Circularidades

28/ 12/ 2019

[dropcap]L[/dropcap]i hoje a pauta de “As Orelhas de Karenin”, que a Rita Taborda Duarte interpretou a quatro mãos com o Pedro Proença, e saiu-me nas margens dos poemas este escrito:

«A minha mão é uma ilha negra que extirpa nos galos a sua semente de alvorada.
Guardo os selos mais valiosos, dois, do tempo do rei dom Carlos, na carteira de mão – herdei-os duma avó, vai para nove anos – só para confirmar matinalmente, em tomando o meu chá verde, o enxuto e espigado recorte da serrilha. Miro-os, ainda a manhã anda a monte.

Há quem lhe chame tiques, prefiro resguardos.
Com a mesma pinça que me afina as sobrancelhas puxo-os para fora e examino-os detidamente; às vezes com a ponta da língua – eriçam-se, e as estampas ganham brilho.
Depois atraio um dos galos, com grãos de bico e um segundo antes que a voz da alba lhe ascenda ondulante do papo enforco-o com a linha do horizonte.
Empalho-os e alivio-lhes as penas com um verniz.
Estão-me todos gratos, juro por Deus, que me transmitiu:
se eu capturar em cada dia novas cristas, as serrilhas dos teus selos manter-se-ão incólumes.

Por isso ele não cantam, cá em casa, não é por mal sou até pela agro e pela avicultura biológicas.
Ganhei este hábito há cinco anos quando me vi nua, no quarto, à espera do meu noivo, depois dele – acabara de pôr a tocar na sala o The touch of your lips, do Chet Baker – se ter escapulido pela janela.
Gosto muito dos meus lábios, é do que mais gosto no meu corpo. Ele também, jurava, catucando-me com o seu bico de galo.»

29/12/2019

Como de costume, trouxe para esta semana de recolhimento na praia o dobro dos livros de que serei capaz de ler; trouxemos o dobro de comida de que seremos capazes de consumir; suponho que terei trazido o dobro dos ácaros, o dobro das espectativas, o dobro da impaciência; toda a vida arrastei comigo o dobro dos filhos que os meus amigos aturavam; tive o dobro dos casamentos, o dobro de inconsciência e irresponsabilidade; bebi o dobro do que me era devido (embora agora tenha trazido metade de bebidas do costume, o corpo pede e eu obedeço); escrevo, dizem-me, o dobro do que é comum escrever-se anualmente; tenho uma temperatura corporal, em média, um grau acima da que é comum, tive uma namorada que me chamava A minha botijinha; transpiro o dobro dos comuns mortais, é um ver se te avias; durmo, de comum, metade do que as outras pessoas dormem; peço sempre, numa encomenda, o dobro do tempo que preciso para a cumprir e metade do dinheiro que merecia (houve uma mulher que me chamava O meu idiota de estimação); é-me, pelo que é dado avaliar, duas vezes mais difícil cumprir um dever, tratar de burocracias (acabo sempre por pagar multas), escrever relatórios, etc.; no entanto sinto-me a pessoa mais desocupada do mundo, tortura-me a preguiça, o meu pendor para a procrastinação (nisto, a minha mulher, que acaba de ter uma grande ideia de editora, é absolutamente igual, e por isso levámos dezasseis anos para casar), assusta-me a minha moleza. Se houvesse um epitáfio justo, seria: Quem aqui jaz não conseguiu ter a arte do caracol, apesar da pretensão!

30/12/ 2019

Deito-me um pouco a ler na rede e só ouço o mar, o trinado dos pássaros, grilagens, os espanta-espíritos, zunzum dos besouros que têm a sua casa no tronco, atrás da rede. Não sei nomear nenhum destes pássaros e também o ar me parece inominável. Se olhar detidamente o jardim, não saberei o nome de metade das flores, arbustos e árvores. Este estado lacunar, paradoxalmente, transmite-me uma grande segurança. É como estar rodeado de gente que fala uma língua que desconheço – não me causa angústia. Nem pesar. Só me dá paz aquilo que desconheço. Como adquiri esta confiança no homem, no mundo?
Fosse eu crente e consideraria esta uma das provas da existência de Deus!

30/12/2019

Com as asas de quantos milhares de anjos caídos se fez a espuma do mar? Uma imagem justa para os tempos de Rilke, hoje, para não ser pires, só se ajusta aos entardeceres, em finais de ano muito solitários, como este que viemos passar à Macaneta, só eu, a Teresa e as miúdas.
Deve ser o último ano em que a Luna de 15 não exige passar com as amigas em festas ou discotecas. Temos de o aproveitar.

A Teresa fez um arroz de cogumelos magnífico ( – com cogumelos, curgetes, um nico de bacon, azeite e alho), e fomos depois à preamar tentar apanhar ameijoas.
Da última vez que aqui passámos o “réveillon” (faz dois anos) ouvíamos Toward the sea, de Takemitsu, e eu escrevi:

«É ao fim da tarde que a praia fica dourada,/ quando amansa o coração das dunas/ e os caranguejos reaparecem, na mira / de chorões, catando os últimos pedúnculos da luz.// A noite não retrocede.// Cada dia que nasce é novo, a noite/ é uma e não retrocede./ Decanta-se, porém, a resistência,/ apura-se como o vinho e amola as lâminas/ para o intérmino combate.// Inantecipável, meu amor, a Arca ascende, / da ordenação das vinhas/ para o extático desarme da música.»

As circularidades não nos cercam, bicefalam-nos, no amor, na música, no eterno retorno do dia, no regurgito com que cada final de ano deixa emergir da sua matéria suja o broto de uma nova era – nesta crónica.
Segundo o Youtube, uma profecia muito seguida dava o fim do mundo para 28 de Dezembro de 2019. Escapamo-nos de mais essa, meu amor.
Caiu-me bem o gin desta tarde.

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