Comboios astrologicamente vigiados

Nada me preparara para o sonho que me enovoou, entre Coimbra e Aveiro:
«Duas mulheres belas, altas, desengonçadas, ainda na leveza dos vinte, mas com a airosa gravidade dos trinta a poisar-lhes suavemente no semblante, uma loura e outra ruiva, conversam no banco ao meu lado. Num à-vontade que se exala ao arrepio da máscara. São manequins e adoram o que fazem, embora a covid lhes esteja a ratar os planos:
– Oh pá, é mesmo azar, tinha três desfiles de grande expressão nos próximos meses, um em Santander, outro em Paris e o último em Roma…
– Não digas nada, amiga, eu estava combinada para Barcelona e Biarritz no próximo mês. Tenho marcada uma sessão para a Vogue que, talvez, se realize, o resto é uma banhada…
– E o teu agente?
– Que tem?
– Ainda te responde? O meu anda aos soluços…
– Felizmente, mas tenho amigas que se sentem abandonadas.
– Shit para este tempo que nos coube.
Resolvo interrompê-las:
– Desculpem meter-me na conversa… mas estes tempos só exigem novos palcos, está tudo por reinventar…
– Desculpe, como assim? – pergunta a loira.
– Pensem no efeito de usar-se o comboio como passarela, em sessões contínuas, da carruagem 2 à 23…
– Seria o caos…- reage a ruiva.
– Não vejo porquê? – insisti – seria uma mera questão de disciplina e de horários. O vosso público mais aficionado, pelo inédito da iniciativa, tomaria o comboio por curiosidade, e teriam além disso um público novo, o dos viajantes normais…
– Já viu a confusão, com as entradas e saídas de pessoas? – voltou a loura a objectar.
– O Alfa Pendular só pára três vezes, os intervalos entre as estações seriam o período ideal. E admitamos que se faria à noite a passagem de modelos… Vocês representam a beleza, o glamour… Já viram o vislumbre, quantos milhares de pessoas viriam às janelas de sua casa a essa hora para vos ver passar? Na beleza fosfórica que seria a vossa, à passagem veloz do comboio?
– Como cometas…- admitiu a ruiva.
– Sim, cometas concretos, com nome, rosto, e uma beleza intangível… A junção improvável que alimenta o sucesso.
– Gostei… – ponderou a loura – O que faz o senhor.
– Sou poeta, mas isso não importa agora… Sabe que nome daria a esses desfiles?
– Não… – mostrando-se ansiosas.
– Comboios astrologicamente vigiados.
– Não sei se entendo. – atreveu-se a ruiva – Porquê vigiados?
– Vigiados pelo bom-gosto, no sentido de estarem superiormente devotados à elevação do olhar pela beleza. O que é comum é a cultura de massas nivelar por baixo a educação estética, vocês, como anjos, irradiariam a excelência que nos pode salvar… Cromaticamente, pelo relâmpago dos figurinos e a elegância que os estilistas emprestam aos modelos, e depois pelo vosso natural… Astrologicamente, porque vocês são estrelas de bons augúrios…
– A ideia é muito boa… – concedeu a loura, entusiasmada – poderíamos falar com alguns estilistas de renome…
– Eu sou amiga pessoal da Victoria Beckhman. Vou telefonar-lhe, tenho a certeza de que vai entusiasmar-se…- reforçou a ruiva.
– Isso, eu falo com a Anabela Baldaque e a Fátima Lopes… – prometeu a outra.
– Tenho a certeza de que com alguns nomes sonantes a CP aderia ao projecto, … Mesmo em época de vírus, algo precisa de salvar a soturnidade em que estas viagens se tornaram… Se quiserem escrevo-vos o projecto e vocês apresentam…
– E como poderíamos agradecer-lhe? – perguntou a ruiva, de olhos brilhantes.
– Isso é simples… – brinquei – se “tatuassem” uns versos meus, no colo, num braço, na perna, no ventre… plantados nalgum lugar visível do vosso corpo, já me sentiria bastante recompensado… Já deram conta da variedade de formatos nos média em que vocês aparecem, que melhor montra para a poesia?
– Outra boa ideia…- espantou-se a loura.
– Sim, cada modelo adoptaria um poeta. Sabem, pode ser essa a salvação da poesia… Vocês gostam de poesia?»
Acordaram-me nesse instante, as duas majestosas mulheres. O meu caderno caíra no chão e uma delas devolvia-mo. Agradeci-lhes. Iam sair em Aveiro e o comboio entrava na gare.
– Desculpe acordá-lo… – disse a loura. Mas agora vai entrar muita gente e temi que o seu caderno fosse pisado…
– Obrigado… – balbuciei, num sorriso tímido.
Teria ressonado? Preocupou-me a imagem com que teriam ficado de mim.
Nada me preparou para esse sonho porque há três meses que essa campanha abrilhanta as viagens nocturnas na CP. A operação revelou-se um sucesso internacional, sendo repetida nos países do núcleo duro da moda internacional. E também a minha ideia de cada modelo adoptar um poeta foi seguida como lei. Com um sucesso de arromba. Cada poeta escolhido passou a vender milhares de livros por edição, num rompante.
Em Portugal foram oito os poetas escolhidos.
E nenhum verso meu aflora a clavícula de qualquer modelo, orvalha um decote, ou torneia a barriga de alguma perna. Até o nome copiaram – e o copyright internacional do projecto pertence às duas modelos portuguesas, mais à Victoria Backhmam a quem com certeza elas ludibriaram dando por sua a ideia.
Há três meses que assisto atarantado ao êxito retumbante, por toda a Europa, da campanha dos Comboios Astrologicamente Vigiados. Tentei chegar a acordo com elas, mas riram-se na minha cara quando lhes assegurei que fora eu quem tivera a ideia e lhes transmitira num sonho. Processá-las num sonho e receber a indeminização na vida real será igualmente possível? Já dois ou três jornais zombaram da minha história, como ridícula.
Há três meses que sempre que ouço, a meio da minha insónia, alguém meter uma chave na ranhura da porta, para me vir assaltar, grito, possesso:
– Entre Irene, a casa é sua!

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antónio cabrita
antónio cabrita
Responder a  Irene Murcho
28 Abr 2022 13:49

É boa, desconhecia. Obrigado.