Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasMaré de mar [dropcap]M[/dropcap]ármara. Mar mente. Mar de Aral. Mares e marés, extintos ou por extinguir. Mares. Mares interiores. Marés de vagas mansas ou insubmissas a avançar por nós ou a recuar com a força do que é assim em virtude de ventos e lunares atracções. Solares. Desvios de uma inércia pela força da gravidade. Emoções graves a gravar no corpo rastos de sal. Rastos de sol. Estar em cada momento em cada maré. Estar de maré. Um estar, como tendência para algo, em vagas, em nada definitivo como elas. Que quando tendem para terra, sempre voltam a tender para o mar. O mar e mares. O todo e as pequenas águas. O todo, mais todo, e a parte mais parte. Águas pequenas face aos oceanos. Escondidas deles ou à espreita. Interiores fechados. Interiores isolados. Ou abertos em pequenas deixas, estreitos pontos aquosos de passagem. Mas o interior, sempre interior, o oceano também. Amar o mar. Amar o desafio orgânico, o embalo e o risco. Aprender-lhe o perigo e deixarmo-nos morrer dele. E do risco, uma vez mais apreender a curva de nível, essa linha dos acidentes geográficos, em cotas ou alturas. Da linha do risco, a aureola topográfica que define a insularidade do visível, ou a insularidade da terra invisível por debaixo da água. Insularidades diferentes como eternos símbolos de contentor ou continente. Mar interior. O avesso insular. Tanto mar. Mares tímidos e isolados no seu ser avesso e sem comunicação. Fechados e interiores. Entranhados em terra. Baixos, silenciosos, por vezes mortos. Mortos de vida possível e ainda assim a morrer mais. Como o mar Morto. Que já o era, mas ainda tem vida para morrer. O mar Cáspio, o mar de Aral. Grandes lagos salgados. Grandes lágrimas retidas na face da terra. A secar com o tempo. E outros. E mares alegres ou mediterrânicos, de uma pontinha espreitam o grande oceano e daí se fazem trocas e temperaturas a refrescar no que é vindo de longe e da amplidão. Portas que não se fecham, mas resguardam a interioridade. Outros abertos, pontuados de ilhas e ilhas, estranhas identidades junto a mar aberto, ou ao oceano, dizendo bem. Juntas as águas, mas distintas. Num namoro fluido e duradouro. Abertos ao mundo e sem fronteira nítida entre uma gota de si e uma gota que não é de si. O da China, o do Japão. O mar de Celebes, o de Flores, o de Mindanau. Tantos. Junto a cada oceano, a cada continente. Ou por dentro. Que outras marés de uma vida, de um corpo, se foram com o mar de Aral. Que águas se retiraram como dragões do mar no Triássico, quando um ecossistema emocional se altera no corpo do sentir. Temperatura, alimento. Ou a extinção abrupta das estrelas. Do mar. Milhões atacados por vírus. Coisas tóxicas que matam. As outras, mais lentamente aos olhos. Continuamos a vê-las quando já lá não estão, mas a notícia, esse rasto visual que um dia vai chegar, leva o seu tempo. Como uma dor a instalar-se depois do trauma. Mas não logo. Só quando o corpo a reconhece, repara, passa a sofrer. A doer. Um desfasamento ínfimo no tempo. Se pensarmos no tempo de uma estrela. Estrelas e dragões, num intervalo estreito entre a memória e o mito. Mas mares e lagos, mesmo açudes a entristecer os corações de ausência, e com as suas águas, a vida. A ensombrar olhares de futuro incerto nos interiores. Do Brasil ou da Rússia. O mesmo mundo e a mesma humanidade. A construir por um lado e a destruir pelo outro. Da geografia. De uma geografia como a de sentir. Revela-se uma topografia em linhas sinuosas, desenhos de limites entre camadas em altitude e profundidade como fatias de um real em que nem sempre há comunicação entre vasos. Porque nem todos comunicantes. Mares que ficam abaixo do nível do mar. Como se contrário ao senso sentido comum. Que realidade se desprende de um mar interior. Esse avesso do insular que nos habita. Que calmarias os limitam adentro dos seres que os protegem como continentes. Contentores, na verdade. Aquilo que contém um mar e as marés que esse traz. O que define um mar interior para além dessa contrária imagem, à imagem de ilha. É sempre a terra que esconde, se esconde ou revela. Que se tapa, da fluidez das águas como suaves velaturas e sedosas, ou se desnuda. E os mares. Mesmo abertos para os oceanos, sempre isolados em si. Em ilhas de liquidez e de águas distintas. Outros com apertadas portas para as águas exteriores. Outros, os mais solitários, isolados em ilhas como pequenas peças de roupa a cobrir um seio de terra. Sempre a terra na base de cada chão. De água. Só dos icebergues, flutuantes gigantes de gelo sem mais, soltos e imensos e secretos se diria secretas ilhas. Verdadeiras. Rodeadas de ausência por todos os lados e mais um. O céu. Da imensidão oceânica a devastar progressivamente a terra emersa, na ameaça de engolir como a outra, não vou pensar. Os mares, sim. Os interiores e que mais mansos do que os outros, particulares e pequenos, se distinguem no modo como navegamos. Quanto em nós é levado pelos mares. Quanto de mar interior, se funde no grande mar de contemplação. Perpassando num estreito em que flui a alma. Quando aí se refresca de límpida serenidade, pequenez confortável. Comunicação de iguais na essência, mas a humanidade pequena do pequeno mar, face à humanidade abstrata do enorme mar. Quanto nos embala numa onda suave de melancolia ou poético sentimento de algo, ou nos submerge em reviravoltas de que a custo retomamos as coordenadas, sustendo a respiração para que o mar não invada todo o mar interior. E de que a custo, voltamos a emergir. Mar perigoso o grande mar. Quanto mar agita. Quanta água afoga. Quanta mágoa afoga. Ao longo de uma vida. De um dia. De um dia na vida de mar interior. Tanto mar.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialPonto Preciso [dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á um ponto. Não sei se é no tempo no espaço ou em mim e de que maneira. Olho pela janela com a memória do bicho no colo e a cortina invisível adejando subtil e sensível às brisas secretas, é uma inquietação sem limite. Foi talvez um comboio que partiu e agitou o universo. Um pensamento fugaz. Uma lembrança. Ou o peso incerto deste outro bicho. Sempre que me sento, com o bicho pendurado num ramo, penso nele e há talvez uma viagem que não faço. O ponto alto da estimativa dos dias corridos demais a imprecisão, a indecisão nos gestos. Que se geram e interrompem sem sentido nem vontade. O que não tem estimativa possível. O que pára. O que trunca o destino. O que não se estima. O que se estima e mede na falta da autoestima. E das árvores, dessas, não reza a história, ficam para sempre paradas no chão, no respeito pelo sono do bicho bom, branquinho, que já não está, que foi para o céu. Resta o outro, de sempre. Penso nele como num dos pecados capitais. E não consigo deixar de pensar neste pequeno fragmento de Kant, que há tanto, tanto tempo disse o que continua tão actual: “A preguiça e a cobardia são as causas porque os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (…) / continuem, no entanto, de boa vontade menores durante toda a vida(…).”.Menores nos passos a cobrir caminho. Menor o caminho. E tanto mundo a fazer… olho para o espelho como se as árvores se vissem ao espelho. Tenho um bicho encavalitado no ramo da esquerda a pesar-me. Não devia fazer parte da natureza humana, contornar os assuntos difíceis da psique. Tendo uma só oportunidade de lidar com a vida nas suas complexidades, tenho a ilusão de que se avança com mais descanso olhando de frente, espreitando-lhe os cantos antes de dormir, e atrás das portas, e com ela nas pontas dos dedos, nas palmas das mãos. Como folhas a recolher em grandes haustos o ar necessário e a expelir delicadamente o que sobra. Enfim. Esta proliferação de bichos a circular pela casa para que nem tudo se encerre nos eternos e nunca silenciados diálogos interiores que se desenrolam nestes corredores dia após dia após dia e após. Bichos domésticos e monstros fantasmagóricos a subir pelas paredes. Coisas domésticas, como o nome indica e íntimas de portas a dentro, a distrair uma unidade consistente e solitária que não gosta de se ver ao espelho. Nem seria preciso. Sentem-se por aí como um peso, uma obrigação a cuidar. A esconder das visitas não vão morder ou afiar as garras onde não devem. Da preguiça, esse bicho que cuidadosamente cuidamos na nossa casa, no colo, no ombro e na cama, com aquele sentimento misto de rejeição e inevitabilidade. De quase afecto. Porque nos acompanha e protege. Da destruição, de nós mesmos, talvez. Ou desamor, porque nos protege de voar. Com as dificuldades técnicas em que a alma emperra de súbito. Aquele peso no ombro esquerdo, que deixa mesmo assim liberdade ao outro braço. Ramo. Como um saco de dúvidas, que ultrapassam a margem do conforto doméstico em que convivemos, vivemos e fazemos viver, esse animal manso, profundamente íntimo e caseiro, pequeno no porte mas denso de presença e pleno de interrogações. Como uma marca profundamente gravada na pele por garras que foram concebidas, no acto de criação do mundo, para outros efeitos. Bicho peludo e pacato, entre os cinzas e umas texturas riscadas a confundir com os galhos onde vive bem alto. Longe de terra e escondido do céu. Bem longe de tudo afinal. A dormir catorze horas por dia. Que sorte a do bicho. De metabolismo lento e pouca actividade. Há subespécies de dois e três dedos. Não sei agora, assim de repente, qual é que exprime a aversão ao trabalho. A mais conhecida, vinda como as outras das matas e florestas da américa central ou do sul, assombrar um mundo inteiro. Não é essa a que me importa. Que viva com as pessoas que não gostam do que fazem. É aquela outra. Num ramo diferente na evolução da espécie, mas aparentada, insegura e tendo como ramificação, um outro bicho, em tudo semelhante à preguiça comum. O mesmo pêlo a confundir-se com a casca das árvores, a mesma inactividade estrutural, a mesma lentidão e inocência. Camuflada de contornos inseguros, meio desfocada entre papel e estatuto, vocação teatral, sempre escondida atrás da sua personagem. A que vive por aqui e se dedica ao teatro fervorosamente. A um teatro de que é preciso descobrir segredos camarins e bastidores. Destapar frascos de maquilhagem, cheirar os cremes e perfumes e tocar os trajes de cena. Os limites. Que aparece sempre mal disfarçada da sua personagem preguiça favorita. A insegurança. Em todas as peças, uma, fundamental a desempenhar a preguiça. Essencial como um ponto. Ali para lembrar o esquecimento súbito. E tem todos os sinais de entender bem por dentro o que a move em cena. Vem disfarçada de sono, de cansaço, insegurança, indecisão. Não – espera – quem é quem, afinal? Quem é quem o bicho actor e quem é quem a personagem bicho. Não confundir as coisas e trocar o mestre pelo aprendiz. Pobre personagem bicho. Não caça, não faz mal a ninguém. Não tem alma de predador. Trepa à árvore e ali fica pendurada num braço esperando que este não se me mova ao vento, nem este a disfarçada pelagem que cresce em contracorrente no ruído das folhas e texturas do corpo. Da árvore. Num todo vegetal de aparência. Mas enquanto dorme custa à arvore deixar-se levar a dançar com as correntes de aragem mansa para não lhe incomodar o sono o silêncio o modo. Como um gato no colo. Se fosse pessoa. Mas árvore em que se dependura no ombro e no desconforto de o não poder fazer de costas viradas para baixo. Olho-a e sinto-lhe o peso no ombro esquerdo e, por respeito ao sono do bicho, estendo o ramo para lhe dar espaço e sinto-o acomodar-se dependurado como é seu hábito, mais pesado ainda, mas confortável nesta posição. Confortável para ele. Para mim, não. E ali fico de bicho encavalitado no ramo em riscos de se partir, e a avaliar-lhe as qualidades e razões. Porque veio. Porque habita comigo há tantos anos se tantas vezes não o deixo dormir a horas. A espiar a mansidão do bicho, a lentidão da vida. Não porque queira – pobre animal – mas porque a biologia o fez lento das células e mecanismos fabris para dentro. O criou vagaroso no metabolismo. Tão lento em tudo, porque tudo lhe requer uma reserva extra de energia para viver. Somente isso. E que precisa de poupar não se dando a muitos esforços. Mesmo as necessidades fisiológicas de limpeza, uma só vez na semana. Uma só. Descendo da árvore e ali mesmo aos pés desta. Alimentando-a com os próprios nutrientes das matérias que desta ingeriu. Diz a enciclopédia. Ali em baixo para não ir mais longe. A contornar a linha circular da sua existência sedentária em circuito fechado. Um ciclo que se alimenta a si próprio. Circular. Bicho preguiça a alimentar-se da árvore em que habita uma vida inteira, e a alimentar as defesas da vida face a si própria. A defender o que o defende. A economizar energia vital. Então porque veio? Por isso mesmo. Para defender de cada batalha incontornável escondida em cada esquina incontornável sem ela. De cada decisão difícil e que se teme congenitamente poder abalar toda a árvore. De cada confronto e avaliação a que cada troço da floresta traz ou leva e no qual incorpora todo o saber, todas as possibilidades de equação, de questão, de interrogação. De validade, dúvida, qualidade. Um esforço imenso em que tudo se pode perder, de si, do caminho, do sentido, da orientação. Dúvidas. Esse animal de que falei. Insegurança de seu nome secreto. Sempre disfarçado em trajes de carnaval no teatro da vida, da vida de uma árvore. Com o bicho encavalitado num braço. Lá bem em cima. Longe do chão e escondido do céu pela folhagem. Longe do olhar, longe do coração. De predadores. De aparência inocente. Mas aquela atitude dúbia de certas pessoas que nos entram pela vida adentro e não sabemos bem se nos fazem bem ou mal. Um bicho de pelo sedosos e quente. Que nos impede de levantar de uma cadeira para não o fazer despertar e desmoronar em questões. Quezilentas e difíceis questões que temos naquele nível subliminar, em cada patamar de escada a subir. Mas sempre à espreita. Ou que temos sempre na frente mas a que podemos voltar a cara como sem reparar. Há pessoas que têm livros completos possíveis e caminhos. Só de voltar o olhar para si e teclar um pouco. Músicas sem retorno. As do fazer. Desperdício de melodias por tocar. Temor do embate face a uma face que vinda a lume se revela com qualidades e defeitos. E um olhar que vêm muitos, e às vezes poucas. Mas o bicho doméstico não gosta de ver a casa desarrumada com outras presenças desconfortáveis, ruído nítido e diálogos imprescindíveis quando se tem visitas. Bicho ciumento da etérea atmosfera da casa arrumada, que tudo permite imaginar, mas nunca avança para fora dessa cortina de porvir e possibilidade. Satisfaz-se assim. Sem visitas indesejadas. Inconformismos, trabalhos difíceis. Coisas que obrigam a pensar. Que ficam serenamente mentirosamente adiadas para um dia mais tarde. Só um dia. Logo ali. E que às vezes nunca chega. Mas que fazer se temos que amar o que temos. O que nos protege. E uma casa feita de discussões e fantasias é uma batalha contínua numa guerra nunca vencida. É uma forma, a sua forma de armazenar, preservar energia por longos períodos. E como sempre na coabitação, passa a ver-se a vida com dois pares de olhos. E os deste animal a colorir de inevitabilidade a luminosidade de alguns sonhos. O que é o sonho, um conjunto de possibilidades remotas ambições uma térmica memória em desejo, mas que previamente se antevê como remota fantasmagórica pretensão a excluir do mundo dos vivos. Na alma pequenina do animal. A preguiça. Bicho felpudo que se instala no ombro esquerdo. De pêlo macio e quente. Ao qual se encosta carinhosamente o rosto, em sereno e triste desalento, a fazê-lo sentir-se bem. Esse – outro – bicho encavalitado no galho ressequido da direita sempre em riscos de se quebrar. São dois ou a dissociação vítima da desfocagem que os separa meio tremidos em dois. Dois que são personagem e actor. E a sobrepor-se rapidamente e no mesmo movimento em que voltam a dissociar, e a coincidir e a separar, e a confundir. Se. E são duas e já uma só e de novo. Nunca estática, em estonteante movimento de… pára. Pára tudo. Um estonteante e alternado estado de dupla imagem ou de imagem desfocada e tremida nos limites, e por aí fora num caleidoscópio linear como carris de uma câmara de cinema, sintético cansativo e desesperante. Ou já um vinho a mais, a fazer efeito. E quanto fica por habitar, por experimentar por desvendar, por descobrir por representar e escrever e tentar e falhar. E falhar melhor. Sabe-se. Como se se soubesse. O ponto preciso. Onde colocar o dedo e doer. Digo. Digo num daqueles meus diálogos interiores. Senta-te. Vê como somos ao espelho. Dizem que dorme catorze horas sem se cansar. Não sei. A minha, não. Passa muitas das horas que lhe sobram ao sono, de alma túrgida de ideias e emoções e definições para dali a pouco. Muito pouco. Já ali. No ponto preciso. Em que lhe perco um pouco a amizade e a espanto. Aquela espécie de distracção mágica e inesperada. Aquele ponto de que preciso. Definido, preciso e precioso.
Anabela Canas Iluminação Artificial MancheteMundo a mais que dispõe [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stranha disposição que me acolhe nesta página que fito de soslaio há uma enormidade de tempo. Aqui sentada na minha frente, impávida. Branca a página, cinzenta, soturna e desconfortável a disposição. Será da página branca e em branco, talvez. Gosta-se de dizer isso. Mas vejo sempre uma roda viva violenta de palavras desordenadas em esboços de sentir e sentido, em correrias desordenadas ou passando como no passeio público de séculos passados, lentas a olhar sem direcção nem curiosidade. Miríades de possibilidades de construção de um mundo. Uma poética existência a cumprir. Depois. De descoberta, a edificada. Ou talvez esse excesso de tantas escritas por aí, nos seus limites de sempre, no limite do seu conforto de sempre, espalhadas em diários caóticos e desesperados de o ser. Talvez seja esse por demais. E o pouco que de existencial, subitamente, daí se sente não vir. Da página em branco pouco vejo de tanto os passeantes me distraem do olhar. Não é dela então, a razão desta disposição estranha, que então me colhe talvez de súbito, e talvez de uma esquina não pensada com atenção. E que esperava à espreita para cobrir de uma ténue camada de cinzento, transparente e fino, mas que vem a adensar como um peso que repentinamente surge na matéria onde não é esperado nem natural. Estranha esta disposição. Que, quando vem, vem vestida para matar. Qualquer outra. Falar de quê, se tudo, extenuado por debaixo dessa firme, se bem que delicada cortina, se assemelha então a uma enorme sensação de aborrecimento. Falar do tempo ou falar do tédio. Do primeiro, na transcendente subjectividade que nos consome de formas variáveis, da imanência, que atormenta e reduz ao âmbito privado e secreto a sua verdadeira e nunca alcançada dimensão. Ou do segundo, como uma medida de desalento instalada de surpresa. Como uma iluminação particular que se debruça sobre todas as matérias e palavras, a tudo colorindo de momento por igual, e que por momentos pode quase assemelhar-se a um tempo a mais que se estende, lânguido, pesado e reprovador. Tempo demais. O aborrecimento suave de tudo. Das pessoas mesmo. Quase todas. Ou então, sendo que a rigor nem haja excepções, todas, todos e tudo. Todas as pessoas e todas as excepções. Na esquina errada do espaço-tempo. O triste, arrogante: l’ennui. Um arredondamento por defeito de onde nenhum brilho mais intenso e travesso consegue estender os braços. Sim. Como um nevoeiro fino e cerrado. Uma indiferença nítida, feita cor e fumo. Não se gosta de o sentir. Contudo vem do coração como outros afectos. Outras cores de sentir. Que se elaboram na mesma zona simbólica do intelecto a gerir pulsações mais fortes, como acalmias na motivação. Mas é da ordem do afecto, na economia desta mistura de sensações, relações entre dados, percepções e memórias. Com uma base que de repente se estende a tudo e tudo engole para uma difusa emergência em cores pastel. Penso depois que esta entidade que passa a superintender a tudo, talvez seja uma memória remota de alerta. Um sinal. Uma pontuação interrogativa que sempre se instala depois do tédio. Ao colo do tédio. A olhá-lo nos olhos sem amizade, mas com um ligeiro receio. De que se tenha vindo instalar para sempre. E posso pensar que tem o rosto neutro de uma ferramenta existencial, mas na verdade começa por produzir, perversa, uma avaria. No sentir. Depois há que conhecer a criatura criada sei eu lá de que substâncias ou matérias que me compõem. Um tédio mais melancólico. Um mais arrogante. O do nada vale a pena e o de o que se passa com os meus órgãos de sentir, comigo com as cores que abandonam as coisas. Com esta cegueira à luminosidade preciosa. Para onde foi tudo o que era antes. De onde veio. Isto. E então reparo num detalhe nunca antes lembrado. O olfato, parece ser o meu sentido menos entediado. Lembro o aroma de um cozinhado associado àquele burburinho da fervura, o perfume de uma flor. O perfume de um perfume. E penso que há algo desta poalha que recobre tudo e que é ineficaz face ao poder evocativo da memória de um perfume. Ou de um beijo. Então, é o tempo. O demais e o de menos. Que me cercam de todos os lados. Vendo bem, uma vida repleta. Sem vazios. Apenas ausências. Mas tão diferentes estas daqueles. Espacialmente falando. Uns produzem espaço, a outras ocupam-no, devidamente ou não. Tantos autores, entre filósofos e escritores se debruçaram sobre tão existencial assunto. Pessoa, Heidegger, Baudelaire, Mann, Kierkegaard, Kundera. Mas emerge sempre a necessidade de estabelecer categorias, formas, géneros de tédio, o de enquanto tarda, o do que sobra, o do que se repete e esgota. Outros. Dependendo de autor e experiência existencial. Este cansaço da existência, mesmo se pontual, que se associa ao tédio, e mesmo sem relação com idade ou quantidade de vivido. E que o coloca no cadinho dos estados afectivos. Detestados, mas afectivos. Com sinal negativo. Agrada-me particularmente uma abordagem fenomenológica, como sempre e também pela forma particular de nos retratar como seres no tempo, numa determinada visão do tempo que Heidegger preferiu. A tonalidade do tédio como expressão afectiva e temporal. Uma ontologia da experiência do tempo, quando a modernidade, há muito, é marcada pela técnica e pelo nihilismo. A produzir versões modernas de mal-estar existencial. Ou psíquico, mesmo. Estados de alerta. Ao contrário de Husserl que nos obriga à contingência de uma consciência filtro, em que se circunscreve a realidade do ser. Um eterno presente, talvez. Mas sinto algum alívio quando penso que o mundo e eu, não nos limitamos àquilo que são os dados da minha consciência de ambos. É um pensamento redutor e angustiante, circunscrever a realidade à consciência. Como se retirando a solidez de um chão e de um mundo que se habita, mesmo sem o entender na totalidade. Aos métodos filosóficos, prefiro claramente o método fenomenológico. A redução, em H. do ente à profundidade essencial do ser, a construção de um olhar a percorrer passo a passo as estruturas existenciais, e a destruição, palavra que deveria aparecer sempre entre aspas enormes, porque se refere à abordagem transversal e crítica, a todas as possíveis dissimulações que escondem os fenómenos genuínos do ser. Desocultar a realidade atemorizada e recoberta de máscaras. É o que isto quer dizer. Porque haveria de se determinar a desocultação como destruição e não como um acto de liberdade? E é talvez essa a função útil do tédio. Que cada um entenda o seu. E, de tudo isto, não ter medo. Do taedium vitae, mesmo. E falando do medo, outros caminhos negros se insinuam. Mas. Não ter medo, do medo, do medo. Porquê ter medo do medo…e para quê… há um medo maior que é de quando não houver mais medo para ter medo. De nada, mesmo. E aqui me socorre a ideia de deus que não tenho. A lembrar que pelo menos isto. Desci a casa as escadas a rua e sentei-me na beira do rio que é o tempo que passa, ali em baixo. Munida da única pedra que tinha, restos de uma praia ensolarada a sul de há anos. Inclinei-me bem a aferir o ângulo e o golpe certeiro para que, sendo única, fosse com efeito. E foi. E fiquei. Depois, a pensar na vida, assim como sem pensar em nada. A maré não estava boa para o odor daquele bicho gigante. E o vento. Que o devolvia à cidade. Mas é a vida. E não é má.