Oferenda de massacres

DR

23/05/22

«O quadro Mona Lisa de Leonardo da Vinci foi alvo, no domingo, de um ataque de vandalismo no Museu do Louvre, em Paris. Revela o El País, um visitante do museu atirou um bolo à famosa pintura a óleo, que estava protegida por um vidro de segurança. O autor do ataque estava disfarçado com uma cadeira de rodas e uma peruca. Antes de ser expulso do local, gritou: “Há pessoas a tentar destruir o planeta. Pensem na Terra, pensem sobre isso”.»

Um pastel de nata, um queque, quiçá, um russo? E qual é a verdadeira pegada ecológica da Mona Lisa para ser objecto de um atentado? Está por aferir. Com tanta moldurinha, acho que um saquinho com térmitas abandonadas num canto absconso do museu causava um efeito mais duradouro. Ainda por cima se a ideia era chamar a atenção sobre si, o disfarce deixa-o anónimo.

E imagino do que este acto será precedente: de um novo atentado, que baldeie com cinco quilos de magnum de chocolate algum encardido torso de Victor Hugo, em nome da reparação devida ao Egipto por ter sido um francês a decifrar a escrita egípcia, ou o roubo de todos os cartazes que ainda existam do filme Táxi Driver para serem queimados em praça pública em nome da má influência que o Travis terá tido sobre a educação de Putin.

Já nem Deus nos dá guarida contra esta loucura humana. Bom, há século e meio que foi demitido por Nietzsche, mas ainda confiávamos no discernimento e na equidade que podem emergir com o exílio.

25/05/22

Os americanos foram alimentando em Zelensky a ilusão de que havia entre ele e Putin uma paridade, i.é, a hipótese da dança que pode ocorrer entre um elefante arrogante e um roedor teso quando se encontram numa loja de loiças.

Só que aquele elefante foi educado para fazer a autópsia a roedores e não se assusta. Agora o combativo roedor tenta tudo e até vai a Cannes pedir emprego, já investido numa certa aura de predestinado que aqui e ali lhe diminui a lucidez. Estou a ser um pouco injusto mas há um nítido registo de overacting na condução de Zelensky e às vezes parece que entre Biden, Putin e Zelensky se combina uma oferenda de massacres.

Eu, se fosse a Zelensky, dizia a Putin: queres a região de Donbass, toma-a, queres Mariupol, toma-a. Entregava-as, de mão-beijada. Está já tudo tão destruído que os russos ficavam diante do vazio do que haviam conquistado. Daqui a dez anos, face ao desenvolvimento da outra parte da Ucrânia, em contraste com a zona conquistada, os de Donbass e de Mariupol ficariam tão revoltados contra os russos que a estes só lhes restaria devolver o que haviam tomado. Eu jogaria mais com o tempo e uma boa gestão dos recursos que choverão sobre a Ucrânia e que lhe favorecerão o desenvolvimento acelerado do que com os mísseis, em nome de um nacionalismo que é a obstinação dos tolos. Nada como um bom e um paradoxal exemplo para virar o jogo.

29/05/22

Uma nota para a aula:

Quando era miúdo o meu pai começou a pintar. O meu pai, que era tipógrafo, foi a casa de um doutor e viu lá um quadro dum boi pintado à maneira dos impressionistas e ficou banzado. E pensou: mas isto também eu faço.

Chegou a casa e foi comprar tintas e telas. E a primeira coisa que pintou foi um palácio. O que é isso pai, perguntei eu que nunca tinha visto um palácio na vida. E ele responde-me, é um boi. Quando eu fui a casa do dr., senti-me um boi a olhar para o palácio… Mas a casa do dr. era num palácio, perguntava eu sem perceber nada. Não, tinha lá um boi.

Um boi dentro de casa, pai? Um quadro com um boi, e eu é que me senti um boi a olhar para o palácio porque nunca me tinha passado pela cabeça que fosse tão fácil. Por isso cheguei a casa e pus-me a pintar. E queria reproduzir aquele boi, mas só me sai o palácio.

Sem saber o meu pai tinha-me esclarecido sobre a deslocação que se produz na arte, fazendo-me «descobrir aquilo sobre o qual se pode, no poema, dizer que isto é como isso» (Badiou), ou seja que uma palavra significa noutra, respira melhor em trânsito.

É o que faço neste poema de um só verso:
“Um vidro: enche de cerejas a mão!”

Falo do quê? De uma ferida na mão e do sangue que escorre. Embora o raccord mental que me autoriza aqui a elipse, aparentemente tão simples, teria sido absolutamente incompreensível há século e meio, antes da invenção do cinema ter fragmentado o espaço e nos ter habituado às imagens descontínuas no tempo e no espaço – a elipses e raccords.

Foi preciso um século para que esta imagem deixe se ser hieroglífica.
Ou no começo de um poema feito na Macaneta, olhando as ondas a rebentar na praia:
«É nítido, antes de rebentar, espreguiçam / as suas malhas de leopardo.»
Basta olhar para reparar as malhas de leopardo nas ondas, mas só a poesia nos dá a lente para «ver», o que é diferente de olhar. Outra nuance.

A poesia ajuda-nos a duas coisas:
– a voltar a ver, isto é a detectar as intensidades no horizonte amorfo,
– e ajuda-nos a re-ligar num padrão inesperado o que parecia separado, a pele do leopardo na onda do mar.
(Admirava Mallarmé em Gautier “o dom misterioso de ver com os olhos”.)
Deus, a existir, seria o arquitecto desse padrão que re-liga tudo, dar-lhe um nome é que equivale a dar um passo de recuo para aquilo que separa. Já a poesia é uma lente que, no dizer do brasileiro Mário Quintana, nos ajuda a fugir para a realidade, isto é, a unir.

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