Paula Rego

DR

07/06/22

Raramente se encontra um melhor argumento para a necessidade da arte do que este, avançado pelo humanista e cientista Jorge Wagensberg:

«Olhar para trás é uma tarefa complacente, mas certas paisagens debotaram e, enquanto não se melhorar muito as técnicas de leitura, já não é possível saber quantos coices deu o cavalo de Napoleão; outros lampejos, em troca, como a Sinfonia Concertante de Mozart, permanecem claros e nítidos».

Em tempos de guerra como este, este argumento vê reforçada a sua pertinência, porque à guerra – como nesta disputa se tornou claro – motiva-a o passado e a vã ilusão de fixar o número de coices que deu o cavalo do Napoleão.

É a obsessão que orientou Putin, como, antes dele, inspirou outros corifeus da guerra: ressuscitar o império, reencontrar a pureza da alma eslava ou concretizar o velho sonho da Euroásia, não passam de facetas duma mesma crença, a saber, a solução para o mundo expressa-se no número cabalístico incarnado pelos coices que deu o cavalo de Napoleão.

Compromete-se a dignidade do presente e a do futuro quando insistimos em querer esvaziar o mar com uma forquilha. O passado não volta. A oportunidade que se gorou no passado não volta. O instante que acabou no momento em que digito esta frase não me tornará mais novo.

Suponhamos que a guerra se alastra e os beligerantes tiram das gavetas as bombas de neutrões. Daqui a cinquenta anos aterram os extraterrestres e encontram Paris, Moscovo, Joanesburgo ou Nova Iorque semi-devastadas e habitadas pelos ratos e o vento, sem sombra de humanos. Saberão ler nos vestígios a insanidade da guerra, que o homem não assimilou que se na natureza tudo é possível nem todos os acontecimentos virtuais são desejáveis ou plausíveis; que existem leis para restringir o caos e que devem ser seguidas. Mas encontram estátuas, um ou outro lance arquitectónico, arquivos, livros, imagens, e, num velho aparelho que activam, ouvem Bach, o Love Supreme de Coltrane, a nona Sinfonia do Mahler; são atraídos pela Notre Dame, de Paris, que, face à vacuidade de tudo, se ergue então como um alento misterioso.

E percebem pelo contraste entre a dor que o homem infligiu a si mesmo, extinguindo-se, e aqueles exemplos de uma exuberante fluidez harmónica, ou mesmo dissonante, que realçavam momentos de algum ajuste, de algum sentido para figurar uma busca de infinito, que se a insanidade havia vencido no planeta isso não representava em exclusivo o homem. O que nos degradou não havia eliminado a energia que nos arrancava do chão em busca de um equilíbrio, talvez cósmico.

Entram num museu de arte e vagueiam por entre as imagens, atentos ao halo que as obras humanas resgatam, aqui e ali, como testemunho de um certo viés para a beleza ou de um sentimento de exílio, mas ao arrepio da destruição.

Não era muito, mas esse testemunho repunha alguma dignidade. E resolvem levar algumas obras, uma pintura da Paula Rego, outra com uma estranha arquitectura de Robert Matta, onde curiosamente se sentem retratados, a dança dos estilhaços em Cold Dark Matter de Cornelia Parker (- antes, noutra sala, os extraterrestres haviam aproveitado a Fonte, de Duchamp, para urinar, e num relance às Sopas Campbell, de Warhol, não lhe descortinaram a validade, o que me faz desconfiar que estes extraterrestres se alimentam por fotossíntese).

Daqui a cinco séculos, a treze, ou naquilo que nos recordar e for levado pelos visitantes da Constelação de Orion, o que será digno de memória são as pinturas de Paula Rego e não os mísseis de Putin e Biden, por muito que isso custe a quem nos agride só perdura o que dá a vida. O mais são os coices e os flatos do cavalo do Napoleão – pó, sem terra onde poisar.

08/06/22

À procura de outra coisa, encontro esta afirmação de Simone Weil: «No mal, como no sonho, não existem leituras múltiplas. Daí a simplicidade dos criminosos. Crimes lisos como os sonhos dos dois lados: lado do carrasco e lado da vítima. Haverá algo mais aterrador do que morrer num pesadelo?».

Eis o portador do mal refém do seu olhar unilateral, dogmático, da sua impossibilidade em reverter os efeitos da sua própria crença. De cada vez que perpetra o mal, só se rebaixa, esgarçando ainda mais a possibilidade de conseguir ler o fio da relação entre as coisas. Paranóico, devido à suspeita de poder haver algo que possa não controlar, apega-se à inteligência. Só que esta, noutro dizer luminoso de Simone Weil, «não tem nada para descobrir, tem sim para terraplanar».

Como não pensar nos Senhores da Guerra.

Entretanto, volto a Jorge Wagensberg, que me ensina outras coisas surpreendentes. Por exemplo, que as crenças não são o produto de conclusões, mas, em qualquer caso, de estímulos. Mas igualmente que, se já sabíamos que as crueldades mais absurdas aparecem justificadas por uma concepção determinista do mundo, não demos conta que também muitos artistas e escritores ilustram os seus actos com as leis do determinismo: «O meu romance escreve-se sozinho, tal pintura, tal escultura têm a sua própria dinâmica, obedecem às suas próprias leis, algo guia a minha mão… ou o “Eu não procuro, eu encontro”, de Picasso.» – surpreendente, não é, como nunca tínhamos associado uma coisa à outra?

Leituras múltiplas, e responsabilização nos actos criativos: procuram-se, mortas ou vivas, 10 000 euros de recompensa.

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