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialUm dia, dia um [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap] por aí adiante. Em novo crescendo. E assim segue depois a vida, a partir de uma fronteira tão nítida, passada lentamente para que todo o imenso poder da transposição se encarne, incorpore e entranhe, sentido real e irreversível. Um dia, que podia ser um daqueles dias de fim de ano, em que resolvo fervorosa, misticamente, supersticiosamente, ou enganando-me facilmente como a uma criança, focar nessa transição para o mesmo, o mesmo começar de novo, mas nunca o mesmo atrás, nessa correria sem retorno do tempo. Sem retorno de nada. Podia ser mas nunca é. Senão uma vaga euforia de luzes, em fogo de artifício, e que é isso mesmo. Ilusões de recomeçar. Nunca do zero, diga-se. Num tabuleiro de jogo, num momento qualquer, acabar, recomeçar. Voltar a lançar os dados, voltar à casa da partida. E também aí nunca se muda estruturalmente, nada. Mas neste jogo, os dados estão lançados. Como disse Sartre. E já não há a casa da partida. Partiu. Essa mudança, estudada e planeada aos mínimos detalhes, subliminar a ganhar espaço, talvez seja uma raridade que facilmente se deixa escapar desse cadinho de hipóteses, da vida. Uma raridade que, com sorte, acontece uma vez na vida. Como um grande amor. Alguém disse. Com muita sorte, duas. Às vezes, nenhuma ou muitas. Como a marcação de uma viagem destas que disse. Um dia, a grande mudança. Um dia, o dia um. Com sorte. Mapas. Planos de viagem e uma agenda ordenada e limpa. A casa. O relógio um pouco adiantado. A querer mergulhar em cada migalha de momento. Com uma respiração profunda que acalme a ansiedade toda, a insegurança toda, ou a pressa. É assim que deveria ser. Sem o atropelo de todos os tempos verbais, a alucinar em cada forma simples do presente do conjuntivo, ou do presente puro presente. O de indicativo. Talvez da consciência de ser. O presente, o dos verbos, do verbo, do olhar firme e do tacto para dar o tempo até ao final da respiração. Não antes. Nem depois. Aí, às vezes, também já é tarde demais. Esta precisão de relógio afinado pelas mais finas tecnologias, é tão fácil de falhar. A pontualidade da vida, talvez. Ou a pontuação certa de uma frase. Um olhar tubular sobre o momento, o fenómeno, o acontecimento. Ou, ainda dos verbos, uma ânsia do infinitivo. Depois há uma questão que paira um pouco turva acima e a sombrear toda a resolução. Esta preocupação de monitorizar a vida, calendarizar os grandes fenómenos que se apresentam, delimitar recordações e sistemas de ambições. Controlar algo de definitivamente intratável neste contexto, inclui quase tudo o que é sentir. Mas há um sentido possível a imbuir cada face deste prisma, uma localização confortável, um ponto de vista sobre esse patamar ou balaustrada em que debruçamos cada aspecto, cada parte, cada uma das ramificações. Querer dominar, só o dominável. De preferência e só da pele para dentro. E acrescentar encantamento formal ao possível. Fugir de roupas em série. Somente por medida e emendadas por mãos profissionais. A alta costura do sentir com um sentido de continuidade. Afinado. Como em escultura no mais puro e cristalino mármore de Carrara. Portanto o dia primeiro de um reencontro. O maior de todos – que me desculpe algum amor de imensidão. A vida conduz. Sub-repticiamente mascarada de decisões sobre decisões. Mas algo se afasta, quase perde, perde, até que um dia, com muito tempo de intervalo entre uma véspera qualquer, e um dia, se designa e sente a aproximação do dia. Esse outro dia. Desse reencontro enorme e o maior de todos porque, disse-se, daqueles que ocorrem uma vez na vida. Com sorte. Com muita sorte: duas. Como um grande amor. Como nascer. Morrer. De passagem, penso que ali estará o meu monstro com toda a sua pelagem e ferocidade e doçura e timidez. Pontual. Não pode faltar, nem este grande encontro seria o mesmo sem ele. Que enorme parte faltaria, como a figura da sombra presente. Às vezes, pensar que se chegou, como uma multidão que fossemos, e por inúmeros caminhos que simultaneamente convergiram vindos das suas diferentes viagens de caminhos, a um mesmo lugar de paragem e de balanço completo. Um barco que amarou, baloiçou, encalhou. Em terra firme, no entanto. Ou atracou serenamente e sem tempo determinado num porto qualquer. A aguardar caminho. E que daí desse porto, como em cidade de rio, divergem como é da natureza múltipla dos caminhos, diferentes resoluções. E sabendo que o momento é de uma luz desigual e rara, e que os caminhos foram difíceis, e foram o que foram, quase todos eles. E que os viajantes, unos afinal, se encontram ali feridos, alguns de morte, e que ali se encontram todos porque o encontro tinha que ser entre todos. Não é necessariamente mau, é difícil. Mas é talvez um instante único. Talvez aconteça uma vez na vida, se acontecer. Não mais. Como um grande amor. Talvez, com sorte, aconteça uma vez na vida. Só porque tem que ser. Às vezes avanço por esses corredores e é uma espécie estranha de alegria que me conduz como se de fora. E é nessa alegria que reconheço o meu monstro hirsuto, e nela que descanso a certeza pacífica de que é animal de mim para sempre. Animal feroz e perigoso que me acompanha e não posso abandonar por nenhum dos dois. E nesses dias em que o vejo seguro em mim, ali, é afinal o limite do corredor que me pára e estanca o futuro. E mesmo assim, como se para lá do espelho que tudo duplica mesmo em espaço e em luz, avanço para uma outra terceira dimensão e dela nasce a outra que sempre alimenta a respiração diária deste mesmo ar, deste mesmo mundo e desta mesma magia. Pensar o outro, naquela dimensão de si que nasce em nós e é dar-lhe uma vida. Não sei já nunca os limites da virtualidade. Pensar o outro em mim, o outro de mim. Em mim como outra. O olhar dos outros, o nosso olhar sobre o imaginado olhar dos outros, o nosso olhar ao espelho esquecendo os outros e tudo da mesma matéria fátua e de contornos difusos demais para ser fronteira. Eu tacteio pé ante pé a vida. Que mais posso fazer nesta absurda sensação de que todo o ínfimo sopro irreprimido que se produz mesmo só no esforço de respiração necessário, perturba na pequenez devida, às vezes com escala inesperada, um algures momento de um qualquer lugar de uma qualquer criatura nesse vasto cadinho de redes interligadas em inadvertidas malhas. Qualquer marulhar de vida, por indecisa que seja, dá encontrões de indefinida tonalidade nas gotas ao lado. Em nós. Mesmo esquecendo os pesos pesados que indistintamente calcam por querer. Depois do dia destes dias, ainda a minha alma anda por aí a silenciar luzes e estrelas várias que sente queriam vidrar a noite antes do tempo. Anda é dia e já a minha alma vagueia sem eira no entretanto indefinido do a vir. Ainda não chegou a treva que verá sentido nos astros luminosos do céu e já anseia neles serenar. Sorrisos remotos e ténues é o que há na noite, mas nela invisíveis. Eu. Talvez reconhecê-los e entre eles um será meu. Neste intervalo. Tendo os dias atingido forte, o que resta da noite e de algum sonho oriundo dos restos do resto? Alguma coisa de mim, alguém. Tudo, contudo. Os dias atingiram a linha traçada a vermelho e finalmente cumpriram. Os dias desta tempestade subterrânea de anos a germinar. De anos ou décadas. Germinou, floriu. Apanhou-me e atingiu. O fim. Agora resta o início. Nada como dantes, só eu igual. Mas sem pais. Sem chão em torno, como pequena ilha rochosa. Medo grande, de sempre, instalou-se. Neste ano. Bastava isso, mas o mais se conjugou num verbo destruir em todos os tempos. Talvez em todos os tempos. Um hiato. Ou apenas uma mudança do tempo. O que fica, do que parte, o que parte e que parte de mim partiu, partiu para a frente da que parou. Ou está a partir. Mas ainda a parte do meio a alongar-se. Ás vezes, os silêncios desencontram-se no tempo. As pessoas, no espaço. E a vida, é. Nos dois sentidos, como um caminho. E em nós, o que nos desencontra do que somos, quando e onde? Remadores, de costas para o destino. Por isso, um dia. Um dia destes. Pressinto-lhe a chegada, mas nem é um pressentimento. É mais uma decisão imprecisa. Longamente sentida a devorar caminho desde uma profundeza de difícil acesso. A criar uma precisão de difícil agendamento no calendário de um tempo tão difícil. A chegar. Um dia destes e quando chegar vou saber que chegou. E um dia difícil como os outros, mas principesco de pequeno almoço nocturno a esperar a madrugada. De ovos mexidos e fruta fresca e qualquer coisa de um colorido diferente para temperar a ainda noite. E pão quente. E só por isso será tudo diferente. Magia boa, ou pintura de guerra. A desenhar-se. E o dia, esse dia será um dia um. Como os outros, mas em tudo diferente. Antes que chegue um dia menos um. Depois de um dia zero. E até ao crescendo menos infinito, da infinita inexistência do esquecimento. Que também virá, que fazer? Mas antes, antes virá o dia quase marcado na fronteira de um agora. E esse dia, dia um.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialIdeias de ver a deus [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]deus é uma palavra tão em desuso. Fico aqui a pensar, agora que me sento finalmente aqui, junto às palavras. Elas a brincar em redor, umas, a seduzir-me, outras, a fugir, uma boa parte delas. E submersas, aquelas outras. Como a parte maior, mergulhada fundo e a desconhecer. Dos icebergues. A não deixar, como estes, começar a perder a sua natureza e mudar toda a outra. Degelar por toda a terra e mar a subir. E que estas palavras eram para ser um pouco outras, logo no início. Tantas vezes acontece. Como as cerejas que sempre trazem outras alegremente agarradas. A fazer força para acompanhar as que partem levadas por mão amante, ou para ficar como se todas ou nenhuma. Fossem sempre as palavras tão belas e saborosas como cerejas. Quando são boas. E quando são boas, são – santo deus – tão boas. Sentei-me aqui a pensar em deus. Em Deus, talvez. A pensar como e quando penso em deus, porque será que penso. Andei a pensar nisto ao longo do dia. Como penso ao longo de outros dias. Aos pedaços, entremeando tantos outros pensamentos e tantas outras coisas que coladas fizeram o dia. E sempre a pensar e sem conseguir distingui-lo com a maiúscula inicial. E sempre sem ter a certeza de que o pensava em minúsculas. E, repentinamente, salta como uma suave intrusa esta outra palavra cuja ligação à ideia que trazia – eu – me distrai – ela – no pensar que talvez dizer adeus seja, por defeito, dizer até sempre. Ligando essa ilusão de eternidade com que a ideia de deus anda a par – e com que se beija à despedida aqueles de quem gostamos muito e para os quais queremos existir sempre e para sempre – a um instante de ausência eminente. Porque dizer adeus parece uma expressão carregada de inexistência a vir, maculada de uma tonalidade definitiva e talvez mesmo por isso tão menos usada hoje. Em que mundo se corre como se não houvesse distância, em que o éter do espaço cibernético nos traz vozes longínquas a qualquer momento como se no quarto ao lado e em que tudo parece tão transitório que nada se sabe sobre o devir de uma palavra de despedida. E depois penso, que todas as palavras em momentos importantes, deveriam ser como as roupas de ver a deus. As melhores as mais límpidas e reservadas para nos apresentarmos sem mácula, no nosso melhor. Como antigamente se guardava o melhor fato para ir à missa. Ou, numa acepção mais ampla, para os domingos. Talvez os dias, então, das coisas maiores da vida. E aí, sem fingimentos, sem teatralização de nenhum sentir, as pessoas apresentavam-se, por vezes, como nunca nos outros dias. Algumas com os únicos sapatos menos castigados pelo tempo e o trabalho, e, mesmo velhos de anos, engraxados a brilhar como estrelas. A camisa branca de casamentos e funerais, imaculada. Mesmo se puída nos punhos e colarinhos. E uma alma, capaz de confessar todos os pecados e começar de novo. A semana. Ver a deus. Essa possibilidade de transcendência da insignificância que se sente ser. Talvez. De esperança. Que não tenho. Às vezes tenho pena. Uma pena enorme de não o sentir. Mas é uma imagem pejada de monstruosidades egocêntricas. Formulada pela natureza humana à sua imagem e semelhança. Ameaçadora de uma natureza vigilante e castigadora. Num sistema de trocas. Tudo o que me faz detestar uma ideia que faz jus á escala humana. O humano na tentativa de formular o transcendente. De o enquadrar numa moldura reconhecível em que a pintura não é bela. Mas há outras ideias soltas e possíveis. Para quem tenha uma fé, não reduzida a essa imagem. Ideias possíveis, que talvez um dia envolvam um espectador desprevenido num conforto etéreo e acalentador. Parece-me uma paisagem possível de vir à mente e se instalar como tantas outras igualmente fugidias ao tacto. Não penso que me venha a acontecer. Não espero. Não desejo. Mas é possível. Não posso dizer que quando penso nele, ou Nele, procure um sentido qualquer que me falte. Ou mesmo que esse me falte, ou quando me falta, para além da profunda certeza de que a vida em si basta para se justificar a si própria em continuidade. É, na verdade um pensamento de que se me entretém a alma, sobretudo em momentos de alguma serenidade. O que explica que não me observo num interesse por um fenómeno que, se em si me intriga, o seja por razões de procura nesse lugar conceptual, que algo me acuda. À angústia, ao medo, ao desassossego ou ao desespero. A minha perplexidade é por pensar nele. E pensar se, só em si, esse não é um dos fundamentos de uma existência, que ao ser negada, se baseia numa outra expectativa, fórmula, imagem ou fantasia, em que – nessa – se diz e digo não se acreditar. Não sei porque penso nele. Sei que não acredito que acredite nele. Mas não me atormenta o assunto. Só não sei porque penso nele. E é isso que me faz reflectir. Que entre a comunidade científica muitos há que deixam em aberto a hipótese da existência, e que alguns, mesmo, fundamentem a inevitabilidade dessa, é um facto. Muitos filósofos encontram também argumentos e fundamentos para tal. Mas o que sempre me atormenta, é reconhecer em todos aqueles que mais reflectem neste assunto e muito mais sabem do que eu, a mesma e limitada contingência que me tolhe. Uma estrutura de pensamento que não pode transcender as fronteiras da razão culturalmente baseada na linguagem. Formuladas nas suas bases fundadoras por nós e para nós. Num circuito fechado de humanidade. Na impossibilidade de encontrar termos novos para o que é tão difícil de explicar senão à imagem do que se conhece. E ele, a ele, não se conhece. Ou a matemática. Esse outro mistério de abstracção cuja ligação ao real é tão difícil de absorver. Padrões, leis, equações complicadas como uma língua estranha a demonstrar modelos do universo. Uma noção do tempo e do espaço, que a nossa ínfima dimensão e experiência torna limítrofe. Como nos subúrbios de uma cidade maior. Haverá qualquer coisa de inexplicável com os curtos artefactos com que lidamos. Mais além. Para lá do abismo. À beira do qual ficamos a tentar alcançar com os sentidos, a explicar com as palavras que servem os rios mas não o sentido dos rios e o tempo antes dos rios. E bastaria pensar no tempo. Ficamos à beira. Talvez de deus. Sem alcançar. No fundo, não me importa por hoje, avaliar a consistência do que não é demonstrável, mas possível, para além da capacidade conceptual com que tentamos entender todo este enorme fenómeno que é o universo. Essa enormidade basta para preencher a minha perplexidade, de abismais perguntas que não tenho dimensão para entender. A própria vida, exige respostas sem claramente formular as perguntas. Todos os dias. Deus, é só um ponto eventual e longínquo, mais atrás no antes do tempo. E que, a ser assim, ficará para muito depois, no depois do tempo. E que me intriga. Mas tão longe.
Anabela Canas Iluminação ArtificialActualizar. Reiniciar. [dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]uardar. Não sei o quê, nem onde. É lá com ele. Olho-o. Antes ainda de abrir, adivinho. Actualizações. Sempre. Todos os dias em que nada lhe disse, nada lhe trouxe. Todos os dias, em que não me traz algo que ajude a desembrulhar as minhas questões para a vida. Para o dia. Para aquele instante em que deveria ser eu a actualizar a alma e a dar-lhe conta disso. Este caderno tecnológico e limpo, em que quase antevejo um subtil sorriso de troça, quando na minha precipitação de iniciar um trabalho, reter um pensamento que me ampara, ou arrumar esta casa cheia de objectos que proliferam como fungos, sim, quase lhe adivinho a malícia de, em vez de bons dias, começar por se mostrar indisponível. Temporariamente indisposto para colaborar, a necessitar de reinício, de actualizar as actualizações. Santo Deus. Esteve a dormir durante dias. Que raciocínios complicados se revolveram no seu interior adormecido que precisam uma ginástica e uma deferência para com estas suas complexidades, que passam à frente das minhas urgências. Depois começo. E lá está ele a fornecer mais possibilidades como um programa de moda, a fornecer tendências inadiáveis de estação, formas, comprimentos – de onda, talvez -cores para a alma senão o corpo. Padrões, texturas. Quando só quero escrever umas linhas. Rever a alma e os sonhos, voltando um pouco atrás, ou tentando prender um momento antes que se dissolva no esquecimento. Ao fechar, a mesma coisa. Quero sair, à pressa. Não. Sua excelência, perentoriamente recusa-se a colaborar sem mais umas actualizações. Caprichos insondáveis a que não posso deixar de ceder. Impaciente. Quando só quero fechar o caderno e arrumar a caneta. Sair, encerrar o assunto. O contrário de mim. Questões de sistema operativo, talvez. Eu, sempre um pouco fora de moda, a oscilar entre apelos vários de várias épocas, do mundo, de mim. Numa cronologia de sentir, temperada de modo diferente ao do suceder de estações, tendências e mudanças. Tudo -sem querer – a um ritmo próprio. Actualizações também, e paragens, mas às vezes, ao contrário deste PC mais novo e mais caprichoso que os outros, refazendo dados que numa linha de um tempo de trás para a frente, situaria do lado que passou. Coisas válidas. Coisas a não perder na voragem desse fio de sentido único. Se me repito. Penso tantas vezes quando retomo as mesmas ideias, o mesmo sentir. Talvez. Como não repetir a casa onde vivo, o que vive comigo, o que mora, o que me habita? Como não me repetir na pessoa que sou através dos dias, das impressões, das emoções, do sentir. Um pouco retro. Um pouco démodée. Um pouco sem oscilações maiores que as das tempestades que me acolhem o acordar de sonhos tormentosos e felizmente no mesmo corpo, na mesma alma. Não posso tecer juízos sobre esta constância. Antes sobre tudo o que obriga a uma adaptação permanente. O que tende a forçar a uma renovação mais rápida e impertinente do que a simples renovação celular, a do ar nos pulmões. A uma mudança de imagem, de sentir sem tempo para lutos. Sem tempo para o tempo. Estes necessários e compulsivos updats da vida a pressionar como um hematoma. Um consumismo existencial a acompanhar o outro. As pessoas. Como se mudassem todos os dias e alguém tivesse algo a ganhar ou a perder ou a ver com isso. Sou tão old fashion, eu. Guardo sapatos com vinte anos. Guardo sapatos carinhosamente com mais tempo do que isso. Em tempo e em gosto. Claro que quando os calço, pregam-me sustos. Descolam. Talvez da realidade. Como eu, às vezes, no coração. Desabituados de caminhar. De aparência idêntica e fora do tempo – como gosto disso – e, no entanto, algo neles envelheceu. A saúde talvez. Nada que um bom sapateiro não remedeie como se nada fosse ou tivesse sido. Claro. A emenda do tempo. E, quando penso em “Updates”, só me apetece dizer: I’m always dating the same. Dreams. Em que fico. sossegada no meu sentir de ontem. De amanhã. Nos meus lutos. Intempéries. Derretendo da mesma maneira. Com as mesmas coisas. (Esta coisa talvez do feminino ou talvez de pessoas, de deixar o mar entranhar-se na pele como se não houvesse morte por afogamento. Uma coisa com a história de sempre. Este deixar-se. Entranhar. Deixar entranhar-se). O mar, o medo, gostar. Mesmo quando tudo se quebrar e segregar em pedaços ínfimos e irreparáveis, e todo o sopro se contiver de inércia e desconhecimento de qualquer caminho, e qualquer vontade de voar, e tudo parecer não estar. Mesmo quando. Ainda nada em mim será diferente, mesmo se não igual e hei-de morrer disso, de mim. Igual e diferente. Nasci alguém assim com o tempo percorrido e mantenho-me delimitada pela mesma pele e a mesma casa. Escolhi. Esta. Fui tratando. Aquela, esta. No possível e através da experiência do tempo. Mas não tenho outra. Assim mantenho-a e mantenho-me constante e subterraneamente metamórfica no pouco que consigo que o tempo produza. Uma atenção sem pressa. Uma luta para conter a velocidade. Que não posso evitar. Linhas que conduzem. Que delimitam e limitam. Poalhas que tolhem os gestos e o caminhar. Dúvidas nos dados que se multiplicam. Como se hoje tivessem dez, doze faces e muitas mais pintas pretas do que dantes. Circunvoluções nos dias, vindos da tormenta das noites a atravessar sem sono. O que ensombra, o que enfarrusca ou faz brilhar. Um tudo. Mas o que sobra dos sonhos, sei lá bem porquê é o regresso de uma batalha imprecisa e inconclusiva. Eu tento entender o medo. O meu medo, figura múltipla em árvore que invertendo redunda numa única raiz, causa, origem. Tento a todo o preço conhecer o que me tolhe. E tento entender os medos do outro. Sempre. E, às vezes exagerando talvez um pouco na expressão do dramatismo, vejo aí o bicho feroz e básico que projecta, reprime, define e redefine perpetuamente os passos de cada um por todo o lado, por onde vá, por onde não foi. Eu tento entender o medo. Mas o medo não é o género de criatura para se entender na noite porque aí, como é da sua natureza, exorbita e espalha-se por todo o espaço disponível da casa. Ou mais ainda. Eu sei o que dói antes do sonho da noite e sei o que se acrescenta depois. O que me revolve no escuro, me chicoteia na emergência da luz, naquela fímbria fina por cima da portada da direita que nunca encosto o suficiente. A luz a chegar – mas gosto de a ver – e se a vejo chegar mau sinal para o descanso do corpo e da alma que não serenou no esquecimento do sono. Sei com que me deito. Acordo do sem dormir com mais equações do que sabia. A querer espantar uma espécie de agonia. Mas que se vai diluindo no dia. Esse dia a acudir ao reboliço da noite e a trazer talvez algum silêncio. Penso tantas vezes no silêncio. Como uma coisa boa de sentir. Como um refúgio quente e confortável. Como uma frase de amor. Como uma arma de arremesso. Esse. De todas as espécies, e como um cientista dedicado, passo tempo a bafejá-lo para o caso de lhe faltar a respiração e desfalecer. A olhá-lo com olhar leve, para o caso de lhe doerem as articulações a caminhar para a idade. Os silêncios envelhecem como as pessoas e seguramente com as mesmas qualidades, defeitos e achaques. É preciso, por isso tratá-los com carinho e cuidado. Mas saber distingui-los. Os que são inofensivos daqueles que mordem por querer. Penso tanto nisso quando os afectos desta vida me brindam com um. Distingui-lo. desembrulhar-lhe o papel bonito de silêncio, sem destruir o papel bonito. De silêncio. Desvendar a primeira aparição do rosto. Fechado. De silêncio. Entender que expressão minha, do rosto, esteve antes desse rosto pensativo e hermético. De silêncio. Perceber é tão difícil como saltar para o lado de lá do espelho e ouvir com o olhar desse silêncio específico, as palavras proferidas pelo meu olhar. E ouvidas de lá. Desse lado de lá. Desse silêncio que pode ser outro. Desse silêncio. E não do outro. É assim. O labirinto. Em que as pequenas coisas que fazem a vida nos conduzem a perder. E as pessoas, os seus silêncios assim também. A perder. A deixar-nos perder. E a perder de vista. O silêncio como toda a sua qualidade inexcedível, exige uma arte rara, momentos muito bem escolhidos e uma expressão, que de tão específica e adequada, faz dele uma obra de génio. Não confundir com qualquer sucedânea falta de resposta, qualquer engolir em seco ou qualquer contrafeita e artesanal habilidade de passar em frente. Um belo silêncio exige uma empatia no tempo e no espaço, que às vezes recorre aos olhos, espelhos que, quando querem, são límpidas portas da alma. Exige uma respiração como o canto, e que se sente, ouve ou intui na imperceptível reverberação dos átomos, no ar, nesse elemento comum. Exige às vezes o esboço de um gesto que não chega a ser mas conduziu o sensível, uma alma partilhada num território musical e sem perda. Anda tão desvalorizado este silêncio e confundido com a fast food do nada que se diz porque não se tem disposição, vontade, coragem para mais. E quem diga que é uma boa resposta e tão válida como outras, nada entende da alma solitária e humana que murcha na secura do não entender. O nada é a resposta pobre. O parente pobre do silêncio. Já um grande silêncio nunca o foi. Essa arte de tudo deixar expresso na mais fina matéria do que é manuseável pelo universo sensível do humano que somos. Hábeis em manipular a expressão do todo que nos foi dado usar. O mundo anda feio. Como sempre andou. basta pensar nas cadeias alimentares e mesmo sem metáforas em curso, para cair na tenebrosa impressão de que todos os desígnios concorrem para uma contranatura que só a nossa alma consciente e o intelecto de que fomos munidos sabe-se lá porquê, afinal, nos salva. Com critérios que em simultâneo nos fazem sofrer com o visível e em tamanha medida também nos catapultam para a compulsão de fabricar um belo que não há. Somos peritos nisso. Se formos e quando somos. Em produzir coisas artificiais e de beleza que conforte a nossa desnecessária inconformada solidão. A da desadequação. À violência. À crueldade. Ao não sentido por inábil insatisfação. Mais. Do que o simples ser existindo, e porque a natureza se fez de fenómenos complexos e desta forma. Subversivos é o que somos. E pouco naturais porque mais não conseguimos ser. Fugindo à barbárie de prosseguir a onda natural e sem ética, porque esta, humana. Aí chegamos. Ao contributo que sem querer ou sobretudo por querer rebelde, acrescentámos ao natural. A arte, o pensamento, a expressão. E o natural tem aspectos tão belos como ser natural na sua inocência de o ser e não intencional. Como o não é a maldade natural. A da natureza que se consome a si própria em ritmos de sobrevivência. Num equilíbrio qualquer que também aí, às vezes, se corrompe. Dramática. E, contudo, bela mesmo assim. Mesmo quando horroriza. Hesito, então, também às vezes, ante a maldade desta espécie humana. Entender-lhe os resquícios de fragilidade de quem – sendo-lhe dada mais consciência do que aos outros animais, e passe o criacionismo aparentemente implícito – sofre de excesso, de medo. Mais difuso por inúmeras vertentes do que é dado aos outros animais. Demasiadas pensamentos, demasiadas mudanças. Demaisiado em variáveis. Humanos. Demasiado humanos.