Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasNem pena nem paixão Quando penso que há tanto lugar no mundo. Que ainda não se estragou tudo. Mas que estamos no bom caminho para isso, enrubescidos de vergonha mas irrascíveis de vontade e intensão egocêntrica. Apetece-me mais que muito mergulhar na micro planície calma de uma distância impossível de conseguir senão na consciência. Na alienação de todas as palavras de uma desconstrução que não tem nada de bem querer, de bem querer fazer. Bolas de bilhar sem olhar definido e permeáveis a um toque seco de uma intensão de jogo. Coloridas mas cegas em si. Reacções em cadeia. Empurrões de gotas do mesmo líquido na inquietação febril de impulsos físicos, na inércia da agitação da matéria de uma individualidade contranatura. De entidades que somos, parte de um todo indivisível. A tessitura da matéria atómica e social, a rede universal. O realismo global é a nova corrente. A nova prisão. Diálogo universal a fazer contas às estrelas. Gotas e partículas previdentes na expectativa de assistir a qual evapora, qual congela de um frio maior, qual salta por imperativos de dinâmica das mesmas e cai na margem do todo. Qual se infiltra na terra, vítima de um engano do estado do tempo e pelo mesmo erro alimenta uma partícula seca, engelhada e feia, que era afinal a invisível semente de algo. Aqueles dias, em que me apetece encolher os ombros, os joelhos, tricotar rapidamente um casulo de lã Mohair desde as pontas dos dedos dos pés pintados, até às pontas dos cabelos lineares e bidimensionais. Espalmar toda a subjetividade num pedaço pequeno papel e fechá-lo num livro bom. De palavras boas. Cantilenas de embalar e de encantar. Já agora, com umas pétalas de flores para não esquecer as sensações e ir cheirando um perfume bom. Ou driblar uma bola rapidamente e atirá-la a uma tabela mal desenhada, vezes sem conta, encestar ou não. Com aquele ruído específico, e aquele ruído e aquele ruído do impacto, e de novo, e repetir até à exaustão. E uns calções compridos e contornados a preto para pintar depois num dia mais contente. Ou atirar pedras ao rio e ouvir o ruído do baque na água. E de novo. E de novo. Ou sentar-me e abanar o tronco para a frente e para trás. E vontade de fugir. Para fora deste circuito viciado de violência a que já nem as palavras me fogem. Vontade de ouvir tudo coado pela imensidão da água sobre mim, à minha volta, à minha frente e atrás de mim. Por todos os lados. Em todos os lados e em todos os sentidos. Fechar qualquer coisa por momentos como um casaco pesado de inverno. E esses dias em que tudo me aparece da esquina mais negra da realidade, tão real e tão reais como os outros em que se alternam momentos de maior lirismo e apaziguamento, tão real este e tão nítidos esses, mas bem mais construtivos. Dos anjos só os mais negros e ausentes. Há uma arquitectura de destruição de que não gosto. As grandes cidades como os pequenos castelos de areia, de nuvens, ou de saber ir indo com os dias sem exigir nada de ninguém, merecem o mesmo respeito. As construções sociais e as empatias coerentes. As pequenas mortes como os grandes genocídios. Todos me fazem aversão. Os grandes princípios edificantes, os pequenos gestos demolidores. De tudo se fazem palavras e mortes. Que arremessadas ao vento ferem rostos de caminho, de passagem ou de indiferença. Na realidade exijo tão pouco dos outros que sempre sou colhida de surpresa. A raiva. O ódio a fermentar numa matéria estranha em rejeição. Mas a encontrar caminho nas palavras e na lógica dos critérios. Sentir palavras infelizes e forasteiras a invadir espaço que não lhes é destinado a desenvolver diálogos que me cansam e calam. A evocar palavrões de violência a desmedir e a libertar de caixas fechadas para o efeito. De guarda. De não querer. De ferir. De recusar. E da recusa sobra o abalo do abalroar sem ter querido. Tonalidades, texturas e cores de que não gosto, a invadir-me a forma das palavras. Timbres e cheiros a putrefacção e a biis. Perpectivas militares e explodidas, estratégias. Já bastam as guerras. Deformações como doenças dolorosas da pele, dos dias, a vista de cada janela a enrugar de irascibilidade. E nessas alturas todas as palavras amargas e corrosivas se juntam em meu socorro, ansiando por se escapar do lugar fechado onde vivem e fazem alarido incómodo. Mas não as quero para mim, como não as quero para ninguém. Só que me abandonem reabsorvidas numa matéria inócua qualquer. Há dias em que o meu mundo me aparece coberto de tons de negro, um vozerio desmesurado e agreste, repleto de palavras que não quero dizer. Uma fractura que não quero sentir, um sentido que não quero medir. Há um corpo. E o meu. Imune às palavras. Último reduto a ignorá-las. E apago a luz. A paisagem de que preciso. Para sentir de que cor ficam afinal todos os negros. De que espessura se faz afinal o silêncio relativo. De que formas se prende o tacto às coisas. De que temperatura se lembra o corpo nelas. De que memória se desprendem os objectos. Tudo novo em escuro e silêncio. Mesmo as vozes esparsas da rua, parecem ignorar melhor e mais. Mais exteriores. Assim. E há felizmente pequenas réstias de quase não-luz, a entrar pelas frinchas das portadas, tábuas compridas e gonzos empenados dos anos. Pela janela das traseiras sempre aberta para o lado do avesso das coisas da casa e da rua, por debaixo da porta e por trás da qual se desce e sobe em outras vidas que não tenho que saber e não me falam. E aí ando um pouco pelas cadeiras e cadeirões das divisões imprecisas. Nocturnas de vez, mas silenciosas nunca. Sinto a frescura de paredes e o gelo da pedra e de um copo esquecido talvez no tampo de uma mesa. Bebo um resto de um vinho escuro e apalpo as roupas que não lembro de ter despido espalhadas por ali. Algo de formas invisíveis se me enrodilha nos pés -o gato ou a roupa – que devem ser meus sem os ver e o soalho é macio e não demasiado fresco. Devem estar descalços. Todos. Mesmo a roupa indistinta. Ele é silencioso. Roupas misturadas, minhas, da véspera, de há três dias, dele. Estendo-me na cama feita já noite. Nunca me deito sem a fazer. E há um corpo morno e adormecido. Minto. As costas frescas. Senti ao de leve com a mão. As omoplatas assimétricas da posição. Toco de novo. Não, não cresceram asas. O corpo dorme. Não é meu. O meu não dorme. Vigiante. Cansado. Inquieto. O outro volta-se no seu silêncio completo e a temperatura atinge-me como uma carícia. Boa. O hálito sereno e lento. Não lembro nomes nem factos ali no alo daquela proximidade viva e adormecida sem ausência. Assim. Só a enorme objectividade mesurável em graus centígrados e confortavelmente destituída de sentido. Um sono imperturbável e não perturbador. Não gosto de o acordar. Nem ninguém. Mas também porque me apetece andar por ali e pela casa solitária assim no escuro. Ele, ali. Noutros dias, não. As luzes acesas contra o desconhecido monstro da casa. Apagam-se para tudo dormir. Está quente. São dois calores, agora. Três. Se contar com o da porta fechada da noite. Viro a almofado do outro lado. O que está sempre fresco por um tempo. Não o toco. Não o quero acordar. Quero sentir toda a casa secreta e confortável. Tudo ao negro sem temor. Sem sombras. Sem relógio. E de repente, lembro-me, e avanço no outro corredor até ao fundo, com a mão na parede para não tropeçar e com uma alegria infantil dou um piparote no pêndulo do relógio do corredor, que acorda como se nada fosse. Como a iniciar o tempo do escuro. Sempre parado e preguiçoso, mas que deixo em paz para não acordar os vizinhos. E o tempo retoma em cinza fechado, fino e muito, muito escuro. E todos os sons ficam abafados lá muito atrás de qualquer realidade, por esse som ritmado que preenche a casa de uma ponta à outra. Como se fosse ela própria o interior dele. Do relógio. Dele, há um coração a reger serenamente um corpo em descanso. E em mim há algo indefinido a instalar-se sem pressa e sem palavras. Abro um livro sem nome e leio com os dedos as páginas lisas. Palavras baralhadas de vez. Tenho uma suave vontade de rir sem ter bem razão para tal. Porque tropecei, talvez no pé de um banco. Talvez o outro lado, o do ridículo daquilo tudo ao negro e assim. Lembro-me do perfume que não tenho usado e vou senti-lo. Sabe bem, também. Assim na frescura da memória meio esquecida. Como acontece com luz acesa. Tudo igual mas mais suave e mais escuro. Na verdade, tudo finalmente invisível mas palpável. Com uma densidade nova. Como uma cegueira. Uma frescura e uma novidade. E toda a subjectividade da não significação de tudo. Ali, aqui, ao negro de todas as cores. Esquecidas por detrás da luz ausente. Da pele glabra camuflada de noite mais escura, tornada escura e secreta mais do que é sentido normal. Existência discretamente apagada das cores. Apagada das horas, apagada do olhar. 36 graus acima do nada Ou além da solidão. Ou aquém dela. Ai sentada à beira e prestes a cair no sono, também. Sem olhos, sem respiração, sem ruído, sem nada. Acordo sobressaltada pelas badaladas imprevistas e histéricas de alegria, do relógio do corredor, a que nunca me lembro de dar corda. E que mesmo com corda, muitas vezes adormece esquecido de si. Também. E dou mais uma volta hesitante pela casa, a estender a perfeição do momento nocturno embalado pelas badaladas raras e pelo tique taque do relógio, a que nunca me lembro de dar corda e cujas badaladas não quero que acordem os vizinhos e que por isso deve estar quase a parar de novo. E depois a noite esgota-se e tudo volta a sofrer da luz. Ela dizia daquelas crianças sossegadas, que brincam sozinhas, que não inspiram cuidado nem preocupação: “não dá pena nem paixão”. Não era uma coisa má na voz dela. Mas há uma literalidade estranha e indivisível aí. E ele tem esse sono sossegado, ali.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasVariável dominante O que se é e não o que se faz, se diz. Essa realidade equívoca. Da obra e da representação. De si. Da imitação, de uma camada de sentido, sentida, eventualmente, mas uma segunda instância. De ser, parecer ser. Uma tangência pontual por definição geométrica. O que se é no que se faz, como um mal feito mesmo na perfeição alheia e distanciada do que é feito. Elaboração da mente mas a voar para longe. Do que é afinal anterior, subjacente, íntegro e absoluto. O que se é. Intangível nesse absoluto. Atingível por camadas. Fragmentos de se ser. O que está ao alcance do olhar. E nunca, quase nunca a totalidade no que nos deixamos fazer, ser visível. Revelados por partes. Como no papel da escrita. Branco, possível. A escurecer depois nuns pontos, pequenos nós, como grãos de terra, presos de letras avulsas de entre as infinitas possibilidades. Aquelas, por uma vez. Não outras. Todas as outras que não caem, presas numa outra página inalcançável. Como caminhos etéreos uns, visíveis outros, na disposição meticulosa das pedras e das ervas naturais. Das confinações físicas a fazer imperceptivelmente modular os passos até sem intensão, e a desembocar num sentido eventualmente imprevisto. Um caminho como texto escrito. Como este, menos óbvio do que se poderia querer ver. Mesmo depois. De onde se parte e onde se chega. Tudo variável. Como um caminho entre as árvores. Numa disposição indisciplinada de arbustos, ramos caóticos ou a viver a alturas imprevistas, a surgir de direcções que contrariam a ordem natural do crescer. Pequenos galhos e grandes braços caídos. Redes de folhagem que escondem depressões inesperadas do terreno, do lugar dos passos que afinal não são nunca a direito. O estalar das folhas secas, essa memória da infância a procurar distinguir ao olhar as que no chão produziam esse ruído, sabe-se lá porquê, apetecível. E aquelas que, menos secas, ou já húmidas frustravam esse ziguezaguear dos passos pela rua outonal, à procura de tão pequenino prazer. Como comer batatas fritas. Coisas talvez improdutivas do ser mas não do prazer. E um, como o outro, de tudo se faz. E no final a imagem. Uma de muitas. Uma pele de várias. E nela existimos? Na prova concreta do fazer, do caminhar, na forma passageira de tudo, o existir. Prévio mas já não palpável. Prova de ser ou de existir, não sei, de momento. Mas ser, é em geral uma existência impalpável embora inequívoca. Não sei onde. Mas ser encerrados nesse território irredutível de que só se manifesta um reflexo. O gesto temporal. Residual. Ser do corpo para dentro. Tem que chegar. Tudo me perturba às vezes. O olhar límpido e intencional, o olhar turvo e sem lugar. As pessoas que desviam o olhar. As que não ouvem. Os medos dos outros. As suas frágeis matérias desconhecidas e quebráveis. Não saber. Mais do que momentos. Pequenos, ínfimos mesmo, como rasgos de luz numa cortina-tempo. Por detrás da qual parece ser a realidade a ser. De passagem. Toldado momento-mundo. E passaram as palavras. E porque eram palavras-instante e não duraram, pensava-se que eram pouco verdadeiras mas é a alma que é plástica e o tempo que corre. E dos mesmos sentires se abeira de outros ângulos da mesma visão. Da mesma visão-palavra. De outro olhar-tempo. Prismático mas não oposto. Ou como organismo vivo, o olhar, as sensações, os sentimentos, agarrados a uma essência de núcleo escondido, mas em renovação epidérmica. Mesmo numa respiração descompassada, numa batida latejante nas têmporas a demonstrar que um órgão a ressentir-se, muito do metabolismo continua a sua rotina microscópica e arrumada. Gosto de arrumação. Gosto mesmo demais, de ordem e rigor. Objectos paralelos entre si. Linhas rectas de verticalidade e horizontalidade. Perturba-me a obliquidade da queda. Da composição. Tento adaptar-me à desarrumação do mundo, das ideias que não têm tempo para se organizar. De palavras e linhas demais para o tempo. Tento. E a tudo o que é maior e não tem arrumação possível. E às brumas que ocultam e desocultam. E a realidade como uma terra de montanha, na secura e humidade específicas. Ou em vasos, e os minerais a alimentar plantas, mesmo nesse pequeno mundo de brincar. Essa terra onde ponho as mãos em dias demasiado etéreos, a compor o que é possível. Percebo porque me dói. São os grãos mais ásperos. Torrões ressequidos. Q uando me viro para esse lado na cama. Dores finas. Dispersas. Ando a tomar palavras sem prescrição médica. É o que é. Algumas, amargas e amareladas, ou rosadas ou em branco, redondas ou alongadas. Algumas, a cair como pedras no estômago e que não há água que desfaça. Palavras e vitaminas, para fortalecer a insegurança. Mas tiram-me o sono. E associadas ao álcool, então, é melancolia a entornar o vazio instalado. Derramam-se-me na noite e acordam-me sem razão. Crescem, dão-me trabalho e tiram-me o sono preguiçoso. Fica ali a olhá-las exibindo-se nuas e perfeitas, em arabescos de coreografia invejável. Mas antes chamar-lhes pensamentos. Igualmente impróprios e intrometidos mas dentro do seu lugar como ocupantes de visita. Elas, mais convictas e arrogantes dançam exigentes e definitivas. Demais e a mais. Palavras-comprimido. Palavras que me colhem em jejum sem estômago para elas. Ando indisposta de palavras, pessoas e vidas. Ah…Às vezes eu penso mesmo que vamos todos enlouquecendo. Com aquela crueza com que viro os olhos sempre para tudo, mas para começar e acabar sempre e com a maior veemência para mim própria. Não me poupo e seguramente menos do que a qualquer outro – que não poupo, eu sei, dentro de mim, eu sei e não poupo – há um canal sempre desimpedido aí. Sempre limpo de máscaras e panos aquecidos. Um estreito que se atravessa a nado sem maior esforço do que o de uma respiração ofegante. E mesmo esta, sabe-se, pode advir de tantas emoções e tantas pequenas inseguranças, que não é de pregar susto de maior. Enlouquecendo de teatralidade, de experimentalismo sensitivo, de verdade no palco, de amoralidade. De imoralidade, de fantasia. De dispersão. De verdade. De cobardia. Enlouquecendo de coragem. De tudo. De desilusão e de ilusão feroz. De palavras demais e de palavras de menos. De não valer a pena. Nada. De tudo valer a pena, se a alma o suportar imaginar. De pensar os pensamentos e de pensar os sentimentos. Dos dilemas. Porque a certa altura tudo parece conduzir aí mesmo na mais escondida parte de cada um dos nossos olhares. Os antagonismos aparentes entre critérios e convicções, entre sintomas e verdadeiras causas profundas. E sempre um outro olhar a esculpir possibilidades de formas em nós. Penso. Penso mesmo. Mesmo naquela pontual euforia instalada no meio da maior perplexidade e impotência existencial. Coisa estranha. Em divergendo. Lírico, talvez. Descobridor. E um dia, abro a porta da rua, saio, e está ali o Batmobile. De certeza. E nos outros dias, alongo os passos para espaço mais amplo. Saio da minha rua–concha, da minha rua casulo e casa e da minha casa-pele, e caminho por lugares indistintamente só para depurar a respiração sem pensamentos de maior, naquela ocupação ligeira e ténue dos passos sobre passos que não dão muito espaço a espaços mentais. E caminho depressa, como sempre gostei de não caminhar devagar. Na rua. A lei das compensações. Deixar que o corpo adquira uma inércia firme e que seja o espaço a percorrer-me ligeiro como a vista numa janela de comboio. Em velocidade. A vertigem de caminhar em frente no tempo para não voltar atrás na memória. Por isso é vital a urgência do caminhar. Ou construir paisagens vazias. Caminhos de vazio. Daí a serem mortas, mortos, vai todo um apocalipse. Gosto dos vazios e da serenidade do que está vago. Vago para preencher pausadamente de todo o possível. De livros brancos e de páginas em branco. Como todas as horas vagas. Para caminhar.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasPiano forte. Piano piano Hoje é o ir pela escrita adentro, o único lugar. Como mergulhar lentamente, escolher a temperatura e sentir o rumorejar manso e eterno enquanto é. O imergir simplesmente sem violência num silêncio de sentidos múltiplos e distantes. O corpo. Somente o corpo. Palavras como águas sem mais. A única mão a estender para fora do regaço em que um par inerte e serenamente nunca só, pousa sem outra vida própria. Ir por dentro das palavras-pedras ao fundo, e ir por aí fora sobre as palavras-asas, e perder-me o possível nas palavras-gesto, nas palavras-beijo e nas palavras tacto. Varridas do chão de corredores sem fundo e de soalhos sem flor. E sem fim e sem dor. Ir. Ir para o dia que é o outro qualquer que não este que não me quer. Bem. Ir colhendo nas sílabas boas como numa seara de espigas e fenos e ir colhendo em molhos que não importa em que buquê se formam, mas formam. E formam quase a forma de um caminho que é sem fim e sem forma. E de resto mais nada que estas palavras a recobrir a calçada que nem sei se é e está. Como pétalas a disfarçar o que é terreno quando passa o andor. Sobram as ditas. Claro. A secar. A acastanhar. Nelas vou vogando. Nelas como nos dias. E o de hoje como todos na cor e na tonalidade própria, de luz-sombra. De cheio-vazio, de claro-escuro e de saturação pontual. Na indiferenciação da última sílaba da última palavra. E da pontuação. Onde acrescentar um ponto a uma vírgula e obter umas reticências. Onde apagar uma vírgula a um ponto, evidenciar um parágrafo, e observar o precipício abrupto à beira da palavra. A palavra tudo. Que está ali. E a palavra nada que se segue. Era uma história, possível. Mas eu gosto de vírgulas discretas e parágrafos sem exclamação. Escrevo a lápis mas nunca apago. Como um pássaro não seria pássaro se apagasse o vôo. E o lugar não pode deixar de o ser como se o não fosse. Ir pela escrita fora, sim, porque tenho que ir a algum lugar. Lugar marcado e encontro com o que é depois de agora. Sem outro transporte que não uma ânsia que não cessa. Não gosto do fim porque se vai finalizando. O fim que o é tem a hora marcada, registada e sublinhada a nítido fervor. Logo à noite, ver as estrelas. Os meus fins são assim de abrupta definição. Quanto muito esqueço. Quanto muito estrago. Quanto muito reciclo e refaço noutra matéria forma. Mas gosto mais de esquecer. Parar de ouvir vozes de outrora e de agora. Demasiadas vozes. Fazer a apócope de sons como do piano forte. A sobrar o piano, piano. Sem mais perturbação. Esperar a noite. Desligar o telefone dos dias. Percorro descalça o labirinto dos corredores. Disfórica e cuidadosa comigo que tenho. O que a vida traz e ninguém mandou. Tiro os sapatos e entro na casa. Que mesmo os saltos podem magoar. Ferir de pequenos pontos irrevogáveis a madeira sensível. E que ficam para sempre. A casa é forte. Quanto mais forte, mais frágil. Mas eu tiro. Penso que posso fazê-lo sem querer. Sem saber porquê. Tiro os sapatos para sentir-lhe a realidade. A chuva gelou-me a nuca e não houve carícia posterior. Talvez o sol no outro dia. E dizer bons dias a pessoas para quê…o tempo moído de esperas e desesperos, para quê…e depois aquela euforia avulsa. Um piano forte, de facto vindo dos confins dos séculos e reencontrado em ecos e vozes de natureza digital. Como dedos. A digitar recônditos recantos e bem. A fazer bem. Essa química pura e sem máscara. A música. Contornar pensamentos tóxicos e os não ditos. Adivinhados no cadinho das possibilidades em menú exponencial. Corrosivos e pela calada do desperdício. Fuga ao circunstancial. Pela escrita adentro como pela noite de todas as noites. A intemporal de sempre e de nunca. De que não sobra nos dias a liberdade. Mas que sempre vem e vai às vezes de exaustão. A noite de já não ser nada do esperado, desesperado ou ressentido. A ponte entre tudo e coisa nenhuma ou talvez. Pela escrita sentidamente e pela frágil e dissonante palavra que é tudo o que tenho. E da máscara digo nada porque é. Digo, só menos a que não quero e ganha vida para além dos fios e da teia que não quero tecer. Histeria metabólica em que oscila o amor e o desamor, a vida e a morte em trinta segundos e a rodar sempre a rodar o carrocel à música do tilintar de uma moeda. Ninguém pode invejar sentidos e sentimentos, aparentemente cada um gosta daqueles de que é capaz, vítima, ou roda de moinho. Como os de D. Quixote. Que só ele podia ver, como gigantes. Para quê alucinar as alucinações alheias. Há cogumelos mágicos de sobra para todos. E o mar chão de praias para abrir os braços e maravilhamento de costas ao poente. O lado contrário do mergulho. O amor é um bicho mamífero. Come mais ou menos de acordo com a indisposição. Entristece e adormece nas noites mais frias. Vigia o dono, espera. Desespera e dorme triste, acorda e dá saltos para desentorpecer as patas dormentes de tanto esperar. Passeia a farejar a vida. Mas não morre e renasce em cada sono. Está por ali nas arritmias e solavancos da vida. Até chegar a sua hora. Não é de modas sentimentais. De teorias estéticas. De uns dias se ser céptico de amor, e dos outros, vítima de fúria e de ardor. Os dias do nunca e nunca mais e os outros do para sempre e demais. Como se é fútil se as coisas não são construção sólida nos alicerces das veias. Sem circunstâncias. As pessoas fazem-se e desfazem-se nas palavras ditas. Nas outras, não se sabe. Sim, talvez mais como o sangue, a circular sem parança, a oxigenar-se quanto pode, sem parar. No seu sistema de vasos e ramificações por todos sem se enganar ou voltar para trás. Mas sempre nesse circuito fechado. De um nome. Um rosto, um corpo. Inconfundível. Esse. Que se vê no escuro. Porque é aí que vive escondido. De modas. Fruto da desnecessidade e mais ainda, sobretudo, infraestruturado na desmesura…e no espanto, de fora, a ver o carrocel com olhos de criança, no susto do ruído atroador. Da velocidade. Da voz que diz vai rodar. Fazem-se e desfazem-se, mas sobram. Umas e outras sem relação nenhuma. Como os dias. Novos ou reaquecidos da véspera. As mãos são a metáfora impossível sem o tacto. Impossível mas não improvável. Talvez pudesse dizer o contrário dependendo dos dias. Mas sobretudo o ar. Ser livre. Ter um espaço amplo. Nada ouvir e nada olhar. Um dia sem circunstâncias sem vozes e sem nada. Para escrever. E escrever ou não. Pela cor. Abstractas e macias como piano piano. E à noite ali na mesa da cozinha entre sombras, atentas amigas, a mão a um palmo. O olhar desarrumado e sem lugar, e pode ser uma companhia limite. Um ou dois copos. Tanto faz. Encosto a cabeça ao braço porque estou cansada e digo lê. Como quem diz, toca…a luz, baixa. O pano cai. E faz-se silêncio por fim. O de repente, o de sempre e o de nunca. Uma coisa de suave esquecimento. Vem daí.