faltando Deus à loquacidade da fé, o que levou o Papa a desistir de tentar a sua chance como mediador, seria esclarecedor que os renitentes vissem os filmes de Loznitsa – e já agora também o Enterro de Estado, de 2019, sobre a morte de Estaline, porque é nesse estado de canonização que se imagina o Novo Czar – para que conhecessem essa versão dos factos. É na direcção desse imenso retrocesso que queremos ir?

Mas quanto ao perverso deslize das camadas tectónicas da semântica e aos seus efeitos no comportamento das instituições, valeria a pena lembrar que isto começa lá atrás e é de todos os lugares, como se atesta em A Mancha Humana de Philip Roth, ou neste facto que agora se noticia: «O tribunal de Fairfax, no estado norte americano da Virgínia, tem sido palco do julgamento de difamação contra Johnny Depp e Amber Heard, duas estrelas de Hollywood que revelam um ex-casamento de brigas violentas, uso de drogas e palavras cruéis. O julgamento tem captado multidões à porta do tribunal. A maioria são fãs do actor, que criticam a postura de Amber. Depp processou a ex-mulher por difamação e pede 46 milhões de euros em danos. Amber Heard avançou com a mesma acusação, mas exige o dobro: 93 milhões. A actriz ainda não foi ouvida em tribunal. O julgamento deverá continuar durante as próximas quatro semanas.»

O que é que falta a este ominoso casal? Interiorizar o visco da palavra Vergonha. E o mercado da comunicação que transforma a vergonha e a frivolidade em espectáculo, não é menos venal (ainda que diferidamente) que o mercado da guerra: corrompe, avilta, faz desejar a “verdade” da violência. Perante a condição de sem-abrigo da existência humana a que o horror da guerra nos propende, Amber Heard exige 93 milhões ao seu marido porque, como prova um vídeo que levou a tribunal, Deep bate com as portas dos armários da cozinha. Que democracia resiste a tanta falta de senso?

Palavras em conserva. Como fascista (uma tragédia, a trivialização do conceito). O Jünger, que supostamente o terá sido, tendia a afirmar a necessidade de manter o niilismo à distância. Nada mal, para um fascista. Melhor que a visão progressista de quem diz combater o fascismo e a uma proposta de tréguas contrapõe: «Moscovo não aceita esse tipo de propostas», numa despeitada letalidade não declarada. Porque, matar à fome e à sede aqueles (civis e militares) que escaparem aos bombardeamentos de Mariupol, à puridade, apenas significa Encomendar-lhes as Almas – exultemos!

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