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialJantava com Poirot [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]u jantava com Poirot. Ontem morreu. Talvez jante de novo com ele hoje, ou um destes dias. É triste morrer uma personagem de ficção. Já basta que as do real, mesmo longínquo, o façam. Às vezes penso que as mortes que nos vão passando pela vida, se não colocam uma ausência concreta no quotidiano dos dias, são quase tão irreais como essa. Mesmo o morrer de uma fantasia, é triste. Todos os meus ângulos são susceptíveis à insónia, ao bloqueio das articulações numa cãibra de mutismo, à cacofonia do dia que é, e às anquilosidades do terror da palavra errada, aos murmúrios de tempos que acertam em lugares diferentes do relógio. Aos subornos dos ponteiros, às aplicações exponenciais e desperdiçadas. Todos. Vítimas de me pertencerem antes de mais. Na deriva da informação e do silêncio. Em que marear é tarefa de remotos e expeditos marinheiros a pensar no sentido, no fim. Da viagem. Essa que não sei. E por isso, todos os meus ângulos sofrem da mesma insone e desassossegada perplexidade sem fim. Da mesma indisciplina irreprimível da insónia como do sono em desmaio abismal que, outras vezes, me atinge. Há dias em que a manhã me encontra como se num parque subterrâneo em que a noite e o esquecimento me estacionou como veículo. Muito se constrói nas infraestruturas de um espaço e de um ser. Dúvidas de ser, talvez. Mesmo as que nunca. Talvez em algumas pessoas o tempo, rasteiramente como um vento que, raso ao solo, arrasta poeiras, torna por momentos indefinida a vista do chão, ou como ter os pés mergulhados numa água que por refracção deforma. Talvez o tempo, sim, traga alguma desconstrução. Da memória de certezas de coordenadas espaciais. Os eixos xyz, inseparáveis na geometria, no turbilhão da noite sideral dos sonhos, a dar pequenas e irónicas reviravoltas sobre si. E em outros segundos que sucedem a outros e antecederam os que a seguir desabam sem predição nem adivinhação possível, uma nesga estreita abre-se e de súbito toda uma janela de porvir imediato se dá a ver. Não é feia esta paisagem solitária em névoas luminosas de uma luz qualquer que se espreguiça por detrás. Impúdica. Não é triste, ou mais do que outras emoções quando breves, esta melancolia de aceitar o aceitar, porque nada mais se pode fazer ou querer. Dentro de fronteiras da possibilidade de agora. Deste momento ímpar, se bem que repetido aleatoriamente pela vida de antes. Talvez pela de depois, também. Que dizer do que nos castiga, de ser tristes ante a enormidade de tudo o que se apresenta em paisagem. De uns escassos minutos de eternidade a outros, sempre a vastidão se mostra. E nela todas as variantes de mundo a ver. Mas, às vezes pelo tiro da manhã, como um puzzle desfeito. Quem dera um álbum de retratos parados, sólidos de linhas e sombras e sorrisos para o sempre. Aquele que nunca é. Mas de algum modo se poderia tornar ilusão, abrindo-lhe as páginas como de um sonho arrumadinho de uma noite só. Nunca esta miríade de mundos a assomar logo pela manhã do acordar confuso. A querer uma área límpida de caminho a percorrer na calma de uma manhã como nunca se repete em outras, mas uma manhã única para viver em cada dia. Porque o tempo não fez de mim a forma de uma seta, a determinação de um raio e a persistência cega de uma lâmina, é pergunta que não tem lugar na mesa de uma convivência serena, com uma consciência que me caiba em mim. Por isso shsss… medir as palavras em sonoridade, voltes e sangue. Que a vida insinua-se tormentosa e vinga-se em violência nos elementos. Dúvidas do sentido. Nessa reviravolta dos eixos. XYZ, por momentos a girar sobre si. Vaga memória de sentido. Mas a única firme a do sentido sentimento. Ou a nitidez sentida da sensação. Mesmo na confusa abordagem ao acordar do dia. Tão confusa de sentidos confluentes, dúvidas de verbos e tempos verbais. E pessoas. Sobretudo pessoas. Sujeitos de orações. Como se nada pudesse determinar em que momento do mundo ou da vida me situar em cada incidente da consciência encerrada no mutismo interior. O interior da casa. Nada. Procuro, mas não há esta entrada no dicionário de sentir. Antes dispersa por páginas e páginas. Penso coisas como por que letra começa cada palavra. E nem assim. Se organiza numa topografia convincente este início de manhã. Dias em que afinal me levanto de um salto, em fuga e sem mesmo quase querer, nesse abrupto espantar o conforto da cama, caem as peças afinal num lugar qualquer e esqueço as dúvidas iniciais. Toda aquela desarrumação confusa. Substitui-se por uma outra mais reconhecida. Suspiro de alívio. Antes. A fímbria estreita irregular. E arenosa, para piorar a, já de si, insegura forma de poisar cada pé apressadamente, desastradamente a correr a correr e ao lado o espaço, sempre em névoas, que não deixam ver o sem fim do abismo abaixo da montanha, em que me dou a correr. E as portas em que passo em frente trancadas e então porque corro se simplesmente as adivinhei mal e abertas de longe quando afinal não era mas é a imponderável variação de cenários que não têm uma ordem vislumbrável. O que foi aberto, e talvez já não e não sei porquê nem porque corro para onde para quê? Sem mais, afinal, do que a mais intensa necessidade de recolher ao interior casa onde habita o monstro. De estimação, descuidado, ausente e emudecido à força. Entro e deixo-o rugir até a insuportável agonia de tolher asas, me apurar o ouvido ao tom. Talvez lhe doa algo, o estômago ou os ouvidos como a mim. Talvez lhe doa algo afinal e para além dos dentes afiados e ameaçadores, as garras ou cascos rudes – não consigo ver – haja afinal a dor. Também ele, mas com ruído. Penso como conheço mal esse mal que me habita e que descuro por o achar ausente no mais dos dias. E afinal é só a pequena afinação do ouvido. Ao tom. E daí até há habitação plena deste oco de pele sangue e vísceras que me arrasta pelo mundo, ser completa, é um segundo sobreposto no outro, como se não houvesse vazio que me chegasse vindo da intempérie e da negação. Ou outro. De que se fazem os medos? Perguntava ontem em olhar transido sobre as múltiplas páginas sem beijos. Disso, que são páginas a soltar ao vento e deixar nas rotundas de percepções moribundas. Folhas a secar. Penso de novo no labirinto dos dias. Aquele de fundos corredores, bem ao fundo de um dos quais repousa o monstro conhecido desconhecendo-o ainda assim. Os passos decisivos que não podem passar além da exaustão. A trilhar com pegadas profundas e cada vez mais escavando um solo que era liso. A ficar revolto dos passos que nunca calcam a mesma porção de dúvida. O desconhecido desse chão, das reviravoltas do percurso esquina sobre esquina, sobre outra e muitas outras esquinas – ou as mesmas em outras vistas. As luzes baixas a mudar de momento para momento, irreconhecíveis assim. As mesmas ou outras é uma outra interrogação no percurso. O bosque nocturno não se revela no todo. Nunca no todo. Ao caminho cabe o momento próprio. As trevas renovam-se na folhagem fantasmagórica, mas são outras porque o olhar o é. Irreparável de humano, para o confronto com algum cristal. Alguma fórmula de mineralização permanente. O bosque sofre de males de organismo. Vivo, habitado dos passos. Numa deriva em que se cruzam caminhos e passos em sentido contrário. Quase uma voracidade num e noutros. Caminho e caminho eu nele. Mas sei de limites imprecisos, no momento impreterível de aliviar uns e outros. Momento a adivinhar no indizível invisível. Velado tormento e dilema entre persistir ou insistir. Aquela tonalidade ligeiramente diferenciadora entre o peso leve e a leveza feroz e arrasadora. Talvez devesse aprender com a crosta terrestre a elevar a ferida até à lava tumultuosa, lágrima fatal para o que apanha em redor. Por isso, talvez, não o faço. Por isso, talvez. Dentro. Passo o bálsamo nos lábios. Creme no corpo, recordações na alma e uma compressa húmida e tépida de sonhos no olhar cansado a desejar e a temer, a desejar e a adiar o sono sem agitação permitida. Ao lado, na almofada fofa de penugem de ganso, desmorona no ressonar abrupto e entrecortado de longas aspirações, o monstro de sempre, feito corpo e sensações tácteis pelo caminho. O caminho do sonho permitido afinal. Temido. Adiado. Volto o rosto a ver se está por detrás dos ruídos roucos e do ranger de dentes assustador. Ou é uma ilusão em fuga, que se esqueceu do som ao partir. Ruge. Descanso. É o estômago, penso. Talvez. Ou algo que não eu. Digo-lhe: estou aqui? É belo e sinto-lhe vaga penugem como uma aura de determinação, de doçura. Sim, parece-me que disse. É suave para além dos rugidos de fantasia. Um anjo, talvez. Porque os anjos são monstros bonitos e grandes a ocupar a cama inteira, a alma inteira, a noção de noite de vazio e de silêncio. Tudo sem espaços. Por isso gosto dele. Contente com a conclusão nocturna. Abro a caixa de bombons e trinco um, determinada a adormecer apesar do açúcar, num alo de doçura – o mesmo do açúcar que recobre violento ondas de sabor do cacau negro que vem dos campos de longe – e depois lembro-me que é bom para a digestão e ofereço-lhe um que dorme sem sentir este aroma que é inconfundível e recusa, claro, e dorme de súbito e de novo como sempre sem aviso nem resolução. Mas teimo em deixar-lhe um sabor adocicado nos lábios distraídos e acorda por momentos. Agradece sem saber o quê. Sentiu. Fora. Apressadamente, continuo, tocando sempre a áspera parede ao lado, quase num abraço quando o caminho estreita ainda mais. Algures há um passo de montanha. Senão a porta, o passo. Caminho. Caminho porque ao fundo, num lugar que não sei mas vejo, e que quando vir poisando os olhos, mesmo não sabendo, está. Caminho. Sem parar, porque ao fundo, imprecisamente ao fundo, o meu monstro – talvez carinhosamente – espera.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialEntre o instante e o tempo [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m tradução livre, como na vida. Sinto-lhe o olhar omnipresente e severo de sempre. Ali sobre a mesinha que ladeia a cama em que me esqueço de tudo. Aqui, no pulso a moderar ou a apressar pulsações, passos, palavras, na sua respiração própria, audível, inconfundível. Um olhar que acompanha sempre e procura o meu. Comanda no que pode. Preciso desses olhos sempre a definir o momento. A dar-lhe um nome. É que eu atraso-me para a vida. Perco-me. Confundo os nomes. E sempre que o olho vacilo em denomina-lo. Uma pressa em separar-lhe os rostos. Sobrepostos nesse mostrador redondo e lunar. Cronos. O que tenta mover a minha vida de sempre. Absurdo e tirânico. A mergulhar-me nesta culpa de nunca lhe dar contas certas do que me dá para os gastos. E o outro. Como dois padrinhos inseparáveis para a vida. Preferia-os fadas madrinhas, talvez mais doces, compreensivas e cúmplices na minha imperfeição. Mas não. O de baptismo, com a marca indelével do que é rápido e imparável, inultrapassável na corrida, e o de casamento sereno e contido, sempre em espera de uma resposta sim. Padrinhos severos sempre a seguir-me, em todos os momentos na sua ordem, e em cada momento único em si, com esse olhar duplo para que não falte ao duelo diário. Ali, entre as árvores logo pela manhã. Mal acordada e já confusa como se soprada pelo vento que emana quase perceptível daqueles olhos. O que me faz correr. O que me obriga a parar. Que olho a pedir ajuda desesperadamente. Que me deixe parar e proteja do outro. Que faça valer uma magia maior. Que me tire a arma das mãos e me deixe esquecer do que e para o que ali estou. Todas as manhãs. Assaltada pelo rodopio de coisas em camadas baralhadas e complexas. Desarrumadas pelo rápido mergulho no sono, pelos ecrãs de cinema que no escuro me tomaram os olhos fechados. Tudo a ter que organizar todos os dias. Olho as roupas certinhas e direitas na cadeira da véspera, e não entendo porque não ficou ali, assim, a vida inteira à espera da manhã. É para ele que me viro como para norte. A eternidade voláctil e possível do – apesar de que – nunca mais, para sempre tenuemente, fugaz eternidade do enquanto dura. De um, o outro, reflito a mágoa de ver perecer a memória no espaço do que já é tarde, que é perda, e na aversão angustiada ao que não é. Já. E, não o sendo, já, marcado com o sinal vermelho do irrepetível e impossível de reter. Esse Cronos em corrida. Que faz correr e olhar para trás a ver se toda a memória nos segue obediente. Arrumo como consigo as memórias, no abismo do espaço indexado à dor da perda. Delas apego-me sobretudo e obsessivamente aos objectos que, físicos e visíveis, em Cronos e Kairós, se tecem numa teia de cronologia desde o passado e prometem permanecer. Em registo, em memória e em futuro. Não mais que os objectos, quero para memória. De que não vivo, que me tomam espaço e tempo meu, mas de que cuido como bichos de estimação. Porque mesmo a história que contam todos os dias, é uma realidade presa a eles e ao olhar com que os toco. Quando a vida se diverte em inventar formas e fórmulas múltiplas de se fazer ausente. O que foi, em memória, é suplantado pelo que já não é. Não há memórias boas. Assim. Em certos dias. Por isso me arrastam para esse duelo diário e surdo, esses personagens que apadrinham. E os sonhos. Que me acompanham como sombra amiga de cada passo para a vertigem do momento seguinte. Ou os anjos. Se for a mesma coisa. De outro modo, seria insuportável. Cronos. E a procura de uma paisagem tranquila, é ânsia dramática no vórtice de imagens que me assaltam. Uma geografia de rigor na necessidade de conversar a sós com Kairós. O meu favorito dos dias. Que procuro com os olhos inquietos quando não o sinto nítido. E procuro sempre. E tudo se define na cor da paisagem. Uma harmonia de desencanto ou de uma alegre serenidade. O que não existe mata ou mortifica, é a questão que o Cronos dos dias, espreitando eu desconfiada o relógio, como se aí existisse ele, eu, me coloco. Ou a vida no eterno presente. Porque o que o monstro engoliu, na sua voracidade incontornável, não pode nunca voltar em memória que não seja a da falta, da morte, da diferença entre ser e já não ser, existir e já não existir. O que há de bom nos fotogramas que vêm ao de cima dessa espuma, é tocado da intolerância que se gera no contacto com a morte. Do tempo. De cada fracção de tempo. Já nada é. Do que foi. O que é, situa-se no eterno e intangível presente. Esse espaço habitado em transição por Cronos, sempre voraz e sempre atento. E o outro, também. Numa luta sem quartel e sem vencedores. Nós nunca. O tempo, talvez saia com esgar vencedor, mas, se nos vence em definitivo, procurando outra morada. Talvez se ame, sem poder evitar, na realidade, esses dois parentes, sempre a competir, sempre zangados, mas sem se perderem de vista. O que me devora – e nada em mim quer restar para sentir a falta do que foi devorado – e o da eterna ventura de viver o presente, como como se existisse sólido e dádiva de renovação. Sim, como dois padrinhos atentos, num duelo de século passado, em que ambos nos querem bem e mal mas trabalham para o mesmo fim na sua competição. Para nos deixar escolher dentro de limites que nos ultrapassam. E a habilidade da seta a desferir. Na luz variável das manhãs, das tardes, mesmo no limite das noites quase à beira de fim de dia. Quando um nos derrota e atira em frente para a solidão do momento, o outro refaz o olhar e apura o tiro. Quando um obriga a olhar para trás, o outro se o chamamos com delicadeza e empenho, encobre o primeiro. E envolve no seu abraço confortável. E no meio disto, rendas e tecidos delicados do vestir para a vida e do sentir, porque se ama os padrinhos como família benfazeja e incontornável. Não consigo poder deixar de amar um e outro desses padrinhos, rivais mas sempre presentes. Cronos cruel e devorador insaciável. Ou o tempo: esse grande escultor, como o denominou Yourcenar. Devora, imparável, como imparável esculpe o momento em síntese em que somos. Constrói apagando. Destrói para limpar. Dá lugar mesmo que da natureza da magoa ao presente que é Kairós, mais difícil de ver, misturado de pinceladas do outro, a querer confundir. A testas a acuidade com que o conseguimos distinguir pelo meio das árvores. O do instante súmula e síntese de tudo o que fomos. O potencial do que seremos após a próxima síntese. Confusos de identidade. Esses dois. Como lugares. Oscilo entre um e o outro. Outros dias, ao contrário.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialO lado B [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão sei se é, e sempre, a vida partida em duas, como um baralho de cartas em início de jogo. Ou se é simplesmente uma carta e as suas duas faces, em momentos diferentes que se alternam. A face que determina, inexorável, a face que esconde e tudo permite imaginar ou sonhar. Face de padrões que variam de baralho para baralho, mas padrões que são como tapetes confortáveis à alma, no imaginar de uma mão favorável, um desígnio inesperado, a realização do que se espera passivamente, como se à vida fosse dado chegar sem querer forçar. Coisa que não é. Faces de uma moeda que se lança ao ar. E cai o momento. E a possibilidade de visualizar, como através de um prisma, miríades de cores e formas adulteradas que não pelo efeito da razão. Mas sim pela densidade do cristal que se interpõe ou do cristalino físico do olhar que se dispõe – e porque não? – num momento diferente de outros a ser assim. Outras, que não mais que pelo elaborar mental imparável e cego. Como se o olhar fosse imagem prévia a abrir voluntariamente e não processamento inadvertido da postura dos olhos face ao real. Que real? Pergunto. O de fantasiar todo um tempo vindouro possível. O de arrumar contas da vida material dos dias que passam sem saber a que propósito dar contas. Esse real de fazer medo. Que medo esse que empata os dias como se monstro a alimentar-se de indefinições, ou a esperar, estoico, a resolução da ineficácia que os torna iguais, idênticos em tudo que não na página da agenda. Contemplava a cama desarranjada com um olhar diferente de outros dias. Nos outros, os dias em que estava, olhava a cama revolta com o olhar de olhar uma cama revolta a pedir ordem e alinho, lençóis frescos e as palmadinhas firmes nas almofadas. Puxar as orelhas ternurentamente à noite de antes e deixar um sinal de renovação e começar de novo à noite que vinha. Ao sono e ao ombro de um calor ali. Mas olhava, agora a cama, a mesma cama, com um olhar de contemplação porque a cama era outra e o dia a anteceder a noite um dia diferente para entrada numa noite diferente e sem o ombro adormecido onde poisar a face, a insónia, aquela extensão do dia a não querer terminar mergulhado no sono esquecido. Era o olhar de contemplação do lugar da ausência e do lugar desfeito da presença passada. O lugar da presença desfeita em sinais como os de outros dias só que agora com a tonalidade definitiva da ausência para um tempo. De um corpo. Que se desfez de formas sensíveis e palpáveis por proximidade. E as formas confusas e sem estrutura que não a dos acasos dos gestos, recusavam a dizer mais do que a longínqua – já – razão de serem assim. A ausência reduzida à mesma desordem do costume. Desesperante, sempre. Triste vestígio a querer reter, agora. Ou para sempre, nessa arqueologia do dia antes, deixar estar tudo a prolongar o impossível. A passagem. Por isso não era o simples olhar da vontade de arrumar. Essa desarrumação de corpos que revolvem como as águas de uma maré turbulenta ou como se rolados pela força da maré repetida e calma. Na navegação nocturna. Não era o olhar da subsequente arrumação cega, rotina de dias em mansa continuidade, mesmo que se terna e ritual. A de todos os dias a impor a ordem, numa perspectiva de eterna renovação e desarrumação logo a seguir. Por isso era uma contemplação parada, melancólica e firme na contenção do momento. Para que não fugisse como areia entre os dedos. E desse momento de nostalgia do corpo que já não vivia ali em futuro próximo, só o olhar concentrado e nítido, a perpetuar. Partiu de tarde e começou a partir muito antes. Porque tinha que ser. E foi. À vida que precisa continuar mesmo que ultrapassando portas e portas sucessivas e deixando para trás a mágoa de quanto não se compadece com a existência de várias vidas em simultâneo. Foi porque tinha que ir. Não querendo. Não querendo eu. E agora simples lençóis de algodão amarelo pálido e límpido a desfocar uma despedida que já fora. E a necessidade de apagar o rasto do corpo naquela cama. Adiada, no entanto. Amanhã. Amanhã desfazer as formas ainda com a temperatura, hoje dormir na rebelião da memória feita embalo e saudade de quem já não está visível, mas quase. Eu vou dali desse olhar que não quer desprender-se e na janela sigo-lhe o rasto já indefinível Vou, de um modo geral, talvez num barco nocturno a um lugar qualquer sem ele, porque de efeitos de luz se apresenta como tal. A noite de não dormir mais. Os contrastes mais difusos do que na torrina do sol. Que eu amo. Mas não descurar a nitidez das sombras nesse gostar da luz. Não fugir à aparência virtual de fogo-fátuo intermitente e difuso, que só na noite, do dia, se apresenta. Nunca sou noite do dia excepto à noite, mesmo. Não se pode imputar à ginástica do olhar a perversão da luz. Da luz que falta ser farol ou que encandeia de inabilidade diurna. Ir num barco de sombras e reflexos não é ir efectivamente. Não é ir, nem nada, senão a procura da bússola. Acendo um cigarro como outros mas nunca são iguais. Os cigarros as luzes e os outros de face escondida por detrás da luz. Acendo este cigarro. Este do momento específico de ser agora e acendo o cigarro secretamente desesperado assim tal e qual como os outros. Mas acendo. O cigarro. Diferente em todas as semelhanças. Este. E penso. E embarco na noite do que o dia não trouxe nítido. E levou, e não deverá trazer de volta. A linguagem é um território de não comunicação. De desfocagem a exigir persistência. A ouvir. A aprender a partir daí. A arrumar como as roupas desalinhadas que ficaram esquecidas por ali. Fui com ele, naquele dia, e como num tabuleiro de jogo, até à casa da partida. Partimos. B. partiu e nunca voltou ali mas a outros lugares. Deixando sempre o mesmo ruidoso recorte de ausência nas coisas. Um silêncio que dura até hoje.