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasPequeno mundo Dos bons e dos maus. Passe o maniqueísmo. E os maus somos nós, mas podiam ser as libelinhas. Lindas, pequeninas e esvoaçantes. As abelhinhas, nunca. Pequeninas peludas e a desferir ferroadas defensivas. Obcecados pela expressão. Obcecados pelo amor. Mesmo na ausência deste. Ou na ausência só. Uma coisa que está sempre e a outra por isso mesmo. E também. Sim tudo isso e o erro. Ando tão preocupada lá atrás nos corredores onde circulo, com as abelhas. Ando. Depois de toda a ironia assentar. E que não era mas podia até vestir uma roupa equívoca como muitas máscaras. Mas é a verdade. Aquelas ínfimas e pensadas talvez insignificantes peças da mecânica universal de dependências mútuas. De ajuste e afinação delicada. De cor peluda e listras como nos desenhos animados. Quase só o que se conhece delas e o mel. E a agressão. Mesmo na natureza, auto defensiva há erro. De previsão. Precipitação inesperada por antecipação do que não era para ser por vezes. Escreveu abelhinhas, Rosalva? Rosalina…diz. Os olhos turvos de incompreensão porque estou a pensar noutra coisa. Sempre a pensar numa outra coisa. Desculpe, estava a pensar na alvorada de sempre. Uma coisa certa. Escreveu…Mas porquê inhas…Não se preocupe com o kitsch. É ternura mesmo. Mas elas não sabem e ferram uma dor violenta. E morrem dela. Curiosamente. A natureza munindo de uma arma a ser usada uma única vez. E nós. Obcecados pela expressão e em silêncio, obcecados pelo amor e sós. Cobertos de camadas e poalha de cadeias sem devir. E a percorrer os minutos como se a desviar confusamente teias e névoas e tules de cortinados e reposteiros uns sobre os outros, a proteger uma entrada que em si se sabe camuflada, mesmo depois de tudo desviado do olhar. Uma entrada, às vezes e de outras a vida em corredores laterais, coxias sem lugar sentado e acocorados na escuridão a ver mesmo assim. A vida. O espectáculo da vida. Que espectáculo. Pode até chegar a ser maravilhoso. Há que desnudá-la como se submersa em véus. Em camadas sempre. Desvendá-la como a uma amante secreta que se esquiva. E esquiva sempre. Ou amá-la por detrás e para além dos véus para não lhe ofender o pudor. Sei lá eu. E nem sei se mesmo a vida se sabe. Eivada de incompreensão e temerosa de golpes de uma sorte esquiva ela também. Escreveu camadas, Rosângela? Dou-me de imediato conta do olhar confuso e ligeiramente irritado da criatura. Ros…, qualquer coisa, digo. (Vide texto de 12 de Outubro deste jornal, em que Rosalina se viu Francelina com desprimor para a segunda, embora a ofensa magoada fosse da primeira.). Que importa?..Se as camadas são em parte também das asas dos anjos. Vôo por aí. Não leve a mal. Não é que eu seja difícil com os nomes. Ou com os rostos. Há pessoas assim. É só que as palavras se prendem umas nas outras e as sílabas trocam de lugar como num jogo de cadeiras. Mas são sílabas boas. As que misturam os anjos com as rosas. Sei lá. Coisas do céu sem nuvens e coisas das nuvens leves com camadas sobrepostas de branco a dar para o cinza e a chegar ao chumbo, às vezes, mesmo. E cai depois o que sobra da água condensada como caem lágrimas mas aí do céu. Outros dias limpo como os olhos secos e é tudo natural. Como derramar o que sobra. E desfazer nós. Trovejar. Há um desenho que sempre pergunto quantas camadas de sentido. Tem. Um livro de página amarelada pelo tempo. Uma. Uma folha colada aí. Duas. Folha pautada de linhas azuis. Impressas para a escrita se equilibrar. E nelas, três. Uma colagem, uma linha a negro a contorná-la, pelo lado de dentro como uma protecção íntima. Dentro de fronteiras. Como convém a ser discreta. A folha destacada de outra realidade física. Quatro. Um desenho a tinta negra da china, figura e fundo. Cinco e seis. Uma página de uns minutos de uma vida. A vida assim. Em camadas. Mas e as abelhinhas, que têm a ver como todas estas camadas. Aqui, sobre a mesa e indefesas. Que mal fazem ao longo do mundo e da eternidade. Nada. Nenhum. Que camada senão as de interesses privados, megalomanias empresariais, desconhecimentos e indiferenças governamentais. Políticas. Falta de visão global. Falta de sentido de eternidade para o humano, o universal. Por enquanto. De um olhar sobre a pequenina coisa em si e o efeito de libelinha – borboleta, digo – transversal ao tempo que vem. Pequeninas abelhinhas na engrenagem de um tudo a desmoronar em eventualidade. Em extinção visível. E nós, ainda com um frasco de mel na mesa do pequeno almoço. De rosmaninho perfumado e secreto labor imperceptível na viscosa matéria da doçura. Vindo de uma feira, sem assinatura das pequenas, minúsculas criaturas. As que morrem progressivamente mais e em quantida monstruosa, sem darmos por elas nem lhes fazer o luto. Nem sentir a falta nem entender que não há mais um mundo sem elas ali. Pergunto que fazer e não sei. Ou as libélulas, lindas e pequeninas que já tiveram um metro no passado pré-histórico e que calculam coisas estranhíssimas como o lugar onde a presa vai estar no futuro para com ela cruzarem o seu destino predador. Suspiro de alívio ao imaginá-las afinal desviadas de um futuro que nos excluiria talvez. Elas e os seus olhos multifacetados capazes de produzir trinta mil imagens, e os seus cérebros pequeninos mas com neurónios capazes de compilar tudo isso numa figura e mais proteínas capazes de sentir a luz. As facetas da luz. E A menina Rosalina suspira comigo mas por razões diferentes e não vê onde quero chegar nas palavras. Escreva neurotoxinas e outros venenos, Rosário Rosarium. E ecossistema e extinção em massa. Não seria a primeira vez no mundo, seria talvez a última para a humanidade. Já Einstein dizia mas não parece ser aproveitável. Rosário…suspira revirando os olhos. Significa “coroa de rosas”, não se melindre. Quer dizer que cada vez que alguém reza de modo conveniente o seu rosário, deposita na cabeça de Jesus e de Maria uma coroa formada por 153 rosas brancas e 16 vermelhas do Paraíso, as quais nunca perdem a sua beleza e o seu brilho. O Rosário é o primeiro dos actos de piedade. Ela olha estarrecida e eu sorrio para dentro na dúvida da extensão da ironia. Se era…porque há que rezar de um modo qualquer. E daí a minha alma divaga para o efeito borboleta, aquela expressão um pouco lírica que expressa os efeitos gigantescos, provocados pelo ínfimo adejar das pequenas asas coloridas e inconsequentes, no seu movimento mecânico em torno das suas pequenas intencionalidades de vida e sobrevivência. E daí para os sistemas abertos, na ciência, dinâmicos, adaptativos a todas as variáveis, em que cada pequena causa, pode despoletar uma granada de explosões imprevistas e consequências imensas. E o mundo fica assustador nesse olhar possível. Estaco paralisada na impressão de que um tão pouco tudo faz depender tanto outro nada qualquer. E apanho o resto do cigarro que por preguiça deixei desleixadamente cair no chão. E de caminho reconduzo a menina Rosalina à máquina de escrever de cor amarela muito pálida. Despende-se mais energia nas teclas duras, mas poupa-se energia eléctrica. E se parto as unhas. Diz com aquele arzinho de catástrofe. Crescem de novo. Mas não pintadas. E reciclo tudo, separo os pequenos e grandes lixos que nem sei como, tanto produzo. E reutilizo o possível. Já não posso deixar de o fazer. Tudo. Pequenas palavras, sentimentos e esboços de ideias para qualquer coisa, que não chega a ser mas está ali. Papéis e mais papéis que iriam para o contentor próprio naquela angústia de fazer perdidas pequenas coisas válidas. Matérias e ideias. Registos da vida pontual. Numa linearidade difícil. Mas reutilizar. Renovar. Volto a pensar nas abelhas. Que picam para se proteger e mais ainda proteger o seu pequeno mundo e, algumas espécies morrem ao perder o ferrão, libertando feromonas de alerta para as companheiras de colónia. Morrem por uma causa importante. Mas por vezes erram o juízo sobre a eminência do perigo e morrem mesmo assim. E nós, esperamos delas a agressão e antecipamo-nos esmagando o pequeno ser antes que desfira o golpe que não sabemos. Para proteger o seu pequeno mundo. De dependências mútuas. O nosso.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasEm lugar de ser Parecer. Não. Nunca, em lugar de ser, parecer. Dizia , lugar. Em lugar de ser, lugar. Em lugar de ser lugar. Passe a repetição e a exaustão. Portanto, lugar. E ser lugar como privilégio de ser e porvir. Equação. Dilema ou possibilidade. Ou simplesmente o vago lugar, confortável, a visitar, a alugar, a habitar. A querer. Sei lá. Paradigma. Casa. Corpo. Pele ou pêlo a cobrir. Casa ou espelho. De envolver ou ver na passagem. Esta é a diferença. O pé que se tem nas coisas. Mesmo sólidas de estado. Só depois as metáforas. A deriva gasosa e impermanente da Psique. A fuga, as metástases da matemática e dos conceitos a formatar discos e a desfazer e refazer sinapses. O que está escrito nas estrelas, como destino inalterável, e com uma vaga impressão de transcendência. Um apelo da fé nas coisas ocultas, talvez como consolo para a eterna questão insatisfeita. O que fazemos aqui, de onde viemos e para que desconhecido nos movemos. Ou, pelo contrário, aquele que é o lugar da ciência. O rigor firme que afinal, em cada momento vem a verificar em si próprio a falibilidade e a repôr novas ordens para a concepção do mundo. Estranha deriva no lugar em que menos se poderia esperar encontrá-la. No fundo queremos sempre saber o futuro. Oscilamos entre o temor e a tentação. Pensando em alguns edifícios conceptuais quase inalcançáveis, ao ponto de se situarem num universo ficcional, intelectual e estranho, em que, para realidades complexas se criam instrumentos intelectuais específicos, instrumentos de medida e localização de ordem tão abstrata para os sentidos, quase sinto a tentação de acreditar no divino. De tão inimaginável, a crença, a fé, quase me parece mais fácil do que abarcar toda a complexidade em que nos perdemos face a uma dimensão física do mundo. A Cosmologia em mutação ao longo da História do humano. A mente a divergir e a complexificar mecanismos de entendimento de si própria. A tentar explicar por palavras e fórmulas dessa imensa construção que é o universo matemático, aquilo que a mente não consegue visualizar ou imaginar facilmente. O antes. O depois. Do nada. E no meio, um universo a expandir-se afinal aceleradamente. Uma certeza científica com cinco anos. Nada, na ordem de grandeza do espaço-tempo do universo. E até ver. Ao contrário de uma certa esperança científica ou meramente existencial, de que este abrandasse. Sossegasse o futuro incerto numa certa forma de estabilidade. Seria o eterno presente do universo. Talvez. Na realidade não sei de todo de que estou a falar. Talvez da deriva cósmica, a tentar encontrar uma equivalência à deriva existencial em que explodimos do nada para uma infância de também eterno presente, por uns tempos, e daí para um futuro em que a idade e a percepção do tempo, parecem ir-se definindo e sentindo em aceleração constante. O humano em deriva constante, é o que sinto. Uma procura imparável de localização numa métrica de coordenadas ao alcance do próprio humano. Na sua dimensão mista. Pequena, ao alcance da medida dos objectos, ou enorme, vaga e não mensurável, em procura pelo vazio dos espaços cósmico da alma, do espírito ou do intelecto. Sim, às vezes não sei bem de que estou a falar senão de uma sensação enorme de desconforto que me ultrapassa. Ou desta ideia de que um dia destes, começo a acreditar numa origem divina para explicar o universo e tudo nele. Porque é mais fácil. E uma ideia plena de esperança. Sem problemas de tempo ou espaço. Isto, digo eu por preguiça. De continuar a tentar uma ideia confortável para os dias. A sucessão dos dias. Comecei a dizer. E depois, nada. E nada. E bem lá no fundo, onde tudo está sepultado – depositado, digo – digo. É ali e dali que tudo vem e vai como refluxo. Mas volta. Vira-se, adormece. Ao de cima, por vezes. Porque lá no fundo, tudo acordado na espertina eterna. Um dia, hei-de ir de mim para fora por exaustão. Um dia qualquer. Esperando encontrar outro em que viver em paz. Não em mim. Isto digo eu. Confinada a mim. E só por dizer. Diz a ciência, então, que a expansão crescente do universo continua a agigantar o que já era imenso. Que uma força desconhecida e imensa o estica imparável e continuará a esticar até ao fim. Embutida no tecido do espaço, energia escura, afinal predominante. Imensa de tamanho e poder. O maior dos enigmas. Quase uma expressão poética e assustadora no que afinal é só uma descrição de ordem física. A cor do medo. E pensar que parti do erro de paralaxe. Movemo-nos e pensamos que é o universo que se move independente de nós. Porque parece. Porque é a ilusão do olhar. Ou a paralaxe cognitiva, o eixo da construção teórica a deslocar-se do eixo de experiencia humana real. Como em Kant, a incognoscibilidade da “coisa em si”, do ponto de vista material, e a sua pura existência como fenómeno. Como aparência. Ou que nunca estamos no mesmo lugar, nesta deriva consonante com o universo. E com os sentidos. Em que o que se move, é numa realidade qualquer fervilhante de organismo monstruoso. Podemos não estar de facto nunca no mesmo lugar. Mas há pontes constantes entre tudo e tudo. Rígidas ou flexíveis e ajustáveis. Rupturas, também. Estrelas cadentes como se o fossem, quando, afina, ínfimas poeiras. Movemo-nos. Olhamos o mundo. Parece que se moveu. Uma megalomania planetária de que tudo o mais fossem satélites. Movemo-nos e reclamamos do mundo. Ou sonho de árvore. Que para cair, precisa de uma doença grave que lhe corroa as raízes entranhadas no lugar, ou dentes afiados do homem, por detrás dos braços, por detrás de uma serra. Ou que a terra se revolva em convulsão de reajuste. Interino. Ou na fúria cega dos elementos sazonais. De resto, fica. Sossegada e acolhedora na sua sombra. Precisar de um lugar. Por isso a casa. Pele da pele. E precisar de me sentar a uma mesa de madeira sólida, pousar as mãos na memória refeita de uma árvore desconhecida, estender uma toalha branca escrita a bordados suaves por outras mãos, e beber uma chávena de chá. Quente. A pensar no futuro de gelo que a ciência adivinha para o universo. Um depois impreciso mas certo. Mas não agora.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasUma demão de rosa, um toque de perfume Hoje choveu, finalmente. Seria chuva ácida? Como ácidos pensamentos que nos assaltam por vezes, mesmo ante as coisas belas. Ponha rosas, e ponha flores. Mas não é a mesma coisa? Os olhos em alvo, as unhas em riste. As mãos simétricas suspensas sobre a máquina de escrever pintada de amarelo muito pálido. Não é relevante, penso, digo. Depois eu escrevo outra coisa qualquer. Das rosas. Da rosa de Hiroxima. O mesmo desabrochar irreprimível e inconsciente. A mesma beleza insuportável. O mesmo perfume entranhado para sempre na pele dos sentidos. Na pele de diferentes sentidos, claro. Os sentidos em leque a partir de qualquer botão. Premido quase sem pensar, acredito. Pela ordem das coisas da natureza, intocado. Ou pela ordem fria e cega. Cegamente seguida. E o momento depois. Alguém por detrás do botão sentiu talvez nada. Ainda com o indicador no ar. E a rosa já no ar em crescendo. A desabrochar. E depois, pelos anos fora em erupções cutâneas e sub-cutâneas. Rosas. Depois da rosa. Anti-rosa atómica. Como o disse Vinícios. Sem perfume, sem rosa, sem nada. A menina Rosalina. Das unhas pontiagudas e trabalhosas em riste. Reciclei-a de um centro de imagiologia onde transcrevia laboriosa e distraidamente relatórios gravados de exames. Em que escrevia indiscriminadamente Não existem sinais de malignidade, em massas opacas ao exame, ou Existem sinais de malignidade. Em massas. Opacas na imagem. Enfim. Mais não, menos não. Era o que pensava. Se pensasse. Pensei, convém-me. Afinal, de sentidos incontornavelmente divergentes já se faz a escrita por si só. Querendo ou não fazendo questão, mais ainda. Convém-me. E ali está. De unhas eventualmente naturais, compridas e pontiagudas em riste, a escrever com as quatro polpas dos dedos muito separados e a dar estalinhos nas teclas por engano do gesto. Ou da palavra esquecida, esse desprezável não, que me deixou durante muitos dias a fazer disposições mentais testamentárias para uma eventualidade. Depois não era nada a mais do que a palavra desprezada, e acrescentada depois ao relatório. O que estava dito e o que não estava escrito na ausência do não. Desculpas, e tal. Enfim. Escreveu rosas, Francelina? Rosalina. Diz de olhos em alvo. Mas não é a mesma coisa? Eu. Prefiro o meu nome. Ela. Ficava-me a ganhar pontos na memória das coisas boas com o outro. Penso, derivando para o prédio. A empregada de uma vida inteira do senhor e da senhora do lado, ambos do partido, três filhos. Um casal. Antes de se desfazer a coligação, muito cedo. E ficou para sempre o mesmo silêncio insólito, ou talvez por isso, numa casa de três crianças. A senhora a chegar sempre tarde do trabalho do partido. E aquele silêncio insólito. E a Francelina, nortenha de bigodinho leve, muito gordinha, de alcofa de legumes, a subir infalivelmente as escadas do terceiro andar, todas as manhãs, expelindo violentamente o ar, ruidosa e esforçada como uma máquina a vapor. Todos os dias. E aquela casa de três crianças silenciosas, que sempre permaneceu como prestes a habitar, meio vazia de tudo, como se tivessem acabado de se mudar de uma outra vida. Mas não. Ou como se houvesse algo indefinidamente adiado. Convidavam-me a andar de triciclo na casa vazia. E a cozinha, como a nossa, sempre invisível lá muito para o fundo do corredor, teria sempre um cheiro bom e quente de sopa acabada de fazer. E temperada com azeite ao arredar. Era o que me consolava de uma certa tristeza e silêncio que se destilava daqueles meninos. Que pessoas serão, hoje…Margarida, João, Madalena. Ainda me lembro. E a Francelina. Que, podia dizer-se, não desenvolvia muito, mas não falhava uma manhã às pequenas coisas, nem os ingredientes da sopa e era uma locomotiva naqueles dias. Deles. Está bem. Rosalina. Sempre escreveu rosas, ou onde ficámos? E ela, de olhos em alvo, sempre, olhe faz lembrar o meu nome. Tudo, penso, faz lembrar tudo. Ou tantas coisas. Rosas é sempre bonito, diz. Maravilhosas, penso, mas a tentação de lhe lembrar Hiroxima e Vinícios de Moraes. Mas ia provocar-lhe um brilho pluvioso no olhar inocente de tudo. Porque a canção é linda e fala de rosas em que ela não pensou. Como uma espécie de combate entre cicatrizes. A rosa simbólica de “O Principezinho”, inteligente, sedutora, alma, coração e vida, e a outra. Esqueço a menina Rosalina, que nunca soube como se chamava, e a máquina de escrever amarelo muito pálido que ficou lá atrás. E penso, como em tantos momentos me apeteceria andar de olhos fechados pela rua do meu dia, dos dias todos da minha rua de andar pelos dias. Para evitar o visível e mais, muito mais do que o invisível. E que quando entendi que não se pode ser feliz deixei de ser infeliz por isso e passei a somente ser infeliz pelas outras coisas. Sobretudo as pequenas coisas que são a célula de outras maiores, e que são teoricamente fáceis. Mais fáceis. De fazer. De não fazer. As que são domináveis, e que são construtivas. Pequenas como anti-corpos. No fundo, as pequenas coisas objectivas e definidas. Visíveis por detrás do invisível. O invisível manto de sentidos, de nuances de um real em mutação. Ou continuar a pensar que o fundamental é invisível aos olhos. O invisível. E de novo, pensar nesse precário equilíbrio sempre a reajustar-se a um novo centro de gravidade. Arredado em cada lufada de vento. Com Partículas. Microrganismos nefastos ou irrelevantes. Tudo o que traz de visível e invisível. E aí como em tudo sobra a certeza de que há que saber abstrair do invisível possível. Como da impermanência existencial. Como a da família, da amizade. Das estruturas sociais. Teorias em que nos afundamos a precisar de oxigénio contínuo. A finitude. Aquilo que não se vê em nós. Como se não existisse para que tudo o resto valha a pena. Estações a suceder-se para sempre. Por exemplo. Alternadas e sucessivas. Como o olhar. Sobre tudo. Excepto um prisma de cristal. Em que ângulo após ângulo, sempre se obtém o mesmo arco-íris. Porque é da natureza da luz, ser branca. E divisível na refracção, numa miríade de cores. Todas. Menos aquelas que estão lá, invisíveis aos olhos humanos. Mas estão lá. Afinal. Infra e ultra coloridas de invisibilidade. Úteis. E nesse olhar múltiplo que não se pode deixar de ter, apesar de tudo, por vezes dar uma demão de rosa e outra de perfume. Girar os olhos sem esquecer. Mas pensar também que, de vez em quando, sempre, algumas vezes mais do que outras, ou bem lá no fundo, afinal, “ l’important c’est la rose, c’est la rose, l’important”. E de repente sinto-me ridícula de tanto que isto soa hippie. Mas eu nasci nos anos deles. É natural. Era a contracultura necessária. E mesmo hoje e de uma forma ainda muito mais complexa. Ban the bomb. A adivinhar qual. E a caminhar de memória de música em música. Passando por Edith Piaf. E depois: “Uma rosa de vocabulário escolhido Rosa, onde o preto devia estar Uma rosa mais ou menos muda… …de plástico japonês De Noel, parece mas não é Denúncia e do medo de me amar Língua rosa em boca amarela Desbotada não…fere a vista” Ivan Lins em “Rose Music” no álbum “Beauty” de Sakamoto. Tantas rosas quantos olhares. Mesmo num dia de chuva como hoje. De outono instalado para ficar. Só até ao inverno.