Meio da tarde, ponto nenhum

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]eio da tarde, ponto nenhum no mapa conhecido. Tempo indefinido e pessoa vaga. A luz em tudo. É o que é mais do que em outros dias. A luz por excesso como uma camada espessa de silêncio.

A querer escrever aqui, escrevendo, sem palavras. Hoje estou assim. Ou procurar as imagens possíveis em tonalidade musical, que se somem às palavras e ao silêncio das palavras como só aí é possível. Preferia ser compositora a usar estes utensílios letais. Hoje estou assim. É isso. Já tentei as cores mas nem sempre me acontecem. Cores limpas, transparentes e claras. Mas nada serve a esta luz crua e a este sentir leve. Denso. Tantas vezes. As cores nas palavras. Mas há sempre qualquer coisa fugidia. Qualquer coisa proibida que se escapa e ensaia na dança vertiginosas mentiras. Por querer ou sem ele. Como se fosse por amor ou sem ele. Como se fosse indiferente. Que loucas. Desvairadas, mesmo. Mas como dizer letal sem dizer veneno e armas…anjos carrancudos e infantis a mastigar pastilha elástica. Furiosamente e também eles fustigados no calor da tarde. Coisas cépticas.

Quando os dias me aparecem de repente como montanhas íngremes a escalar obrigatoriamente e me lembro daquela subida a pique às costas do besouro cor de pérola e com quatro olhos. E como me deixava apeada a meio, bem a meio da subida. E o monte da fortaleza ficava até novos desenvolvimentos de fortaleza inexpugnada. Pesavam-lhe o rabo, a carapaça e os costados curvos e calvos. Pesava-lhe o motor de vida atrás, que fazer? Senão deixá-lo agir no seu peso bruto a puxar para trás e curvar ligeiramente para que durma confortável na beira. Não há quem vença a inércia de um motor que se recusa se o caminho é a subir. Que mais valia termos subido separados e encontrado os dois lá em cima. Mas não, não se faz isso.

Mas hoje, ontem – bem, não interessa – procurar o bicho enorme no seu silêncio de cidade. E no meu e também ela um. Não há como contornar a dor senão neste desapego de sentidos. Como uma esquina indiferente. Numa visão microscópica do dia. E surpreendentemente passo por um enorme casarão que toca música. Sozinho na rua deserta. E era, afinal o conservatório de música. Como muito bem sabia num outro momento antes e depois daquele. Em que ali estava, casa grande e distraída de gente, e sem ninguém a dar corda à chave daquele relógio concebido para tocar horas num ritmo livre e lírico. Fantasio, que é bom.

Aquela subtil trepidação. Uma tremura tão quase invisível, mesclada do sorriso esfíngico por não se estar a lembrar um icebergue estético a atravessar tempos através dos tempos. E do silêncio aparente a um olhar desprevenido, faz-se um indistinto murmúrio que vem do mistério do tempo sem tempo de uma imagem. A imperfeição topológica da paisagem a lembrar-nos numa jangada batida de ondas, balançada. Não pelas do mar mas aquelas concêntricas e suavemente marulhantes em círculos perfeitos em torno do lugar líquido onde caiu uma pedra. O erro da linha do horizonte partida a lembrar como se é humano, precariamente humano e atingível. Como falhamos o momento do olhar e do outro olhar. Não sendo estáticos, nós e este. E tudo isso a lembrar do invisível. Do excesso dos sentidos. Da inconsolável exasperação dos dias ruidosos. Deste desejo imenso, intenso, de viajar, e de repente. E de repente, assim. Um simples recanto do mapa conhecido da cidade do costume, um simples abandono, à hora a que o encontro, como se estrangeiro no mapa e na topografia de tantos passos desfiados ali. Basta o silêncio mesmo num lugar desarranjado. Até a distracção desleixada e esquecida de uns papéis amarrotados no chão, como nós, às vezes. E o sol inclemente de quase verão. Este sol ensurdecedor a arrasar tudo o mais e a apagar como se de nódoas de tintas impertinentes, outros ruídos. Com esta possibilidade intrigante de tudo anular na crueza da temperatura. E o meio da tarde. E uma veia deste bicho-cidade, um pouco esquecida da circulação. E um banco. E um cigarro de tabaco demasiado seco como na praia. E o meu ser parado com tudo o resto a voltear suavemente embalado deste nada diferente. Bom. Três invisíveis centímetros – só três – de liberdade. Face voltada de través à gravidade da terra, à gravidade da vida feita e desfeita. Tudo fantasioso, a bem dizer. E por momentos a cidade é estrangeira em mim tanto como eu nela. E às vezes, simplesmente desenhos de fotografias de memórias de paisagens de viagens. Imaginárias. E chega. Desenhar com ou sem palavras para povoar o meu mundo de caminhos. De presenças e de ausências. E na tipografia desconhecida desta calçada, a estranheza de uma língua também desconhecida por momentos, a poupar sentidos, resumida a sons musicais. Quase. O desconhecido e o do silêncio necessário. A senti-lo chegar. Naquela reentrância abrupta de uma rua. Uma fonte parada do fluir do tempo nas águas que seriam circulares e assim, não. E um banco. De costas para tudo o resto. É assim que o tempo pára. Mas nunca retrocede.