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialFico sempre um dia mais tarde [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá frio, dizia já. A antecipar, no sopé, a subida em crescendo difícil e a descida da temperatura. A imaginá-la antes que se avizinhe real e a sofrê-la na memória da pele. Está frio lá em cima. Para além de todos os carreiros íngremes sempre a subir. Estará. E estará sempre que o lembrar – o frio – e sempre que apertar os braços a tentar reter os fragmentos em que o frio me deixa a alma. Aproxima-se-me da memória em cada estação em que não há. Como um temor desnecessário e de irremediável verificação. Em cada estação antes e, absurdo, em cada estação depois. A torná-la antes. Mas ali em cima, com um pouco de sorte, as nuvens abaixo. Distância a tudo, que o silêncio compensa. Às vezes, sinto-me a entrar num momento de um outro momento mais vasto, como quem entra num salão apinhado de desconhecidos, num lugar do mundo que nem sei onde é. E como que reagindo de olhar míope ao desconhecido imenso, olho em volta e procuro uma parede com uma tira vaga de vazio a que encostar o desconforto. Um lugar em que caiba essa estranheza imensa e momentânea, mas encolhida dentro de mim e por detrás talvez mesmo de um sorriso. Aconchego um xaile enorme de lã em torno do pescoço e do longo casaco de lã de iaque, que parece ainda reter o cheiro animal, um pouco nauseante. Um pouco camuflada nas cores das lãs, como dos pigmentos daquelas terras rochosas desfeitas em avalanchas quase como as da memória. Olho para cima a reunir forças. Para o frio e a visão dos cumes e picos para lá das nuvens. A pensar que outras vezes demoro a chegar ao meu vazio de quatro pernas. Dir-se-ia um banco de jardim ausente de gente antes de chegar. Ou recortado na paisagem. Ali na sua concreta negação de existência material. Mas é verdade que não o habito nem eu ao chegar, tal a forma como duvido existir. Talvez recorte também saído de uma caderneta de cromos. Chegar. Estar, depois. E noutro momento, partir. Arrastando uma ausência de dimensionalidade em busca de caderneta própria. Ou então, é mesmo o animal quadrúpede que me habita sem preencher. Mas o que sou eu? Isto perguntava a minha avó de olhos vivos e pequeninos. Nada. Não sou nada e por isso me dou mal com o monstro que me ocupa sem habitar em boa vizinhança. Há coisas na vida que se repetem e repetem de forma irreprimível – como reprimir as estações? – é quase insuportável. Que se desmultiplicam como ecos, e repetem, e repetem, como uma música de que se gostou, gosta, e que se sente uma necessidade de respirar, como se dela dependesse a possibilidade do momento seguinte. E depende. Como de uma música que espelha um ritmo qualquer da alma não definível por outro meio, e do qual fosse o silêncio possível em torno. O que produz música como oxigénio em que se desenvolve o respirar. Há coisas na vida que se repetem e repetem sazonais, rítmicas e recorrentes. Venenos. Toxinas a entrar na corrente, reconhecida e familiar como um terreno fértil. Como músicas. A ouvir até à angústia final de ter que interromper. Como se uma hibernação em fim de inverno. Ou a exaustão e a agonia do vómito, do álcool. O corpo a virar-se sobre o seu avesso. Coisas como a música. Não a música, mas uma em particular. A estender para além do razoável uma emoção sentida. Uma droga tóxica. Entra no corpo um dia e torna-se necessária. A revisitar. E as coisas que mudam. E as que nos mudam. Fim da infância. E um dia, sem aquele aviso prévio que afinal só talvez antecipe a desilusão, o meu pai troca o nosso Taunus 12M, carro familiar, doce e afável de modos, charmoso, verde como convinha e com uma risca branca, fantasia posterior. E surge orgulhoso da mudança com um carocha azul escuro. Volkswagen carocha, até aí reconhecido pela minha alma perturbada de estereótipos como um carro de pessoas idosas. Isto porque, a quem o conhecia e só, era ao maravilhoso e gentil casal da papelaria charmosa e fina, casal sem filhos e que, talvez por isso, deixava uma criança sentar-se por horas esquecidas num canto do chão a ler bandas desenhadas, até que a outra criança a iria, em desespero, chamar para o almoço. O sr. Ferraz e a dona Tininha. Casal idoso, sempre bem arranjados um e outro, quase perfumados ao olhar, ela com aqueles brincos enormes de fantasia de pérolas, ele de risca lateral descaída e impecável. Um amor os dois. E para mim como se idosos de sempre e para sempre. Talvez hoje os veja como possivelmente mal saídos dessa estranha meia idade e não mais. (Esse olhar de criança no absoluto presente. E este meu adulto no absoluto imparável nunca). E um carocha bege claro, rebrilhante e impecável. Carro de gente idosa, portanto. E o nosso, agora, lá em baixo num primeiro olhar da varanda, azul escuro, pesado e bisonho como bicho corcovado, a aguardar a aprovação de toda a família. Tive um desgosto pela perda do doce Taunus, e uma revolta ostensiva pelo ultraje deste monstro feio e informe que lhe sucedeu. Coisas. Olhei-o com olhar furibundo que fez o meu pai rir com vontade e indiferença. Quase chorei da incompreensão de tamanho desgosto o meu. Mais tarde chorei a sério de tristeza de o ver partir, doce, pesado e orgânico, quase. E mais tarde, ainda, foi um irmão longínquo dele, o meu primeiro carro. De estimação. E cor de pérola, quase, quase como o do sr. Ferraz. Aqui, no sopé do frio que se avizinha. Por momentos no final da infância. Olho para cima a preparar a subida. E depois para o lado a rever a paisagem de transição. E depois para um ponto qualquer. Longínquo. Às vezes encontro-te por dentro. Eu não sei, sequer, se estás lá. Mas chego ao teu lugar, ao que imagino ser o teu lugar de abandono, e sento-me à espera. Não sei se alguma vez estiveste neste teu lugar. De picos ou subterrâneos. Mas não é assim que as coisas se passam. Contudo, sei-o lugar de encontro. Descalços de sapatos levemente sujos de vida, penso, entramos. Não sei quem és. Nada, como eu, talvez. Mas não é assim que as coisas se passam. Para além de um ruído ensurdecedor. Talvez aí.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialDeste interior não sai ninguém [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap], no entanto, entra-se. Pode-se entrar por ele adentro como de uma realidade que, podendo ser ilusória, nunca se perde de o ser. E cair. Por essa realidade abaixo. Por ela fora, por aí. Mesmo se inexistente. Mesmo se previamente inexistente senão em possibilidade, e mesmo se antecipadamente pressentida em toda a sua intangibilidade, para além de uma sombra um reflexo ou a pura invenção de uma camada do que não é, não foi, mas se presta a uma forma possível. De ser. De iludir. Ali me sento todos os dias na sua frente. Não talvez já a tentar entendê-lo, mas que se me revele ele lentamente no seu silêncio. Encontrar-lhe o olhar. A cor. Pinceladas que erram ou não. Pintar. Às vezes, como partir para um “blind date”. Sentar-me à mesa com o desconhecido. Uma coisa mútua, em que cada um tenta explicar-se ao outro. E ficava. Quieta nas horas, em frente a ele quando veio sentar-se. Central e necessário. E eu em busca de lhe entender o olhar. Como uma linha da vida, da mão, da página, do coração, em que, como numa única e ínfima célula, se encerrasse como num cofre, todo o código genético de um pensamento, de um sentir e de um viver. Numa única célula. De um corpo. De uma frase. De um olhar. Esse seu olhar divergente, como uma curiosa antecipação genética ao que teria que ser. E a ver a chegada de cada linha, numa arquitectura de interrogações. A mim, a ele, a esse interior de que não se sai. E antes ainda, à procura de um local mítico de encontro improvável, possível, na imensa maleabilidade do tempo que tudo admite à ilusão, à fantasia ou à memória, encontrei-me como se com esse meu mais que ilustre, distinto e invulgar colega do Liceu de Macau. O ponto etéreo de cruzamento de uma memória com uma fantasia. E eu ali, como sempre, pequena e timidamente o olho em tentativa de entender. Sabendo, sem redenção, que não se sabe o desconhecido. Sabe-se o desconhecimento. Baixo. Surgiu baixo e fui ver. Na verdade, então, não era uma figura imponente. No corpo. Não no corpo. E ficou ali, e um dia, depois, voltou e enrodilhou-se sobre si. A olhar de dentro, soturno e calado como o outro. E quando voltou, vindo de um real para além da dor, cambaleou a ansiar o conforto de não pesar ao corpo, nem a vida, nem o pesar a consumi-lo. E os monstros. Fugido de monstros e memórias, ou talvez a mesma coisa tudo. Cambaleou para o interior vindo da dissolução progressiva e futura. Reuniram-se na curvatura de uma parábola muda de cegos – pensei: como a outra, de Brueghel – e assim também aqui esse desígnio os fez cair. Ancorados no cego da frente, o primeiro a ouvir brisas ténues da poética realidade enfeitiçada de símbolos, que tudo modelou do início para o fim. Dali, da frente, para trás, o início de tudo. Aqui, ou ali. Como se no tempo da narrativa, no tempo de se deixar varrer de olhos em muda interrogação, se pudesse distinguir duas opostas leituras vectoriais. Dois sentidos de leitura, entre o oriente e o ocidente do oriente também do quadro. Numa curiosa imagem, do fio cronológico das coisas que se sucedem. Antecedem? Mas há uma face a que nunca terei e se tem acesso. Não vou dizer o que, assim, não é nomeável. Tacteável. Que de dentro espreitaria sempre sem se deixar ver por detrás de reflexos cristalinos de um olhar cuja cor não ficou registada. E dele sempre seria evidente, mais o reflexo do que o interior. E é um jogo imparável, este, do desconhecimento. E assim se anda sempre á procura de um entendimento do outro, confundindo-o em muito com o que reflecte de quem o olha. De um além fechado sobre a impossibilidade de saber mais. Mais para além do muito que floresce em palavras e pequenas e múltiplas peças de um puzzle labiríntico, em que se o tenta edificar. A pessoa que já não está. Por detrás das palavras e dos gestos que elaborou. E que noutro tempo, sabe-se lá onde estaria para além ou para aquém delas e desses. Observei até quebrar a estranheza, os olhos e como quando os olhos teimam em ser baixos se lhe eleva o queixo. Em desafio. Todos os dias de riquexó e cão para o liceu. Onde fomos colegas. Que importa se num tempo que não cruzou ali caminho nem pena nem espada. Honra-me assim pensar o tempo sem direcções preferenciais, sem disjunções estanques, e porque às vezes não as tem mesmo e de todo. O tempo da memória faz-se talvez de matérias como o da imaginação e da ilusão. Sim. Ia de riquexó e de cão para lá. O homem que deu este nome a um cão. Arminho. Como as etéreas rendas de que cobria a madrugada dos poemas. Cortinas e esfumados lirismos como das gaivotas exaustas e sem ânimo. Nunca mortas, afinal. Sentava-se mais tarde quieto na camisa- de- forças do seu duplo e pensava na gaivota por morrer. Arminho. Sabe-se lá porquê. O arminho que é coisa leve e de fru-fru de festas. O arminho que é coisa inquieta a um simples suspiro, leve como leves os tules das cortinas simbólicas de que reveste os seus monstros. Dantes, Nilo ou Tejo eram nomes de cão e o do seu, leve e esvoaçante. Talvez a paixão pela música das palavras não deixasse chamar-lhe das pérolas. Deste rio. E, no entanto, pérolas são os pontos de dor da ostra. Tornados luz. Mas o que de um poeta diz, a vida de um poeta, e o que diz um poeta no que diz, o que diz no que não diz, talvez. O que se esconde no que esconde e naquele que o procura, a ele ou esconder. De que véus e velaturas se recobre o que se esconde, como de desvendável existência, é pergunta que me fugiu desamparada para o longínquo horizonte da resignação. Como se sólida matéria a intuir por detrás. Mas o escondido é nebulosa não matéria. Invenção de que pergunta, sem saber mais do que adivinhar o muito que preenche o território de que se revelam as sombras projectadas do poeta. As brumas amigas. As camadas de encobrimento. Aguadas como poalha em dias de chuva. Coloquei-as para não ter a pretensão de as retirar. Janelas sobre o espaço. Entreabertas e obstruídas levemente de leves cortinas. Portas que não levam ao conhecido. Cuidadosas a mais por detrás de biombos. Como filtros. Como roupas entre o corpo e a casa. Pessanha, o quadro sobre um tempo invisível que não atinjo mas tapo. Os quadros vivos atrás do quadro. E indecisa digo também o contrário, como da vida me chegam sempre ecos. Porque há de a vida abalroar-me sempre nesta estranha convivência de contrários. Recomeçando. Como distinguir-lhe um silêncio de secreta abertura, de um silêncio de discreto encerramento. E depois, trocar os adjectivos. Porque me fugiu sempre a invejável harmonia das certezas, para este olhar polifónico que me traz num carrocel. Mas ele ali, parado, que pensaria? Quando naqueles dias de alma difusa e sem ideias que transpareçam por detrás desta cortina, deixo que sejam os pequenos bichos devoradores a agitar-se na folha. Cada um na certeza de existir e produzir sombra. Sem cardume possível se bem que partilhando águas. Sigo-lhe as sombras. Os objectos a representar a vida e a cobrir esta de obstáculos ao vazio. Intrigante colecionismo, o de objectos inúteis e crivados de imagens. Duas camadas de máscaras sobre o interior. De um pote, um vaso, um jarrão sem flores. Vivas. Vazio. Como na poesia, que dele revela uma leve e musical arquitectura da dor. De que parte, que recobre, e onde regressa como ao grito necessário. Medido e emendado. No entanto. E recoberto de símbolos ou diluído neles. O grito da dor. Da que é início e decidida sentido e fim. Sento-me na sua frente todos os dias. Desmultiplicou-se em tempos, fragmentou-se, diluiu-se no fundo, como era para ser. Denso de cor e etéreo de transparência. Sento-me ali a olhar como, por um túnel paradoxal de linguagem a tentar igualar a vida, se juntam e justapõem os tempos, os lugares e as fases de ser, entre uma poética guiando a vida e, em sentido contrário, o recuo a uma retaguarda que foi teoria e definiu. E não salvou. Restos. Como células que descartamos todos os dias. Invisivelmente. Em cada passo, em cada gesto. Impressas do código genético. E partículas de água que se evolam e nos abandonam a uma secura de plantas. A ir. Naquele fio do tempo. Ou da navalha. Como restos são os mortais. Ou os restos imortais espalhados por uma eternidade de memória, nos quais, como um convite desfiado em cordas, se tenta ascender. Adivinhar caminho. Ou tão simplesmente, na música do poeta. Sem mais do que ouvir. E queria o olhar inquieto a viajar, de leste a oeste do quadro. De oriente a ocidente. Repletos de origem, confusos de final. Tantos dias e tão poucos ali me sentei na sua frente. Ele calado e eu. A tentar adivinhar a arquitectura daquele interior. Daquele exterior invasivo. A tentar não o expor nem o fechar. Com a emoção de um encontro. E um dia, encerro a última aresta daquele interior cruzado de monstros e enigmas que ficam. Deixo uma portada entreaberta e vou. Mas olho para trás todas as vezes que posso enquanto o meu olhar alcançar o quadro. O poeta. Despeço-me com saudade. Do encontro plano com a terceira dimensão escondida e escura atrás do quadro. Está frio. O tempo congelou. O homem morreu. A poesia não.
Anabela Canas Iluminação ArtificialDe lugar em chamas [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stava ali interdita e afogueada. Quase as pontas do cabelo e aquele cheiro sem equivalência. Do medo. Da chama corrosiva e corredora de fundo em velocidade e em desígnio. Tudo numa só vez. Talvez invisível mas tanto não diferia do que o não era. Havia talvez uma força a subir sabe-se lá de que órgão e a tornar inevitável correr. Também. A partir dali e independente da quebra, a obrigar. As coisas obrigam e sem estrelas. E o corpo corre. Sobre as pedras duras as teclas ou a simples e forçosa respiração. Correr de uma maneira qualquer contra o que vem. Do que se anuncia no vir do desconhecido que vem. Nada se sabe do correr nem do porque correr. Só e apenas correr contra – sei á – o tempo. As duas e um quarto mortais em luta contra as três e vinte caladas ou as quatro e trinta e cinco inevitáveis. Sim, luta de morte contra esse tempo que ameaça antes de o ser, fazer-se pagar caro em respirações difíceis. Ou é talvez o fumo. País, lugar em chamas. Sina de estação do corpo país lugar. Ou do corpo nem país nem lugar nem sina nem sinal. Retiro metade das batidas do coração para momento de necessidade. Nunca se sabe se vêm a ser salvadoras. Mais um pouco por excesso de precaução. E fico de uma lentidão fria, olhos esgazeados, revejo todo o corpo e das palavras digo sei estarem lá para o que der e lhes der na real gana. O corpus de possíveis e impossíveis mesmo as já entornadas do caldo ígneo da hora anterior. Bichos em fuga, terras a quente e de negro árido tornadas desconhecimento de cinco e meia. Seis e dez, oito e vinte e dois e três ou quatro anos depois. O negro a entranhar-se nas camadas abaixo da pele e da terra e do futuro próximo. Tudo ardido, fodido, mesmo. Para alguns mais nada. Depois de tudo. Salvam-se os bichos, aqui, uma casa, ali, e do todo, fica muito menos. Para alguns, nada. Peguei fogo? Foi fogo posto. Avanço no corredor entre as sombras e as árvores que sobram em sombras. Avanço a meia respiração, a meia vida, a meia consciência, das meias tonalidades, nas meias sombras que sobram. Em árvores. Avanço em silêncio comigo própria a dizer baixinho talvez durma. A dizer surdamente espero que durma ainda. Já. Abrando os passos na porta e observo retendo o pouco que sobre de respiração não vá acordar o monstro que dorme ali. Em parte do que os passos me levam ali. A mim. Dorme. Afinal dorme ainda ou dorme já e dorme na respiração regular e calma de quem não faz mal. Dorme. Observo. Ou respiro. Respiro forte e lenta no momento, ali estagnado, congelado e parado, da porta quase fechada a abrir sem ruído e a escancarar para abrir os pulmões. Todo o tórax em liberdade de movimento surdo, muito silencioso e suave para a vida ficar. Assim. Um pouco para lá de adormecida entretanto. A ver. Fico ali a ver a respirar pela pele. Pelo ouvido atento e a mim. Pelo tempo. No limiar, recupero o todo do coração o todo do cérebro e do corpo sobra um todo. E do todo saio finalmente do tempo. Mas fico um momento mais de eternidade. Daquelas. A espiar o sono e no sono os registos ténues de sonhos a agitar. A estremecer o corpo. Telúricos arremedos de vida secreta e densa a querer sair pelos poros. Como se fosse pelos poros. E a respiração em sobressaltos e pequenos rugidos de dor, talvez. Depois serena por um instante de tempo não medido nem definido. O aleatório percurso pelas ondas. E respiro-o. Fico mais um pouco indefinidamente indecisa. Ali, encostada a uma ombreira que não é ombro ainda. Como chamamento disfarçado na calma no silêncio e na melancolia. Enquanto o tempo não volta ventoso e a correr. Mas vem alheado e sonolento, indiferente e esquivo. Como se não viesse. Por isso vou. Entro talvez no espaço do corpo sem autoria, sem autorização, sem assinatura, sem requerimento. Sem querer. Sem resistir. E depois vou. Um pouco mais dentro do lugar. Descalço uns sapatos cansados do fogo. Fui eu? Dispo uns trapos de sinais informes. Que teria dito nos fósforos? Nas caixas. Deito-me encostada. No abraço. Para o que vier, me encontrar assim. O que é, chama. Se para queimar que seja rápido. Indolor não pode ser.
Anabela Canas Iluminação ArtificialAlquimia da dúvida [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma relação qualquer entre a coragem e a insegurança, que sempre me detém longamente. A pensá-las. A possui-las. Cada uma. Ambas, na sua resolução de equação maior. Não se excluem. Não se acrescentam. Têm uma alquimia própria. Uma vida no fio da navalha em sangue. Um casamento difícil. Porque me acontece entrever aí uma chave em bronze de tanta coisa. Aí, no cruzamento das duas, numa esquina repetidamente virada na vida. Uma relação que não é directa nem inversamente proporcional. Na vida, no humano que é uma parte da vida que nos ocupa biologicamente e nos ocupa o espaço de sentir, sentir vida, e nos ocupa o espaço de pensar, pensar-nos enquanto passageiros. Talvez. Numa linha do tempo que as estradas imitam. E porque nesta relação, parecida a uma vizinhança aleatória entre uma habitante feroz que luta pelo espaço do patamar com a vizinha, igualmente decidida, se refazem todos os dias as resoluções no épico de uma vida a medir forças com a vontade de desistir. Mas essa, é uma outra vizinha que está residente no andar de cima ou de baixo. Mais no fundo, Talvez. Num andar de fácil acesso, com perfumes de desalento e de preguiça e de teorias várias de natureza poética a justificar a astenia. Há um andar na profundidade de um edifício existencial, situado talvez nos alicerces de uns, ou nos terraços perto do céu, em outros. Tudo a depender de outros enquadramentos para a metáfora escolhida. Onde estamos mais fundo? No profundo e escuro da cave de um edifício ou na ampla abstracção búdica de um acesso ao ar e à diluição no éter para além dos degraus concretos a subir. A descer. Com os pés sentidos. Passos sentidos e acções com sentido. Ou tudo centrado no grande zoom sobre uma escrita interior. Uma electroencefalografia do sentir. Momentos – ela toca-lhe o ventre com o peso nítido da face. Ele toca-lhe a face com a delicadeza da mão. Ela toca-lhe a mão. Com a dúvida imprecisa. Da ponta ínfima, e já quase esquecida das sensações, dos dedos. Indecisos. Esquecidos, como se uma mudança de plano cinematográfico deslocasse a câmara dali. Ele toca-lhe a alma num adejar imperceptível a olho nú, mas ela não sabe se sabe de certeza. Grande plano, agora ali. Ela está ali mas ele não sabe onde. E assim se pode diluir um momento de alguma coisa contido. Insegurança. Coragem. Indecisão. Dúvida. Um lapso de tempo, um intervalo na impressão. E o tempo acaba. Palavra fim e todos se levantam a velocidades diferentes das cadeiras da escuridão da fantasia do filme. Fica-se assim entre vida e vida. Animé. Animação produzida em estúdio. Qualquer animação de desenhos. Figuras que por magia da teknè – estranho como do grego, que harmonizava conceitos de arte e técnica numa única palavra, derivamos para o preconceito associado a uma delas como se maculando a outra – ou por artes mágicas, ganham vida própria. Da sua essência, o movimento, toda a fantasia possível na capacidade de ilusão que esse fantástico ingrediente, e quase por si só, nos catapulta para uma realidade própria. A da ficção. O movimento. No espaço. Só. A desvincular o objecto da sua natureza própria envolvendo, uma outra da raíz do inconsciente espectador: anima ou animus. Em que cada um se deixa levar ao seu modo irreprimível. Uma outra forma de dizer animação. Algo em que nos deixamos fluidamente levar, abstraídos, no tempo. Nesse tempo de consistência variável. À la carte. Quem somos nesse distender da vida, nesse desenrolar ininterrupto, e indefinidamente, estranhamente variável. Algas ao sabor da maré, ou almas a criar nós e circunvoluções que estratificam o tempo ao sabor de emoções apaixonadas ou brandas. Esse tempo que devora a consumível paixão mas ateia. Da profundidade incendeia sem olhar a escuridões maiores, da mesma que desdenha a mão que emenda. O que para o tempo não há. (Porque me acalmam as paixões efusivas, paisagens paradas. Paradas e letárgicas como se nada houvesse de força motriz nenhuma. Onde nada se passa ou virá depois. Acalma no possível confronto com a terra que é onde a alma não deveria opor voos e de onde não deveria muitas vezes elevar-se insatisfeita e tormentosa). Talvez o tempo. Essa obsessão que tenho de algo que não tenho porque não posso ter. O tempo. Talvez o tempo. Em que uns, como nas palavras, inscrevem a simplicidade sintética de uma afirmação sim, com todo o peso e lastro existencial, contido no momento da memória da ausência da memória do mergulho profundo e perene em águas que o tempo leva mas não necessariamente lava. Toda uma síntese segura de o ser e com prazo longo e dedicatória sentida. Outros na desesperança de uma interrogação de ainda de mesmo de talvez ou de já não. A eterna interrogação sentida e dorida da insegurança. Do querer, do dizer, do nem querer sem dizer ou. Sei lá a deriva. Nunca a esses seres lhes chega a enormidade deste ser inteiro para a vida. Ser para a morte. E dizer afirmativo. Sem prazo. Uma questão de economia de pontuação. Ou talvez a chave seja de matérias mais finas. O vento. Essa passagem do tempo que se abre e se fecha em si. O que não se perde no nunca se ter. Como o tempo. Do tempo perdido. Em busca. Essa busca melancólica que só a cafeina retinha nos limites do suportável. Mas isso se era em Proust, perdido este na elaboração melancólica e exaustiva de uma memória de sonho, de um corpo, realidade do sonho realidade de uma memória de um sonho, um corpo sentido e sensual junto ao seu, encostado com todas as forças da memória e do sonho, e de que afinal sobrava nada. O nada do acordar com a percepção da sua própria perna tornada sensação e desejo e outrem, nos caminhos inexpugnáveis do sonho. Da desilusão e do acordar. Não existe tempo perdido. Não existe. O tempo é um bafejo impreciso como onda indómita de uma maré enchente, ou de uma onda em quebra de alento, recessiva na sua maré vazante. À hora a que chego à praia, ao dia, nunca sei que onda me espera no momento de ali estar. A tumultuosa e impetuosa onda que avança inexorável ou a que avançando recua sempre um pouco mais como uma metáfora de vida a escoar-se. E, no entanto, uma coisa é certa. Nada resta da maré anterior. Mas o mar é sempre o mar. E o tempo. Que não se perde porque nunca se possuiu. Talvez ele a nós, sim. E nos perca. Um dia. E assim os castelos de areia. Nada tão belo como o que se constrói independente da certeza de perder. Que nunca nos desaponta. E, no entanto, dizia o poeta: tudo vale a pena. Não se retoma o tempo, não se volta ao tempo, não se retém, não se possui. Nem para depois nem o antes impalpável a que quanto, ou enquanto ou muito, como se exista, chamamos memória. Uma paragem no álbum de recordações como numa estação de montanha alheada do mundo. Remota. Não se possui o que não existe ainda nem existe já. Jamais a mais do que o momento em si. Em que, contudo, nem evoluímos como numa metáfora de espaço que erroneamente confundimos com as possibilidades imagéticas de que a mente tanto precisa, envoltos nele como numa onda de aragem quente, que nos embala como planadores, sim, em que embalados voamos numa linha leve e acima de todas as coisas matéricas que nos ancoram ao espaço, esse, real. Nunca deixar de os fazer. Só porque vão sempre com a próxima maré. Talvez seja quando o tempo começa a envelhecer um pouco. Um pouco só. Subtilmente. Que se descobre o tempo novo e fresco de cada dia. Talvez aprender a esquecer aquilo que não se pode mas tem uma maneira particular de ser esquecido sem ser. Ficar simplesmente ali para trás. E talvez sejam os sentidos os anseios a comandar. Os sentimentos talvez. Seguramente mais do que talvez. Não é o caminho mais fácil o de enfrentar a dor em duelo de morte. Em que morre a dor para sempre e tudo o que a ela lembra. Ou há um acordo amigável a ultrapassar padrinhos e conselhos de sanidade e protecção. Só quem está de frente para o adversário pode decidir apertar a mão e seguir caminho com tudo vivo. O sentir e a dor. Cada um para seu lado em respeito mútuo. E tudo se abrir em possibilidades porque o duelo foi anulado e passou. Para sempre passou como tudo até ver. O dia novo. Mas o tempo é como o mar. Não posso mergulhar esquecendo a linguagem dos músculos aprimorada antes. Não posso esquecer nada nem deixar para trás o desejo de nadar. O perigo. Sempre. E depois, ainda, o tempo vem. Esse. Que não existe. Essa linha de nós. Onde se desliza. Adeja suavemente ao sabor da aragem. Sou um cálamo. Nada mais do que um cálamo abalado. Pelo vento, talvez. Nas infra-estruturas. Ou então embalado aí. Como se a vida. Mas todos os dias. Cada dia. Madrugou impuro e impenetrável como só. Talvez só. Ele. Eu. Não penses, eu, ele, que algum dia será de seres mais real do que a realidade do sonho. Eu. Ele. Tu. Mas não tu, eu. Ele. Talvez ao tempo se deva um tratamento de amor. Generosidade que não tenha connosco – mesmo. E às vezes dou comigo assim. Só a realidade é sonho. Tudo o mais, ilusório. Sem excepção. Tudo é real. O sonho. Como o tempo. Ou então, nada. No outro dia a fotografia de uns degraus que levam a parte nenhuma. Um lugar que é um olhar de memória. O espaço ainda. Mas aquele tempo não. E a vida disparou a partir dali. Inacreditável disparo sem limites. Ainda estou sob esse signo fatídico e inacreditável na altura. Talvez por isso esta disposição um pouco escheriana. O efeito de um olhar retrospectivo sobre a enormidade intangível do porvir. A partir dali, naquele momento. Mas não há colorido repetível para o de uma alma enamorada mesmo no seio tormentosos de intempéries. Em cada dia se deita consigo todo o tumulto de anos imprevistos, caóticos e ficados para trás. E, contudo, não me deito vazia do dia que foi imediato e antes. E do dia que talvez se avizinhe. Quando assim é, esqueço para não dormir em vão. Não se pode. Tem que se adormecer no ombro de amanhã ou depois. Não há outra possibilidade. É talvez o sonho redentor. O anjo que não esquece na sua distância. O ombro etéreo de uma ambição discreta e secreta. Não quero ser estação de passagem desatenta de uma peça qualquer da vida. Somos estação de passagem. A diferença está na qualidade. Eu espero meu amigo – digo-lhe – que entres com as intempéries e deponhas as asas molhadas no cabide à direita da entrada. Que retires daí as asas domésticas que não te magoam o flanco ou a cintura cansada e te sentes ao meu lado a escutar as batidas do coração está tudo aí. Vai estar tudo aí. Os enormes e gigantescos seres do amor que vivem em nós como no fluir imperceptível do tempo, e nos quais vivemos. Que amamos em nós mais do que partes de nós e em que vivemos como casas e refúgios. Num jogo perfeito, perfeito jogo de espelhos. Fecho-me em casa na tentativa de refugio da violência monstruosa do que me acomete. Me abalroa. E me gira no rodopio veloz da vertigem do sentido de dentro. E, como uma onda veemente, quebra na areia e mais ainda num quebra-mar. A vontade. irrompe com o poder destruidor ou construtivo, feita de toda a cor, e quebra. Quebra como se nunca tivesse vindo inteira e prestes a arrepanhar o tempo antes de perdido. Mas ainda não se respirou fundo e foi. Até à próxima maré. De cada vez que me sento com o desconhecido. Sei que é uma vez a partir daquele exacto e imperdível momento. Sonhado talvez para trás. Sonhado para a frente. mas, de cada vez que me sento com o desconhecido, é o momento que vale a pena sonhar. Aquele exacto e preciso momento. Um eterno início. Nunca um eterno retorno. O início do sonho a sério. Do encontro. Com a ilusão a formar. Com a fantasia-porta. Com a real validade de tudo isso. Com a realidade. Com todas as sombras e reflexos que assombram tornadas matéria e visão. (Às vezes gostava de pôr vírgulas entre parêntesis, por isso não as coloco. E penso como o que está e o que não está, se pode demonstrar equivaler-se). Suponho que quase tudo o que alguma vez amei, algum dia se sentou à minha frente neste encontro com o desconhecido. Mas ainda há muito a fazer. Tudo é real. Ou sonhado. Ou a mesma coisa.