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasE porque os dias E porque uns dias, isto. E porque outros dias, aquilo. E de aquilo, na imprecisão rústica do que se traça como se fosse caminho a fazer. E porque das roupas sobra o desconhecimento provisório, como o de pessoas estranhas a querer envolver de adjectivos decorativos um corpo que não se fez daquilo. Que não se encontrou ali, e que não se veste de roupa estreia, larga, comprida e curta. Não se veste para a estação. Não se apeia num vestido justo. Não cai de um sapato raso. Não desmaquilha os olhos. Não espreita debaixo da cama. Não lava a loiça da semana. Nem caixas para meias, quanto mais. E molduras e conveniências. E rosas de plástico com vinhos caros à mistura. Há um recreio vago. Menos mal. E um carrocel, um jardim, um cabaret, uma passerelle, uma roda- viva. E a leveza insustentável e o peso imponderável. E tudo muito mexido, muito batido. Como claras. Em castelo. De nuvens, castelos de nuvens. Cúmulos. Ah, Iago. Porque as nuvens não têm vértices. Vértice é ponto agudo e pico. Não é ângulo nem aresta. Não há poética que valha a falha da geometria. Mesmo existencial. Quando querer fazer de um ponto uma linha, uma junta de planos fracturados é extrapolar. Elaborar é arquitectar. O vértice é o elemento centrado e precário. Acutilante e que fere. O não lugar da geometria. A parte ínfima e desprezável no encontro de planos. Superfícies. Há pessoas feitas de vértices. Os vértices dos dias. E há pessoas feitas de planos. Ou meras superfícies. E outras, feitas de outras coisas. Eu desço e desço nos dias – ou muitos deles – a hipotenusa. Esperando que o triângulo não esteja invertido para a queda não ser para dentro e para trás. E depois outras definições. E um dia destes, desprevenidas chegam as primeiras chuvas para ficar. Tem que ser. Mas esta luz já mais baixa, um pouco mais pálida, também é bela. E não há nada tão melódico como alguns daqueles momentos depois da chuva, no meio das árvores, em que indefinidamente se vai continuando a ouvir o gotejar imparável e incerto, Pequenos sons mais harmoniosos do que qualquer sinfonia. É o tempo a desfiar-se sem regra, sem ritmo e sem previsão. É o que fica a ecoar para além do desgoverno desolador do céu a abater-se sobre nós. A sinfonia das gotas que sobram nas fibras resistentes de cada tronco de cada árvore. Como o que sobra de um pensamento de amor. Em lágrimas de despedida ou de não ter sido. O que sobra e escorre para além de qualquer fórmula. Sem emoção. Como do discurso, como dos sentimentos como da vida vivida sem consistência. Uma realidade a ecoar como tempo e como deriva. E os regueiros formados na força da queda. E a melodiosa encaminhada de águas por caminhos recém-abertos. Moldados no acaso da terra, das fragilidades da física da terra. Da disputa de forças, entre o poder de escavar e o de resistir. O de gravar e o de consumir. E como num pensamento de amor, há o que cai, o que molha, o que agride, o que resiste e o que fica. O que fica. Dos sentimentos ficam os sentimentos na sua evolução própria. Aos discursos, reflecte-se-hes a deriva imponderável. Mas os sentimentos são elaborações para além do discurso. Aquém de tudo. Da vontade, da vaidade, da ética. Se falamos de amor, não falamos de gostar ou de critérios de gostar, ou para gostar. Não falamos de gostar, ou de construções, ou de relações. Não se passa entre pessoas. Passa-se em pessoas. Secreto e íntimo, contraditório, inconsequente e vasto como todas as planícies conceptuais deste planeta a expandir-se para dentro e para fora de si, cefaleias à parte, e dos outros. Também. Não há maneiras melhores ou piores de amar. Não há amores melhores. Só inevitabilidades. O que se ama define um critério para sempre. Específico em si. Único, sem paradigmas, sem necessidade, sem qualidades. Só a necessidade e o paradigma definido em si. E a partir daí as qualidades. Sem comparação a outro. Nem livro de instruções. E as de amar diferentes sempre das de estar com. As qualidades. As instruções. As medidas. As caixas e as arrumações. Há um amar em estado puro. Perfeito ou primordial. As relações do estar, essas imperfeitas. Que dizer do amar. Há um lado de querer bem que é como o reverso da dor. Uma espécie de lado cristão, do lado contrário ao da dor. Em que é quando nos sentimos mais miseráveis que reconhecemos ainda ali a possibilidade de querer bem. Ás vezes acontece assim. Outras vezes querer. Mal. Não saber querer. Não saber sem dor. E amar é uma catadupa de palavras inscritas no gesto. O gesto de amar que devia ser o único território. Acariciar com todas as palavras dentro. Ou para dentro, talvez. Fazer bem sem deixar rasto de cheiro como no território marcado dos animais. Um gesto de pluma. Ou um peso-pesado invisível. Um fazer bem no momento certo e sair de mansinho para não pesar. Mais do que o suficiente de saber uma vez. Eu não tenho regras. Tenho inevitabilidades. Não posso ter umas, e não posso deixar de ter as outras. Como ou não como e durmo ou não indiferentemente. Trabalho e cumpro porque faz parte de mim sobreviver. Um pouco cheia de poucas regras, para ser rigorosa. Cheia dos espaços vazios entre definições. E quando me sinto mais miserável em tudo sei que está ali a possibilidade de me apurar na carícia mais doce no desvelo de amar e derramar palavras e gestos de bem, se o meu bem- querer estiver ali. E só não o faço por que não está ali como se estivesse. E não há que invadir. Vou divagando. Ama-se na circunstância ou ama-se por que não pode deixar de ser. Encontros e desencontros. Então. Os dados são lançados pela ocasionalidade do acaso. O acaso a favor ou o acaso contra. Nada a fazer. Ama-se na facilidade ou então na miséria. É isso. A diferença está aí. Tirar medidas ou não. Uns dias e os outros Não há uns dias e os outros. Talvez dantes. Vestidos de um colorido nítido de cores puras ou cores difusas, ou, aquelas não-cores do espectro dos neutros mas de impressão decisiva, desalentadora. Uma intermitência conhecida e que oferecia a espectativa de mudança sempre que o abismo ameaçava ser de vez. Mas agora é tudo de uma imprecisão mais dialética, não ao longo dos dias mas de um dia só, no desconhecido dos outros. Instantes de paragem em qualquer das premissas. Clara enquanto lugar de um tempo. Dependente de pequenos farrapos da espuma das coisas. Decisivos. No preciso instante em que se instalam. Precários, contudo. Uma translacção imparável pelas faces das coisas e a permanente escuta às possibilidades do desequilíbrio do corpo. Uma dança, quase. Um solo nos limites das possibilidades de contrariar a gravidade, a apetência do cérebro pelo equilíbrio. Mas esvoaçar nos limites. Expandir os membros nesse limiar e compensar de imediato o centro de gravidade abalado. Um reajuste renovado em ciclos sem descanso. O que sinto. Por isso ter que parar, simbolicamente sentar-me. Reter esta entrada de sinais à porta. Por uma vez. As pessoas morrem e renascem. Partem para sempre e regressam do mesmo modo. Eu sou de uma enorme monotonia. Tenho uma órbita. As coisas é que giram nos seus eixos, apresentando as faces. Equidistante de mim e dos outros. E da qual caio, umas vezes para dentro e outras para fora. E depois volto. A um ponto qualquer que consiga tocar e me devolva à elipse confortável. Eu acho muitas vezes que temos a alma moldada para encontrar umas coisas e não outras. Não sei se é bom ou mau. Picasso dizia: eu não procuro, acho. Mas é redutor. Hoje fui ver o mar que vi tão pouco neste verão. O cair da noite no início do outono. The fall. Anyway. E aqueles vultos como fantasmas ali. A transmutar-se um em outro. Ela mais dramática. Ali está, a minha alma moldada para encontros entre mar e terra. Um no outro. Impressos na fronteira. Como pintura. Mas já feita. Só para encontrar. Ver, na matéria plástica e fluida da areia e na matéria mutante e líquida da água. Que ficaram lá. Sem ficar. Figuras. Eu vejo sempre figuras. Acompanham-me, talvez. E também ali, a harmonia e o segredo que equilibra, resume-se ao balanço certos entre brancos e negros. E as paletas de cinza, que encobrem discretamente as cores que lhe deram origem. De repente pergunto-me o que me deu para estar aqui a falar do amor. Do amar, na realidade. É talvez porque o verão se foi. Como se abruptamente no dia marcado mas só por acaso é assim. Na verdade flui para longe. Lentamente. Visivelmente. E é agora talvez, que chega o fim do verão. Ou ontem. Ou lá mais para o meio da tarde e da noite. No calendário já foi mas isso não importa. E, talvez porque, quando chega o fim do verão, é quando mais apetece falar do amor. O amor. Chegaria dizê-lo assim. Ou é talvez a vocação nostálgica entre tempos. Entrementes. Ou é talvez o amor que é da família fonética do calor. Ou. Acrescentar ardor e humor e odor. Feromonas distantes. Entre si. Amores efémeros de verão. Mas eu tenho aquela vocação para os amores mortais do acaso e do por engano. Ou mortíferos… Romeu e Julieta na era da tecnologia e de outros venenos, ter-se-iam encontrado e desencontrado de outras formas. Desencontrados no desespero do seu amor proscrito, distraídos por um post, uma mensagem curiosa, um “like” inesperado. Distraídos da vocação dramática do seu amor pelo qual valia a pena morrer, mas não era para ser. Foi simplesmente o erro. E dizer que valia a pena morrer, só depois e porque aconteceu. Hoje seria tudo mais divergente do momento. Do veneno. Do punhal. E teríamos ficado sem ele. Esse amor referencial. Tudo se arredonda no bom tempo. Do verão. Essa ausência que se avizinha que se adivinha sem se querer como a noite dos sentidos. Hibernação. A norte do imaginário. O polo magnético que aponta para o verão seguinte. Ou o outro. Ou o outro. E apetecer fecharmo-nos numa biblioteca aquecida de memórias e livros mortos. Dizia Borges que a haver paraíso, seria esse no lugar onírico de uma. A demonstrar a incapacidade de tudo ver e viver. O transcendente ramificado em estantes temáticas, geográficas, ou em autorias incontáveis e inapropriáveis. Como o mundo. E dentro do mundo. Ou como um cérebro. Com todas as alturas inacessíveis e todas as escadas a poder subir. Mas esses lugares, tantos feitos maravilhosos de conteúdo e potencialidade. Tantos formulados numa estética luxuosa de acordo com o valor e uma época. Palácios arrumados e herméticos vistos de fora. Dos vidros das estantes. O saber fechado ali. Tanto saber e tanto mistério. Tantas coisas e não coisas. Tantas e tão maravilhosas de maravilhosamente mortas. Caladas. Em bibliotecas. Ou então sussurrantes de apelos e tentações. Lembro aquela, banal, de “As asas do desejo”, de W. Wenders. Repleta de murmúrios e da respiração secreta dos anjos. Mas eu não gostaria de ascender ao paraíso de uma. Viver. Cada vez me rodeio de menos livros. Mortos. Vou-os deixando por aí, porque muitos se calaram. Muitos nunca disseram. Mas os livros são um amor específico com todos. Não se pode obrigar. Acontece porque tem que acontecer. No dia certo.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasE depois o céu abre-se e caem os anjos São fases. Como as da lua. Que fazer quando chega esta estação que nos deixa de algum modo indecisos entre o sentido de queda, decadência e melancolia e o de colheita, harvest, outro nome para o mesmo tempo, como uma síntese do labor subterrâneo à consciência atravessando meses suaves e deparando-se com o desafio. Como, como conseguir manter a esperança do tempo que há-de voltar com os primeiros ventos suaves, prenúncio de mudança. Como, como conseguir esquecer o frio que falta atravessar e corrói a temperatura ainda quente de hoje. O que sobra de Verão todos os anos. Como, mas como resistir ao nocturno a instalar-se como um sem-fim de tempo morto. E pensar que tudo volta e há-de voltar sempre enquanto se fôr possibilidade de gente. Não é mau ser-se lunar. Dou comigo a apreciar madrugadas novas. De novo, só o apreciar. E novas são sempre. Não consigo desfitar por momentos o mistério maravilhoso de subsistir estação após estação numa que é fuga para a frente sempre à espera das melhores. Revirar a sensação pesada de não querer e lembrar que sempre volta a acontecer conseguir. E que os ritmos, como na música, alternam cheios e vazios, cheias e secas, frio e calor na pele. E que é bom. Mas gostava de ser sempre tempo bom. Mesmo eu. É pena. Sempre tempo bom de levar. E chegam estes dias e a queda. Das penas, dos cabelos das árvores. Também. E sabe-se o que vem por aí mas é tempo de colheitas. Não há que ser menor que o natural. Como a síntese do tempo bom no seu labor subterrâneo. E da terra. Também. Talvez a trégua nos sentidos a preparar o desafio. E vem. E vai. E volta o tempo bom. E pelo meio flores de inverno e árvores de folhagem perene. Deve fazer sentido. Como os dias. A lembrar como comecei a gostar das madrugadas. Talvez amanhã. A limpa transparência de tudo, ainda como antes as noites alongadas, algo entre os dias. Sim, é isso o algo indizível entre dias, a suspender o tempo num remanso que se sabe finito mas é bom fingir não ser. Finito mas a parecer não. O ser. Limpo do sono bom ou mau. Atirado para o silêncio das cores ainda amodorradas em tons quase neutros. Tudo suave e antes de ser. Passada a impressão de já não ser. Nada sobra do dia que foi. Interrompido pelo esquecimento dos lençóis puxados com força sobre o rosto e o silêncio da noite, como o cair do pano. Sem palmas. Ruído já houve demais. A acelerar horas adentro. E numa pressa de acabar com o cansaço inadiável de um dia. Mesmo como os outros. Sinto-lhe o limite. Aprendi a dormir nele. E a levantar-me. Devagarinho. Para o dia em branco a alvorecer. Indefinido mas distinto de tudo antes, muito antes de tudo depois. Assim. Ainda. E é nesse ainda que me suspendo até um momento qualquer em que o dia se revelou, nítido como um animal a sair detrás de uma névoa. E não é possível ignorá-lo. Até à noite. Mas entretanto habita-se a forma da luz leve nas coisas como mais uma velatura sobre velatura sem massa e sem peso ainda. Sem urgência. Sem depois. Ainda. A cidade limpa, os olhos temporariamente tolhidos do sono, extraídos do esquecimento. Lentamente. Para um nada ainda possível. Antes que o verdadeiro colorido se instale numa paleta demasiado veemente. E dizer verdadeiro é como dizer aparente, irreprimível ou desnecessário. Seria bom um pouco mais mas resta o contraste a apaziguar. Com um silêncio entre notas musicais. Tão necessário como essas ao acontecer. Que é não sair do mesmo círculo, sítio, digo. E contudo não nos encontrarmos nunca no mesmo ponto do universo. Nada, nunca, igual. Outra ilusão como a de só o corpo envelhecer. Mas as ideias também. Algumas morrem até, afundadas na memória. Outras como botões de flor que caiem antes de chegar a abrir. E algumas, escassos instantes após uma passagem rápida pelo fundo dos olhos. E já não estão, como talvez nunca mais tenham estado. Resta por momentos uma perplexidade ante a memória de uma forma imprecisa que se teceu e desfez. Uma reverberação que o é em si e já sem forma. E adiante mesmo essa se distende suavemente noutras percepções. Outras, ideias, são árvores de crescimento lento e imperceptível, de folha persistente ou caduca, mas que acompanham com o fôlego intemporal de viajantes de longo curso. Tanto de subterrâneo como de aéreo a adejar a favor das intempéries. Há de tudo na variedade incontável da natureza. E na sua verdade. Na sua persistência cíclica. Não lhe quero querer ficar atrás. Se não tiver que ser. Mas entretanto o Outono. Esta realidade temporal de apagamento. Ou de colheita como síntese. Mas, the fall. Em inglês com um sentido ímpar. E o uso. Cair no amar, cair no sono. Cair imparável em espaços amplos e conceptuais. Sem coordenadas. A queda. E o sem fundo abaixo. E “fall down”. Para baixo. Afinal. De algures. Que não sendo tempo nem espaço foi ascensão possível. Ou como retorno de aventuras e dinâmicas psíquicas em que nos aventuramos por imperativos de transcendência. Cair na realidade, na terra a que se pertence. Também. O território do meio, onde pertencem as árvores. E a queda dos anjos. Silenciosos por aí, antes, mas a trovejar no inverno. Nos intervalos das nuvens. Caiem despedidos. A afastá-las do caminho, quase se lhes vê os fios. Ou serão cabos eléctricos. E depois as asas enlameadas. Ou o que resta. As omoplatas, nas costas lisas, para encostar o ouvido. Cair no tempo zangado e invernoso. Zangado com o corpo. Um tempo que reclama e o zurze violentamente, cortante, uivante, de uma fúria em crescendo de irracionalidade. Como alguém a deixar-se levar por emoções. A carpir, a ondular com veemência uma dor de elementos em desarrumação. Às vezes, temo que o inverno nunca pare de crescer em fúria. Auto alimentada de si, como se pudesse não terminar. Mas de súbito, também nos invernos, depois de uma chuvada violenta e ventosa a perder o norte, tudo pára. E rompe o sol. Assim. Também somos assim. Feitos de desassossegos e reacções físicas, descargas eléctricas que trovejam no silêncio da mente. Mas vertem. Por vezes. No descompasso da respiração das batidas cardíacas e do disparar da voz. Ondas. Elementos em fúria. Palavras. Mas ao contrário destes, que nunca se cansam e somente se reservam para outro crescendo e outra estação, em nós sobra, no esvair do desassossego, um outro. Um cansaço. Do difícil desalojar a alma das correntes do costume. A civilidade e a ética os sentimentos as contradições. Elementos em fúria, repito. Em choque. Mas há uma intensidade que nada deve ao silêncio do verão. O gotejar na folhagem quando serena a chuva. As cores reavivadas e como se a vencer a dificuldade da luz. A turbulência do mar e das marés. Os fios de água a abrir regos na terra, as nuvens bíblicas. Mesmo o assobiar do vento. Mesmo as chuvas a escorrer nos vidros. Aquelas que parecem tender a apagar a realidade da casa se persistirem. E tudo, de caminho. E o cinzento suave e suado de uma ténue tristeza de tudo, em que descansamos. Mas algo se preparou lentamente como as despensas dos pequenos bichos da terra. Para a travessia. Talvez para o contraste que impede a habituação. A indiferença. E tudo se renova numa generalidade sempre idêntica. Nunca igual. Excepto naquele momento de equilíbrio entre dias e noites que breve se desfaz. E sobrevém a face escura do ano. Na expectativa de uma outra estação que estará sempre num ponto qualquer do percurso dos anos. Como dos dias. E voltamos. Mais fortes ou mais frágeis. Muitas vezes renovados. Nunca mais jovens. Isso não. Mas há ainda o que nos distingue do natural. Poder acontecer tudo sem ordem nem ritmo regular. Fora de tempo e em qualquer momento. Ao contrário dos elementos. Uma chuva a cair para cima. Sem lógica nem predestinação. É bom, o humano. Não há nada de mal em ser lunar e entristecer ainda assim quando chega o Outono. Porque haveria…Como flores que fecham ao entardecer como podem. No seu sono de flores simples guiadas pela luz. Ser lunar na melancolia e solar à luz do dia. Por exemplo. Ou o contrário, porque de humanos, nos queixamos ser.