Sim, aquela reverberação quase invisível que era preciso somar às palavras tão brutais tão cruas para atingirem os lugares certos e não ao lado, ao lado. Ficando na bruta insuficiência de dizer verdade. Incompleta incompreensível verdade mentirosa por pequena. As cores, as cores sem simbologia mas pura sensação. As suaves as embaladoras as subtis as que não doem no doer necessário mais do que isso. A cor de verdade. Ou talvez a voz. Ou melhor ainda a música. Que nunca fere nem engana. Diz sempre outra coisa. Do coração. Ouvir do coração.

O que procuro nestes dias de viagem senão o subtil que se derrama do óbvio, se retido todo o ruído lateral. O invisível, mesmo. Mesmo o invisível não visível mesmo. Mesmo o que não está. Às vezes sofro de excesso de sinais. O mundo a parecer falar por linhas tortas e travessas. Chega, o que é demais. Portanto, parto. Atravesso um quarteirão e com sorte o mundo. Conhecível. Como uma meditação zen, na azáfama desesperante das perplexidades e das perguntas infantis. Das certezas nos erros e nos erros das certezas. E intermutáveis incontáveis variantes. E querer somente um momento de hoje, aqui agora, e estou. Num recanto da cidade desconhecida. De sempre. A um quarteirão ou na pior das hipóteses, dois. Daqui. E é assim que no momento algo de impreciso, também trepida e tremeluz alguma coisa em mim e por dentro. Não, não o corpo mas uma memória impraticável e subliminar como metáfora. Talvez. Algo se conforta no silêncio desconhecido e ancorado no vazio de um qualquer fio cronológico. De um qualquer mapa de estradas interiores. De um qualquer GPS de pouca confiança.

E, como poisando a cabeça de lado ao rés da água, a contemplar os círculos calmos e sem reflexo humano mas tão somente o céu. Que está acima. Essas pequenas grandes coisas que trazem plenitude. É quando em mim o bicho enorme adormece. Ou não sei. Talvez por isso. Sentado ao lado, talvez um metro além. Descarnado do labirinto. Inundado daquela luz crua também ele, extenuado de trevas, é claro calmo e silencioso. Com os pequenos brilhos da cidade sobre o pêlo macio, suave e lustroso. E é quando o monstro sem dar por se ter aproximado, como por magia, poisou a cabeça e serenou. No colo. Com todo o peso diluído na respiração suave. Meio escondido na cegueira da luz. Pequenos rugidos de ferocidade latente mas em tonalidade onírica. Sem saber poiso a mão escondida, descansada e ávida nos intervalos. Daquela respiração ou talvez meus. Da alma em ligeiro e leve alvoroço. Talvez a bonança em mar alto. Mas não sei quando aconteceu. Se já se ainda ou se talvez não. Ou nem ainda nem já nem já não. Só uma espécie de verdade. Os tempos dão estranhas reviravoltas na crueza desta luz a cegar. De frente para trás. Ou de agora em diante. Sempre às voltas com os tempos de Borges. Difíceis de  distinguir nas cores do sonho.

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