Anabela Canas Iluminação ArtificialE a natureza produz monstros [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo delírios líricos. Como poemas soturnos e assustadores. Emoções sem limite. Razão. Intenção. Só a inevitabilidade contida no seu natural ser assim. Grandiosa e terrível. Nem seria necessário que a natureza produzisse monstros. Na sua arrasadora e sublime potencialidade de beleza – de violência. Não seria necessário, mas é talvez de aí que surgem modelos que enformam outras dinâmicas para aquém da pura percepção. Por vezes penso que são os dados desta percepção, residente nos dados dos sentidos, que formam a base estrutural de todo o sentir em desabafos metafóricos, que se transmuta em realidade temida nas ígneas e intangíveis teias de realidade, em que movemos os nossos medos como peões num jogo de tabuleiro. E não o contrário. Da poética natureza, a uma realidade induzida. Mas não seria preciso a natureza produzir monstros de rugido e violência histriónica, que nos arrasam, com a facilidade com que um deus esmaga, com uma pontinha só de uma unha divina, a insignificância que somos. Que conseguimos ser. Numa contradição de escalas que por vezes subverte a natural expectativa, e devolve a possibilidade de domínio perverso, afinal – um botão certo no local certo e o dedo errado a premir – de tudo o que transcende. Da implosão. Ao ponto de gerar entropia na ordem natural da natureza, suficiente e em excesso mesmo, para erradicar esta fantasia delirante que somos no reino natural. Fruto de um sonho mediúnico do cosmos na sua evolução e inércia em cadeias de reacções químicas, disparates da energia a brincar com átomos e etc. A grandiosidade do delicioso, único e temível disparate cósmico, o enlevo emotivo que nos coloca face ao grandioso e sublime no que é o cenário natural, algum conhecimento científico, alguma propensão para a contemplação e para a intermitência entre o enorme em nós e o ínfimo que se insinua irremediavelmente. A grandeza em que nos afogamos e a ilusão de tudo abarcar em nós. Talvez tudo isto seja a base do romantismo histórico. Eterno reflexo expressivo da secreta dualidade que a psique nos permite e obriga a transportar. Mas não seria essencial esse confronto com a monstruosidade natural para que as próprias paredes da casa reproduzam autonomamente monstros hirsutos. E por um tris – não, não é por uma fracção de segundo no acaso e de raspão, e a inevitabilidade consistente que nos molda – estamos a falar do abismo. Assim. Por exemplo. A vocação abismal da noção de si, dos outros para fora e para dentro de nós, do amor. Por exemplo. E a eterna pergunta da localização face ao ser desse abismo e dessa abismal existência em si. Exterior ou interior. É, qualquer abismo, exterior ou interior à ideia que dele fazemos. Debruçados na amurada que dá para um grand canyon da mente em que nadamos preguiçosa ou inadvertidamente. Ou talvez dizer, afinal, irremediavelmente. Perscrutamos a noite do universo estranho na sua complexidade. Com a mesma naturalidade com que escolhemos frutos no mercado, ou joias numa joalharia. Tudo imperscrutável na sua aparente naturalidade sem origem. Que abismo, na topografia das grandes massas rochosas, é parte da ideia que dele fazemos, que abismo se forma do saber da grande erupção que nos antecedeu lá muito atrás quando esse gigante rochoso se levantou do fundo dos mares, que abismo se insinuava no desconhecimento de antigos, e que ameaça real a natureza nos grita ou segreda calmamente quando em repouso. E que parte é parte do temor que lhe temos como se sempre a queda fosse inevitável. A saber. Mais tarde, ou nunca. Não fosse alguma vocação vertiginosa que nos colhe de dentro. Que metáfora mais monumental, global e romântica nessa enorme potencia natural de universo a engolir as larvas, ínfimas formigas que somos, do que um glaciar monstruoso e atemporal, que tristemente rendido ás maquiavélicas, pontuais e repetidas investidas ínfimas, de seres ínfimos, em que cada um faz da sua pequenez força, e que, somados os dividendos de culpa, derrota a vontade natural de uma inércia com as regras próprias do universo, e se derrama como um caudal imenso e destrutivo de lágrimas, sem olhar a estragos em cadeia que seguirão pelos séculos dos séculos. Não digo amém. Até um desgosto de icebergue destrói em redor. Não somos um pouco assim? E de seguida, já de seguida no tempo, continuamos a escrever enormes e irremediáveis páginas de memória. Inscritas na destruição subtil, imparável e sabe-se talvez, definitiva. E só apetece trancar a gaveta das coisas difíceis. Ilusão. Fantasia. O que não é perscrutável manusear no mundo real. Remetido para a eternidade leve e irresponsável do sonho. Mergulhar fundo debaixo das ondas fofas de um edredão de penas outras. Mas nada vale e de nada vale. Dentro um calor dos infernos, e fora, o frio glacial de uma realidade quase inacreditável de tão real. Inacreditável. Como só a realidade o é.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialCaligrafia do espanto [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]eio de visita. Não sei se vai ficar. A máquina de escrever velhinha e amarelo banana. Esquecida e discreta estes anos todos. Uma visita curta de carinho e lembranças. Do tempo devagarinho. Veio para conversar e para o retrato de família. Às vezes penso se um dia se deixará de escrever à mão. Com o gesto trabalhoso e revelador. Com o tacto atento à caneta. Com gostos e preferências de cor e espessura. Penso nisso muitas vezes quando reparo na rapidez das teclas. Mas ela não era assim. Dura e teimosa, não tornava o gesto fácil, nem muito ágil. Por isso as folhas e os cadernos de um conforto insubstituível. As folhas de linhas finas e o gosto das folhas lisas onde a escrita voa como lhe apetece num céu limpo e livre. Talvez se tenha cada vez menos paciência para esse desenho que retarda o passo. Quando gosto de alguém fico tempo sem conto e sem fim a contemplar-lhe a escrita. Não, não falo da escrita das ideias. A forma. Mas não falo da forma como as ideias se entrelaçam e desenvolvem, da estrutura frásica, do ritmo. É da caligrafia que falo. Essa impressão indelével do gesto. Do movimento, da passada que deixa registo. No seu hermetismo. Na sua significação enquanto tal. Gosto de a seguir. E o encantamento, como se face a um rosto. Como a face de um rosto. Que se tacteia mentalmente, acompanhando cada linha. Que se observa como numa carícia. Há um lugar certo para cada coisa. Eu procuro isso nos dias e nas coisas. As coisas precisam de um lugar bom para estar, para dormir. As palavras. Tudo. Procuro. E desarrumar porque é preciso ou porque é a vida. E arrumar para que tudo chegue à noite e possa dormir. Em paz. Com uma manta de afago e embalo bom. Todas as coisas. Todas as palavras. Também podiam. Como cães. Levados à rua, mas retornando a casa para dormir no seu lugar. Nunca abandonar as palavras. Como bichos de estimação. Mesmo maus. Levá-los para a cama e pô-los confortáveis para dormir. Nunca ao relento do silêncio. Um gesto. Uma carícia vaga. Quanto baste. Mas em todos os gestos se pode cruzar um mundo de ideias que tolhem, que mudam, que paralisam que arrependem. O gesto e a caligrafia do gesto. Mas não a escrita. A caligrafia da escrita. Há um lugar algures. Desconhecido todos os dias a dizer. Um lugar para cada silêncio. Como aquele onde todos os dias todas são as palavras possíveis em um tudo vale. A pena. A espada. O minuto depois e o gesto que apaga. Em tudo. Inevitáveis, mas limpas. Ásperas, ternas. Todas as que há. Todas convocadas a ver. Esse lugar ideal que há. Há um ruído que é possível lapidar. Um lugar. E pessoas firmes como âncoras. Nenhuma palavra vento as leve. E leves palavras duras como pedras a atirar em curvas e ondas e a fazer ondulação em torno de tornozelos sólidos de pés fincados no chão. Mesmo de areia. Almas ao vento no ar do céu. E pelo meio o corpo haste a ondular. É o corpo da letra. E no veio do tempo a andar deslizantes ou tensas todas as palavras. Todas são remédio ou têm antídoto colado às finas hastes. De planta para crescer. Quando é. Tudo é possível dizer. E apagar com um gesto. Denso. De sentir. Em tudo há um gesto um ápice um rasgo. A sibila adivinha mas não faz, o gesto, a criança faz mas não adivinha e às vezes ao contrário e nada. E nada vai ali, de facto. Mas era possível imaginar, ser. Um código seguro. A ler. Não nada. E há um gesto há um afago há um sentido. E nada. Nada flui e era. Mas era mesmo. Os olhos dizem a alma sente o pulmão sofre. Porque. Porque não. Mas era assim que era. Com a escrita de linhas a azul em páginas em papel em branco. A dizer em vôo visível. Tudo o que voa me enternece. E o que voa livre sem ter necessidade de fugir porque não há perigo. E tudo o que voa sem medo e sem medo flui sem ferir. E às vezes penso que todos somos refugiados mas alguns dormem em camas de conforto em casa. Mas fugidos de algo. Sou dada a emoções contemplativas. Coisas de lentidão parada. Melopeias dos sentidos da visão e do tacto. Como a eternidade da carícia num cabelo, num pelo de bicho. Uma página de dicionário. Essa explicação calma dos sentidos. Essa impressão boa de que todas se encerram ali, se ajudam na explicação da vida que se diz. Que se desmultiplicam em explicações uma das outras. Umas às outras. Como se uma espécie de família em que todas se relacionam com todas. Poucas coisas produzem em mim uma contemplação extasiada tão densa como a observação da caligrafia de uma pessoa amada. Como se move. Como se movimenta subtil por ali uma parte desvendada do seu dinamismo interior. Como se revela. Mas revelando o quê exactamente é coisa bem mais difícil de adivinhar. Estando lá. Como parte de um espaço etéreo do espírito, em que firmemente e irreprimível, se desenrola uma relação entre o gesto, a decisão implícita e a forma. Sempre a mesma nas suas subtis variações. Aquilo que subterrâneo determina a forma. Sempre reconhecida como uma de muitas expressões de um rosto uno. Espanta-me e enche de encantamento. Os laços a prender mais fortes ou com lassidão uma letra. Uma curva rápida e irreprimivelmente hesitante sempre naquele ponto e a emendar numa abrupta quase angulosidade. Que não chega quase a ser. Mas há um gesto que para sempre naquele ponto a fluidez da curva. Noutras um nó. Aqui e ali um gancho. Uma espécie de anzol em que a corda da escrita avança como se suspensa de uma falésia perigosa. Letras que se alongam e desdobram com sensualidade de quem se espreguiça. Mas sempre as mesmas mesmo se nem sempre. A curva de uma letra pequena, suspensa no ar e a descer a terra pouco firme. As que ficam suspensas, e com um braço no ar. As que se encostam sempre ao ombro da outra. E as que laçam setas rápidas em frente. Ou a subir velozes. Como se alça o braço de um d ou de um t e se enlaça em si como ao tronco de uma árvore. Um abraço em nó. Em laço. Como fica em aberto um a por pressa de escrita e como se fecha duplamente em nós um outro a ou o. Como um p se torna ponte pronta a abrir passagem a passos que se lhe sobrepusessem. Em fechamento pouco apertado. Uma duna, Quase. Como uma outra se curva para dentro quase em espiral como se a querer voltar a uma posição fetal mas já sem o abrigo primordial. Uma espiral firme e irreprimível de retorno a si no mais interior. Essa letra do abismo. Em que a saída é sempre mais atrás. Em arrependimento, em contrariedade, em necessidade de sair para a letra seguinte. Movimentos que estancam, definitivos. Ou que fecham num arabesco, como num círculo mágico de protecção. E floreados. Líricos de folhagem leve. Há letras pontes. Letras castelo. Letras torre. Letras abraço. Ou arremesso. Há gestos tensos e imbricados e retorcidos em si. Fiz isso tantas vezes. Olhar. Por um tempo. Intrigada. Com esta estranha caligrafia do ser. Como as pessoas se situam na inicial do seu nome. Se a usam como echarpe leve e descuidadamente poisada pronta a voar, ou quando dela saem a custo para as outras letras. As que dela lançam âncora e as de dela fazem torre fechada a sete chaves. As que atam e as que desatam as formas como deixando livres de voar em frente. E as que voltam atrás. As que recolhem uma curva que ficou antes, as que abraçam a memória da letra anterior. As que não acertam e as que seguem sempre em frente, esticadas languidas e desejosas de avançar. Espraiadas. Ou contidas. Pé ante pé, ou atabalhoadamente. As que se mascaram de outras. Lentas, mais lentas porque se perdem ao espelho a esquadrinhar o rosto maquilhado, a roupa diferente, os sapatos de salto desusado. Poucas coisas escapam a este desfile de pequenas figurinhas animadas pela paisagem desértica de uma página. E por isso mesmo. Sem sinais, sem uma chama que as guie no espaço físico, a vencer o deserto, simplesmente e sós. Preocupadas com uma ideia que as guia. Uma indecisão. Às vezes, mesmo, consigo próprias. Com o que vestem no momento. O arredondado e o anguloso. Com hora marcada sempre naquele ponto. Há uma configuração interior que se verte nestas formas pequeninas e irreparáveis. Há uma constância que diz delas, serem como um rosto. Um olhar que de dentro se entorna sem querer. Há, talvez um sentido descritivo possível dessa caligrafia do ser desenhada nas palavras. Teorias sobre isso. Mas o que me espanta é a inevitabilidade das formas. O padrão. A unidade coesa de alguém por detrás do desenho. Todas as figurinhas dançantes ou corredoras, ou por vezes paradas nas esquinas. Encostadas às paredes. Expectantes ou precipitadas. Esse mundo ínfimo, animado e fascinante em que me posso quedar horas. Sem por elas dar.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialPortuguês suave [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]evagar. O meu tempo precisa de vagar. A minha alma anseia vagar espaço. São assim os dias desta longa arrumação e nunca chegam. Meses que são meio ano de lentidão a sentir a voragem. Desde que se apararam as raízes rente. E ela se foi e me deixou a arrumar anos. A sarar a vida. Como as mulheres iam para o campo. Para a ceifa e para a monda. São estas coisas de mulher. Ir ao cemitério. Como se a natureza humana delegasse nesse lugar estas responsabilidades que mais ninguém quer a ocupar espaço. E os dias e as horas a abalar-me como um vento maldoso. Demasiada informação. Dias complexos de atravessar em que é difícil subir ao que é aquele momento de chegar a casa. Finalmente. De sentir que se chega a casa mesmo se dela não se saiu. De descansar um cansaço de vida a pedir velocidade. Que não se tem. De descalçar os sapatos que não se calçou pela manhã e de fechar uma porta de silêncio sobre a ansiedade crescida hora a hora do dia. Que pede palavras quando em mim só peço tempo para chegar a casa devagarinho e pensar. E aí escrever. Às vezes o dia. Outras, outras coisas. Isso. Devagar. Preciso de um tempo devagar. Como devagar ando a arrumar uma casa. A esvaziar outra. E outra. A perder o pé um pouco na memória. A despedir da memória em cada objecto que vaga a casa que há que vagar. Devagar como só assim posso. E a alma a extravasar palavras e imagens a pedir forma e substância. Tudo pelos poros de dentro na direcção do invisível. E querer abrandar a alma e sentá-la à mesa com as ferramentas pequeninas e as tintas e as teclas. Todos os dias em que até a divisão celular me custa. A vertigem. E a chegar tarde a tudo. É o sinal que o universo me dá. Sem tempo para entender para respirar. E depois já é amanhã e ainda não acabei o dia. Entendo que não é fácil entender este passo. Em que tenho que parar a observar bem. Tudo. Dentro, de fora. E fora, de dentro. Em torno daquele núcleo que é o meu nome interior. E que me habita. E que é preciso arrumar bem. Com tempo e devagar. Sou lenta. No que dói. Lembro. É uma recordação de infância e construiu uma fortaleza difícil de arrasar. O silêncio ansiosamente pedido exigido das palavras que podiam ser culpa. Um panfleto caído inadvertidamente em mãos quase juvenis. O terror dentro de portas como se as paredes. E tinham. Às vezes. ouvidos. E dos ouvidos vinham pessoas com eles colados a crânios acéfalos e levavam na maré livros pessoas e outros bens. Até ver. Os dentes cair de maduros depois de a dor ser demais. As batatas podres na cozinha assumidas pelo medo. Mesmo face aos iguais. Com bichos. As batatas dentro da panela enorme e as pessoas. Bichos. Como se. Com hematomas enormes escondidos dos filhos quando a roupa chegava para isso. Para não irem tristes. Mais tristes. Sangue pisado por ali. E excrementos. Já nada importava distinguir. Sangue ou o suor dos intestinos tudo terror e dor das mesmas vísceras em perigo de ruptura. E às vezes alguém. Que conhecia alguém, que quase dava sensação de culpa de cortar a dor em duas finalmente, antes e durante. Emendando em durante e depois. E os outros lá. Ainda. Coisa quase obsoleta de recordar hoje. Como uma ficção remota. Tenho relatos do meu avô, entranhados na memória longínqua da infância, velados, primeiro pelo cuidado, pelos ouvidos das paredes da casa. Pelos fantasmagóricos ouvidos do medo. Mas uma sobriedade a que a raiva já não contaminava. Um dia escritos um pouco assim em modo de a quem possa algum dia vir a interessar. Naquela sua letra bonita e sempre inclinada no sentido do futuro. Aquelas coisas das noites, interrompido o terror e a expectativa, pela realidade de um terror maior porque vivido e instalado. Nas casas. Ou nas celas. Os meios das noites. As noites da longa noite. Somos uns burgueses de merda hoje nas nossas queixas aqui. Num lugar de defeitos suaves. Mal comparando. agora. E de queixas corajosas de quem nunca perdeu um dente pela força. A meio de um sono pouco repousado. Para enterrar companheiros amigos ou desconhecidos. Ou de um tumor no cérebro, ou no estômago . Penso nisso quando penso nas dores da alma. Nos limites das dores. Nos lugares das dores. E nos que não quebravam e não denunciavam e não se retratavam. Até ao limite, para além do limite, e, às vezes, para além da vida. Deixada para trás. Para que outros levantassem os ossos quebrados e os devolvessem a quem os quisera. Às vezes acabava assim o medo. E o desconhecido e a justiça e a dor. Minto. A justiça não andava ali. Só uma passagem rápida a verificar quando era justo ao corpo desistir. Para ser levado como restos. Quando a alma não desistia antes e não denunciava e não implorava e não cedia. Penso muito nisso quando penso na dor. No lugar da dor e nos limiares. Fronteiras entre possível e impossível. É isso a dor. Um território relativo. Ou de fronteira, terra de ninguém. Fronteira. É um território de transição. O eterno presente, talvez. De passagem. Iniciação. Um lugar, á falta de melhor. Lugar de expectativa e esperança. O não definitivo e o sabor doce do desconhecido. O estranho, estrangeiro e belo desconhecido. O lugar não lugar da viagem. Porque é sempre de passagem e de provisória paragem. E por isso nunca estação. Nunca destino, só inevitabilidade. Entre antes e depois. Entre expectativa e memória, o que fica. Fronteira. O aqui e agora nem sempre reconhecido como tal antes de a perspectiva se instalar como distância. Lucidez. A dor como lugar de passagem. Mesmo nesse músculo cardíaco que, de pessoa para pessoa varia entre a zona de conforto e a zona de risco de diferentes maneiras. O que resiste à velocidade instantânea e o que resiste ao esforço prolongado. Diferentes atletas, estes músculos. Em diferentes modalidades. E penso no que é a frequência cardíaca máxima. Que atira o músculo físico para a zona de perigo. Difere de pessoa para pessoa como o limiar de dor. De todas as dores. Em todas as partes do corpo. E da alma. Mas este é o mais difícil de quantificar à medida que nos afastamos das coordenadas objectivas espaço, tempo, função, actividade. Onde o ritmo desse músculo, físico se mede. E neste tempo em que tudo nos atira para corridas em velocidade. Refeições rápidas e emoções rápidas. Penso. Sim. Eu também sou uma pessoa acorrentada a esse suave ou nunca percebido como tal, jugo de uma alma dorida. De vida. De vida que nos falha. Mas não há dor que se aproxime de uma unha arrancada, um a articulação esmagada a martelo, um dente arrancado a frio. O corpo. Essa miséria que foi instrumento de muitos a uma sobrevivência que deixou por vezes espaço para a exaltação da mudança. O entusiasmo de pequenos prazeres. A liberdade da contemplação. A pequena ambição sem desapontamento. Transportamos a nossa própria gaiola. E num mundo assim, passando aos escaninhos privados e pequenos da alma que somos, cada um é livre de abandonar e alimentar a sua culpa, de ser abandonado e se rebolar na volúpia liberta de ser só sem ter. As pequenas raivas das pequenas coisas das pequenas vaidades e das pequenas ambições. A ocupar espaço. Na gaiola que levamos pela mão. Em que sítio? Em que lugar do corpo da alma, ou da vida da casa? Em que ficamos. E depois, este território minado que é o da fantasia. E o da ilusão. E o do sonho. Para não falar, já da ficção. Mas são estados diferentes no mesmo país. Ou federação. Diferentes. Há que distinguir. O sonho…nos adultos torna-se difícil. perde-se talvez a capacidade de sonhar. Diria de outra maneira: passa a sonhar-se dentro dos limites do possível. E o possível é um país grande. Enorme mesmo. Tão grande como esta mania de situar cada fenómeno em nós numa parte distinta e mais simbólica do que real do corpo. Tudo vive nas químicas e nas interacções do cérebro. tudo se mistura numa alquimia que varia de pessoa para pessoa e que resulta ou não numa economia existencial positiva em função das alquimias que de outras pessoas convivem com estas. Situamos a alma em que zona do corpo e o coração – o outro – em que zona do cérebro. E a dor, esse alerta para os limites de resistência do corpo, da alma. E a emoção. Lugares. Em que ficamos. Talvez esse português suave, pejorativo a qualificar-nos, seja uma característica ancestral de um certo tipo de coração. A precisar de um cigarro, como aqueles dos maços às risquinhas e com caravelas em azul e que não eram caravelas, e de parar para retomar forças para resistir. O azul calmo e reflexivo sobre o ouro e a velocidade da luz, nos antigos maços, e não o contrário como diz o dito. Somos talvez esse português suave. Quantas vezes a sentir o crescente da dor, da agonia e da raiva, a precisar de um pouco de retorno à suavidade que nos começa a faltar. A litlle tenderness, para manter a natureza de que cada um é feito. Parei na embalagem azul. Que o meu pai fumava e que ficou por ali – a embalagem do dia a seguir que não veio. Mais. Passou a amarelo vivo. Uma coisa solar. Sem torre de defesa rodeada das águas. Com embasamento atirado em frente a sul e ao mar. Como uma enorme, pesada, obsoleta barcaça. Entre o medieval e o renascido. Ancorada a terra sempre, lunar, era a sua natureza e a do rio a recuar, e para sempre. Esse maço está ali como recordação preciosa do tacto e de um gesto. Mas cada um desses cigarros, como os outros, pega fogo. Na proximidade do fogo.