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasGrande muralha, pequeno papel Nos confins do meio. Este meu costume de revirar as pequenas coisas que me ficaram impressas a bold na memória. Sempre à procura da razão de ser assim. Mas sei. Mesmo quando não o sei, que fazem sentido. E que ficam porque cimentam. E como as fibras da memória, umas revivem ciclicamente, umas crescem, outras secam, pulverizam-se ou voam inteiras. Ou sintetizam-se, resumem-se, decrescem em complexidade de detalhes, simplificam-se a um ponto de minimalismo em que ficam para sempre. Um dia vi-me em Pequim. Sozinha numa aventura como outras de desafio dos limites, como de outras vezes. Aos vinte e poucos. Cumpridora como era em muitas coisas, precisava de equilibrar com intervalos possíveis de liberdade. Sobretudo aquela que se vê de dentro. Quando pode ser a única possível e total. Viajar sempre me foi penoso se não imbuindo o ir, de contornos absolutamente vagos, indefinidos e fora de todos os planos, horários e mapas. Planear, decidir. Diariamente. A pressão de tornar uma viajem, um tempo de eficácia. A produtividade, a ocupação minuciosa do tempo delimitado e finito a absorver o máximo de uma terra estranha. O crime de não chegar a ver um ícone fundamental. De perder tempo com coisas pequenas. De não ter ido. De não ter estado. De não ter visto. O que queria de uma viajem era muito outra coisa que me fazia sentir culpada de tão pouco que era. Lembro-me bem. Ainda sou assim. A história fica para depois, em casa. Uma outra viagem. Ali, só quero ir. E estar. E ir indo. E percorrer espaços que às vezes nem identifico. Perder-me. Não saber necessariamente onde estive. Parar ou não ao sabor de impressões mais veementes. E que ficam. E que chegam. Flanar. E ir por ali sem medir tempo e obrigações. Muitas vezes sem um rumo preciso. Só o do olhar. Ver. Ser atraída pelo desconhecido do ver. Só isso me parece diferente, livremente diferente de tudo o resto. A que me obrigo. Todos os dias. Menos esses. Aquela minha eterna condição de não querer acordar, de falhar muitas vezes os horários de tudo, de um nascer do sol maravilhoso nas montanhas de Taiwan, a um encontro em Nova Iorque, uma reunião na escola ou um avião. Quando eu viajava. Perdi coisas por atraso, de tanto nervosismo na impaciência da espera. Ou recusa de acordar. Já não sou assim. O desinteresse em acordar parece ter enraizado mesmo dentro do próprio sono, fazendo indiferente a mudança de um estado a outro. Hoje é mais o frio. O do inverno, também. Que me faz encolher no conforto uterino da cama veementemente avessa a deixá-lo. Por isso, quando viajava só, tudo me era permitido sem remorso. Estar em Pequim, por poucos dias que fossem era em si a minha viagem. Estar, era o modelo perfeito. E percorrer a cidade naqueles autocarros a ranger de lataria, pejados de gente que parecia vinda de aldeias remotas ou das estepes frias e secas como a cidade, caras morenas e largas, de sorrisos imensos pejados de dentes metálicos a reluzir no colorido de tudo, e malares proeminentes, roupas de outros tempos e que pareciam de uma vida inteira, e eu ali com aqueles molhinhos de notas do mercado negro, pequeninas e muitas, adquiridas sei lá eu hoje como, que me diziam como usar a rir largamente do meu espanto, autocarros de que saía algures para ver uma coisa qualquer que no momento me prendia, sem saber muito bem onde estava, sem querer preocupar-me em saber. Um dia lá tentei madrugar. E mesmo assim a fazer-me atrasada numa manhã, sem querer, para vir dos confins do noroeste da cidade, para os confins do meio, a tempo de uma pequena viagem matinal à Grande Muralha. Isso desejava imenso. Atraso irremediável. Calcorreei a homérica avenida transversal à cidade. Uma parte, claro. Quarenta quilómetros de extensão, e muito espaço a distanciar cada hotel e as suas carrinhas de tour de cada outro hotel e as suas carrinhas de tour. E cada um a que chegava já dando por partida e perdida a carrinha. E isso, eu queria muito. Ir. Por fim Tiananmen, alguém explicou. Antes de Tiananmen. Meses. Quando para mim era ainda só a grande praça e não acontecimento. Por ali. É longe, pergunto e um encolher de ombros a pensar na escala da cidade acompanhou um hesitar nos talvez dez quilómetros. Não sei já se dez quilómetros à frente. Se não foram, pareceram. Quilómetros corridos a pé, e, no último minuto uma carrinha com meia dúzia, nem tanto, de turistas de outra China daquela imensa, e eu. Um par de rapazes de confins de outro interior daquela terra vasta, ou de uma outra China do norte e com a mesma curiosidade que eu. Um, calado e ausente. O outro, numa discreta e só depois entendida ânsia de comunicar. Espaçada, tanto, que só muito depois se constituiu em ritmo e padrão. Horas depois. A solidão espacial imensa das montanhas naquele ponto da grande muralha. Um frio negativo. Uma foto, a única, tirada pelo rapaz chinês alto. Eu ali. Nunca lá voltarei talvez, e a emoção sobra até hoje. Um posto qualquer de apoio a turistas, recordações poucas e de que não precisava, e aqueles chapéus de pele, aquele vocabulário das montanhas, das estepes e do frio. Pele de coelho, talvez, e o muito frio. Pus e voltei a pôr. Não sei a dúvida que foi. E abalámos. Um bilhetinho, laboriosamente escrito ao longo de longos momentos e quilómetros. “Do you whant to buy that hat?”. Assim. Já tentara falar com ele, prestável e atento. Curioso e sóbrio. Mas não falava. Percebi antes que sabia, mas só muito depois, que ele só sabia inglês escrito. Tudo levava horas e a entender também isso. Não sei o que lhe respondi. Aí, já por escrito. Talvez que não tinha dinheiro. Talvez que voltava para um lugar de menos frio. Talvez que não queria nunca viver num sítio de tanto frio. Ou que não era importante. Ou então: como… já que havíamos partido do lugar. Talvez quisesse dizer-lhe simplesmente e para simplificar: Não, obrigada. Ou, de tão grata e surpreendida pelo empenho alongado no tempo por tão pouca coisa, não, obrigada, mesmo. E deixar para sempre a clarificação naquele acrescento, de como me senti desvanecida e grata, pelo seu enorme esforço em mobilizar aquelas poucas palavras mágicas, sinónimo de vontade de ajudar, de vontade de comunicar, de vontade de fazer o seu melhor, mesmo tendo passado o momento. Até hoje. Tão forte como a emoção do lugar em que estive, este pequeno detalhe. Que me vem sempre à memória com aquela fotografia. E um dia escrevi, no espanto da pequenez disto. De voltar a casa com tão poucas memórias. Tão pequenas. Tão grandes. A cidade enorme. O lago gelado. As montanhas. A Grande muralha. O pequeno papel. A pensar que, onde havia um verbo no presente, talvez um erro tivesse substituído o passado. O tempo passado. Do verbo certo. Talvez. Certo porque o tempo havia passado. O sentido, no momento inverosímil era no fundo indiferente. Se tivesse respondido sim talvez ele soubesse um outro local ou exprimisse a pena de um pequeno desígnio frustrado, o meu. Palavras difíceis. Sofridas mas esmeradas. Pequeninas. Poucas. Demais. Porque sobram até hoje. Desnecessárias, e assim mais valiosas. Por o serem. E o chapéu, esquecido na cor, para sempre aquele chapéu. Como se ainda lá estivesse. Como mágico. Aquele.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasCaverna de Kafka. Castelo de Platão Há sempre aquela vista do castelo. De baixo para cima. O meu olhar esperançoso de que desta vez seja por uns tempos e que depois tudo. O tudo de sempre. Volte ao normal, por uns tempos, o normal de sempre. Avanço na direcção da porta. Do castelo. A porta ali ao lado, o castelo em frente, em cima. Ai, ai ai, ai ai. Rola despedida curva abaixo. O castelo pelas costas. Casario acima. O calor a insuportar. A bandeira pendente. Ai. Responde a caverna ao vento. Cidade acima, bandeira a adejar. Adejou e parou. Ai. Com um guincho de travões. Take I – Travo a cadeira de rodas com um joelho e um canto da barriga, só um canto, para poder agarrar-lhe, para além da cadeira, os cotovelos. Inclinar-me para ela. Erguê-la. A cadeira escorada contra o carro de ladeira acima. Ou abaixo para ser optimista, ou, já não sei. Os cotovelos e deslindar-lhe os pés dos apoios para os pés. Que se levantam mas caem. Não encontro o travão da cadeira. Se calhar já não tem. Há um momento crucial em que, para dar o impulso de a entornar, quase assim, coitadinha da minha paciente sempre e sempre paciente em tudo isto, para o banco dianteiro do carro, me distraio do canto da barriga, do joelho na cadeira, e avanço o outro joelho em que quase sentada, há-de deslizar um pouco abruptamente para o banco. Enquanto a cadeira se solta e desenfreada descreve um curva vertiginosa em rota de colisão com a ambulância que avança entretanto numa correria desatada e uivante. Ao lado uns metros entre mim e o castelo, o segurança e um paramédico conversam da vida encostados a uma outra ambulância em repouso. Olham eles. Olho eu. Olho estarrecida, muda e estática a curva da cadeira. A ambulância que corre. A minha paciente que pesa e quase cai. A cadeira, que no seu desvario curvo, vence as leis normais da gravidade e sobe desvairada numa rota já escondida do olhar por detrás do carro. Os cotovelos da minha paciente, paciente, e o joelho a amparar-lhe as pernas vagas. Aterra no assento meio de lado. A ambulância pára mais à frente. A cadeira louca também. O segurança e o paramédico olham, eu olho. E disparato um pouco, alivio os fígados: pediu ajuda? Não, não pedi… Sento-me no carro, aperto-lhe o cinto e digo-lhe qualquer coisa carinhosa. Respiro fundo, furiosamente. Eu respiro sempre fundo quando há tempo. Olho-a no seu alheamento paciente com desvelo. Porque é para além de tudo o mais. Mas um outro lado de mim, tem uma enorme vontade de rir com todo aquele potencial fílmico. A cadeira desvairada e a ambulância, em rota de colisão como nos desenhos animados. Mas o riso, fica um pouco lá atrás da melancolia de tudo. Take II – Mais tarde na semana, o carro de ladeira acima, ou abaixo consoante a perspectiva. Os cotovelos, um joelho discreto a amparar a paciente, paciente, e outro a cadeira destravada, devia ter um travão mas se calhar já não tem, e o canto da barriga a ajudar. A paciente entornada com a delicadeza possível no banco dianteiro do carro. O joelho a prender a cadeira que gira um pouco sobre si própria, teimosa e impaciente, a querer libertar-se. Fechar a porta. Suspirar fundo e olhar em volta a querer exibir um ar triunfante. Talvez mesmo um sorriso. Ninguém. A observar, a ajudar. Isto correu bem. Devolver a cadeira. Take III – A mesma cena, só que sem paramédicos, ambulância, segurança, cadeira de rodas, paciente. Na verdade a única coisa em comum é o carro de ladeira acima, com a patinha quase a descambar na valeta com sarjeta abismal, porque o segurança diz sempre encoste o mais à esquerda possível, e o nariz bem encostado ao sinal de sentido proibido, porque o segurança diz sempre encoste o mais possível ao sinal. Fecho a porta do carro de ladeira acima e de monco caído. Eu. O carro também por empatia. Não há cadeira tonta, não há paciente, paciente. Nada. Ficou lá. Para ir logo se vê para onde. De resto só aquela figura que diz, monstruosa, o preto, o macaco que está ali, o segurança. Um outro, neste caso. Mais nada. Devia disparatar de dentro para fora, mas estarreci e engoli em seco, como antes, a olhar para a cadeira, e um pouco reduzida a metade de mim, no dia longo. Desculpem-me todos os que leram aquela frase. Sim, não é que me choque mais a cru, é que me sinto morrer mais um pouco. Este humano demasiado humano. O excesso de realidade nos momentos limite. Hospitais devolvem qualquer um ao seu interior nem sempre belo. Mas há momentos feios de morrer. Lá fui de monco caído, como disse. No sentido contrário ao do castelo. Aliviada. Descansada. Ou não. Quase a antever a saga do cobertor azul. O pico anedótico dos episódios seguintes. Grande plano final – E depois, aquela arrumação provisória de um trecho de vida a recobrir de qualquer outra coisa que distraia, que faça esquecer até amanhã. Fechar uma gaveta e abrir uma outra de onde se evole uma possibilidade de conforto. Voltar a casa. De caminho uma passagem rápida no supermercado. Uma daquelas latas do costume porque tenho a impressão de que ontem ainda não jantei. E num gesto compulsivo agarro com o mesmo desespero que a uma boia de salvação, um pé de orquídea. Minto, dois, na realidade três, pés de orquídeas. Phalaenopsis floridas, delicadas naqueles tons de branco a esverdear e olhos amarelos. E uma, branca mesmo, de olhos purpura, e a imperfeição de um sinal da mesma cor numa única pétala de cada flor. Como um pequenino borrão de tinta. Um sinal curioso e assimétrico de imperfeição. Como aquele sinal do meu pai. Negro e saliente sobre o canto do lábio superior. Não me lembro de que lado. E que os fotógrafos retocavam sempre, a fazê-lo desaparecer como marca de imperfeição. Havia um único retrato dele em que isso não aconteceu. Não lembro qual. Por aí no baú, tenho que o encontrar, mas não agora. E ela rebelava-se tanto. Gostava daquele sinal. Adorava vê-lo inteiro em cada retrato. Flashback – Durante mais de dez anos nunca lhe falhámos um domingo. A meio da tarde, fizesse o tempo que fizesse. Até quando a ela já lhe custava muito percorrer aqueles passos. Limpar o mármore. Arranjar as flores frescas na jarra. Conversar sucintamente sobre a composição do ramo. Retirar um pé aqui e pôr ali. Ramos de folhagem recém colhida. Sempre variadas e naquela mistura aleatória de que ele gostava. E da quinta, para lhe serem mais próximas. Algumas plantadas por ele. Ainda. Depois ficávamos um pouco em silêncio. Cada uma no seu. Ou a falar com ele, talvez. E íamos. Mais adiante virávamo-nos sempre, mas sempre, para trás a ver como estava. A jarra. Só dizíamos coisas como hoje ficaram bonitas. Estão bem presas, não vão voar com o vento. Está bem. Hoje ficou bem. Quando deixei de poder ir com ela, deixei de ir. É uma dupla mágoa. Ela a limpar com o lencinho o rosto de esmalte da fotografia. Naquele gesto eterno das viúvas. A minha avó fazia o mesmo. Eterna saudade. Escrevemos-lhe. Sim. E eu levo-as para casa, as orquídeas. Que mesmo em sombras delicadas na parede, me confortam. Junto-as num único vaso branco, na necessidade urgente de afogar os olhos nelas. O desvio. E deixá-las inundar-me com o animismo daqueles olhares benévolos. Encontrar a doçura possível do dia. Como elas, as flores, com uma marca de imperfeição. Mas é assim a vida. Zoom out. E, pensando em filmes, só me lembro da cena final de “E tudo o vento levou”, com Scarlett O’Hara, personagem talvez por vezes um pouco tonta, mas corajosa, a dizer esse monumental estereotipo: “amanhã é outro dia…” E é… Acordar. Zoom in sobre um copo bonito de sumo de laranja e começar o dia com uma cor veemente…escrever cartas de amor, talvez, sei lá…e o que fôr. E depois.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasDo real absoluto. Do absoluto ideal Estas coisas dizem-se depois, se houver. A realidade daquela escarpa abissal à beira da cama. À beira do rio de mansidão à beira do travão do carro. Não se dizem. Mas é indiferente ao remorso. Hoje, no supermercado, comprei uvas com sulfitos. Não sei o que é mas deve ser uma coisa boa. Dizia ali. Provei-as mesmo sem lavar. Eu provo sempre a fruta no supermercado. Enfim, a de menor calibre. Lembro-me sempre de que ela, que aqui dorme ao meu lado no carro, dizia dantes que nos mercados de Tomar, de Tomar dantes, se dava sempre a fruta a provar. A fruta de antigamente. De tamanho variável e sem a alcunha pobre do calibre. De rugosidade variável e de brilho variável. De assimetrias a tornar cada peça uma coisa única da criação. Ela está aqui. Está e não está. Cada vez mais lhe vejo só o prateado do cabelo e menos o rosto. À medida que se vai curvando sobre si própria. Numa curva para dentro de um nada que começou há muito a invadir-lhe o interior. E à mesa, na minha frente, ainda. A minha recusa de a ver doente. Empurra a comida para o garfo com um dedinho infantil, inábil e um pouco trémulo, indeciso do efeito e da intenção. Começámos a comer muito lá atrás. Eu que como devagar, já fumo um cigarro na sua frente e observo-a dando-lhe espaço para alternar os seus estados de consciência. Dando-lhe todo o tempo. Parece uma criança. Cada vez mais. Cada vez mais pequena e próxima do prato por vezes irreconhecível. Às vezes só uma criança muito pequena. Outras vezes, como se com uma síndrome. E criança. De olhos toldados de incompreensão. Ponho-lhe uma taça na frente com um cachinho de uvas que ela adorava. Adorava, quando sabia que adorava. Lavadas agora e frescas. Pega nele, sabe-se lá se com a vaga memória de gostar, e pergunta se pode comer. Sempre. Pergunta sempre, agora. Quando se lembra do que se trata ali. E eu na frente já fumei dois cigarros e agora escrevo. A dar-lhe todo o tempo. A observar e a absorver o que ainda há. A tentar entender. Não há tempo. O tempo do relógio não existe. Nada disto me é estranho porque ela não é uma estranha. É ela. Não sei onde, talvez no corpo, ou em mim. Ainda. É real? E o gato, há um gato de uma vizinhança de daqui a dois prédios, e que afinal é uma gata, e que passa como se fosse um spot rápido na televisão. Na minha janela. Uma janela no terceiro andar. Ou quinto. Como no outro sítio, o meu vizinho chinês, jovem de idade indefinida, passava de varanda para varanda quando me esquecia da chave dentro de casa. E esquecia tantas vezes. E ele sem vertigens. A passar de varanda para varanda. Como o gato. Que afinal é uma gata. Como eu num outro terceiro andar, miúda. Sem a noção de preço e de morte. A passar de varanda para varanda. Quando me esquecia da chave dentro de casa. E esquecia tantas vezes. É isso. Fragmentos abruptos e efémeros de irrealidade. Todo aquele céu, todo aquele rio, todo aquele silêncio parado. E nada. Falsamente nada. Porque as águas não param de correr, mansas, inexoráveis a querer dizer. Nada. Mais do que nós ali. Eu, a minha enorme indiferença, ela, a sua enorme anulação. E minha, nela, em mim, sem mim. Passamos no corredor. Ontem. Ao lado do móvel onde estão todas aquelas fotografias já quase impertinentes. Em que não reparo, no temor de cair por ali adentro. Ou ela. Naquela espécie de passo de dança indecisa, esquecida, lenta em que a ajudo. Diz as minhas filhas estão todas ali. Um acesso inusitado e estranho de uma lucidez rara, confusa e quase assustadora. De palavras. De profundidade. Do rio. Todas as idades delas, minhas, dela. Há muito tempo que não lhes vê diferença. De pessoa ou de tempo. E ela abandonada. Ali abandonada de todas nós, no banco dianteiro do carro, na cadeira, na cama. Abandono-a à única indiferença possível à sua desaparição imparável, por detrás do corpo sólido. Também a diminuir. Abandono-a comigo. Nela. E procuro na imensidão do espaço, a indiferença à indiferença. Na diluição, no espaço, na dor. No vocabulário dentro. Do qual, tudo é possível. Começar, imaginar, cometer. De dentro para fora. Da desconstrução. Deve haver outra maneira de não olhar para a frente para todos os significados possíveis e aquela sensação delimitada. Do pé. Como uma louca a andar e janela em janela. Às vezes. Outras vezes. Na casa. A tentar sentir. O sabor do rio e ele ali. Pequenino, seguro, longínquo na janela pequenina. O rio. O mesmo de antes. Que estava ali à beira do carro. Na frente do carro. Não há silêncio maior do que o silêncio denso e insólito do verão. Do rio à beira do que quer que seja, no verão. Naquele local de silêncio que escolho longe de tudo. Menos de algumas pessoas que fazem coisas de tempo e de silêncio. Como pescar. Às vezes à noite. Famílias ou algo no género. Vizinhos, talvez. Várias idades, sem smartphone, vozes esparsas, ali, à beira rio. À pesca. Como noites de há muito, antes da televisão e de tudo. Não há silêncio maior do que o do calor do Verão, mais evocativo da planície se esquecer as cigarras. Mas é o tecido da planície. Do ar. Há um vazio especial no ar parado, na temperatura do calor tórrido, do ar. Na temperatura entorpecente do corpo à beira do abismo do rio como do carro à beira do rio sem barreiras, do carro para o rio, para mim. Onde quer que esteja naquele preciso momento. E a questão é sempre a do lugar. Estar ali, mais longe do que em qualquer país estrangeiro. Como um intervalo de sono. Ela ali sentada sumida ao meu lado no banco dianteiro. Cada vez menor. Dormita e de repente palra um pouco. Como antes de aprender a falar. E peço-lhe que me deixe calada. Que se deixe calada de novo e dormitar. Que me deixe esquecida. Concentrada na indiferença. O que sobra da dor. Do amor, digo. E ela passa-me na varanda todos os dias, para lá e depois para cá. Pára sempre e olha. Às vezes eu vejo. Já aconteceu estar dentro de casa e eu não reparar, não saber e ela vem dali. Mas muitas vezes eu vejo. Num repente em que desvio os olhos do que penso ou para o que penso. E vejo. E quando vejo, é porque passou. Ali. Na varanda. E se vejo, suponho que existe. Há outras provas determinantes de realidade. E quando vejo, e porque é mansa, e nunca deixa de me olhar naquele fragmento de tempo em que me passa na janela aberta, fico contente com a vida que me faz caminho. E este gato vizinho, é real. Como aquele momento. A concentrar-me na pressão potencial no pedal, possível, a não fazer. Ainda. O pedal do lado da foz. Uma pequena pressão, só, o travão desengatado, e uma pequena pressão como num gatilho para um tiro surdo. Rápido. Com todo o percurso de eternidade de querer e de não querer e não fazer sentido uma coisa ou a outra. E ser só um momento aleatório de possibilidades. E a diferença entre fazer e não fazer é tanta ou tão pouca como a realidade deste gato. Gata. Eu sei. Cinzenta. Tigrada. Gordinha. Passou por ali um anjo. Dependendo do exacto momento, se determinável, se definido algures naquela paragem, de morte ou salvação. Mas não houve registo nítido desse fragmento na ordem das coisas. Não saber. Era preciso determinar com absoluto rigor. O imperceptível rumor. Que nem ouvi. E quando. Talvez uma ronda de rotina, afinal. Sem mais intencionalidade. E não sei porquê. Porque voltei, voltámos. Talvez porque restam os anjos. E se restam os anjos, é com eles que eu posso ser feliz. Há maneiras mais pobres de morrer. Mas restam os anjos. E se restam os anjos eu posso ser feliz. À maneira deles. Se restam os anjos. E, quando abro a janela e olho, e ela passa, sei que ainda me parece um resquício surreal e insólito. Mas é tão real como qualquer outra coisa. E fico contente, não sei porquê. E ali na beira do rio, também não sei porquê. Talvez porque restam os anjos. E, se restam os anjos, é com eles que eu ainda posso ser feliz. Se restam os anjos, eu posso ser feliz. Se restam os anjos.