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialA curva e o foco [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] fascínio da geometria – volto a ele – e das suas formas e superfícies regradas. Puras. Os sólidos de revolução, fantasias intelectuais perfeitas e de vida expectável. Como quereria a linguagem. Qualquer linguagem. Mas de abstracções não se tece a vida nem urde a existência. Hiperbólica, metafórica, saturada de figuras, de uma retórica que é paradigma ou pura ilusão. Da hipérbole, dois ramos, numa curvatura que resulta do corte de duas superfícies cónicas por um plano. Sabe-se-lhe a intensão do plano, sabe-se-lhe o foco. Como noutras curvas. Pontos externos e de misterioso domínio sobre a expectativa da curvatura obtida. Como essências que determinam subterraneamente uma forma existencial. Sem deixarem de ser elementares, ínfimos e fundamentais. Invisíveis geradores. E as linhas, geratrizes de revolução. Nas superfícies. Fico extática perante o poder metafórico da geometria. E o quanto de existencial, na geometria possível do ser enquanto tal, se rebela de uma estrutura que é definição e orientação a uma coerência confortável. Mas tão desnorteada. E que não é rígida só porque existe. Existe na sua perfeição utópica. Às vezes, na vida. E depois, essa oscilação pendular entre a corrosiva e imparável teatralização do sentir, que torna cada um tão fingidor como o poeta e tão dorido como ele, e a compulsão da verdade como se ela existisse. E um dia. Um dia de chofre. Uma luz cortante. E o paradigma dissolve-se no ar como um leve bouquet de feromonas em fuga, até não restar senão memória de um perfume. Uma verdade sempre acarinhada como antro de um bem maior e que se revela perversa, inóspita. Traindo a disposição dos focos, dessas curvaturas duplas em ramos estilizados, de uma árvore que deixa de ser construção e vida para ser demolidora. A competir com o ar respirável. Morreu. A verdade morreu. De saturação e excessos existenciais. De precipitação. Dela sobrevive-se com a prescrição dos maiores cuidados de futuro. De presente. Mas como uma doença crónica, como um alcoolismo, fica latente para sempre e para sempre a requerer cuidados. À espreita, enganosa e divergente como só ela. Emoção, o terror a evitar, o perigo abismal, a selvajaria incontrolada, como curva em crescente, gerada num foco íntimo e distante. Como uma oxidação que corrói para dentro a pureza de um metal. Uma ferrugem a lapidar até á raiz do corpo onde reside a essência mascarada de castanhos ferrosos. Verdades múltiplas e disparadas como armas mortíferas. Químicos de fórmula desadequada. O que não cura, pode matar. Um espelho. Que se segura contra um rosto, como uma lente a ferir de sol uma haste seca. Até incendiar. Eu às vezes sinto a embriaguez enorme e arrepiante de palavras com as vísceras em fogo, de líquidos derramados em páginas como lava fresca de vulcão extinto de imediato ou mesmo antes e são bolas porosas e de cores extravagantes que rolam página abaixo e se esvaem nas margens. Ou para além delas. Tão para além que não voltam. Não adianta perscrutar os outros dias das palavras poéticas, porque em muito se furtam a um retorno a que o tempo invalida a costura. Emoções de um tempo preciso. Ou porque não eram as minhas vísceras, o meu tempo ou a minha ferida que ali se abria. Era. Era a ferida como se ressonância por simpatia. Como se telecomandada a partir de uma origem, como corpo a abrir ao primeiro raio de um poema. De sol, digo. Como flor. Como gineceu túmido na azul glória matinal. Mas são outros tempos do corpo e são outros corpos do sentido tacto. Na fantasia das manchas ensolaradas e das sombras magras e febris dessas palavras texto, tecido de uma urgência outra. Ou de outra urgência minha. Tudo a debandar das páginas folheadas como dedos naquele ponto. Naquele preciso ponto húmido. Onde mesmo os dedos podem ser ásperos. Nenhuma carícia é demais para as flores. Mas por vezes mata de peso e inércia desmedida para a espessura de uma determinada configuração que não condiz com o gesto. Mas não nos incomodemos a chorar se uma estrofe não volta a dizer o que disse. Nunca prender com âncoras marinhas o destino que é térreo. E nele o balanço ondulado das ondas, de carreiros pedregosos. Ou arar ondas de mar. Cada emoção tem um único tempo. Um compasso e uma melodia irrepetível. E depois, numa daquelas epifanias de trazer a dias sem pretensões, ver todas aquelas frases a cair, misturadas e desarranjadas, desgrenhadas mesmo, amotinadas de fresco das suas linhas seguras, umas para andares abaixo, outras em flick flack destemido a ultrapassar o limite do texto, da folha, do mundo. O delírio mais lírico de um poema. Entornar-se no mundo e misturar-se entre as pessoas. Em bocadinhos, com de pão com manteiga, em interjeições sem destino certo, em negações do que era e do que era para ser se fosse. Tudo a invadir a capa. Partes de texto poético a andar para trás. Há pessoas assim. A confusão de sentidos intercomunicantes pode trovejar-nos na cabeça mesmo no seu lugar. A cabeça. E subitamente esqueci se era a cabeça ou o lugar dos sentidos. O lugar certo. Mas depois nem isto importa. Não devia ser permitido usar pronomes pessoais para abstracções. Como se fossem flores e concretas como tal. Chamar ela a uma hipérbole retorcida em si. Ou a angústia. Como defini-la sem dela se dizer o que a transforme em entidade. E, no entanto, há uma espécie de textura de uma densidade própria e deslizante. Lentamente a entorpecer talvez de cima para baixo. Mas a cor. Tentar entender-lhe a cor, parece fútil face ao abraço entorpecente e espesso. Que anula até a dor. Olhar para aquele lado. São enormes pedras de jazz. De sal, era o que queria dizer. Mas caiu dali outra palavra. Com luz natural de lâmpada no interior. As pedras. Enormes. De sal. E que lhes vem de dentro como é da natureza do que se acende. A partir de um ponto e em expansão. E sem voltar atrás. A luz. Espreito sempre à porta antes de entrar por um livro adentro não vá estar em trajes menores. E surpreendo-o, àquelas horas com as palavras a sair por todos os cantos como numa sandes demasiado cheia e desleixada. A capa com nódoas de pequenas palavras que se soltaram mesmo. Uma coisa do outro mundo. O descrédito quase me faz rir. Mesmo que à custa de um livro desmanchado de poemas. Por isso penso mas porque se escreve ainda quando todas as palavras já foram usadas com todas as temperaturas a expelir fumo de todos os termómetros inaplicáveis. É que o fogo que lavra destemente a qualquer deus e a qualquer balança, é privado de braços e pernas se não atacar outras folhas. Não há descanso. Para a verdade crónica e imperfeita. Escrever, é uma coisa triste. O desvendar da alma a quem só nós conhecemos. O desabafo tão íntimo e tão privado que só nós ouvimos. Filtrado das linhas mesmo se baralhadas como cartas de jogar. Tudo o que se tenha que definir em mais do que duas ou três palavras, a substitui por um gesto. Um sorriso. E chega. Ando há tempo a rondar este ângulo muito específico de estarmos a enlouquecer. Dizer isso como irremediável. E talvez porque muito da vida já o é, dizer. Estamos. Muito de nós está. A enlouquecer de desespero. De sabe-se lá, sabemos nós, não o sabemos, talvez a enlouquecer. Sim. De como as roupas que vestimos dia a dia hora a hora e circunstância a circunstância. E lugar. Hiperbólicas. A esquecer o foco. Talvez se escolha o ângulo concreto da loucura diária, como uma roupa e uma deixa, que nem sempre encaixa na fala global da peça, mas não sabemos fazer melhor. É talvez um facto que se vive entre paredes, entre as circunstâncias em que queremos ser amados e vistos com um olhar benévolo, e a necessidade de que os outros nos vejam na crua realidade do que se é. E ainda assim. Ser amados. Sofrer de figuras de estilo. Sofrer de lugares geométricos que tendem, ao invés da sua natureza matemática de rigor e abstracção, a deixar-nos num limbo de curvaturas várias num universo de espaço amplo e ilimitado. À mercê de elevações e expansões para as quais o corpo não oferece limite à fuga. Encosto-me a uma amurada, junto daquele mar imenso que é o único a entender-me, e a dizer que se nele mergulho ou nado, sem saber regras e correntes, tudo depende da força que tiver. Para resistir às vagas. O mar que não pune nem castiga, simplesmente segue a natureza desmedida que há que conhecer. Já nos humanos, a natureza é razão que se pode ponderar. Porque há o lugar geométrico do apaziguamento. Encosto-me a essa amurada com vista, só porque me sinto menos só face ao mar e é a este que devo escutar. Encosto-me mais ao olhar. Apuro o ouvido. Vejo-me de costas como quem diz que é de costas que melhor nos vemos e aos outros. Hiperbólicos, sentidos. Muito. Às vezes demais. Para uma única superfície de pele de rosto. De pelos nos braços, insuficientes na expressão de tamanho arrepio. Porque o vento vem forte. E hiperbólicas. Pessoas assim, a quem dói a temperatura do corpo. E para quem a respiração é um risco a sangrar. Quando a sacralização de cada regra pode enfermar de uma ferida que se agrava. A verdade. Não mais que um momento. Os conceitos que amamos, as definições. Outra coisa é a explicação dos anjos. Sem nome. Os anjos não têm nome. Não subjaz à forma o sentido, mas uma realidade motora que conduz a emoção do gesto à sua origem. Ao seu destino. O que liberta e o que contém envolve numa ilusão lúcida. A da realidade feita e perfeita, mas numa camada lírica, como num corpo, uma emoção e um sentido íntimo. Onde se vive mas não se encontra. Como a curva ao foco. Pequeno pirilampo. Ou o beijo da razão. Nem na verdade, nem na emoção.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialNocturnos e diurnos [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ão como marcos. Na beira da estrada. Às vezes penso que a vida não aparenta grandes mistérios, que não possam ser reflectidos nas ínfimas manifestações inconsequentes de momentos de uma noite ou um dia, sem espectadores prováveis ou pressentidos. Por vezes, move-se como se nada ou ninguém mais existisse. Por isso a vida das vizinhanças, mesmo estas de passagem, sempre me fascinou pela presença incógnita do espectador, inadvertido e próximo, se bem que invisível, ignorado com indiferença, naquela estranha e ocasional liberdade de existir sem o olhar dos outros. Agudizada às vezes pelo silêncio da noite e pela amplitude da rua. Como uma caixa-de-ressonância inesperada. Gosto dessa emergência do real, nas suas tonalidades inconsistentes, e sem desenvolvimentos visíveis. Talvez por isso mesmo. É a vida que passa pontualmente, em caminhos cruzados com os de outras vidas, sem se lhe conhecer o início nem a consequência. Um instante a planar nos momentos de outras existências, que por vezes agem como pequenos fragmentos de espelho sem mais questões a relatar do que a circunstância em si. E mesmo essa, por vezes plena de densidade e implicações. Mesmo quando desconhecidas. Ou as rotinas. As pequenas e redundantes obsessões. Fragmentos. Instantâneos. Talvez um certo desgosto de histórias completas. De finais. Já basta o prédio da frente, sempre repleto de últimos capítulos. E que um dia, recentemente encerrou. E com ele ficaram por narrar esses, imaginados, inventados do seio das possibilidades e inevitabilidades de um jardim de gente no fim. Perdi o sono daquelas solitárias mulheres já quase depois da idade, no seu dormir irregular com janelas abertas sobre os últimos vestígios do mundo. Que lhes era possível. As suas telefonias minúsculas a partilhar a almofada. Os bens em saquinhos de plástico, bem enrolados sobre si próprios. A proteger em novelo a parca colecção de pequenos tesouros, um pente, um gancho… E agora, onde andará a vida desse casarão? Que aguardará a vida desse casarão? Não quero que lhe levantem a cabeça mais um andar. O alto da cabeça. Com esta longa franja de telhas vãs um pouco acima dos olhos. Ficar sem essa fatia de céu que vinha presa à janela. Não quero trocar este excesso de luz diurna e o sono nocturno de velhinhas quase sem género nem silêncio, porque as próprias palavras as tinham abandonado e com elas a possibilidade dos intervalos, por janelas a incidir olhares turísticos em mergulho a pique sobre as minhas. Quero essa luz em demasia que me invade a casa até ao fim do corredor, quando me apanha as portadas distraídas. E fechá-las para não ferir as velhinhas antes do sono, com o espectáculo de beijos, mais do que um fugaz minuto que as faça sonhar memórias ou histórias de fantasia. As velhinhas que abalaram. Já lá não estão. No lar de idosas. Odeio esta palavra. Idosas. Como se velhinhas sofrendo da doença má da idade. Da qual alguém quis curar a casa grande. Por agora fecha serenamente esses cílios desmultiplicados, como de mosca poisada. A aguardar. Não digo que durma. Espera. Simplesmente. Mas a vida abrandou nela. Já não sou surpreendida por uma respiração mais forte. Audível como se não houvesse paredes entre nós. Em algumas noites. Já não oiço. Sim, espera. De respiração parada, suspensa, em receio do que vem. Como eu. No outro dia alguém tentava ruidosamente abrir-lhe a porta. Sem o saber de dono e de hábito. Mas um homem bem- posto, e, de facto, com ares de dono novo. Não foi fácil. Abalei antes do fim da história a sorrir para dentro da dificuldade que o pobre casarão abandonado estava a tentar interpor entre o passado e o futuro. Na medida das suas possibilidades. Não deixando abrir a boca com a ausente sofreguidão de um futuro. Não se entregando assim, num primeiro assalto do desconhecido. Bem- posto. E com ares de dono. Alguém grita lá em baixo na rua: Nuno – o nome é irrelevante e é outro dia, outra noite – donde vens, para onde vais e quem és…eu sei que vivo numa amálgama infantil de porquês, na ânsia de entender, e na vontade de perguntar, mas não chego a tanto nos meus assomos de coragem ou impertinência e nas perguntas que faço. Acho… Chego? Perguntar é uma arte que não tenho bem desenvolvida, que exige estratégia ou espontaneidade, e – sobretudo – silêncio. A margem de respiração onde pode nascer algo. E ali, de resposta veio nada. Que se ouvisse daqui de cima. Como as pessoas dão pouca importância às perguntas destes anseios. Está bem. Era a brincar. Por vezes quem pergunta não quer saber. Já me aconteceu. E a frustração de não responder está bem ao nível daquela de não ter respostas…é a vida… Não sigo Nuno nem sigo o perguntador. A esta hora, uma outra hora, um outro dia, na rua, a mesma rua, alguém toca um saxofone. E domina toda a noite vazia. Quase vazia. Ou é talvez clarinete. Um improviso melancólico e doce vindo não entendo de onde. Perto. Sem melodia. Da janela vejo pouco mais gente que aquela figura de mulher a subir a rua. Copo na mão. Avança dificilmente mas sem parar, e se não fosse o movimento de elevar a mão ao rosto não entenderia o copo. Avança aos tombos. Entre uma parede e um eixo que vai procurando assegurar. E de novo de encontro a uma parede. Só. Tem que trazer uma amargura ímpar na alma. Uma pessoa. Um amor. Uma desilusão. E agora passou. O improviso também. Ficar à janela num dia de noite suave. Por mais que pise este palco do tempo, se é o palco não é a minha peça. Se é a peça não é o dia. Assim é estar fora de tudo. Num andar alto mas não demasiado alto para ser fora do mundo. Só na margem. Como uma ausência. E quando à noite o céu se abre em estrelas, é talvez a miopia que lhes dá vida. Em crescendo, alaradas e pulsantes. Mesmo se já não o forem, lá dos confins deste universo realmente grande, e se a notícia não tiver chegado ainda. Como tantas vezes retemos na vista, na alma algo que afinal já não é. Só não sabemos. Mas assim, dizia, é uma noite mais rica e plena. E nela, o instante é o beijo da eternidade. Um objet trouvé, um dessain trouvé uma realidade paralela a passar ao lado. Em mutação. Mas aqui, é porque estou. À varanda, nesta noite como as outras. E a pensar que a solidão é sentir que só existimos em nós. O que é muito, mesmo assim. Mas as camadas que se cruzam com outras translacções são demais e de menos. Umas vezes uma coisa. Outras, outra. Ouvir vozes. Vindas do fim dos tempos ou do fim dos dias. A mesma terra de ninguém. Ou deste submundo parcial que se torna uma espécie de freak show em que nos desenhamos na estranheza ou se desenha a estranheza dos outros. Ou, nas margens, nos desentranhamos da estranheza dos outros. A certas horas. Uma mistura entre freak show e wonderland. Há coisas que de tantas leituras possíveis, acabam por não ter leitura nenhuma. Escreveu Kafka algures: “The right understanding of any matter and a misunderstanding of the same matter do not wholly exclude each other.”. Sobra o fascínio. A coisa mais estúpida que alguma vez já fiz foi ter escrito o teu nome no braço com um canivete. Uma tarde que podia ser noite. Um lamento telefónico. Como uma voz off. Um rosto invisível, e o outro, invisível e sem voz. Lindo. Apetecia-me dizer bravo. Nas traseiras, num ponto qualquer da minha vida e de outras pessoas invisíveis no momento. Invisíveis sempre e para sempre irreconhecível aquela voz. Como aqueles sapatos poisados no parapeito da janela da voz. Ou de outra voz. Como vestígios únicos e visíveis de duas figuras a caminhar pé ante pé na beira do espaço vazio. Como vizinhos visivelmente invisíveis acima dos sapatos., alinhados em fila. Antes do salto. Talvez de invisíveis mãos dadas para tal. Mas eu farto-me por vezes de vozes. Prefiro rostos. Mãos. No seu aparente alheamento mútuo. No seu silêncio. Sem raramente voltarem costas uma à outra. Que não num momento de transição, num gesto de flamenco. É tão fácil carregar num botão, fazer um clic e iniciar uma palavra. Mas esta nem sempre é líquida. Por vezes é mesmo sólida. E rola inadvertida em função de factores como força, impulso, peso, superfície, textura. Indominável. Como um dado de jogar. Que rola e estaca no 1 ou no 6. Nada feito. É o aleatório ou os dados estão viciados. Como os fragmentos de vida. De dias. De noites que me tocam de passagem. Mas é ao crepúsculo que a Senhora vem. E com ela muitos, circunspectos, em procissão, nas datas nomeadas. As vozes monótonas a desfiar a melopeia. E as velhinhas do lar fazem tudo bem. Faziam. Colchas bonitas à janela e cestinhos com pétalas de rosa, para atenuar a caminhada da Senhora e lhe emprestar o perfume da emoção com que lhe sentem e seguem a visita. Visita de médico. (Coisa para um curar cuidar rápido ou seguir os medicamentos). Que outra razão teria a Senhora para passar aqui…Vem por elas a Nossa Senhora delas. E a Senhora passa de olhar ausente, preso no infinito da sua alma de pedra. Em trajes de vir à rua. Um momento bom. Lento mas talvez não o suficiente para encher um pouco mais os dias. Delas. Mesmo eu, fico encostada à ombreira a fumar e a querer eternizar o momento. Só um pouco mais. Emocionam-me e invejo-as. Gosto que ela passe aqui. Fetichismo talvez. Ou, somente gosto que as velhinhas gostem. E agora que se foram, se a Senhora vem, pergunto-me. O outro sobe a rua. De há uns tempos. A falar alto, sempre com a mesma voz de reclamação, numa espécie de lamúria mesclada de uma espécie de sacrifício que o empurra rua acima. Todos os dias o suave jugo. Sempre a descompor. Johnny! Sempre a mesma coisa, f…se. Lá está a palavra em f. sempre a pontuar-lhe as frases. Nunca mais venho contigo à rua que c. lá está a palavra em c. a ritmar-lhe cada duas frases. Alternada com a outra. Johnny! Ai, ai, ai, ai, ai! F…se, Johnny! Repete sem se cansar nem gastar o nome rua acima. A insultar, sempre naquele tom. Espreito. Da primeira vez. Uma espécie de rapaz velho. Encorpado. Johnny! É sempre a mesma coisa. F…se. E intercala regularmente dois ou três palavrões e sempre os mesmos. Também. Com o mesmo valor de Johnny. É todos os dias a mesma coisa. Diz. Digo. E continua rua acima. Todos os dias o mesmo tom lamuriento que se lhe desprende como serpentinas soltas ao longo da rua. Soltas mas seguidas e sem interrupção que não breves silêncios. E o cãozito, ordeiro e pela trela, nem água vai e segue na frente pelo passeio. Antecipa-o calmamente. Rua acima. Silencioso. Na sua vida de cão cheio de paciência para aquele dono que o adora. Lambidela aqui, lambidela ali. Na sua vida de cão. Os dois, na sua vida a dois. Todos os dias. F…se, Johnny! O raio do cão. Diz. Sempre a lamber o chão. Sempre a mesma coisa. Sim. E por aí fora…
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialLençóis de água [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo pessoas, dormem enroladas sobre si próprias, como bichos friorentos e mergulhadas fundo na massa espessa das roupas confusas e amorfas. E outras, arrumadas numa rigorosa comissura do universo, feito de pregas lisas e dobras impecáveis. Como umas se afundam, ansiosas ou desalentadas, num buraco profundo e escuro e como se na própria noite cósmica, e outras se expõem desatentas de perigos, desconhecimentos e sonhos, em que umas e outras se sujeitam a perecer de angústia ou desalento. Sonhos que são despedidas que já foram e sonhos que são reencontros com os que já não estando, ainda doem. Os mortos que começam a voltar quando se situam com mais clareza no mapa de constelações com que cobrem o céu. Privado. Como um toldo etéreo no pátio de cada um e na sua porção de mundo. E que voltam, sem que raramente seja para mais do que anunciar que já estão. Longe. Outras vezes uma espécie de ilusão passageira e doce, como para matar saudades. Aceites no imediato do dia porque não há como vencê-los senão com o momento seguinte. Virar a página, com o gesto de afastar o lençol. Dormir. Uma pausa no sobreaquecimento das emoções. Uma desistência precisa. Uma demissão até breve. Mas às vezes um pouco à superfície da noite, do leito feito lençol de água espessa e densa, em que nenhum corpo mergulha e os braços tentam cortar em braçadas sofridas e vãs. De bruços sobre um oceano viscoso em que o corpo quereria mergulhar e avançar ao ritmo remado do esforço despendido. Recorrente sonho em secreto receio de Freud. Essa matéria estranha e confusamente mesclada, das matérias têxteis de uma realidade visível, e das camadas subterrâneas a um cenário interior. Um paraíso de todos os dias. As noites. Perdido e reencontrado como tal. Temido por insones. Por crianças. Por sonhadores sem rédea. No sono. Talvez a consistência exacta do conforto da protecção. Uma espécie de abraço da parte física da criatura a reencontrar no segredo da noite. Nas águas de colorido e densidade variada. Como as águas em Bachelard. As límpidas, transparentes em profundidade. Mas repletas de brilhos e tão calmas e sorridentes que paradoxalmente não se deixam atravessar. Espelho narcísico que nada revela de si sem o outro, o rosto que se contempla e morre de tamanha devolução. Ou as profundas insondáveis em si, e desconhecidas nas suas escuridões que tudo escondem e que nelas sugam o olhar. O engolem em profundezas por explorar, o perdem, devolvendo em si e de si, unicamente o olhar que nelas mergulha como ao interior de si próprio. As primaveris e superficiais, alegres, frescas e repletas de brilhos, e as viscosas e obscuras, que fazem do ser o retorno a si próprio, não em forma de reflexo mas à forma da reflexão. Como as pessoas são diferentes e diferentes de como são com os outros ou os outros outros. Como se a cada uma, uma das faces dessas criaturas aladas caprichosas e míticas que personificam com caracteres diversos os deuses dos sonhos filhos de Hipnos, o do sono irmão da morte. Quando nunca se sabe afinal se não é unicamente este que espera de braços abertos recolher o corpo abandonado. Como se fora o seu irmão. E que às vezes se distrai para ele. No centro do eterno retorno da casa. Cama, barcaça enorme como um monumento digno do espaço ocupado, elegida a sua natureza de pódio. Muito altas ou rasas a tocar a terra. Enformada de pesados veludos e pregas acetinadas em tonalidades ricas, de fogo e de luz. Pesados brocados em festa barroca, pueris poéticas de estrelas, geométricas e vastas linhas, rectas como autoestradas recentes de sentidos únicos. Sempre, ir e voltar. Em parques ensolarados, ou, pensando na deliciosa descrição de Ovídio, nas Metamorfoses, em que é a de Morfeu, de negro ébano, entranhada numa escura caverna: “Nunca lhe pode o Sol mandar seus raios; (…) Do lugar o silêncio nunca rompem/ Os solícitos cães, os roucos patos,(…) Nele alterados sons de voz humana” . E decorada com flores. Papoilas, as “fecundas dormideiras”. As do ópio verdadeiro como o dos sonhos. Alguns. Era Morfeu – é – diz o nome, aquele que forma ou dá forma. Moldador de sonhos. Era talvez o irmão escultor das visões dos outros três. O dos pesadelos, o das coisas, o das ilusões. Ser objecto. Ser objecto de si e não muito sentir ser mais do que isso. Essa dependência do espelho. Do espelho como reciprocidade. Ou como comunicação. Do espelho de um olhar a mais do que o de se ser em si e não mais. E precisar de ser em mais. Esta ânsia de comunicação de eco de devolução. E a barcaça-cama a devolver em espelho o que se procura. Em linhos ou cetins. Talvez o irmão fantasia. Mas nunca se sabe qual dos irmãos nos acolhe na noite. E não chegar o ser em si porque se neutraliza na ausência do eco de si em si mesmo. O sono. Se não se distrair para Tanatos. Sempre esta dúvida da cor que é o nada. O negro profundo ou branco superficial. Em branco. Sempre gostei de lençóis brancos como uma página. Matérias antiquadas, finas ou rústicas, de linho e algodão. Bordados à máquina ou à mão, que importa o valor das mãos, se estão lá. Sempre, com amor ou por dever. Um lugar em branco. Em brancos vários. De restos de recordações de família e de restos de recordações de recordações contadas. Recontadas. Ou construídas. No viver. Sobre o branco, como uma página. Porque é ali que tudo se faz e desfaz. E se refaz. Que os dias começam e que os dias acabam. E, como a alvura dos lençóis agradáveis à pele, a clareza límpida e nova de todos os dias a ter que recomeçar. Talvez a alma lavada de fresco e virada para a frente. Sem lastro. Com tudo o que foi e com tudo o que fica, fresco e limpo como se novo em folha. Em folha branca. Para recomeçar no ponto preciso em que se fico na anterior. O grau zero. Com todo o sono e o apagado pelo meio. Como se de tudo sobrasse uma alma limpa e nova. O que é tão transcendente como fazer a cama todos os dias. Amorosamente. Porque não se diz disso refazer. Fazer. Como se nunca tivesse sido. De fresco. Com lençóis bordados a branco sobre branco. A lembrar climas quentes e outros tempos. A lembrar a disciplina de outros tempos e rituais. Mas nunca puxar as orelhas à cama, expressão tonta. Porque fez o seu papel sem culpa, como lhe estava destinado. A lembrar a frescura de outros tempos e de outras idades. A lembrar o que é preciso esquecer todos os dias. A lembrar o que não se quer lembrar. E a lembrar o que se quer guardar de alma de duas faces. Leve e pesada em simultâneo. Leve e pesada como os intervalos da música. Pausas. Às vezes apenas pesada. De penas. Mas fácil de pintar em tons matinais. Transparentes a resguardar um dia diferente. Sempre. E brancos de síntese cansada e nocturna. Em branco para renascer. Como das cinzas. Como do fumo em que mais um dia se esvaiu, muitas vezes sem remédio. Sempre sem retorno. Sem poder voltar atrás, sem poder querer. Antes a vida numa página em branco. Mais fácil dizê-lo que fazê-lo. Abrir a cama fresca e depurada à noite e serenar a alma colorida de muitas cores e sombras. Acordar como se fosse a primeira vez. Ando há tantos dias a pensar nisto do irremediável. Que é a vida inteira e tudo. Tudo o que se faz, tudo o que se diz, tudo o que se pensa. Não há emenda possível depois de haver acontecido, sido, feito, dito, desdito. Pensar, fazer. Dizer. Tudo e em tudo, o irremediável. Nada de ilusões, emendas, desculpas, esquecimentos ou perdões. Uma construção. Em frente e em altura. Às vezes, matérias de pouca qualidade. Que fazer à pobre imagem do humano que se é… Desfazer e empregar matérias de mais valor. Isso sim. Nas construções. Mas a vida não é assim. Tudo o que foi, fica. Para sempre na aleatória construção e destruição da memória. Com defeitos, efeitos. Um impacto só visível com uma dose enorme de fantasia no depois. Nem sei se, além dessa leitura meio fantástico, meio dedução, meio por meio fé ou interpretação, se vislumbram de facto conclusões, relações de uma causa, ela própria indiscernível e de um efeito desligado de todos os possíveis, de tudo. E de parentesco por atribuir. Mas uma coisa sei: penso, ou sei, tudo é sem remédio. Mas só se não fosse a aprendizagem dos materiais. As matérias melhores na arquitectura dos dias. A conhecer, a acolher, a escolher a preferir. O dia depois do dia que foi, é o caminho possível. O que vem a seguir. Uma página felizmente em branco, forçada, teimosamente forçada. Em branco para escrever. Sim. Só assim esta sensação aterrorizante e de aliviada, se bem que temporária, eternidade é suportável. Até amanhã. A íntima desconfiança de que não é para sempre embora o que dói pareça ser. A absoluta certeza de que a vida já mostrou que não dura. A irremediável sensação de que se fosse para sempre tudo era talvez pior porque a fé no placebo ou no remedio se estendia nos dias preguiçosa, langorosamente. Mas quanto se impõe no inevitável respirar – na escrita- Tão dominado por emoções que o retiram, mas nunca o suficiente. Quase nunca. E como tal. A sensação de que a eternidade é em cada momento, e a certeza do momento seguinte. Na melhor das hipóteses. E mas ainda, porque sonhamos, até amanhã. Aqui. Nunca à mesma hora – diria – nunca no mesmo lugar. Nunca a mesma de hoje. Mas a mesma de amanhã. De sempre, mas tendo dormido de fresco em lençóis brancos. Quando se dorme. Perto de Tanatos mas para a vida. Abrir a cama à noite. Como um livro branco. Fechar o livro, o dia, a noite. A última página. Sobre o corpo. Tudo. A certeza de que só há uma vez para cada coisa. Como águas da passagem de um rio. Eternas, repetidas e únicas. Desfazer a cama. Como no amor. E depois, manhã clara, abrir o livro e sair-lhe de dentro como o dia, uma história por contar. Fazer a cama de lençóis em branco. Fazer o dia como uma página a escrever.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialUma sombra nas palavras luz [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]u queria falar do assombro. Mas entro em casa com a alma agitada por estes matizes de luz e sombra que as palavras não ajudam a acalmar. Queria falar do assombro e queria falar do deslumbre. Entro na casa. Numa determinada casa de mim, em mim. Esta. Num determinado momento – tantos iguais de ontem, tantos iguais de amanhã. E, sem dar contas ao tempo, a mim, a ninguém, do que isto é, que foi, que virá a ser, entro. E, de novo percorro os novos corredores de todos os dias. O dédalo que trago. Um projecto vascular. Conto e calo. A meada que se desenrola sem fim, a perturbação de sentidos únicos. E, sem querer nem resistir, no labirinto que me acompanha. Sem culpa, descaço os sapatos do dia percorrido. Largo a ponta do fio. E tento. Viver aí. Essa coisa etérea, de alma que vagueia pelos circuitos do sangue, pelos canais das lágrimas e pelos alvéolos pulmonares. Antes isso do que pelos corredores escuros da casa. Sem acender luzes. Aterroriza-me a escuridão. Mas não a sombra. Ou o que se instalou por alturas do assombro, caído de muito alto como se nada fosse nada. Ou que se imprimiu no soalho a desdizer passos seguros. Ou que desbotou de mapas antigos por efeito da humidade. Entro até aos confins de interiores não vistos. Quartos antigos, inexistentes e fechados. Entro por ela adiante – a casa – tão desconhecida da teia. Que se lhe acrescentou, que se lhe internou. No momento do deslumbre. Encandeada. Acendo uma luz baixa suave, confortável no seu desenho das sombras. E elas voltam, voltam as sombras. A luz a atenuar o excesso. A cegueira. Dominada por emoções de luz e sombra a encher palavras inadiáveis. E entro na casa do assombro que é minha. Sem domínio do mapa, nem dos passos que se estendem cuidadosos neste chão raso e plano. Direito e levemente cálido. Soalho a lembrar emoções mais soalheiras. Porque de luz e de sombra se faz todo o rol dos dias. De luz e de sombra. De sombras. O que dá a ver e demais, retira ao ver o ver. Recolho comigo o pouco ver à casa da escuridão. Acendo a luz. Ensombrada que estou, hoje, de palavras de luz e paradoxos de sombra. Porque não são os dias como dantes lineares de luz e escuridão às horas certas, é o que sei e não sei. E nada a fazer por hoje e amanhã. E ao fundo. Ao fundo de mim o bicho. Esperado. Inesperado e abusivo, que trago. Para dentro e de dentro de onde habita. Em mim e na casa de mim em que entro. Olho o corredor e bem fundo. De um lado a pré-história dos dias e do outro o dia é hoje. Não há que escolher. Penso, vou. No assombro. De quantos volts se precisa para iluminar o deslumbramento, o assombro? O que fascina, encandeia e encanta. O que perturba, maravilha e cega. Mas eu queria falar do assombro sem sombras. Do deslumbre à luz. Do Latim lumen. A negação da luz. A inundação. A raiz é implacável à palavra. Uma e outra. O assombro extasiado a encobrir-se na raiz invasora do latim, “umbra”. Assombro. Na forma regressiva de assombrar. Como voltar ao avesso do que nos assombra. De nós mesmos, aí. A interpretar, espaço irreprimível do pensamento a percorrer. Já os gregos antigos. E o seu espanto e assombro pela palavra transmitida. E em busca de tradução. O maravilhoso que nos suspende o olhar e o cobre de desconhecido. De sombra para reflectir. E retomar a luz. Talvez seja preciso um dia de sol como o de hoje, para mergulhar fundo e negro no abismo do assombro. Na entrada do labirinto. Tapete mágico que, de imediato, catapulta para o seu cerne de desorientação. Atracção do vórtice. Com sorte, para aquele braço de acaso em que luz a labareda de um fogo térreo, que aquece o monstro que o habita. Cabisbaixo, apanhado de surpresa. Pequenino como se visto de muito longe e encolhido para reter o calor da chama esquálida que na rarefacção de oxigénio, ameaça extinguir. O lado que desvanece. A um deslumbre sombrio sucede uma pertença a cuidar. Chegando lá por entre as paredes do corredor. Um a fazer-se cada vez mais difícil de amar. O outro, a amar cada vez mais. É assim o labirinto. Pontuado de luzes. Pálidas e pontuais. A escuridão é ausência. Terror. Nada. Está sol. Da admiração, também assombro do olhar. Essa atracção fatal pela problematização pela não indiferença. O movimento irreprimível produzido pela coisa admirada. De simples a complexa. De iluminada a escura, ou vice-versa. E no fim o conhecimento do vasto desconhecimento, invisível antes. Eu queria falar do assombro e sento-me nele com a eterna disjunção estudante. E depois queria falar da eternidade que é o que sobra desse assombro que tolda a vista por excesso de luz e escuridão. Essa intermitência demasiado veloz. A esta escala, de ínfima concavidade cósmica, de pessoa num pedaço de rocha insignificante. Numa outra, astronómica pode ser um nada no todo. De tantos minutos-luz. Os que não vivo, vivi, ou vou viver. Como uma sequência demasiado rápida de fotogramas numa escura sala de cinema. Estou naqueles fotogramas extraídos de algum lugar em mim para que sejam visíveis. E vejo-me de costas para mim, assaltada do assombro daquele conjunto. Mas na matemática a qualidade de um conjunto em si é irrelevante. O que conta – conta uma história. E o que conta é a relação entre cada elemento do conjunto e outros do mesmo conjunto. Como um álbum de fotografias – uma vida. Arrumadas por tempos, por pessoas, por viagens, por épocas, parentescos, celebrações, estáticas sensações que um dia nos assaltaram. E um dia rearranjando tudo aquilo, misturando até se quebrar qualquer fio condutor, juntar lado a lado imagens que nunca conviveram. Como discretas e tímidas solitárias a estabelecer relações inevitáveis de vizinhança induzida … e criar-se ia uma memória diferente de uma vida diferente de uma pessoa diferente. Re-cordis, de novo o Latim: recordar, voltar a passar pelo coração, fio a fio. Fiar uma outra memória. Diferente. “Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.”. W. Benjamin em tradução livre, em usurpação livre em descontextualização livre. Poder mudar a chave. Ou então ainda ele: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.”. E às vezes torna-se estranho, acrescento. Tiro os óculos de ler e de ver. Volto à memória. Volto ao assombro, uma noção de belo terrível, consubstanciado em si mesmo, sem eira nem ética nem beira. Antes uma estética de luz e sombras. De padrões difusos e permanentemente reajustados. Ao tempo. Desajustados de todo o tempo. Pares de conjuntos disjuntos aqui e ali. Com as suas intersecções de vazio. Ou ilusões de um olhar demasiado aproximado. Talvez. Ou demasiada luz. E, por coincidência do universo a querer, apesar de tudo, dar-me respostas pelos olhos adiante, olho o ficus que me acompanha o olhar há mais bem mais de uma década. E são idênticas as circunstâncias de luz e o sombreado das portadas, a tantas outras tardes. Mas, pela primeira vez, vejo uma linha sinuosa de folhas azuis. Literalmente azuis, como nunca as tinha visto. Uma linha sinuosa a fugir com a luz. Sinuosa e depois mutante. De passagem. Que tento reter. E porque são lustrosas reflectem o que a elas não pertence – não? Como muitas impressões que assaltam os dias. Construindo, destruindo. A força das palavras, sempre. Lembro-me “Da fábrica que falece…” da primeira vez que li o título. De Francisco d’Olanda. A impressão forte da palavra. Falece. Mas era construção que faltava à cidade. À vida é isso que falta. Fazê-la. Dia a dia sem estoicismo vão face ao destino que parece, esse sim, por vezes, edificado e convicto em fazer-nos falecer a vontade. Em demolir a construção do que nos falece. Dia após dia. O ruir com ajuda. Ruidosa térmita. E só apetece dizer: pára. Pára tudo. Por momentos, que seja. Ou a explicação das trevas. A luz sobre o indizível que chega ao horror e volta. Porque nos apontam armas. Devia ser proibido. Coloco as cartas sobre a mesa. Como para ler. A sorte. Minto. São fotografias retiradas à pressa dos seus lugares fixos, para que o seja sem hesitações. Perdidas, desorientadas da cronologia unívoca. Descidas dos seus andares e trocadas de casa. Num rodopio sem reservas. Inocentes. A mergulhar noutra vida. Outras vizinhanças e amores. Parentescos, dias. A tentar refazer a memória. Testar. Porque do deslumbre nasceu o meu monstro e o seu labirinto habitado. Nada a fazer. Como falar de luz sem sombras. Como falar do assombro desassombradamente ou como contemplar o etéreo sem contemplações. É coisa que não faz menos sentido do que atribuir carinhosamente a cada luminescência a sua dose natural de sombra difusa. A cada luz em cru a sua forma inevitável de produzir sombra. Recortada à faca. Na intempérie de emoções mais fortes. Volto-me para olhar os bichos. Bichos sedosos, naquele evoluir de minúsculas patinhas a ondular ligeiramente o corpo de estrias a negro, na caminhada que é longa. Para eles. Fugidos da caixa dos sapatos. O chão enorme. E noutro dia, casulos nos cantos das paredes nas costas das cadeiras. Nos braços do corredor. Do labirinto. E de súbito: umas asas pequeninas, gigantescas. A ver dali. A desembaraçar-se do pequeno constructo de fios sedosos e temporários. O céu a abrir-se. Perguntei queres vir? Respondeu naquele olhar turvado e imerso. Imenso. Fiquei. Abracei-me à fera que nem sentiu. Que se visse. A inércia do peso, difícil de mover. Por isso a fera é fera e o monstro é monstro e ambos são recém- nascidos todos os dias. Mas nascem já grandes. Lanço na mesa a criança que ainda é memória. Um combate de titãs em teoria. Duas desrazões que estão bem na balança prévia ao combate. Fico ali enroscada a ele. Se deixou é com ele. A batalha. Não em mim. Talvez abraçar o monstro liberte borboletas. Como bolhas de champanhe. Sei lá. As crianças não bebem. Volto. Não é dia, que não de assombro. E da confusa impressão dessas sombras, delineadas e sobrepostas. Nem tentativa nem erro. Olhar o assombro na sua versão acabada de nascer. Frágil monstro encolhido no seu canto. E ansiosamente aquietar e aquecer em mim esse corpo de gigante perigoso e ínfimo. A cada um a sombra do tamanho que os olhos conseguem alcançar. É isso. A existência nunca foi uma ciência exacta. Encaminho passos irresistíveis afinados por um magneto. E contemplo-o ali. No fim do corredor. É tarde. Apago a luz. E “sub umbra floreo”.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialMeio da tarde, ponto nenhum [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]eio da tarde, ponto nenhum no mapa conhecido. Tempo indefinido e pessoa vaga. A luz em tudo. É o que é mais do que em outros dias. A luz por excesso como uma camada espessa de silêncio. A querer escrever aqui, escrevendo, sem palavras. Hoje estou assim. Ou procurar as imagens possíveis em tonalidade musical, que se somem às palavras e ao silêncio das palavras como só aí é possível. Preferia ser compositora a usar estes utensílios letais. Hoje estou assim. É isso. Já tentei as cores mas nem sempre me acontecem. Cores limpas, transparentes e claras. Mas nada serve a esta luz crua e a este sentir leve. Denso. Tantas vezes. As cores nas palavras. Mas há sempre qualquer coisa fugidia. Qualquer coisa proibida que se escapa e ensaia na dança vertiginosas mentiras. Por querer ou sem ele. Como se fosse por amor ou sem ele. Como se fosse indiferente. Que loucas. Desvairadas, mesmo. Mas como dizer letal sem dizer veneno e armas…anjos carrancudos e infantis a mastigar pastilha elástica. Furiosamente e também eles fustigados no calor da tarde. Coisas cépticas. Quando os dias me aparecem de repente como montanhas íngremes a escalar obrigatoriamente e me lembro daquela subida a pique às costas do besouro cor de pérola e com quatro olhos. E como me deixava apeada a meio, bem a meio da subida. E o monte da fortaleza ficava até novos desenvolvimentos de fortaleza inexpugnada. Pesavam-lhe o rabo, a carapaça e os costados curvos e calvos. Pesava-lhe o motor de vida atrás, que fazer? Senão deixá-lo agir no seu peso bruto a puxar para trás e curvar ligeiramente para que durma confortável na beira. Não há quem vença a inércia de um motor que se recusa se o caminho é a subir. Que mais valia termos subido separados e encontrado os dois lá em cima. Mas não, não se faz isso. Mas hoje, ontem – bem, não interessa – procurar o bicho enorme no seu silêncio de cidade. E no meu e também ela um. Não há como contornar a dor senão neste desapego de sentidos. Como uma esquina indiferente. Numa visão microscópica do dia. E surpreendentemente passo por um enorme casarão que toca música. Sozinho na rua deserta. E era, afinal o conservatório de música. Como muito bem sabia num outro momento antes e depois daquele. Em que ali estava, casa grande e distraída de gente, e sem ninguém a dar corda à chave daquele relógio concebido para tocar horas num ritmo livre e lírico. Fantasio, que é bom. Aquela subtil trepidação. Uma tremura tão quase invisível, mesclada do sorriso esfíngico por não se estar a lembrar um icebergue estético a atravessar tempos através dos tempos. E do silêncio aparente a um olhar desprevenido, faz-se um indistinto murmúrio que vem do mistério do tempo sem tempo de uma imagem. A imperfeição topológica da paisagem a lembrar-nos numa jangada batida de ondas, balançada. Não pelas do mar mas aquelas concêntricas e suavemente marulhantes em círculos perfeitos em torno do lugar líquido onde caiu uma pedra. O erro da linha do horizonte partida a lembrar como se é humano, precariamente humano e atingível. Como falhamos o momento do olhar e do outro olhar. Não sendo estáticos, nós e este. E tudo isso a lembrar do invisível. Do excesso dos sentidos. Da inconsolável exasperação dos dias ruidosos. Deste desejo imenso, intenso, de viajar, e de repente. E de repente, assim. Um simples recanto do mapa conhecido da cidade do costume, um simples abandono, à hora a que o encontro, como se estrangeiro no mapa e na topografia de tantos passos desfiados ali. Basta o silêncio mesmo num lugar desarranjado. Até a distracção desleixada e esquecida de uns papéis amarrotados no chão, como nós, às vezes. E o sol inclemente de quase verão. Este sol ensurdecedor a arrasar tudo o mais e a apagar como se de nódoas de tintas impertinentes, outros ruídos. Com esta possibilidade intrigante de tudo anular na crueza da temperatura. E o meio da tarde. E uma veia deste bicho-cidade, um pouco esquecida da circulação. E um banco. E um cigarro de tabaco demasiado seco como na praia. E o meu ser parado com tudo o resto a voltear suavemente embalado deste nada diferente. Bom. Três invisíveis centímetros – só três – de liberdade. Face voltada de través à gravidade da terra, à gravidade da vida feita e desfeita. Tudo fantasioso, a bem dizer. E por momentos a cidade é estrangeira em mim tanto como eu nela. E às vezes, simplesmente desenhos de fotografias de memórias de paisagens de viagens. Imaginárias. E chega. Desenhar com ou sem palavras para povoar o meu mundo de caminhos. De presenças e de ausências. E na tipografia desconhecida desta calçada, a estranheza de uma língua também desconhecida por momentos, a poupar sentidos, resumida a sons musicais. Quase. O desconhecido e o do silêncio necessário. A senti-lo chegar. Naquela reentrância abrupta de uma rua. Uma fonte parada do fluir do tempo nas águas que seriam circulares e assim, não. E um banco. De costas para tudo o resto. É assim que o tempo pára. Mas nunca retrocede. Sim, aquela reverberação quase invisível que era preciso somar às palavras tão brutais tão cruas para atingirem os lugares certos e não ao lado, ao lado. Ficando na bruta insuficiência de dizer verdade. Incompleta incompreensível verdade mentirosa por pequena. As cores, as cores sem simbologia mas pura sensação. As suaves as embaladoras as subtis as que não doem no doer necessário mais do que isso. A cor de verdade. Ou talvez a voz. Ou melhor ainda a música. Que nunca fere nem engana. Diz sempre outra coisa. Do coração. Ouvir do coração. O que procuro nestes dias de viagem senão o subtil que se derrama do óbvio, se retido todo o ruído lateral. O invisível, mesmo. Mesmo o invisível não visível mesmo. Mesmo o que não está. Às vezes sofro de excesso de sinais. O mundo a parecer falar por linhas tortas e travessas. Chega, o que é demais. Portanto, parto. Atravesso um quarteirão e com sorte o mundo. Conhecível. Como uma meditação zen, na azáfama desesperante das perplexidades e das perguntas infantis. Das certezas nos erros e nos erros das certezas. E intermutáveis incontáveis variantes. E querer somente um momento de hoje, aqui agora, e estou. Num recanto da cidade desconhecida. De sempre. A um quarteirão ou na pior das hipóteses, dois. Daqui. E é assim que no momento algo de impreciso, também trepida e tremeluz alguma coisa em mim e por dentro. Não, não o corpo mas uma memória impraticável e subliminar como metáfora. Talvez. Algo se conforta no silêncio desconhecido e ancorado no vazio de um qualquer fio cronológico. De um qualquer mapa de estradas interiores. De um qualquer GPS de pouca confiança. E, como poisando a cabeça de lado ao rés da água, a contemplar os círculos calmos e sem reflexo humano mas tão somente o céu. Que está acima. Essas pequenas grandes coisas que trazem plenitude. É quando em mim o bicho enorme adormece. Ou não sei. Talvez por isso. Sentado ao lado, talvez um metro além. Descarnado do labirinto. Inundado daquela luz crua também ele, extenuado de trevas, é claro calmo e silencioso. Com os pequenos brilhos da cidade sobre o pêlo macio, suave e lustroso. E é quando o monstro sem dar por se ter aproximado, como por magia, poisou a cabeça e serenou. No colo. Com todo o peso diluído na respiração suave. Meio escondido na cegueira da luz. Pequenos rugidos de ferocidade latente mas em tonalidade onírica. Sem saber poiso a mão escondida, descansada e ávida nos intervalos. Daquela respiração ou talvez meus. Da alma em ligeiro e leve alvoroço. Talvez a bonança em mar alto. Mas não sei quando aconteceu. Se já se ainda ou se talvez não. Ou nem ainda nem já nem já não. Só uma espécie de verdade. Os tempos dão estranhas reviravoltas na crueza desta luz a cegar. De frente para trás. Ou de agora em diante. Sempre às voltas com os tempos de Borges. Difíceis de distinguir nas cores do sonho.