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasDe Saturno a Marte Um instante-luz, ínfimo. O logo ali, na curva imensa do espaço. Do tempo até nós é a guerra. Todas as guerras em que o tempo é voragem e nós nele, consumidos. Interrogação de um diário. E ver. Onde e se ali aparece a ferida aberta. A entrada da desarrumação que tomou parte-lugar e não se decide a ficar nem partir. Um indício que remonte ao dantes e faça luz incidir no depois estranho destes dias. A luz medida. A palpar a escrita cuidadosa e cuidada em segredo. Como se não fosse. É assim a preocupação de um escrito, com a surpresa eventual, inoportuna, do olhar. Não é para haver, mas todo o cuidado e espuma perfumada como se fosse. Em vida. Ou depois. Onde vai o tempo. Na ordem certa das páginas e dos dias. Dos gestos e das palavras indeléveis. Fixadas pela matéria prosaica do papel e da tinta, dita permanente. Em caneta grossa e macia, de aparo. A revolver delicadamente ou penosamente os restos de memória nas palavras, e de limar todas as asperezas, irregularidades, imprecisões, ou acarinhar em movimentos redondos os pensamentos mais nítidos como um seixo rolado nas marés infindas dos confins do tempo. Como uma peça de Raku, onde se reúne a essência dos quatro elementos, terra, ar, fogo e água – como as palavras, como as palavras em bruto, a ecoar, a incendiar mais nas emoções e lavadas, depois, dos excessos – a rolar de uma ladeira, a arrefecer como lava, a ver se resiste e como, à abrasão suave da erva. E quebra ou resiste. Ou como uma escultura de H. Moore, que, dizia, devia resumir-se às formas redondas e suavemente niveladas, que resistiriam a todos os percalços da física, do mar, dos elementos todos. Rolar pensamentos até ao estado puro e então escrever. A caneta. Na ordem natural das folhas. Mas antes essa guerra surda e etérea fechada nos pensamentos antes da escrita visível. E depois o tempo a mudar. E depois, deixa de haver o tempo, a ordem, o fio condutor de um percurso linear. Todas as emendas possíveis na folha digital, todas as emendas ao tempo. Tudo ramifica em árvore e planta labiríntica. Tenho esta obsessão da ordem, da cronologia da linha. Marcar o tempo, pontuar em nós nevrálgicos, as irregularidades. Datar. Entender a consequência e encadear. Como se fosse desenhável. O tempo. Ou a vida, uma sucessão líquida e fluida. Regular como um rio, da nascente à foz. Precisei de tempo para ver crescer como fungos ou plantas parasitas, irreprimivelmente, a desordem dos papéis. E o tempo desenhou aí um padrão visível. Só o tempo. A decorrer. E um dia entendi a perversidade desses registos tirânicos em que se avolumava a impossibilidade. Eram para ser provisórios, a suportar a memória e nela. Mas ao longo de dias, sempre a desarrumar-se na orientação da folha, no intercalar de diferentes ideias ou simples palavras soltas nos espaços vazios. Quaisquer espaços mesmo entre frases. Como invasão de casa alheia. A misturar tempos, memórias de ideias a percorrer depois, a acusar o declínio do cuidado. Um copo que se entorna, uma queimadura, um rasgão impetuoso numa pressa, um número de telefone sem nome. E as folhas a sair da ordem provisória. E tudo o mais a ficar distante, confuso. Distinguir frases pelo tamanho da letra, nas suas pequenas variações de humor. Uma perturbação que se tornou ânsia de ordem permanente. Ordem naqueles pequenos e variáveis fragmentos de pensar fragmentado em partir de um certo momento passaram a ser múltiplos. Uns para uns humores e outros para outros amores. A dispersão e o abandono. Por anos. Fruto do tempo. Tudo me dispersa, saudosa do tempo em que tinha uma caixa de correio, um diário e um tempo de trás para a frente e daí para trás. Arrumado e penteado. Como a simplicidade dos sapatos. Um par velho e um par novo. Nos anos bons. E um dia ofereceram-me estes grossos catálogos cartonados. De revestimentos. Também isso fez sentido. As capas e matérias de que se revestem os nossos eus. E deles fazer os meus livros. Destruindo e refazendo no suporte grosso e confortável daquelas capas e folhas de cartão. Fui andando com eles no pensamento e elaborando um caminho. E depois comecei. A destruir, primeiro. Comecei este diário. Na realidade ando há muito a começá-lo de vários ângulos. A tentar resolvê-lo. Como se um diário não fosse simplesmente para começar num dia qualquer e ir por ali. Na ordem das páginas. Mas há muito, também que não consigo ter qualquer obediência à ordem, ao espaço, à forma à cronologia do tempo ou das folhas. Esta obsessão da cronologia, do encadeamento, da lógica da ordem e do sentido produzido pela ordem, pela análise da ordem. Digo de novo. Mas algo em mim se desarrumou e rebelou. Se fragmentou e desmultiplicou em suportes. Se abespinhou em desarrumar cada vez mais a desarrumação. E aí estou de novo a pegar numa folha de papel, só uma, digo, e depois arrumo, penso, por exemplo. Mas, rapidamente lhe vou acumulando desvios. E de novo escrevo de lado e nos intervalos de parágrafos e de pernas para o ar e rasgo bocadinhos para apontar um número. Mais um número que vou esquecer de quê. Todos os dias esta compulsão em desarrumar o que era à partida para ser registo precário, e me invade os olhos angustiados ao longo dos dias. E a crescer. Uma pilha imunda de palavras provisórias. E nunca mais deixam de ser e é o inferno em forma discurso. Papéis perversamente desiguais e confusos, como a criar voluntariamente dificuldades ao sentido. Que, desmultiplicado nas associações quase livres, cresce. E cresce em angústia o meu olhar ali para a direita. Sempre daquele lado. E limpo neles os pincéis e entorno coisas. E cresce a dificuldade em os olhar e tornar úteis e a impossibilidade de os deitar para um lixo onde já está cada palavra que não digo. Nem é que nada faça falta. É só uma curiosa disposição que se impôs. Como se tivesse deixado de ter ordem na cronologia das coisas e das frases. Ou como algo a querer dizer-me que tivesse deixado de lhe encontrar sentido. Continuando obcecada por ela. No entanto. E quando entendi que a construção daqueles objectos, com as mãos e com as matérias e com o tempo, podia reproduzir essa desordem, absorvê-la sem critérios word e ilustrar essa aleatória incidência de fatos, pensamentos e questões, resolvi em parte uma ansiedade. E comecei. Com pedaços fragmentados de vida a cair sobre as folhas desdobráveis e tão labirínticas quanto podem ser as folhas em leque de um livro. A abrir em quatro sentidos. Como dias soltos e momentos perdidos da ordem, colados às páginas, em qualquer lugar da história do gesto de abrir. Vida solta. Pedaços torturados de dias, colados, recombinados, livres para outras leituras. Rasgados, fragmentados e sujos. Misturados. Perdidos. Da ordem. Se ela existiu. Mas existiu. E é intangível. E não unicamente a urgência de um pensamento mais rápido do que o momento da vida em que se rebelou e quis ser algo. Livro, labirinto. Como labirínticos são outros percursos. E assim está bem. O livro. Como retrato sintético de uma fuga à cronologia. E em busca da cronologia perdida. Ou do tempo. Um outro tempo.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasSonho com efeito Ser criatura e não saber de quê de quem. De que sonho. De que modelo, de que criação, de que mito ou de que lenda. Como uma nostalgia de raízes na terra. No outro. Como o sonho de demiurgia fatal. E o medo, proporcional à grandiosidade do. Medo… Do inteligível ao mundo sensível. O medo. À imagem isso sim sabe-se. Que se é. À imagem de qualquer imagem interior, a qualquer entidade humana ou supra-humana. Ser criatura e não se saber criada. Contornar o mistério da criação divina. Ou será esse mistério, o da expectativa do amor. A eterna nostalgia do olhar. Criador. Modelador. Como uma síndroma de Galateia. O renovar desse olhar inicial que nos edifica enquanto criaturas e esculpe. Sede lugar de um olhar e sede fome de corresponder a um olhar. Descer ao território etéreo como esse e inerente ao humano. Sempre o mistério e misterioso imperfeito, como o é o tempo, com memória e sonho. E que sem tudo, seria eterno. E acabado perfeito. A criatura e o criador. Ou, a criatura o criador. No diálogo. Ela em frente, a espera do fim. O fim da obra acabada. E todo o momento é aquele em que foge a criatura e duvida o criador. A dúvida é dele a fuga é da obra criada. Ramificada, camada sobre camada. Sobre camada e sobre camada e exponencial. Como ramos, o caminho. Bifurcado e não pensado, não sonhado. Mas é a natureza da obra e do humano. Amplo e humano. A criação é memória e a memória humanidade, olhar, experiência, tacto, vida e morte. Não há outro caminho na criação. Mas na criatura criada sim. Externa ao sonho de si, tornada visível, escapa-se ao primeiro olhar, ao primeiro gesto, e sem que a si se lhe possa atribuir nada. Culpa, decisão ou determinação. Nudez muda abandonada no cavalete do escultor. A partir daí, uma respiração, uma vibração no ar, perguntas, questões. E a criatura passa a espelho e o espelho a criatura no espelho do outro. É depois, a fantasia da obra. Ou antes. Escrita, lavrada, esculpida. Bordada a ponto. Rebelde. A tecer outros tecidos e bordados. Mesmo a pedra. Nem sempre de acordo com o escultor. Terá ele que o desculpar a si próprio. Ou a ela. É indiferente. Está ali com todas as imperfeições de um e de outro. Sente-se a obra frente ao criador. Senta-se, sentada de pedra, obra e em frente, pedra de alquimia, terra de cultivo. Senta-se. Fitando com olhos de amor. E espera o sopro vital. Fitam-se os olhos. Do desconfiar. Rebela-se a obra. Duvida o criador. Deixar à poesia a função de encantar. No seu falar só. Solitário. E formar a obra. Pedra de formas. Sente. O frio que espera. O sopro. Criatura criada é um mundo. No universo da linguagem, nas suas camadas de sentido em aberto. Obra aberta. E mais o tempo. Senta-se a criatura criada em frente e senta-se o criador na frente e, no confronto, como estranhos. Afinal. Se um é o outro. Até ao toque final. Até ao sopro vital. E a criatura vai. Amante do criador e este, extasiado ou desiludido, ou estupefacto da criatura criada a partir de si. Por si para si no mundo fora de si e para o mundo além de si. A partir. Por outros sentidos. Sem sair do mesmo lugar. Ali. A obra espera serena e passiva a continuação do sonho. Julga. O criador, esse, desfaz-se em indecisão porque vê de fora a criatura criada, meio criada mas já definida, conflituosa. Como uma personalidade a desenvolver-se. E há que entender e comparar e testar o direito de a reconduzir ao sonho inicial de a cercar de uma ideia firme e embrionária. Porque ela foge e noutros sentidos e talvez seja de deixar fluir. No seu caminho livre, agora. Depois do gesto inicial. Deixando de pertencer, ganhando vida própria. Num limbo em que depende do criador para o sopro vital, o rito de passagem. De inacabado a acabado. Familiar ou estranho. Ao criador. E se às vezes houve a paixão pela ideia, outra é a paixão pela pedra esculpida. A estranheza do encantamento. E a obra está pronta e o criador nem sempre para a obra criada. Exterior, autónoma e estranha na sua identidade recente. Mas ela devolve em reflexo. Perfeito ou imperfeito de uma intenção inicial. Ao espelho. Mas perfeito, é o paradigma do mito. No olhar de Pigmaleão, escultor da pedra à medida do sonho e do imaginado perfeito. Mas falta ao mito a fantasia do olhar sobre si. O olhar da criatura criada sobre o criador amante. O olhar que se fantasia refletido no olhar do outro. O olhar do outro que edifica monstros e anjos e por vezes o outro. Assim. Nunca do natural se pode imitar sem perda. Da natureza a arte deve assumir a competição. Imitar é ficar aquém, reformular é dar vida. Inventar a vida. O escultor, esculpe a figura à medida da sua utopia e a vê-a, como prémio, tornada viva e realidade. O poder da invenção na manifestação de realidade. O sonho a definir os troços do caminho. O de Pigmalião é um mito belo. Porque não se detém na fraqueza humana e no insucesso, mas no poder de uma expectativa positiva, no engendrar da vida. O efeito de Rosenthal. Quanto mais se edifica uma imagem mais ela se concretiza. Ou, noutros termos e noutros estudos, profecia auto-realizável. E a consciência de si de cada um, já não obra criada, mas mesmo assim. Formulada no outro. Mesmo sem mais desígnio do que o do simples olhar. Espelho. Reflexão. Existência criada ou ignorada. Ou esquecida. Sim, o espelho como raízes estendidas de lado a lado do vidro, do estanho, da prata, da obsidiana negra que transtorna o olhar-raiz. Transtorna de lucidez ou transforma de embriaguez. E de novo, como o sopro vital. Aqueles em que nos fantasiamos como eles a nós. Uma coincidência mágica de identidade suavemente conseguida reconhecida e grata. O espelho ideal para uns o que retoca e regenera, para outros o que vai às entranhas do eu e as devolve delicadamente. Iguais. Sim a magia dos espelhos como a da criação artística ou de paradigmas. Nelas rever a essência do que somos que não a sós. Essa, quase sempre uma outra imagem e solitária. Criar um olhar que vê ou criar um olhar que não vê nem se mostra no ver e ser visto. Que nem passa pelos olhos, talvez. Como Modigliani deixava os olhares vazios…vazios ou cheios de todas as possibilidades interiores a um olhar. Sem limite. Talvez deixando para mais tarde o desafio de os entender ou talvez deixando-os como abertura franca, um rasgo directo à alma expressa na intimidade dos corpos, essa que lhes transmitia uma entrega de nudez para além da pele. Tudo. Como representação. O sonho com efeito. Ou a arte pela vida.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasCurva perfeita Às vezes, desenhar uma curva perfeita. Desenhá-la no desafio de o fazer à mão livre. Começar pelo gesto natural. Aquele gesto espontâneo, livre e delimitado à partida, nas possibilidades que lhe são inerentes. O gesto aprende-se com o tempo. Claro. E por tentativa e erro. O olhar poderoso, que aprende com as imperfeições do erro. Mas que precisa, mesmo assim, de truques. Pequenos truques honestos. Desenhar uma curva perfeita é um teste ao olhar. Não se faz com a mão senão no mínimo inultrapassável. Começar pelo natural. E depois inverter e olhar. E depois girar noventa graus. E depois cento e oitenta e de novo noventa. E emendar. Ir emendando a imperfeição do olhar unilateral. De cada olhar. E às vezes o olhar precisa de dias até encontrar os limites da perfeição. Aparente. Às vezes anos. Até se tornar visível aquele detalhe ínfimo do erro. Outra coisa é o corpo. A qualidade específica de uma linha, uma curva um volume particular. Que, dependendo do olhar e de critérios, pode ser simplesmente o lugar perfeito da imperfeição. E dizer o contrário também. O lugar físico e extremo oposto à idealização dos gregos antigos. Ou uma curva do caminho. A que aparece no momento certo do mapa. A curva perfeita. Um exercício de perfeccionismo em que se afasta sempre a perfeição, do frio rigor. O frio cortante de um inverno rigoroso. Traçado a régua e esquadro. Cortado à lâmina. Antes a perfeição dependente de um olhar. Apurada no olhar. Descoberta progressivamente na específica, irremediável imperfeição do que é para ser assim. Apaziguada no olhar. Para dentro dos espaços cristalinos da retina, por detrás dos arcos a proteger o baú-tórax, ou bem entranhado nesse cofre, craniano e inviolável. O olhar da vida à temperatura do corpo. Saio de casa e está um dia lindo. Quando é para sair de casa não basta nem sobra saber se está um dia lindo. É preciso sair para a vida. Como ela se apresente. E, outras vezes, está um dia lindo e nem assim saio de casa. E fico a regular as portadas em função da luz. Para que não queime as plantas. A regular a troca de aragens entre janelas opostas. A parar a meio do corredor, a sentir, a ver se refrescou um pouco. A lembrar o Alentejo e como também ali, nas tardes de canícula, e quanto mais forte a luz mais se baixavam as pálpebras, as persianas sobre o calor cortante e demolidor. Não há como o verão. Não há outra estação mais natural e próxima da essência do humano, da temperatura da pele. O anseio anual de uma liberdade que, se bem que condicional, é a carícia da pele e da alma que se quer atenta ao existir e não em fuga para a frente. Mas afinal saio e isso eram os dias antes. Hoje, uma espécie de cortina fina e amarelada, subtilmente a sujar o azul intenso do céu destes dias. A lembrar-me Marselha de há uns anos e também Atenas e as suas atmosferas de poluição a danificar a alma com uma qualidade doentia, incomportável aos pulmões em alguns dias. E aqui, não sei. Será dos fogos ou de uma outra conjuntura atmosférica que não adivinho. Ou de mim. Que afinal estava presa à casa nos dias lindos e deixei passar o azul do céu. E lembro-me de Atenas e sempre daquele amigo que conheci em viagem para lá, Angelous, curiosamente. De volta da recruta com o seu efebo clássico e mudo de timidez. Que nos levou a ambos para casa. E que como um anjo de facto, e surpreendido, e desencantado da sua cidade e do que nela se procurava de ideal, me guiou pelo pouco que naquela cidade feia ainda era bonito de ver. Uma cidade corroída pela poluição, enriquecida de história e destruída pela história havia muito. E faz sentido que este amarelado discreto do céu me lembre outros lugares porque hoje é o dia, sem o ser em absoluto, em que começo férias. Quase férias. Enfim, decidi. Lá mais para a tarde. E onde se ligam estas realidades ansiadas de partida, de memória, de liberdade. Essa liberdade que não se dá, não se confere mas simplesmente se deve reconhecer como direito intrínseco. Como o automatismo da respiração registado no cérebro para ir sendo. Ou das batidas cardíacas. E de tantas implicações e a ter que ser gerida por critérios. Éticos. Compromissos. E que parece ser estruturalmente parte e natureza dos seres em geral. Anseio. Expectativa. De perfeição e imperfeição. De ir e de não ir. E depois volto. Naquela assumida e imperfeita decisão de instituir esse fim de tarde como o início de férias. O calor no limite do suportável. A luz. Entro numa porta a dar para uma frescura discreta e ampla, o lugar envolto na obscuridade interior natural e noto de novo, com uma ténue impressão de frescura ainda dentro dos limites do quente. Mas suave. Eu não gosto de ter frio no verão. Ali, um calor suave sem agressão. A vida à temperatura do corpo. Talvez. Um espaço de muitas mesas e lugares de sentar como possibilidade, desde o canto mais remoto, à imediação da porta. E todas vazias. E com um pequeno cinzeiro branco convidativo. E o som bom. Sentei-me a ouvir, a ausência de pessoas e música variada. Às vezes aquelas palavras de cortar os pulsos mas a embalar os ombros em ritmo ‘disco’. E reggae e um jazz ou outro pelo meio, e à segunda imperial estava a sentir-me capaz de dançar sobre a mesa. Só por me sentir bem, e em troca, aquele barman discreto que inventou generosamente um lugar todo para fumadores e, parecia, só para mim naquele momento, ter um pequeno episódio surreal para contar aos netos. De resto, se tivesse seguido as pedras da calçada até casa seria muito parecido. A obscuridade a cortar o sol ainda excessivo de fora, a frescura no copo. A música. Só que seria outra música, outra cadeira e outra luz. E só por isso valeu a pena a estação de paragem. Essa pequena diferença entre aquela cadeira e a outra, aquela penumbra e a outra. É que ali fora, o sol ainda quente a escorrer nas paredes já em sombra, podia ser na medina, no souk. Ou o lugar perfeito da imperfeição. De não ser, podendo. E atrás do balcão, num recanto protegido com carinho, um aquário e duas pequenas tartarugas. Não sei se se pode dizer dos bichos – destes – terem uma forte impressão de infelicidade. De outros, sim. Mas só me lembrei de inúmeras outras iguais a esta a nadar na água fresca de um lago, de um jardim, de uma cidade. Tudo longe. E elas iguais. Mas pergunto se serão iguais na alegria com que esbracejam as pequenas patinhas nesta água delimitada por vidros nada amplos, expostas ao olhar ampliado como por uma lente. E não sei. E delas, se bem que de realidade tinham tanta como a medina, o sol e o deserto no fim da tarde, para além da porta, como de cerejas retiradas distraidamente de uma taça, vieram agarrados outros pensamentos. Como sempre gostei destes bichos e de um cágado enorme na sua lentidão e feiura quase ainda pré-histórica, no quintal de uma tia, com tanto chão para percorrer naquela sua mansidão quase intemporal e uma enorme hortência para fugir ao calor do Alentejo. Ou se esconder. E lendas. Mitos. A pensar no mito da tartaruga. Símbolo de lentidão mas também de silêncio. Várias versões como sempre nos mitos. Lenda de que caminhamos num mundo assente sobre a carapaça de uma tartaruga gigante e que é querida a muitas culturas. O mito da tartaruga, ou a condenação por castigo de uma lentidão que pode ser preguiça. A simbologia que a ela associa o silêncio. A ela e à casa carapaça sempre por perto. “Intrame maneo”. Permaneço dentro de mim mesma ou em silêncio o que é a mesma coisa. E que não há maneira de prolongar muito mais este momento e esta sensação. E que, como sempre de maneira imprevisível outra impressão vai voltar. E penso como consolidar este momento para além dele. E penso no paradoxo de Zenão, ilustrado pela corrida entre Aquiles e a tartaruga. E tento medir as possibilidades de eternizar este momento com base na possibilidade de o tempo ser constituído por um número infinito de partes. E de esta, de este momento, poder ser adiada para a metade da parte do próximo momento e depois para a metade da metade dele e abeirando-me sem sair do lugar desse abismo entre tempos, que é o avançar lento, cada vez mais lento e infinitesimal, encontrar aí a forma utópica de, no limite, permanecer nele. Indo, mas não saindo deste limiar. O limiar de outras sensações mais recorrentes. E, fico a pensar numa forma de explicar ou fundamentar esta nítida e reconhecida redundante sensação de bem-estar. De estar bem apesar de todas as questões de sempre e de nenhuma nova se imiscuir nesta família de preocupações que me obscurecem. Tantas vezes. E de, como tantas outras, haver um momento em que tudo existe e mesmo assim é possível estar bem. E penso que está na hora de pagar, sair para a rua e voltar a casa. Para dentro. E o peso da carapaça como o peso da vida, dos ossos. Ou não. Ela não sente geralmente o peso do que faz parte dela. Tenho tantas vezes a impressão de que chego muitas vezes tarde. À vida, talvez. Mas é maior o consolo de não ter alguns defeitos , que o desgosto de não ter algumas qualidades. E a pensar no paradoxo. E se se aplica. Se nele encontro a contradição desta conclusão demolidora. Porque onde Aquiles era o mais rápido, nunca alcançava no entanto o pequeno passo do animal, que na sua lentidão nunca estava no mesmo lugar próprio a ser alcançado. E a questão dos referenciais. E depois penso que é só um paradoxo com incoerências demonstradas em outros referenciais teóricos aos quais a consciência ontológica não alcança. A minha. E que, por outro ado, não havendo nunca no paradoxo o encontro, na fugacidade de um e outro, porque possuidores de referenciais diferentes, cada um à beira do seu abismo mental como mental é a figura do tempo, e pensando que eu sou a tartaruga e Aquiles a vida, sei que uma e a outra são reciprocamente o que num dado momento se afigurar como consciente. Que não há distância física entre as duas e sim e sempre no âmbito de coisa mental. E que não há corrida nem competição, nunca haverá uma meta para atingir ou uma corrida para ganhar porque o destino da vida é a anulação da própria vida em termos parciais, pontuais. Que é o que se é. Parte e ponto. De partida, com um avanço determinado em relação ao passado, ou de chegada a um ponto que é descontínuo no desconhecido. O momento de agora, à beira do qual todo o futuro se avizinha perto ou inatingível. Que importa? E que a única coisa que corre é um tempo, esse desmesurado desconhecido. Corre no caminho que é sempre escondido por uma curva. E tentar ver a curva perfeita.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasTalvez o tempo Comove-me de repente o olhar directo sobre as coisas de um passado remoto. Vindas dessa enorme e esquecida cadeia do tempo e pejadas de humanidade. Há dias um par de sapatos de mil anos. Romanos. Fechar os olhos, e abri-los sobre um vestígio concreto de uma vida. Um corpo. Um pé. E alguém. Como se fosse no momento exacto que passou, alguém trouxe no pé um sapato como de filigrana em couro. Como se fosse hoje ou ontem. Uma memória imaginada e pressentida ali na matéria de um artefacto sem idade estética mas com toda a idade da história. Talvez me comova sobretudo o perfume etéreo de humanidade que se agarra ao objecto do olhar, e se desprende como perfume ténue, se nos concentrarmos bem nessa viagem do tempo de ali até aqui. Talvez o que eu gosto é de sentir as pessoas e essa longa cadeia ininterrupta que vem de lá tão antes e que continua a perder de vista. Talvez o que eu goste mesmo é dessa ideia de pessoas. Ou desta terra planeta cheia de cicatrizes naturais, ou do tempo. Talvez o que eu goste mesmo seja do tempo, um cordão longo desfiado desde o sempre ao para sempre. Talvez o tempo. Esse tempo que me faz doer de tão rápido. De tão lento. Talvez mesmo o tempo. E ser parte. Parte e partícula ínfima dessa cadeia. Talvez o tempo, que existe ou não, dependendo de representações. Que lhe emprestem a qualidade concreta. A dimensão ou o sentido. De lá para cá. De cá para além. Disto. E um dia destes veio viver comigo e está ali como um bicho pacato silencioso e idoso. Mas igual a sempre nos seus talvez cem anos. Bicho máquina, senhor de uma espécie de ronronar que nunca eleva o tom. Singer de nome e máquina de costura de profissão, com pés de tipo aranha, com os inconfundíveis alvéolos de ferro forjado que me lembram mais assas de insectos, o torço equino suavemente arqueado, ou uma espádua garbosamente curva, como a pedir a carícia do tempo recuperado, e com a nobreza da imortalidade com que ele lhe desenhou formas e funções incansáveis. Trouxe-a do abandono incontornável da casa onde ninguém vive. Já. E ali, encostada a uma outra parede ganhou uma outra idade mais leve ou desprendeu-se de novo do acumular de anos sem um olhar próximo, um óleo que afina e alivia os movimentos e o som. E como um bicho que fui encontrando nos últimos tempos escondido atrás da porta. Como se escondido mesmo e assustado. Ou triste e amesquinhado de uma poeira que o manietava e esquecia. Retomou a cadeia afinal ininterrupta de um tempo que vem de tão longe como o homem que, apaixonado, a ofereceu a uma menina de dezassete anos, prenda de noivado. Já aí com história desconhecida atrás, a máquina. Conhecida a menina, chamada para sempre senhora por aquele amor. Dos dezassete, de um e de outro, e contido numa caixa de madeira feita para a costura, as linhas e as agulhas de uma vida a mudar aos poucos sobre carris, e dedicada, a lápis, no interior. Nome completo e amor. Foi para sempre. Dedicado em dedicatória e depois na vida. À minha avó. Por aquele avô de quem tanto gostei, de olhar verde, transparente. Sonhador e marinheiro. Vogando de além para aquém Tejo em fuga. Mas não dela. Só da interioridade daquela terra que o não preenchia. Mas foi com a bisavó que na realidade aprendi a cozer. A ver e assustada por ela em relação àquela agulha veloz nas costuras domésticas e perigosa como nos contos de fadas. Etelvina. Maria Antónia. Mariana. Os nomes inscritos na memória daquele pedal e sussurrados como uma carícia. Agora eu. A sentir que tenho que lhe encontrar mais caminho. Não por ela mas por este prazer com que a olho. E este sentir-me parte do tempo. Ou, às vezes, parte e tempo. Mas isso sou eu aqui, a pensar, e feliz como um passarinho a olhar para ela ali vinda de longe. Do meu longe e mais ainda. É bom. Mas sempre, como tudo, só esquecendo a parte final do percurso que a trouxe aqui. Só assim é bom. É. Há que esquecer disciplinadamente. Eu gosto de coisas anacrónicas. E de coisas com idade. E que duram. E de coisas com marcas ou o perfume de vidas antes de agora. Muitas coisas com que vivo tiveram outras vidas antes e outras casas. Gosto dessa impressão do tempo nas coisas. Como gosto da pureza, perfeição e síntese, quase fria e desumana, do minimalismo. Próximo de uma filosofia Zen. Gosto de ambos os extremos. Como da pureza de um lençol antigo de linho branco, que não guarda mácula de antigos partos, vidas e mortes, amores, traições e desvarios. Que nunca perde a sua pureza quase virginal de lençol da primeira noite. Da vida. Gosto de coisas que fogem aos padrões ditados, de uma contemporaneidade fugidia. Usar camisas de dormir com florinhas. Também. Uma coisa que ninguém sabe e não se diz. Mas não sendo para se dizer, não seria sequer preciso dizê-lo. Há coisas que se podem intuir quando se passa na rua. Disfarçadas de outras coisas que também são. Coisas que sintetizam memória, gosto e rebeldia face à tirania mutante do tempo. Da estética do tempo. Ou da máscara de um tempo que é sempre o mesmo. Vindo de sempre, mudando no que é de mudar e mantendo o que é bom de sempre. Porquê as roupagens, pergunto. Não sendo por razões práticas ou domésticas, porque não andar com vestidos do século dezoito num dia, dos loucos anos vinte no outro e 501 no outro…Porquê? Como se o tempo passado fosse de um outro tempo de que só algumas coisas são válidas. Uma obra de arte. Mas nem tudo o é. Atrocidades dos confins da história tão semelhantes a outras de hoje. Do inacreditável hoje que não apurou com o olhar sobre o passado. De um tempo que é hoje uma pérgula de resquícios de humanidade da mesma natureza de sempre. Com a mesma diversidade de sempre. Simplificar as roupas e sofisticar as armas. É isso. E por debaixo bem e mal de sempre e para sempre. Voltando atrás, então, a uma pessoa que gosta de camisas de dormir às florinhas. Também. Ou com rendas. Bordados de outros tempos. A frescura das matérias naturais. O engomado do algodão grosso e que só deixa adivinhar o que ali vive. E, a partir desta linha em que o digo, juro e afirmo que todo e qualquer olhar que por ela passe, deveria duvidar. Porque é escrito e público. O que é secreto e privado. Ou não. É, somente escrito e assim deveria ser tomado. Como uma roupagem. Como uma realidade sincera, ou franca portada sobre um símbolo, uma metáfora a imagem trespassada de algo além. Ou um olhar lavado sobre essa pueril realidade. Assim é a escrita. Mas eu gosto de coisas intemporais e gosto do tempo das palavras que ficam. Sobretudo as que se dizem. Com um grande prazo de validade a tender para a utopia da eternidade. Gosto das palavras que atravessam o tempo apesar dos temporais. Que ficam impregnadas como fósseis nas rochas sedimentares, das que marcam como pegadas de um movimento que passou e das que como velhas árvores centenárias mesmo no decrescendo metabólico da idade, continuam a sua vida orgânica e temporal. Em pé. Que é como devem morrer as árvores. Às vezes sinto que há algo inamovível em mim. Como nas montanhas. De imutável estável e duradouro. Enquanto outros locais de mim se vergam como cálamos, quebram, fluem mutáveis e plásticos ao longo do deslumbramento dos dias, da adaptação ao desconhecido e inesperado, de síntese do vivido, de fastio do muito repetido. Mas há um lado de montanha. Não por grandeza. Nem imensurável. Não há montanhas inacessíveis à cartografia. Mas não mudam para agradar aos elementos. Antes se deixam desgastar por eles. Partes de uma cordilheira do tempo maior que tudo, mas por estabilidade no tempo. Estabilidade mutável, exposta à erosão, mas a outra velocidade. Talvez o tempo. Que corre, pára, foge. Que quando pára, de imediato lhe sabemos decifrar as inevitabilidades e partidas e nessa intuição prévia nos perdemos do simples prazer dessa paragem. Talvez o tempo que se esvai entre os dedos mesmo no momento da carícia mais plena ou mais pungente. Tão fugidio como nosso. Nessa inerente qualidade a que nos acostumamos quando o conhecemos um dia. Para lá da infância que é um tempo sem saber o tempo. E, escrevia estas palavras e levantei-me de súbito impulso, a lembrar-me daquele insólito oráculo que é, em momentos estranhos, o Livro de Areia de Borges. Talvez pelo esvair entre os dedos do tempo, da areia e das páginas. E abrindo-o na intensidade de uma impressão indefinida deste tempo e deste momento e de urgência curiosa, fechando os olhos com força e agarrando o dividido em dois com a mesma força, apontei e era a página branca. Em branco, digo, porque azul, na realidade. Penso, o não tempo da infância, de que falava naquele minuto antes de pegar no livro. E no desapontamento de apenas parecer ilustrar um pensamento sabe-se lá sempre se pertinente, voltei o avesso da página naquele preciso ponto em que a pontinha da unha poisou com força. E li. Um poema. “Essas palavras eram um poema”, assim a frase inteira do acaso. Do avesso do acaso. Das costas lisonjeiras deste acaso ridículo. Lúdico. Ou a ser oráculo. A empatar tempo e sentimentos com uma carga maior de realidade. E penso que sim. Há uma poética no esquadrinhar honesto das emoções. Uma poética anestesiante e barbaramente narcísica – parece. Envolvente. Como um espelho de companhia. Mas entende-se-lhe a veracidade como se entende o uso de combinação. Coisas parecidas, de pouca visibilidade a olhar pouco miúdo. Mas que fazem uma diferença enorme no uso de um vestido. Sem fogo de artifício. Coisas de dentro. Roupa interior. E a roupa interior é sempre honesta. É o que é. Muitas vezes. Prefiro poesia com roupa interior ou a nudez descarada e iludida com que o rei que vai nú. Que se pressente ou não no discurso. Poético ou não. Não. Não tenho a pretensão da poética. Só da palavra. Aquela palavra. Que digo para durar. Ou então não dizer. De uma forma ou outra, talvez o tempo. Onde vive e dorme.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasDantes o mar e o mundo Asonhar com viagens. E então saio do olhar poisado na mesa e da ideia desse mapa. Sair à procura dessa sensação boa de lugar real estendida então por toda a cidade nocturna. Ruas calmas, numa noite que ainda não é tarde, mas já solitária. Silenciosa a intervalos longos. Lenta nuns pontos e adormecida nos mais esquecidos. Ou vigilante mas com a calma das horas próximas do sono. Íntimas. Luz de candeeiros de cidade. Limitada no respeitar cantos secretos que qualquer rua deve e tem. A entornar luz como cortinas suaves nas pedras limpas e secas do calor. Luz líquida. No chão. A dureza sólida do chão. Nos pés. E uma poalha gasosa de indefinição, a entorpecer a vista para longe. E o longe. O ar, tépido tão esperado e desesperado que neste verão avança e recua. Pensamentos escorregadios também. E sempre que saio é qualquer coisa indefinida de tempo a mudar. Como um relógio esquecido e que retoma o ritmo dos seus batimentos quase cardíacos. E as arritmias. As pequenas síncopes. Mas descer ansiosamente ao rio e é uma outra noite, quase. Esta noite é noite em que a cidade se virou do avesso e as pessoas entorpecem as ruas sem igual. Não olho ninguém e não vejo ninguém. Assim. Não sei se quem ouve o meu olhar, ouve o meu lamento. Solto para dentro, silencioso como um suspiro único que se perde. Nada a dizer que não o dito já. Não gastar as palavras frescas que estão impressas no ar denso de uma memória. Umas de pesadelo, outras porque tinham de ser. (Mesmo flores. Às vezes grandes como pesadelos. Túlipas a pairar no seu aveludado denso e negro sobre a luminosidade hesitante do dia. Sobras de noite. De momentos nocturnos de qualquer hora. Súbitos ou arrastados como um peso que se tem que levar. Para coar as pequenas pedras preciosas. Sempre lá. Sujas de uma lama de dias menos. Lama que é argila depuradora. Também é.) Dantes o mar, e a terra mais mundo. Essa inquietação de gente, e de mundo por marear. A descobrir. Fui vê-los, se dormiam. Àquela hora da noite. Encostados à cidade como cão ao dono. E no calor da noite. Podia ser no frio. Esperava encontrá-los na sua vida de barcos, talvez a ser afagados no convés por marinheiros amorosos no dever. Mas em festa, afinal. Iluminados, engalanados, cheios de visitas demais e sons a mais. Só queria vê-los, nobremente como barcos grandes, anacrónicos, e sonhar com coisas de outro tempo. Um, solitário, e só um, no meio do rio e da noite, parcas luzes a iluminar vagamente as velas desfraldadas, um pouco fantasmagóricas. Quase como um navio fantasma, então. E ali, só, no meio das águas, a lembrar quem se afasta das multidões para sentir o rio, o mar, a noite ou um simples som. Porque vieram para correr. Para ganhar. Dantes o mar e o mundo agora uma taça. Talvez e só. Como uma taça de vinho em que se mergulha de olhar e coração. Uma eternidade num e noutro copo como se sempre o mesmo. Não ajuda a passar a mágoa mas ajuda a passar o tempo. A pensar o que é a raça dos grandes navios. Que não é – queria – a de, amodorrados, na noite servirem de atracção de feira como barquinhos em lago artificial. Antes poiso de marinheiros com uma arara esplendorosa ao ombro em vez dos fios do ipod. E os olhos limpos do visor de um iphone. Limpos, para sonhar. A melancolia, a recobrir esta frase de anacronismo e rejeição. Quantas vezes, vou ver o mar, muitas mais, o rio. Também porque corre para lá. Estender a alma longe e desligar-me de mim. Mais ainda o céu por todas as janelas em que me fecho. E quando mesmo este se me fecha de humor soturno, fecho eu os olhos e vou. Onde não posso deixar de ir. Sempre e para sempre. Algo em mim apela à vingança de estar parada. Vingo-me no sonho. E só. Mais ninguém tem culpa. De uma coisa e da outra. Vingo-me sonhando o sonho e deixando-o sonhar-me. E defraudando ambos. Para consumo privado. Essa palavra de horror. Só em circuito fechado. Na direcção de mim. Não mais do que isso. Castigo-me de impossibilidades. Quem alguma vez viveu entre dois fusos do meridiano do tempo, ficou talvez para sempre com a alma partida em duas. Partida e chegada. Partida para chegar e retrocedendo. O eterno dilema de partir e ficar. Mas ficar é uma noção que só se alimenta em sentido, da noção de partir. Por oposição, se o fosse possível, a isso. Ninguém que nunca tenha partido e sentido a partida, sente a impressão, a possibilidade, a necessidade, ou a inevitabilidade de ficar. Quem nunca sentiu a pátria ao longe, quem nunca gostou de sentir a pátria, pátria, mas ao longe, não tem talvez esta ânsia antiga de partir. Dos antigos, nada sei da demanda de enormidade transcendente. De perigos irrepetíveis, noites do desconhecido e histórias ouvidas e contadas. A seguir estrelas e sonhos. Dos menos antigos a fuga a uma vida difícil. E sempre a ideia de partir à salvação. Ou partir simplesmente. De si. Para si, numa distância reveladora. Como um químico fotográfico. Fotossensível. E partir. E há um único momento na vida em que se nasce outra vez. Sem morrer. Como nos ciclos de Saturno. E para sempre duas pátrias. Sendo que uma é sempre a da partida. Mesmo naquela minha paixão por mapas. E a apontar o dedo a desfiar e espiar as cartografias possíveis deslisando para sul, imagino itinerários lunares e desesperados. Encontros e reencontros de filme. Emoções adolescentes de esquecer as pernas. Seguindo as estrelas ou uma lua egínica, orientadora sem garantias. Para sul, sempre para sul. Mas sem certezas. Em centímetros meço horas. Comparo dados e faço os cálculos da fantasia provável. Que não é minha como as cartografias do dia de hoje não são minhas. Estou aqui. Dentro de casa e sem a lua ao alcance. O mapa que não chegou a poisar na mesa para o ver nitidamente, e o lugar que não é meu. E agora ir. Aqui dentro. A lado nenhum. E pensar que alguém os foi desenhando, aos mapas, anos aturados de descoberta e erro. Desenhados, linha a linha como passadas de gigante a definir o mundo adivinhado. A emendar o mundo. Imaginado. Desenhado sobre ondas e terrores de tempestade e monstros. Como hoje. Por isso fui vê-los. Esperava encontrá-los de velas arregaçadas, olhos sonolentos ou, vivos, a fitar o longe e a foz. Silenciosos em fundo a, talvez, velhas canções de marinheiros. Vozes grossas e bêbedas, muito bêbedas e líquidas. E líricas, digo. A ecoar paradoxos de ir e de vir e querer e não querer ir e voltar. Coisas de marinheiros. Em contacto com terra firme num estender a mão. A temer o balanço e a tontura que os segue a terra firme. E talvez também umas poucas raparigas livres, do porto, de xaile descaído e vozes quase capazes de cantar um fado vadio, líquidas e líricas também. Uns rapazes, lânguidos. Também. A vender o corpo por uma canção e mais uns trocos. Ou nem isso. Se a serenata for de marejar os olhos, almarear a mente, os ombros. Levar. Marear. Os olhos, dizia, em ondas mansas que sobem acaloradas e se desprendem quase invisíveis como um vidro ténue sobre o globo ocular. Uma maresia íntima. Ou uma calote maior sobre o globo terrestre. Uma névoa húmida que vem do mar. Sempre. E com esse sal que só vem do mar. E volta. Que “los marineros besan y se van”. Diz Neruda. E assim também os grandes barcos. Porque vieram, pergunto. Acordar saudades de séculos.