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialPedra, papel, tesoura [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]assos lentos os meus, pelos minutos das horas. A dar tempo e a conter a hesitação mortal. Como um inverno sem temperatura nem vento, mas tudo à espreita na escrita dos nós, nas esquinas das árvores nuas e planas. A natureza a hibernar guardada para outras certezas de rompante. O céu cinza compacta. A temer o descalabro do vento. Os passos ruinosos de insegurança lenta. Precaução. Ter que impor o avanço em caminho de nada. Depois o escuro e quase a terminar. Sem ter chegado. Mas aquela presença de respiração forte, desesperante, adiada madrugada. O desconhecido em espera na sua também hibernação agitada e convulsiva. O espaço obscurecido e ruidoso. Também. Um inferno esse de esquecimento e espera. O bosque. Como uma casa que dorme em sobressalto de vidas ocultas, fantasmas conversadores, rumores, pios, roçagares súbitos, aragens desordenadas que passam em correria para outras actividades do bosque. Da casa que dorme. Em sono agitado de muito. Coordenadas límpidas na folha quadriculada. Escrevo a paragem ruidosa no bosque de atalhos tortuosos, escuridões e sombras. Monstros. A tactear as penumbras aveludadas, a subir as paredes de camurça até à sombra mais alta. Da abóbada do astro. Planas evoluções no sentido do bosque, caverna, veludo, voltejar hirsuto nocturno e revoltado. Espreito o mostrador partido no chão e pergunto qual é a hora certa. Quatro ponteiros como pontos cardeais. O norte sempre norte até aos pólos. O sul sempre. E depois tudo inverte. O vidro quebrado, uma pegada adivinhada e o coração de mecanismo metálico parou talvez. Aspiro o ar em torno e para cima. Em torno e para cima recortes de folhas baralhadas e revoltas. Em fundo o céu. Faço contas às horas de não dormir. Faço sempre contas às horas. É talvez a perspectiva lançada no ponto de fuga do depois. Linha de chamada de ali até ao horizonte. Recta. Até à linha do horizonte, da mágoa. Os monstros. Os olhos noivados de fresco na sombra pacata das pequenas luzes. Pequenos bichos. Pequenos rumores. Grandes intempéries à espreita por detrás das palavras que bordejam cada atalho. Avança-se tão devagar como nada avançando por cima das nuvens. Num determinado troço do mundo, da floresta. Tão alto, tão imprecisamente rasgando a matéria invisível, tão em espaço fechado. E em baixo uma cortina lisa e esfumada e sem marcas. Pareceria o céu. O da eternidade. Sem tempo, sem avanço, sem dúvida. Pela luz. Mas era sonho de outra madrugada que não a próxima. Avança-se entretanto pela noite. A custo colocando pé ante pé sobre as palavras difíceis. No bosque. A casa dorme. E de súbito, como um bicho enorme possante e poderoso na fúria devastadora de passos – pesados, abruptos – avança de nudez evidente e olhar ausente pelo carreiro conhecido no momento desconhecido de si. Ou não, talvez. Não há palavras em folhas como nas árvores. Sombras. Luzes baixas em fim de estação e de noite. Contemplo extasiada a capa imprevista daquela nudez. O olhar cego a guiar a fúria e o rompante dos passos. Vapores densos e mortais a emanar das ventas da fera desorientada. A pele a escavar um leito para o ouvido. O desejo, o corpo, a pele a arrepiar num caminho de beco urbano ou labirínticas paredes de vidro, o mostrador do relógio, o tempo, o corpo adiado, perdido, o desejo e o medo. De cobrir essa nudez com o corpo num longo afago de carne. Pesado sem temor à fúria nada que se compare com a espessura da pele, dos passos, guiados e cegos. Esse corpo. Adormecido de si. Talvez. Ou cego também. Ou interrogativo lá bem no recanto mais remoto. O desejo de cobrir com o meu corpo insuficiente tamanha ansiedade. Acalmar e guiar. Atenuar o desconhecido que move esse desconhecido. Como um animal a fingir ser feroz. Indeciso, contudo. Perdido talvez na selva que se abeirava do seu lugar. Numa invasão subtil, imparável. E ao corpo. Infantil, grande, gasto, desperdiçado, maduro. Nu. Avançando à procura de algo impreciso, esperando não sabia o quê. Animal grande, semiadormecido. Nú. Sem nada. Como se perdido do seu lugar. Avanço para ele e pego-lhe na mão a querer abraçá-lo a não querer invadir a desprotecção que o vestia. Furioso. O bicho forte, pesado e violento. Doce. Mas tomo-o pela mão, guio-o pela mão inesperadamente pequena até à cama de folhas. Acompanho-lhe o silêncio. Para ser bom é preciso não lhe olhar os olhos. Imprecisos, indistintos, em fuga. Não olhar para não quebrar o silêncio a mais do que os passos pesados descompassados da fera. Fica o pequeno segredo entre as palmas das mãos. Pequena pedra. Depois, antes, o ruido ensurdecedor da ventania, dos bichos estranhos desconhecidos e escondidos. Tapo-lhe o pêlo arrepiado talvez do susto. Da caçada infrutífera. Da procura. Da espera adiada não sabia de quê. Algo que era para ser noutro dia e não naquela noite. Tenebrosa e lenta. Ruidosa entre coisas. E ausência de coisas. Palavras. Pensamentos secretos de todos os ângulos. Abeiro-me do bicho que dorme súbita e pesadamente, denso e forte de compleição como se encerrasse todo o mundo. Ali. Tapo-lhe a nudez, a dele a minha, outra, com a manta de folhagem do seu mundo e em cada folha trilobada de coloração escura um olhar exausto, um suspiro de impaciência, uma ânsia de serenar, uma hesitação, um frio seco, um beijo adiado. Em cada nervura uma veia a latejar. Um eco da respiração. A fera. Pediu um beijo no sono temporariamente suave e dei delicadamente porque pediu. Não cantei para que dormisse. Não cantei para mim. Voltei pelo atalho reconhecido à clareira de luz entre a folhagem. A pensar a noite, a madrugada, a manhã. O ontem, o amanhã. As funções da pele, do corpo. Posso chamar-te oxigénio, posso? Sentava-me na beira daquele leito revolto e ele escondia, soturno, a resposta por detrás de um sim ou de um não. Que tanto fazia. O sim ou o não, claro. Nunca nada, claro. Não que tanto fazia. Nunca dizia isso e seria o mais puro. Devolvo-o pela mão ao lugar. Como um urso enorme e eu coisa pequena. Disse-lhe vem. E chamo-lhe sempre o nome para não o ferir de amor. Devolvo-o ao iceberg desgarrado e tóxico nas águas a subir mas era para ser o leito. O seu provisório leito de bicho sem casa. Expectante. Mas esconde as páginas como comida para o inverno. Não li. O seu de sempre. De abandono. Nos arquivos de alvéolos, que escondem palavras fracturadas e esforço por detrás do opiáceo doce, angustiante, total e excessivo. Doce. Agoniante. No lugar escuro onde as roupas foram atiradas, quase rasgadas, para o chão, para quê. O requintado poder de nada dizer. Com as palavras vazias. O medo. Quando avançou irrompendo da escuridão do labirinto em que se deita era uma luz de pedra. Uma folha de papel. Ou duas escuridões que se cortavam.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasOutras margens [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] que me faz falta às vezes é o nada fazer. Aqueles dias em que a actividade parece um atributo acessório da existência, que em nada tem a ver com uma qualquer natureza ontológica. Que a contradiz em tudo e a força a uma outra coisa em nada semelhante. Incluir assim, nessa ânsia de existir simplesmente, uma certa indiferença a dormir ou comer, mesmo. Tarefas, decisões e horários. Estratégias, hierarquizações e planos. Uma espécie de jejum radical para a revisão de todo um mecanismo complexo de sentir. Do sentir. Sobretudo naqueles momentos particulares em que tudo nos quer ver bem. Ajudar. Sugerir. Tudo nos quer naquele lugar confortável que não inspire preocupações. Diminuir a dor. Obrigar. É nesses momentos que vem por vezes a recusa radical. Um luxo de liberdade a que nunca me dei por mais do que momentos. E depois voltar. Tão igual como qualquer rio que nos acompanhe os olhos na cidade onde vivemos. Nunca outro. Nunca as mesmas águas. O tempo. E voar um pouco mais longe do que o fim da minha rua só para andar ao longo do rio. De um outro rio. Um outro cenário. Um outro café. Sentar-me num café que não é o do topo da minha rua. Sentar-me da mesma maneira e cruzar a perna da mesma maneira. Olhar o mesmo infinito sem consequência, sem explicação nem sentido. Mas ser um café que não é o da esquina no fim da minha rua. Sair da vida do costume como se a deixasse lavada de fresco e bem passadinha a ferro, impecável em cima da cama, para vestir num outro dia. Mas vestir uma outra. É o que é preciso, às vezes. Convalescer de estar triste, com uma manta de lã fina e quente, quase sem peso sobre as pernas, como num sanatório de montanha e relegar tudo para um plano entretanto de irrealidade. Ou convalescer nas palavras mais eficazes do que o motor de um 787, ou um A350. Do que um Concorde. Daqueles que caíam facilmente. Como estas. Depois. A cada dor particular o seu placebo próprio. Passar por uns dias. Passar por uma cidade estrangeira, pela vida como se pela vida de alguém tal e qual como uma “Laura, on the train that is passing through”… uma vaga melancolia sem questões de maior. Há momentos de dor. Ou de dores variadas. Não ter vergonha da dor ou da ausência dela. Deixá-las seguir o seu curso e o seu tempo. Cobri-las com uma lã fina para não terem frio a mais. Do que o do seu inverno. Mas as dores devem ser tão leves aos outros, como os outros a elas. Há ideias mistas que se colam ao corpo como uma pele fina mas forte. A mistura de sentimentos de sinal oposto. Se haverá ou não sentimentos maus de sentir é o que me intriga tantas vezes. Sentir á o último reduto de estar. De ser vivo. De viver para o que naturalmente cresceu em si e não se alterou na essência. Sentir sem o escudo protector da indiferença benigna para que não haja tempestades que façam naufragar. Coisa a proteger. Talvez. Para que não me espreite ao espelho o rosto de uma planta. Uma flor. Não há sinal maior de estar vivo do que a dor. Dói-me logo existe em mim. Existo. A excluir outros sentimentos de igual capacidade de absorção de tudo, de mim, de toda a dor de todo o insucesso. Como o amor. Sim. Porque renegar o sonho maior de tanta gente. Coisas vagamente vergonhosas. A dor, como o amor. E a rimar. Passear numa cidade estrangeira. A dor. A perda. Tudo o que reunido é o que sou. No momento em que vou. Passear numa cidade estrangeira ao meu círculo vicioso. Um beco circular. Passear como se nada mais fosse possível fazer, e escolher o cenário que há-de preencher os olhos senão a mente. Mas a nova paisagem é como convalescer na Montanha Mágica de Mann. E tudo ser relativo ao momento em que tudo e nada pode ser possível. Em que tudo fica igual ou muda. Como sempre. Só num outro cenário e como tal a validar o momento diferente de todos como todos são de todos. Não há como uma viagem para nos catapultar para o espaço sem tempo e o tempo sem dono e não há como estar só para que tudo seja possível de não ter sentido nem metas nem sucesso nem horas nem sentido nem culpa nem nada. Mesmo. Há cidades para sempre entranhadas no mais recôndido escaninho da dupla e retorcida hélice do nosso ADN. Cidades feitas do ouvir contar, das fotografias e dos filmes de sempre. E da história, que estrutura uma origem de que se gosta e quer sentir fazer parte. Dos álbuns e dos livros, do cinema e das memórias coladas a uma canção. A muitas. Memórias às vezes sem dono, já. Das pessoas que nunca conhecêramos não fosse a esplêndida presença que deixaram em objectos que voltamos sempre a visitar, a revisitar como num domingo se visitava a família. Que nunca conhecemos mas conhecemos melhor do que a muitos dos nossos. Com quem nos cruzamos um dia numa das estradas de um momento de sorte e acaso, e por quem nos apaixonámos de emoções fortes, de ódios e rejeições ou de amor mesmo. Pessoas com nomes que nunca esquecemos e que nunca morreram para nós, póstumos a elas, por vezes, a quem encontrámos já em dimensões diferentes da matéria e do espaço, mas que reconhecemos como nossas. As nossas pessoas do intelecto e as nossas pessoas da admiração e as nossas pessoas de quem temos tantas fotografias que quase tomámos café aqui e ai com elas. Espiadas e abstraídas de nós. Também elas. Tanto a conhecer numa cidade onde não se nasceu nem cresceu mas acrescentou mundo e o olhar perdido nos limites da sua aldeia não fosse assim. Ou talvez nem fosse assim. Como dizia o poeta. O mundo do tamanho do olhar que se lhe deita. Mas assim é mais. E cidades onde se quer sempre voltar. Estar numa cidade estrangeira fervilhante de coisas, de fenómenos, de acontecimentos.. De objectos de cultura. De memória e de estar a acontecer. Numa arquitectura de trajectos de coleccionador. E não ver nada disso. Quase. Porque de uma cidade estrangeira de que goste, gosto sobretudo da cidade. Esse ser articulado, pujante e indiscutivelmente vivo. Dentro de lugares fechados para a cultura, ver só o suficiente para amadurecer em horas e dias. E dar as margens de silêncio precisas. Rigorosas como uma moldura a proteger e a guardar o tempo e espaço para pensar. Sem ruído. Sem sobreposição. Caminhar numa cidade civilizada. Num modelo cultural. E não esquecer de ver os sem-abrigo por fora das janelas de cada museu. Alguém que dorme às oito da noite numa manta de quadrados porque não há mais mundo por hoje. Os que pedem para comer. Tantos. Rostos morenos de famílias inteiras ao longo do rio. A vida. E aquelas figuras arrumadas e dignas como uma certa classe média. E que sobriamente também estendem a mão. A vida exposta na palma da mão limpa. A vida. Quilómetros num sentido ou noutro a mergulhar os olhos no verde denso das águas do rio que lembrava mais largo, e no ocre claríssimo como se duma cor diluída para não ferir. Quase um cinzento de prata amarelada. Os prédios todos semelhantes nas suas inúmeras diferenças. Apaziguados numa harmonia cromática de extensão confortável sem sobressaltos. E assim ao longo dos dias. Pequena, grandes incursões para dentro das margens e voltar. À referência. Nelas, entrar em cada igreja não programada. E lá bem no fundo suponho uma súplica. Tão ténue e escondida até de mim. A sentar-me por longos momentos de respiração. Talvez que alguma coisa de mim, através de mim e sobre mim me salve. Deste momento. De mim. E todos os dias partia desalvorada do hotel para o rio, ali mesmo ao fundo da rua, quase como se em casa. Mas outro rio. Às vezes é preciso outro rio. Como o tempo. E partia apressada com a alma desfraldada a sair dos bolsos já de si cheios de pedras e pesos. Desfraldada e não feliz. Mas expectante dessas horas como um grau zero de existência plena, a caminhar simplesmente pelas margens desse rio. Só. Para dificuldade bastava aquele longo e prolongado tempo a reunir coragem de deixar a cama para trás. Com os seus fantasmas desalinhados e em pijama até à noite. Ideias que nos colam ao corpo, como quem transporta os ossos dos antepassados, limpos de toda a existência no silêncio de um pequeno saco. E guardar silêncio sobre a dor. Mesmo de mim. Ferreamente diluída nos passos enquanto não pararem sob o efeito dos olhos. Porque às vezes é preciso ir mais longe, onde nada exige essa felicidade que nem sempre pode ser. Pesos. Ou seria a mala a fazer peso nas costas. Cheia daquelas coisas-casa. Livros de páginas em branco, canetas pretas, duas maçãs, a máquina fotográfica. O mapa a refazer um mapa, outro, mental tão desfeito ao longo dos anos. A reler nele, saborosamente, os nomes. A imprimir numa nova memória. Coisas. Inseparáveis e pesadas como uma concha de caracol. Inevitáveis. Curiosa concha-caixa a desse molusco, concha-casa espiralada e esconderijo, quando é na realidade o esqueleto externo. Como o mistério de uma mala de senhora. Desde aquela bolsinha minúscula onde mal cabe o pó de arroz e um lencinho bordado, porque mais não é preciso para além do batom, até ao por- aí- fora das dimensões e dos mistérios esclarecedores de uma diferenciação social, cultural de uma emancipação ou de um desamparo a fazer transportar um mundo- concha. Que aquilo que se transporta é um mundo…uma gaveta escolhida do mundo como um esqueleto externo. Um arcobotante a suportar uma eminência de queda, um peso a mais. Espiralado como as curiosas camadas de ser que precisamos poder derramar numa emergência em branco de papel. Ou de um olhar que é preciso prender ao vidro de uma lente. Para ver melhor. Apurar o cenário em que se representa um intervalo de tempo depurador. Coisas. Daquela mala desenhada para se prender firmemente às costas, ao peito, como se parte delas, dele. A fazer peso mas sem tolher os passos. Numa pressa de chegar. Ao rio. E aí parar numa das margens. A respirar fundo o alívio de ter chegado ali para ali caminhar. E caminhar ao longo dele. Grande demais e como tal inesgotável para a minha pequena escala. O que é bom. Que o mundo seja grande e o tempo também. A pequena história destes dias. Resumida à sua verdadeira extensão. Passear até à exaustão e pelas horas adiante, com aquela pequena garra fincada em mim em pano de fundo bem fundo. Para aquém das tonalidades envelhecidas em texturas suaves. De todo o cenário-cidade. Do céu. Cinzento a combinar. Respirar em grandes haustos um ar que parecia limpo do que ficou para trás e trazem até inesperados perfumes, de árvores não, que por todo o lado friorentas e nuas, mas arbustos que se cruzavam comigo, rápidos no andar. A andar como se para sempre. Para sempre acompanhada. Como por sombras num pano de fundo. Bem fundo. O que não tem remédio. Sinto, logo existo. Que maravilha única e insubstituível. Acontece uma vez. Não acredito em mais. Estar em Paris só para estar em Paris. Para andar ao longo das margens. Minhas. Do rio. Coisas diferentes. Há um peso que cola os passos ao chão. Mas a cabeça sempre mais acima do que os pés. Essa tonta. Tresloucada. A vida, digo eu. Inalcançável senão por partes. Dias. Paris é uma daquelas cidades a que pensei só voltar só, ou com um grande amor. Aqui estou. Sem querer distinguir as ramificações de uma e outra verdade. Ambas acompanham como uma pessoa querida. Está frio. Ponho quando posso prescindir delas, as mãos nos bolsos. Quando cabem. Saem por ali tantas coisas. E luvas, e bem lá no fundo para não o perder, como o primeiro mapa que me caiu por ali algures, um coração. Suponho-o diferente. Vi-me diferente – nesta cidade – depois de vinte anos. E noutras margens. E este é outro talvez também. O último romântico. Não o posso deixar cair por aí. Nem esquecê-lo no check-in. Vai ser revistado, talvez acusado de ter em mililitros mais do que o permitido transportar. Como o champô de que eu gosto. Suspiro. E continuo. A atravessar pontes sobre o rio. A acompanhar o rio sob pontes atrás de pontes a parar e com a alma sempre cheia de uma canção. Que durou dias.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasMais infinito, menos infinito [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á dias em que tudo me é estranho. Para ser rigorosa, todos. Tudo me é exterior, incompatível. Como nos transplantes de órgãos. A compatibilidade do D.N.A. chega aí. Mas depois é todo o organismo a tentar reconhecer a pertença. A nova pertença, qualificada e aconselhada. E mesmo assim reage. Às vezes. É o sistema imunológico que rejeita afinal o que é corpo estranho e mesmo para salvar, estranho. Ninguém sabe de facto o que nos salva, para além de probabilidades cientificamente analisadas, ou nem mesmo assim seguras. Até um ponto. O ponto de ruptura com o que é estranho. A morte. A morte é uma criatura estranha. Retratos de família. Amores-perfeitos. Existem? Sim, as flores. Cresce-se numa cadeia de muitos elos de estranheza, só porque é assim a família de que se parte. E só isso, sem se dar conta durante muito tempo, cria um bicho estranho também ele a crescer subterraneamente e a insinuar que por vezes somos matérias tão diferentes que não há ADN que explique o que nos liga senão uma tradição. E que daí ao amor vão léguas submarinas. Difíceis laços estruturados em rede, em que uns nos trazem outros agarrados por inerência inultrapassável. Proximidades a tornar nítido um desenho de incompatíveis formas. Desarmonias. Quando se tem a sorte de ter uma família grande, é bom. Há sempre aquela metade difícil. Dispersa por inúmeros ramos. Mas há a outra, também. E às vezes difícil. Também. E é talvez assim que se começa lentamente a delinear contornos de imperfeição, sentimentos ambivalentes e contraditórios e uma síntese progressiva entre uns e outros. Valiosa, essa. A aprendizagem da imperfeição. Dos amores imperfeitos. E entre aqueles que são mais infinitos, e aqueles que são menos infinitos, cresce a certeza de que um ou outro, são definitivamente finitos. Ter um avô que se suicidou pouco antes de eu nascer, não me levou nunca a levar-lhe a mal a desfeita. Falava-se pouco desse avô, como se dele pouco sobrasse para além disso. Uma ou duas fotografias minúsculas com aquele detalhe fino do contacto directo com o negativo. A luz desenhada com precisão. O recorte nítido. Mais nítido do que ficou em mim que dele pouco ouvi. Pouco entendi daquelas feições. Um rosto severo e cerrado de contrariedade. Idealismo, talvez. Uma questão de honra, dizia-se. De vergonha. Sítio pequeno. Cercado da vasta planície coberta daquela luz inclemente sobre tudo. E sobre esse talvez idealismo que o fez desistir. Tantos filhos e tantos netos, uma mulher honesta e trabalhadora, e deixou-se sucumbir pelo erro da única filha mulher. Rapariga de menor virtude do que as agruras do tempo e da terra – dele – admitiam. O meu pobre avô Custódio Augusto. Deixou-nos honestamente a culpa em herança. A sua. Não a sua vivida, mas a sua contada. Para se fazer significar. A de existir assim. E toda a outra culpa, que não a dele, sobretudo, e viva para sempre. Afinal. Honestamente e com toda a ternura que me causa esse avô desconhecido, para além do pouco contado – que pena não ter perguntado mais – e de duas únicas fotografias naquele fato preto das ocasiões, não por elegância, que no campo não fazia talvez o paradigma de um homem sóbrio e reflexivo como ele, mas da decência, seja lá o que for que isso é, valeu a pena? Eu digo, e digo com voz pequenina porque o universo é grande e eu não, que temos que olhar com a força possível aquilo de que gostamos, sem memória. Só olhar o momento talvez assoberbado por um sentimento se for maior. E chega para passar ao outro dia. Não ambicionar mais do que a profundidade honesta de um momento, como uma engenharia que não se sabe a que construção leva. Mas algo ficará construído. Na economia complexa da existência. Mas ele não teve a serenidade de aceitar e deixar passar o tempo sobre aquilo que não podia mudar. Mudou o que estava ao seu alcance. Não se conformando com uma realidade, menos do que ideal, real. E deixou que a culpa tomasse conta da vida e depois, da morte. Até muito depois. A culpa é um sentimento inútil à falta de outras qualidades. Sentimentos. As pessoas gostam da sua culpa como de um animal doméstico. Mau conselheiro, quando só. Aborrecido, incómodo, às vezes. Mas o seu animal de estimação. É mais fácil criá-lo do que a um animal desconhecido. Mas triste. Como o medo. O pior inimigo da liberdade. E a culpa, esse animal de estimação, bem alimentado leva longe. A menos-infinito. Como ao avô quase desconhecido, ao desconhecido. E nada mudou à face do universo com a herança que nos deixou. Não sei se é fantasia minha, ou se é a memória do meu próprio olhar ali solto em liberdade condiciona sobre as planícies, sobre o gosto árido das planícies, mas sempre me lembro de gente do Alentejo com uma espécie de olhar mais atirado para longe. Sem obstáculos. E a olhar directamente os olhos dos outros. Dantes. A perscrutar almas e vidas. Talvez a transparência entranhada entre muitas rugas de expressão ou de protecção da íris, daquela luz toda. A semicerrar pálpebras e a atirar mais fundamente o olhar para o espaço grande. No campo. Mas melancólico olhar, talvez. A gerar frio na alma torrada daqueles calores. Sem sombra para abrigo. Virada para dentro então. / Terra da cor dos olhos de quem olha! / A paz que se adivinha / Na tua solidão / Que nenhuma mesquinha / Condição / Pode compreender e povoar! / O mistério da tua imensidão / Onde o tempo caminha / Sem nunca chegar!…Miguel Torga, sobre o Alentejo. E porque não existe uma realidade constante. Mas, sim, estados de consciência, que definem o tom de um olhar nas coisas. Penso às vezes que é a lonjura do mar no interior. Que ali parecia não poder levar a lado nenhum. O tempo ou os passos. Sempre me intrigou o fenómeno do suicídio na planície alentejana. Deveria dizer planura, talvez. Ondulada e ampla. Arenosa, às vezes, e pontuada de sobreiros. Ou oliveiras, a intervalos, como se de propósito para deixar espaço ao desenho nítido das sombras. Nas dunas infindáveis sem mar à vista. Está mais que demonstrado que uma certa alternância nas vagas do sentir momentâneo salva de muitas prostrações, emoções variadas e megalomanias existenciais. Um momento depois, sabe-se, e o que era para ser nessa economia muito espontânea, já não é. É o que nunca era para ter sido senão como vislumbre. Maré cheia, maré vazia. E sempre alternando. Sempre me fez pensar essa melancolia atroz da planura das planícies. Uma espécie de insularidade não reconhecida, não pressentida. A moldar as disposições para a morte. País tão pequeno este e mesmo assim. E ela, pelo contrário, tão, tão resistente. Tão de infinitos. Ainda não passou um mês. Sobre minha árvore-mãe caída. E eu dela. Uma folha. Um lamento privado. De pessoa sem árvore, sem raízes, sem frutos. Um dia destes soube que tinha chegado a outra metade diferente da vida. A menor. Soube-o como folha caída abraçada a outra folha caída da mesma árvore. Ali, ambos, sós em frente à árvore – é bom ter um irmão – ela ainda ali caída e para sempre arrancada pelas raízes. Dias depois os dias começaram a chover e foi terrível. Saber que lhe entregámos o corpo à terra como era seu destino. De árvore. Estávamos ali, dois troncos quebrados à beira da árvore mãe e por momentos entrelaçados num abraço raro e de silêncio, e, na despedida inclemente, a sós. É bom haver um outro ramo da mesma árvore -caída, já disse – e enlaçado no outro único ramo da mesma árvore caída. Ele respondeu-me estamos todos. Cada vez mais sós. Disse como um ramo da árvore ao outro ramo menor da mesma árvore. Foi a coisa mais existencial que lhe ouvi em muito tempo. Morri para dentro um bocadinho e por ele quando disse. Com ele. É bom ter um irmão. Também ali em frente à nossa árvore caída. Já entregue a outra dimensão da cósmica destinação se a há. Ou senão, de um outro sentido qualquer no não sentido de não se querer sentir. Ser capaz. De continuar. E há qualquer coisa especial no facto de termos caído da mesma árvore. Árvore – tronco e raízes fundas, disfarçadas nos objectos que deixou. Tantas coisas que só eu sei por detrás dos sorrisos fixos nas fotografias. Que só eu vou lembrar porque espiava os seus males. Mesmo sem os querer. Saber. Há momentos em que o meu luto é de guerra. O negro é o que se faz por dentro e que nem sempre transpira nas roupas. Mesmo no riso. Estávamos ali. Ramos caídos mas num destino possível. Ou eu e uma folha do tronco ao lado. Ou do mesmo tronco. Com a mesma árvore a quem chorar, com as mesmas raízes soltas da terra. Estávamos ali. Ramos caídos da árvore. Mas estávamos ali, subtilmente entrelaçados para o resto da vida. E há vida. Voltando aos amores-perfeitos. Amores-perfeitos adubados e frágeis mesmo assim. Lindos e frágeis. De aparência. Mas fortes e resistentes. Frágeis e resistentes, como ela. Ao frio. Ao calor. Coloridos e aveludados e manchados de escuro como asas de borboleta. Será talvez assim que as atraem. E às abelhas. Mas duram uma vida de flor. Falo tantas vezes em rosas. Sempre me lembro de as termos em casa, em vasos. Amores-perfeitos, nunca. No entanto, infinitos.