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasExercícios de éter e anestesia Notas e murmúrios de meio dia, meio noite. Meio de uma coisa e de outra. O que se é. Ser-se o que se é. Como uma receita. Claras em castelo bem firme e uma pitadinha de sal que se diz quanto baste. Quanto bastasse de leveza e peso medido. De brilho ou absorção de toda a luz. Um vidro translúcido, um cristal transparente e puro a transtornar a luz em cores, um veludo negro sem retorno. Da luz. E ser sólido e permeável. Transparente e velado. Arriscado e temente. E recobrir a realidade de coisas leves e etéreas. Vivas e serenas mas finas como velaturas de Leonardo. O mesmo que dissecava cadáveres. Para entender. Estas a revelar subtilmente e por sobreposição os volumes de forma suave. Aquelas, simplesmente, a afastar a nitidez excessiva. Que cega. A dor. Envolta numa poalha fina. Como partículas de luz. Ou palavras delicadas, uma música baixa. O marulhar de águas. Quanto de tumulto irreprimível se pode encerrar num silêncio. Quanto de emoção indómita se esconde na pele. Quanto de caos e angústia se desprendem para dentro como de um manto de conforto e equilíbrio. A pele. Essa camada-organismo vivo, reactiva, bela ou feia, lassa ou triunfante de densidade e brilho. Que respira inaudível, que se arrepia e cora. Que encerra o mundo sob a esfinge. A serenidade de um invólucro, a reter uma amálgama que se deve proteger da dispersão, da corrosão do olhar. A pele a conter, a suportar na sua elasticidade, a camuflar fenómenos alterosos que se sucedem como vagas em maré viva. Perigosos. Violentos dentro e fora. Há dias em que cada minuto é de uma urgência, uma inquietação uma incompletude. Certos dias de incerteza, é talvez o esquecimento com quem acordo. Fico ai interdita a olhá-lo, a querer ver mais nítido. A ver qual deles. Dos esquecimentos. Ali ao lado da cama. Do lado que não sei. O lado sem fundo em que me sento todos os dias antes de poisar os pés. E aqueles dias em que para baixo é o precipício sem se lhe ver o fim. E não lhe vejo os olhos. E do outro esquecimento, a mesma ausência o mesmo recorte o mesmo vulto denso imatérico e inacessível e em torno o espaço. O de sempre. De que não vejo os olhos. E aos pés da cama, talvez o anjo, o de sempre, também, sentado e pesado com as suas asas negras aveludadas, assimétricas, desleixadas. É ali que um rasgo da luz já matinal lhe fere um ombro e de caminho uma asa. É por isso, mas também que a ferida lhe vem de dentro. A eterna fractura da queda. A intemporal mágoa da fuga. O incomportável peso de culpa. A inalcançável imperfeição que o esconde. As asas mal fechadas na esperança do voo. A quem não vejo os olhos. O voo. Os dias de certeza do não querer acordar e saber que há-de ser. O que há-de ser. Adiado pelo lençol branco puxado à força para cima dos olhos fechados, Fechados com força para não ver a obscuridade, a vencida obscuridade a criar a agitação do dia, da alma a precisar de mais sono. E mais atrás na obscuridade restante ainda o que mais não sei e o que mais gosto. Dois num. O primeiro, o segundo. A haver ouro será dito no final. Esse que não me vê e de que me escondo para que não se veja nos outros ali. Que não vejo ver que uns aos outros. Não ser o esquecimento conteúdo. Uma outra coisa. O esquecimento como forma e não como sentido. Uma capa de imaterialidade. Leve e sem indiferença. Como invólucro do estar. Exercícios de anestesia. Ou abusar genericamente da química do cérebro. Às vezes, simplesmente esticar um tempo em que sem saber porquê para além da química, de facto, sinto que este nada de especial faz sentido em si e assim. Por medo de outro tempo em que muito mais faça muito menos sentido. E me atropele tudo o que não quero ver. Não quero ver. Não quero ver. Dizia o peso do mundo. Sobre os ombros. E querer acelerar o passo a aliviar, a trocar as voltas e o equilíbrio do peso. Do mundo. Sobre os ombros doridos. As coisas e as coisas pequenas. Inerências gravitacionais. Pequenas poeiras em torno. Ínfimas e monstruosas em círculos. Sempre os círculos viciosos. Padrões. Cansada, sonhava com padrões. Cores e formas a suceder-se. Alucinogénias. As substâncias destiladas na alma. Aquele tempo indefinido de vigília já desamparada no sono. E as folhas desfolhadas sem descanso sobre as pálpebras já fechadas. Ou já dormidas mas entreabertas por força de uma confusão qualquer. Muscular. O cansaço de padrões. Como azulejos. Mas não estes. Rosto da cidade. Onde as águas escorregam difíceis de entrar. Sempre lavados de fresco como um sorriso novo, e os brilhos entre as flores estilizadas, mesmo envelhecidas, por partes. O brilho rico e eterno aqui e ali a confundir o desgaste de uma pétala, uma voluta ou um trevo. Qualquer coisa de resiliente e feroz mesmo nos mais castigados. Feroz mas de alegria pura. E luz. E unidade. De longe não há imperfeição que destrua a ideia do todo. Naqueles mesmo, que o tempo começou a limar o vidro o contorno ou o desenho, e em que o fez com a arte do padrão, aqui e ali, numa alternância que configura o novo todo. Murmúrios. Lamentos alongados no espaço invisível e imensurado. Há uma poética nessas queixas não transparecidas, não limadas, não domesticadas. Que escolhem o lugar. Muros de encostar a fronte. E de lamentações. De tocar com as mãos. Muros vastos de compreensão muda. Pedras de tocar, gastas do fervor e tantos gestos. Tantas preces concentradas no tacto. Na fé, no desamparo de algo, de alguém, do mundo ou de ser simplesmente. E o ouvido. Um ouvido na pedra. O segredo. As palavras não ditas. Rústicas como preciosidades em bruto. Atiradas para um além que nem sempre é o mesmo ou mais do que o que transcende. Corpo e espaço confinado. De ser em si e extravasar. O necessário e escatológico reclamar, carpir, vociferar sem culpa nem perdão. A parte sombria que falta em todas as luzes. Que acentua a clareza com que a luz recorta as formas os sentidos, os volumes, e preenche os espaços em branco desse território árido da ilegibilidade. Do que se diz, deve ter-se sempre a noção da insuficiência das palavras que são falíveis e inválidas se esgotadas de sentir. De sensações que as tornem rotundas esponjas de onde se poderá beber uma realidade desocultada. Por pequenina que seja. Restos de uma saliva tanto mais doce quanto não é imposta. Um beijo não deve ser dado e recebido mas uma etapa qualquer entre duas apetências. Como um lamento. Sempre uma pequena ou grande loucura possível – um pequeníssimo elogio da loucura, um vector centrípeto, e sair do círculo vicioso. Da auto-piedade. Um gesto leve ou incisivo. Como um sacudir de mão sem desdém. Aquele gesto forte do flamenco. Desses pequenos ou grandes gestos, há-os destrutivos, mas há também os outros. E o segredo, na generosidade que se vira para si próprio como para os outros. O que se quer, e a coragem de sair dos territórios confortáveis, assumir a nulidade, descomplicar e desembrulhar cada momento como fosse anterior à grande batalha, e a batalha de cumprir a vontade sem preguiça, um desafio que se conhece de frente sem substituir pelo comprazimento na impotência. Dançar algo ou alguém, como desenhar. Dançar no corpo contra a paralisia da mágoa. Sem a piedade de si. Antes gostar e não gostar. Que se nos atrapalhe a postura dos ombros com peso a mais do que o que ali cabe. Gostar ou não gostar. Mas não a pena. Da piedade. E já agora a espada. Ou flores. Flores em vez daquelas palavras difíceis que nos caem dos pensamentos irreprimíveis, imparáveis, e é bom que não acertem em nenhuma folha. Antes, que se entranhem na terra – e aí, fermentando sirvam de adubo – onde pertencem estar as matérias escatológicas. Estranha duplicidade que abarca, destino, última ressurreição, fim do homem ou do mundo, e o fim do processo digestivo. Tudo coisas que não quero saber. Que as palavras, como um êmbolo, premindo bem fundo, incisivas ou veementes, injectam todas as dimensões do sentir, do pensar. Mas como o êmbolo de uma seringa, quando injectam ar, esse ar – vital, no entanto – matam. Poderosas e cirúrgicas como bisturis. Mas aí prefiro a espada, o florete. Duelos antigos combinados e justos. Corpos no espaço e que ganhe o melhor. Como se a vida fosse uma competição. De capa e espada. Mas antes o manto de uma certa leveza. Da fantasia. Do esquecimento. Aquele. Ainda o ar, vital. O éter, anestésico. Essa substância que filósofos, naturalistas e depois os físicos, acreditavam habitar todo o universo. Sem massa, volume. Indetectável e sem atrito. O caminho da luz. Volactil e conhecida dos alquimistas. Tão conhecida como inexistente. Mas na mitologia personifica o conceito de céu superior. O céu sem limites ou o ar elevado, puro e brilhante respirado pelos deuses. Oposto ao obscuro inalado por seres mortais. De um matrimónio nascem terra, céu e mar e de outro, dor, engano, fúria, altercação, luto, mentira, punição, esquecimento, medo e vários outros filhos de mau feitio. Mas a genealogia é contraditória mesmo nos deuses. Tanto são filhos como pais, como uma reciprocidade ambivalente e comum entre causas e efeitos. É a esse éter que aspiro respirar quando a escuridão e o peso me pesam. Esse éter que do grego significa queimar e tornar escuro como o breu da fuligem. Ou fazer luzir. A luz que queima. Iluminar até à incandescência. E ceifar dores da consciência e, da matéria já do fumo, deixá-las subir e evolar-se. Num território aéreo e longínquo. Leve e fluido. É a inviolável solidão não da matéria mas do etéreo. Do tudo tornado o nada invisível. E diz a Química: éter e ar misturados, um potencial explosivo. Misturas complexas. Como tudo na vida. Mesmo sob um manto leve e etéreo. É isso. Exercícios de éter e anestesia. .
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasEstrangeira para sempre Flora. Fugida das antigas Índias portuguesas, já não lembro de onde. Da desonra de um casamento desfeito, de um amor, ou de um azar qualquer que nunca era para ser casamento. Da vergonha. Da família. Ou a da família, dela. Renegada. Lavava a roupa por horas sem contar no tanque da varanda. Esfregava a roupa e revolvia-a envolvendo tudo no sabão azul e branco. Mesmo mágoas antigas, até sobrar só aquilo que a movia de uns dias para os outros. Dobrava e voltava e batia e espremia e desdobrava e molhava e ensaboava e enrolava de novo. E rolava a roupa em rolinhos nas caneluras gastas do tanque. Ou prendia com uma mão e estendia com a outra, a massa informe das roupas. Como massa de tender – como eu gostava dela. Esfalfava-se meticulosa, amorosamente e sem pressa. Comigo hipnotizada pela tarefa repetida e porque gostava dela. As mãos finas de unhas alongadas, murchas de tanta água e de horas. O futuro por companhia, as mãos como metáfora. E cantava. Com uma voz clara como uma pedra. Não melódica nem muito bela na musicalidade. Ela também. Não era bonita. Ou era, afinal. Antes com o som limpo e natural das coisas naturais. Cantava sempre e o rosto, mesmo fechado nunca transparecia tristeza. Tudo e nada abria ali um sorriso rasgado com uns dentes enormes e daquele tom particular de marfim na pele muito escura. Lustrosa. Falava a sorrir como se a alma nunca lhe coubesse. Os olhos de córnea amarelada, rasgados e dolentes, vítreos. Líquidos como vidro. Vivia num quarto, e depois noutro, e noutro. Todas as economias se transformavam num enxoval de colchas, toalhas e rendas, lençóis nunca estreados, cobertores. A sonhar com um casamento e voltar. Sempre só. Nos seus sonhos. Impecável, de roupa clara, severa, sem idade, quase como engomada e o eterno lenço de sair à rua. Claro, acetinado, sempre como novo e apertado com lassidão debaixo do queixo. Em torno de um cabelo espesso e negro apanhado e enrolado com ganchos. Tão lasso, o nó do lenço, que escorregava sempre. E ela ajeitava. Talvez um laivo de charme nesse deixar escorregar e compor. E deixar cobrir os ombros e subi-lo de novo. Apertar e depois afrouxar…Magra, tão magra. Com os malares volumosos a saltar da pele. A comer mal. Sempre. Para repartir desigualmente o que tinha, com o seu sonho remoto. Sem idade. Percebo agora que muito nova e já sem idade. Como da família mas sempre numa reserva de humildade estranha para quem nos tinha tanto afecto. Um certo orgulho. Ou a noção de que os sacrifícios na comida só a ela diziam respeito e viriam a tornar-lhe a felicidade possível. Um dia. Um dia que nunca chegou. Ela sim. Foi chegando. Cada vez mais longe e mais abaixo. Um dia, noutra década muito mais à frente. A uma barraca. Não uma casa decrépita ou sórdida. Uma barraca daquelas feitas de restos de coisas. Em que cada pedaço era o remendo do que nunca foi outra coisa. Arrendada. Também se arendam coisas assim. E sempre como se mesmo para além das intempéries reais dos invernos, só fosse importante para ainda guardar o enxoval e abrigar os cães. O cabo dos trabalhos para realojá-la depois já de toda a vizinhança desaparecer. Não havia lugar para ela com os cães. E sem eles, para ela também não. Eles e o enxoval do sonho. O sonho também de reaver poupanças confiadas ao empregado de um banco e desaparecidas em parte incerta da vida ao longo de anos. Enganada sempre e confiante o suficiente para voltar a ser. O enxoval renovado dos desaparecimentos sucessivos de quartos e portas mal seguras. Desapareceu, estrangeira como sempre, durante muitos anos, porque as pessoas desaparecem e a vida fecha-se sobre elas. E um dia fez dezenas de quilómetros para nos ver. A pé. Porque a terra anda-se a pé se não fôr possível de outra maneira. Que emoção. Incompreensível como sempre no mesmo português cantado e estrangeiro, ou pior. Muito silêncio pelo meio, a memória a recuar mais para perto do sonho. Suja como nunca tinha sido, envergonhada, carinhosa como sempre, mas veio pelos pêsames e não por ela. Soubera. Depois fomos nós os mesmos quilómetros para lá. Ver o que não se entendia do que dizia. E entender só o que era possível. Sem os cães, nunca. Revolvia os caixotes por comida para eles. Não precisava de mais nada e não queria mais nada. Só o que tinha sido dela. Tão sem idade como sempre mas muito mais ressequida, com muito menos dentes. E a cheirar mal. E os cães doentes. E sempre aquela desconfiança talvez real de que não se podia afastar muito dali para resolver a vida, porque alguém lhe rondava as tábuas mal acrescentadas da porta. O enxoval de novo e sempre em perigo. Os sonhos, não sei se ainda nítidos mas o enxoval, sim. Flora. Menina Flora, sempre tratada assim, com respeito e para todos, nunca de outra maneira, porque solteira. Para sempre solteira no sonho, cada vez mais casada com ele e menos com a realidade. E estrangeira para sempre.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasNome interior Entranhado no cerne do texto como sob camadas e camadas. Ilegível. Podia ser crónica da cidade de K. Mas não uma referência à Trilogia da cidade de K. De A. Kristof. Simplesmente um paralelismo de título. Na Verdade a cidade de B – K, a cidade de B. Há um título. No interior do texto. No interior da cidade. Dessa cidade. No interior da casa, dessa casa. No interior. Um título difícil de dizer porque submerso. Ficou assim. Finalmente e bem, porque se trata do interior. Um título surge às vezes no início, vai mudando ao longo do texto e apresenta-se muitas vezes com a nitidez irremediável, no final. E com a naturalidade de núcleo em que quase podia resumir-se ali uma crónica. Não esta. Tanta dificuldade em definir um, não pela falta mas pelo excesso. Podia ser crónica da cidade de B. A cidade de K. Poderia ser uma trilogia das cidades de B., mas era uma outra crónica que não esta. Do muito antes, e esse seria um título possível, do muito depois, e seria outro. E de aí. E aqui vai. Do ver… Lembro muitas vezes aquela imagem. Agora que me interrogo, tantas vezes perplexa, sobre as múltiplas camadas do ser. O ser ínfimo, pequenino bem lá no âmago da parte mais recôndida de nós. Disse-ma, desenhada no discurso, com aquela nitidez preciosa de uma pequena fotografia antiga a sépia, uma mulher que vi uma única vez há muitos anos, de quem não lembro o nome, amiga de B. na cidade de K. “That little inner self” ou “that little inner me”. O inglês, meu e dela, não eram de grande sofisticação e nenhuma de nós falava a língua da outra. Casa nova. Uma festa com tango. Inaugural também dessa paixão para sempre. O tecto longínquo, uma lareira enorme e os quadros cheios de seres, minúsculos também eles, nas paredes. Enormes os quadros, povoados de enormes pinceladas cheias de inquietação a negro, ínfimos, quase invisíveis, os seres. Numa contradição de escalas absurda. Veemente. Que só mais tarde vim a entender. E a imagem ficou para sempre. Uma e outra. Ela, essa mulher doce, séria, intensa. De voz baixa quase inaudível. E a imagem que me fez ver. É esse ser pequenino que colhe e que fere. De uma ternura que, maior que tudo, dói mais que tudo. Naquele dia, acordei na sala grande, rodeada daqueles quadros enormes e incríveis e com Milena – o nome não foi um acaso – miúda, sete, oito anos talvez, já não sei, com aquele ar feliz, aquela voz, já então curiosamente rouca e grossa, aquelas covinhas no rosto liso e branco, de um brilho quase de porcelana. E uns sapatos indizíveis de camurça preta, enormes e de salto alto, calçados e acabados de apanhar do lixo. Para me mostrar. Pareceu-me. Talvez em troca das ervilhas e arroz que lhe cozinhei aqui, e a única coisa que comia num país estranho. Quando queria ficar a dormir na minha cama e achou tanta graça, no seu modo aparentemente distante, quando lhe apresentei as minhas bonecas, e ao facto de terem nome. Claro que as minhas bonecas têm nome. Mesmo Sissi, mais recentemente. A minha primeira boneca menina, oferecida por uma prima imigrante em França. De cabelos crespos aloirados e olhos azuis. E crioula – a boneca – realidade que só se impôs com toda a sua estrondosa evidência, como uma epifania há meia dúzia de anos. Como aquele meu tio-avô adorável e com nome de flor, alto, moreno, de olhos salientes e lábios enormes, cabelo frisadinho e músico de trompete…Tocava aos toiros nas horas vagas. E de resto contabilista como Pessoa. Mas como pessoa, um amor de energia, ternura e humor. Daquele se diz que a contabilidade traz o poeta à realidade. Deste, meu tio, talvez a música. O fizesse voar dali. Aquele rés-do-chão alto em K., a lembrar uma imagem onírica, remota, bela. Montparnasse, uma janela, um quadro vivo, uma sala grande, um piano, livros, uma mesa enorme para dois, calmos, sós de aparência silenciosa, com todos os segredos e raivas possíveis para além daquele momento mudo entrevisto de baixo, de longe. À distância da utopia. Com B. ali também, os nossos seres pequeninos e grandes, de mão dada a olhar. Mas em K. agora, muito tempo depois, já não de mãos dadas, mas visíveis como sempre, uma cidade realmente triste e com um número contadinho sovinamente de horas de sol. Não semanais ou mensais. Anuais. Onde, mesmo assim aas pessoas conseguem ser felizes. Ou por um outro lado, talvez o contrário, talvez o oposto, a Islândia. Como se pode viver sem o lado escuro dos dias, sem o lado noctuno da alma, ou sem lhe encontrar o lugar de apaziguamento, de fechar as portas a recolher-se depois de toda a violência, de todo o conteúdo a extravasar dos dias. Altos e baixos como as vagas e mudar a folha do calendário. Como se consegue viver sem esse lado nocturno de nós e sem a empatia da noite, o ocultar progressivo do ruído, o sinal de que é bom apagar e reacender para outro dia mesmo se igual. Apagar em sintonia com o astro. Como cílio enorme que se fecha connosco no seu seio. Mais tarde no dia, os miúdos todos do prédio sentados na cozinha a comer batatas. Cozidas e com azeite. Só. A maravilha das coisas pequenas. Mas não como aqueles comedores de batatas de Van Gogh, o chilreio era de alegria, e porque não havia tempo para mais nos preparativos da festa. Ela, essa mulher nesse dia e de quem não lembro o nome, sensível, secreta e densa. Esqueci-lhe o nome e perdi-a de vista porque tem que ser assim com muitas pessoas que vão passando. Havia um papelinho fino, arrancado ao canto de uma página de qualquer coisa, um envelope, talvez, com uma morada ou talvez um endereço de email, já não sei. Mas a propósito de deixar de fumar, naquela sua voz baixa de uma enorme suavidade, seriedade e ponderação no peso com que dizia. Dizia ela, que isso acontece no dia em que conseguirmos ver com clareza esse ser pequenino, verdadeiro elementar e íntimo que transportamos em nós, e o virmos como um ser que se carateriza ou não por fumar. Penso muito nisso e agora, que vejo melhor esse ser pequeno, insignificante e escondido a boiar na imensidão de tudo o resto que sou no coração, vejo-o, a esse ser pequenino como uma criança que fuma. Sempre. É isso. Pequena, carente, indefesa, desesperada e dependente. Uma criança de três anos, que fuma. Nada é possível fazer. Dizendo o que ficou dito, ficou tudo o mais por dizer. Porque isso sou eu a dizê-lo. Eu que sou outra. E se eu fosse mais eu, dizia de maneira diferente. Noutro tempo noutras palavras. A forma, o recorte exacto, a cor, o aroma do medo, tudo. Tudo o que não sou porque não quero ser. Não posso e não quero ser. Mas sou lá no fundo. Bem lá no fundo. Um fundo longínquo mas como a crista da onda, sempre ciclicamente a alternar com a calmaria lisa suavemente curva e mansa chã. O chão da onda. Aquele movimento curvilíneo e largo de vai – vem. E dizendo, sou eu que o digo e não esse outro ser pequenino de mim. Essa é a voz que não se ouve. Talvez eu nunca me tenha afastado dessa figura pequenina mas vejo-a melhor agora. A propósito de uma outra imagem recorrente. Um núcleo central e centrado, ínfimo e irredutível, por detrás de todas as pessoas e personas que somos em camadas sucessivas, envolvendo de forma centrada ou dispersa esse centro essencial e original. De que partimos. Que abandonamos, esquecemos, odiamos, tememos, escondemos de tudo e todos e de nós. Também. Às vezes. Às vezes como uma pedra. Um seixo minúsculo e redondo por igual. Pesado como chumbo e ínfimo. E irredutível. E para dentro do qual não há mais nada do que a mesma matéria visível à superfície. Não me afastei nunca demasiado. Os terrores nocturnos que me acompanham até hoje podem dizê-lo. Que me perseguem. Uma destas noites, um estrondo enorme e de seguida um outro estrondo enorme. Nunca é preciso tanto para aquela paralisia de que sempre me custo a libertar, até conseguir mover o braço e acender a luz do candeeiro amigo. Percorrer a casa como um cão a farejar todas as possibilidades fantasmagóricas e a garantir que nada se passou. Ninguém. Nenhum monstro indizível. Nenhuma presença intangível. Só a casa. Acordada pelas luzes que vou acendendo precipitadamente ao longo dos corredores. Espreitando atrás de cada porta e olhando para cima do ombro para prever todas as possibilidades. E desta vez os estrondos impuseram-se no momento exacto do acordar e retrospectivamente com uma enorme carga de realidade. Realidade de som mas não de causa. A causa, como sempre, apresentava-se atemorizante, desconhecida, com uma qualidade etérea de fantasmagoria, acentuada pavorosamente pela aparente e veemente realidade do som. E os terrores nocturnos, sempre nocturnos. Mas não sempre, afinal. Com espaços, intervalos de não sei o quê. Basta um ruído desconhecido que me acorde, naquele pequeno desfasamento entre o acontecer, o acordar, e o perscrutar retrospectivo, e a angústia instala-se paralisante. Esta noite um estrondo forte. Ali por detrás da porta, irreconhecível, dramático fazedor de imagens. Possibilidades. E lá estava o terror. E, pela primeira vez, deixei-o ir passando quase com indiferença. Uma indiferença estranha. Como se houvesse algo maior a temer. Como se não fizesse mal o que quer que fosse. Nada importasse, nada valesse a pena. E ao contrário de sempre fiquei ali, meio distraída, ao contrário das outras vezes, por pensamentos sobre a estranha indiferença que me assaltou e pensei, estou a crescer. Depois pensei, estou talvez a morrer. Isto não me pareceu um bom sinal. Não ter quase mais medo. Não me importar o medo. Essa analogia quase como um presságio nunca se daria não fossem os pensamentos que avançaram na noite depois dos estrondos. A estranha indiferença pelas causas e pelos efeitos imperscrutáveis. A possibilidade de dormir depois. E dormir, depois. De manhã constatar serenamente que não foram pedaços de tecto que caíram como de outras vezes, mas um quadro que caiu, como de outras vezes e arrastando uma pesada moldura de latão. O quadro, um sorriso gigante de adolescência. Impresso em tela. Para uma exposição. O retrato, de mim com metade da idade. Significados, significantes. Ligados aos pensamentos da noite. Tenho vários retratos meus espalhados por aí. Mais para me lembrar que existi do que por narcisismo. Acho. Que existo. Como espelhos. Ela deixava-se ficar para trás. Lembra-se de si a olhar para o chão que ia percorrendo, a orla do vestido clarinho e os passos calçados de verniz preto. Mais abaixo no final das pernas pequeninas. E a pensar, que ela, a pessoa grande não se virava para esperar por si. Um pequeno pensamento velhaco de criança a precisar de um mimo. Um pequeno pensamento desonesto a explorar a diferença entre o caminhar de pernas grandes e pequeninas. De um teste à possibilidade da prova do amor. E hoje sabe que quando se deixa ficar para trás as pessoas não se voltam. E por isso fica simplesmente. Sabe que não se vão voltar, não é por isso. Como ela, a pessoa grande, embrenhada nos assuntos sérios, e na pressa da vida. Mas de noite aconchegava-lhe a roupa e chamava-lhe carocha. Com beijinhos no pescoço. Ou carochinha. Nome que ainda hoje está dissociado do bicho em si. E que fica para reler e de todas as vezes que tem dúvidas. Porque não o diz mais. E sabe-lhe bem. Nunca perguntou porquê nem adiantaria. Ela não se preocupava em pensar os porquês das coisas. Tinha mais que fazer e não era assim que era. Tomaram-lhe de assalto o quarto, quando a outra pessoa grande estava em África. No exacto dia em que partiu. Ela directamente para a sua cama e a outra pessoa pequena arrastando um divã para a nesga entalada entre a parede e a cama grande. E ali ficavam sozinhos uns com os outros. Não sei, não sabiam, se tinham medo das mesmas coisas. Ela, a pessoa grande, adormecia exausta e morta de um cansaço de nela e nos dias caberem coisas para cinquenta horas. E ela ficava ali sossegadinha a olhar de lado o monstro negro atrás da porta, desenhado pela pouquíssima luz da rua, coada pelos buraquinhos da persiana. E sempre sem se lembrar que de dia eram os roupões pendurados. Sabe-se lá se também de noite. Eram e não eram. O ser ínfimo e pequeno, sem realidade e sem peso, denso como uma bolinha de chumbo. Daquelas, das espingardas de pressão de ar. Que um dia dispara sobre nós e atinge o coração. Em cheio e sem sangrar. E se aloja ali. Pequena, ínfima. Dor. E um dia acontece. Vê-se sem querer aquele ser pequenino de outra pessoa. No centro de tudo. Para além do gostar e do não gostar. Muito para lá atrás, por debaixo, detrás de todas as camadas contraditórias e dolorosas. Todas as feridas e todas as contradições. Um olhar mais que próximo por algo que querendo ou não, e por vezes abusivamente temos dentro de nós. Ver. Com toda a nitidez que se procurou intrincada no meio de todas as camadas. Debaixo de todas as sedimentações aleatórias. Sem esoterismo, só uma intuição com um desenho próprio. Ver. Então. Um ser pequenino e essencial. Nuclear. Ou porque conhecemos de criança, como Milena, ou porque nos aparece num primeiro olhar para além de uma estatura enorme como B. Outras vezes pode levar anos, décadas. A ver. E a partir daí, habita-nos, sem ruído e sem ferir como em roupas de flanela macia. Que queremos acarinhar e cujas dores doem nas nossas mesmo que nada tenham a ver com a possibilidade de as amenizarmos. É o amor. O encontro com o ser pequenino de alguém. Outras vezes é o encontro mas não o amor. E outras, ainda, é o amor mas não esse encontro. Que, quando é, habita, mesmo sem saber. Que fica ali escondido quando está e escondido quando não está. Que vem de mansinho por entre todos os retratos. Dolorosamente acarinhado pelos dedos da alma. Se existem. Uns e a outra. Não saber como se insinuou assim, aquele, quando. Quem o vê, ama ou detém o poder imenso de manipular. Ou ambas as coisas. Algumas pessoas são estranhas mesmo na natureza do seu modo de amar. O resto é por vezes ilusão de óptica. Aconteceu-me. Uma e outra das coisas. E outras coisas de outras coisas. Ver. Mesmo que poucas pessoas, nessa qualidade-ser ínfima, despida e essencial, é privilégio e é imenso. Quem vi e vejo, caminha mesmo se à distância da saudade, “descalço e em pijama no meu coração”.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasTraços de eternidade As coisas chegam de assalto. Névoas de encantamento ou de perturbação, sempre e sempre, a recobrir as coisas que já de si são completas e inapropriáveis. Que já em si abrem universos de inquietação mesmo sem passar além da mais simples intuição. Aqueles pequenos, quase imperceptíveis sinais, que somados na mais remota cave do subconsciente, esculpem uma progressiva impressão de entendimento. Às vezes eu tenho pressa. As coisas que não são boas deviam chegar de uma vez. Não ir-se anunciando como maus presságios. Preparando terreno dúbio. Para o desconhecido das coisas boas tenho tempo de esperar. Paciência. Toda a do mundo. E todo o mundo num fragmento da cidade. Pensar em sair e percorrer aquele curto, tão curto caminho até ao Jardim Botânico. Na verdade não é um caminho, quando me domina essa ideia fixa. Tão adiada como subitamente emerge de uma urgência, que já não é de ser mais do que ir. E este ir, sem caminho apreendido exepto pelo olhar, mas naquele plano em que, de imediato, se esquece. Uma consciência e uma memória provisórias e inúteis face ao importante que é chegar ali. Ou mais precisamente, estar aí. Um percurso inconsciente entre o início e o termo. E chegar é esquecer que houve a necessidade de ir, saltar sobre a ansiosa urgência de estar. E estar. E assim eu não fui ao Jardim Botânico porque o que queria era estar lá. Quando caminho, só quero que haja caminho e não destino. Mas não era assim hoje. Levei-me para lá. E fui estar no Jardim Botânico. Viver no Jardim Botânico. Como uma planta. Como amar. Ou como uma daquelas árvores que admiro. Há o tempo para um amar animal e há o tempo para um amar vegetal. No esplêndido e específico modo de cada natureza. No discreto e instintivo fado de cada uma. E, se de ambas as acepções existem empregos menos nobres e mais pejorativos, diria que lhes aponto a luz mais confortável e nenhuma subtractiva metáfora. Das plantas, com as raízes na terra, e os rebentos mais leves no céu. Pés na terra, no negro da terra, e cabeça no céu, no branco da luz do céu, como os humanos e é aí que reside a razão e o lugar do sonho – a meio caminho, o coração, o corpo, territórios de todas as cores e de outras dores. Pelo caminho outras folhas. Muitas folhas de uma escrita agitada, em nervos que conduzem a seiva. E já ali, a surpreender-me e a ilustrar o que me tomava os pensamentos, no topo de um caminho, aqueles corpos. Aqueles corpos vegetais. Ambíguos, veementes, dramáticos de pose e insinuação. Depostos, sobrepostos. Aqueles corpos com referências visíveis a marcas de corpo, de pele e vísceras. Ocultas. Expostos. Incríveis corpos. Sensuais, mistos, matéria vegetal a insinuar uma vida sensível. Parciais, imiscuídos entre as raízes retorcidas do drama de se verem arrancadas à terra, e topos cortados rente às primeiras folhas. Como uma ilha. Como estigmas, que marcaram nas árvores mortas, sinais de uma transmutação possível. Uma antropomorfia póstuma. Como corpos caídos da cruz. De uma existência. Levei os meus pensamentos tóxicos como crianças agitadas, fechadas, presas num apartamento ínfimo, ou animais, de trela, e soltei-os ali para que gastassem energias longe de mim. Deitada num banco e de olhos fechados já só para ouvir das árvores aquele rumor intenso e progressivo, à passagem de uma aragem mais forte. Quase um rumor marítimo. Intrigante a disposição dos bancos. Muitos virados para encruzilhadas. Mas eu sentei-me em vários, na minha procura. Elas, majestosas. Perfumadas. Imensas. Ouvi-as acalmarem-me, escutei as variações nos rumores, escolhi cuidadosamente um caminho de bambu, coisa de feiticismo. Grandes maciços a debruar um caminho, e pela primeira vez ouvi aqueles sons muito particulares que lembram cascos de navios antigos. O ranger e estalar das madeiras, guinchos de tensão, e o estralejar seco de uns contra os outros, aleatório e sem musicalidade, e sempre aquele rumor de todas as copas de todas as árvores em redor a lembrar ondas de mar. E navios pirata. Assim. E de novo Emilio Salgari, da infância. E foi grande a viagem. A Floresta Negra, Sintra ou o Camboja. E eu sei lá como são as florestas no Camboja. Mas este lugar com traços de irreconhecimento podia ser em todo o lado. Em todos os lugares menos ali. Incrustado no coração da cidade. Recoberto de muros como camadas de ser, as fibras de um coração. Escondido, a pulsar. Noutros lugares. Tudo e em tudo diferentes e dali. Mas ali era, foi, absolutamente um lugar distante. Qualquer. Qualquer coisa como a dizer entre um aqui e um aí, e o caminho será sempre curto. Entre uma sensação leve e límpida, e tudo o resto, um passo. A pensar se será desta vez que mudo os meus pensamentos desta roda viciada e presa por um eixo fixo. Soldada a ele. Para lá. Eu não me farto das coisas de que gosto. Farto-me de mim nelas. E por isso mudo de cadeira e de candeeiro. De luz. E o mundo agradecido da casa, grato pela solução dessa quase injustiça, muda como para um bom dia. Mas ainda sobre o lugar das coisas, dos percursos perto ou longe do lugar material. A casa. Cada lugar onde me encontro, encontro-me não como se fosse outra, mas uma mesma num lugar diferente de si. É esse o efeito de uma casa cheia de lugares. Penso que até mesmo uma casa pequenina. Basta o ângulo de uma cadeira, virada sobre a mesma parede, de uma mesma casa, qualquer casa que façamos habitar de tudo o que somos. Uma parede de frente ou oblíqua não se sente do mesmo ponto de vista. Uma, de uma equidistância elementar, estanca o olhar, a menos que tenha uma imagem de fuga, uma janela, ou uma imagem-janela. Outra é como um caminho mesmo que curto por onde o mesmo olhar, da mesma pessoa, no mesmo momento-tipo, flui até mais adiante e como rampa para prosseguir até longe, em caso de obstáculo. Tem o perto e o longe em si. Sento-me em lugares diferentes, diferentes mais ainda daquele que é o de sempre. Onde se concentra todo o peso de uma vida. Os nós. Os acontecimentos subliminares. Mudar de lugar dentro deste enorme potencial de universo é o efeito mágico que procuro. E resulta tantas vezes. Mesmo no interior. Da casa, também. Há um arrepanhar súbito de sobras e ponderações inúteis e uma limpeza momentânea que reenvia a um lugar, esse, interior. De essências. As que não podem deixar-se ferir do circunstancial. Ou que são o início. Como aquele grão de areia que fere a ostra e em torno do qual se constrói a pérola. Defensiva. E quando chega o anoitecer, perceber que nunca se saiu do mesmo lugar. Como a pérola nunca sairia da concha. Mas será o mesmo lugar? E nunca é. As correntes, as marés encarregam-se de que não o seja. E de novo aqui, a ensaiar coragem de começar um destes diários, num dos grossos volumes que alguém me ofereceu. E a pensar, e se depois de tudo dito se esgotar o que sou. Sempre assaltada por palavras. As justas inteiras e perfeitas no que me dizem, as que me esqueço de imediato, as que me reviram a mente e sei que vou esquecer, as que não me deixam dormir. As que me levantam de um lugar em busca de um lápis. As que me desdobram e desembaraçam fibras enleadas em si próprias. Sempre digo, mas é tão verdade. Isso, o medo de enlouquecer nelas. Delas. Nesse absurdo. Penso se irei enlouquecer de palavras a inundar e a não dizer. Se isto é sintoma de silêncio. Ou de um excesso de absorção, que tem que ser conduzido por palavras até ao exterior. Como uma válvula de pressão. Como uma tentativa de conversa. Como uma limpeza que produz alívio. Como escolher tralha que tolhe e deitar no lixo. Como lastro. De dia viajo. Com Salgari. Na verdade, já não com Salgari como dantes, mas como Salgari. Sem sair do mesmo lugar. Que é dizer uma coisa de uma enorme imprecisão. Nunca se parte de um momento e chega a outro sem ter saído de um lugar, um lugar de nós, que pode até ser vizinho do outro mas não o mesmo exactamente. À noite afogo-me na insónia em palavras. E penso de novo se vou enlouquecer, de tantas…e dos rostos. Sim, depois os rostos. Vejo-os por todo o lado sem entender se acompanham ou vigiam. Nos copos, por exemplo. Andam sempre copos em cima da mesa. Enormes, com água e sempre aqueles rostos a surpreender-me num olhar mais distraído, por detrás da superfície lapidada e por efeito dos objectos atrás. Rostos com olhares estranhos e definidos. Estão ali e depois não voltam mais, os mesmos. É uma potencialidade preferencial. Como aparecem, podiam ser outras coisas milímetros mais ao lado. Mas não. São sempre os rostos com que a minha alma prefere deixar-se surpreender. Assaltar. E tenho medo. De ver sempre umas coisas nas outras. Ou querer ver. E a pensar que estarei de volta ao mesmo lugar e à mesma pele mas sempre num outro momento. O que será sempre um ser diferente. Em tudo o que fôr igual. E um ser igual em tudo o que fôr diferente, como sempre as coisas são. E que ambas são verdades entrecruzadas e nem sequer paradoxais. Porque subentendida nelas está a concreta existência de núcleos essenciais e, se bem que vivos nas suas metamorfoses necessárias, de algum modo imutáveis e estruturantes de todos os detalhes circunstanciais que numa roda-viva podem parecer mudar como com um vento, uma aragem mais forte, um esvoaçar fútil, uma onda de través, um apagamento súbito, ou um golpe mais cru. E a pensar porque será que nestes anos todos nunca lá voltei. Nem acho que tenha lá ido alguma vez, e se fui, nem o facto na sua elementaridade ficou em memória. Portanto não fui. Não sei porquê. Mesmo se fui. Décadas de distância e mais de uma de vizinhança cúmplice. Penso nele. Muitas vezes. Talvez não tenha voltado por temor à desilusão. Mas desta vez fui. Para nada. Se esquecer o quanto gosto das árvores. E das plantas todas e de estar simplesmente. Na realidade fui para estar lá. Fui lá para estar. Mudei-me para lá. Por um tempo curto demais para ser apelidado de mudança. Mas não foi tanto ir como foi ficar, ali. Sentada. Gosto de estar sentada porque o corpo deixa de existir, de ser sentido. De ser acção. Utilidade. Pode-se deixar de o pensar. Como uma planta. É uma espécie de anseio, este. E sem ouvidos. Atemoriza-me pensar que haja gente. Muita gente, ruidosa, perto, sentada perto, ruidosa e nítida. Mas não havia. Não é tanto a possibilidade de haver gente, é mais a certeza de que a gente fala. Demais, demasiado alto. E eu não quero saber o que dizem. Não quero ser obrigada a ouvir o que dizem. Mesmo sós, as pessoas falam muito, hoje. Uma loucura vê-las a falar tanto. E os automóveis. Mas estes produzem ruído sem palavras. E palavras já me sobram as minhas. E a todos os que as gravaram nos troncos estoicos de bambu. Querendo ficar. Como foi hoje. Quando estar é maior do que ir. Mas há estar e há caminhar e são coisas diferentes. Como diferentes, os modos de percorrer ou deixar escorrer o tempo. De um modo ou de outro foi uma bela viagem. Depois voltei porque não podia ficar para sempre. Naqueles traços de eternidade.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasMapa. Ideia – mundo Etéreo e vivo – uma questão mais de geometria. Vive aqui. Aqui onde quem, aquilo a não dizer. Aqui onde. E se fôr dentro ou fora, sólido, substancial ou imaterial. Vive. Aqui. Posso dizer. E disse. Um dia que viria. A brincar. Em cada passo que dou e deu. Dentro do espaço que é e foi habitado e passou a ser. Em cada pegada e impressão talvez escondida por aí em cantos que a vassoura do tempo corre. Mas não sabe e não varre. Contida na possibilidade material. Talvez da memória. Sólida. Visível. Talvez da visão imaterial. Vive. Aqui. Aqui onde, pergunto mas sei que aqui é entre camadas. Quem, o quê. De umas para outras e de novo. Camadas de ser. Como vestes de frio e calor. Coladas ao corpo ou em cima da cama. Espalhadas pelo chão. Camadas derramadas da vida e da pressa. Misturadas e. Por momentos. Talvez carinhosas. Esquecidas ou dispensadas na pressa de um minuto a seguir e a voltar atrás. Às mesmas e outras. Num dia bem noutro menos. Gostar e não gostar. Uns dias das pernas curtas, outros das sombras no rosto. Mas isso sou eu. E as roupas que caminham de curtas para largas e de volta a pesadas ou friorentas. Ou leves e florais ou opacas e aprisionantes. Correntes secretas. Ao negro ou a cores. A reserva… E os saltos. Não, os saltos têm que voar. Mais perto do rosto. Para mais perto do rosto. Dos olhos. E de repente lembrei-me daquela sensação de orelhas de elefante. Sim. Como guia. Como gesto, como rédea. Como ternura simétrica. As ternuras são-no raramente. Mas esta. Como os pés. Ponteiros de um relógio. Dez para as duas. Quatro da manhã. Os meus, meia-noite. Mas dez para as duas é uma hora terrível. Noventa quilos de massa visível sem peso, do dia anterior, ou cento e vinte para a frente e para trás. Um limbo. O que interessa é o peso. O peso e voar. E depois voar. Em círculos levemente tontos e aleatórios deixando pedras e grãos de poeira para as margens e retornar ao ar. Territórios. E desses o mais real. Onde se vive. Voar em círculos tentando não entontecer. Embriagar. Voar fora do etéreo agarrado às coisas como se fosse. Voar sem registo e sem mapa. Âncora a puxar para cima a vertigem invertida. O puro prazer de voar. Como os pássaros ou então os insectos. Nos seus desígnios estranhos, insondáveis. Sim, sem se saber. Mas ainda assim. Não são metáforas, não existem de outra forma. Como dizer? Espirais e hélices que a mente escreve. E descreve, sem outra maneira de dizer. Densas e cheias de forma, sem acção nem tempo verbal. A simetria, ser estranhamente incisiva. E a ideia leve. A geometria. Atirada assim à erosão do elemento aéreo. Depuradamente só. Levemente triste ou justa. Levemente leve e exacta. Essencial. De essência. Ou talvez também de necessidade. O vôo durante. E como a palavra, o que dura. Que o tempo, o tempo não existe em estado puro. Estratégia, alvo, decisão. Golpe. Nada disso é o tempo bom. Só de asa. Numa aragem imprevisível. O que deixa simplesmente viver. Dizia, voar. Ideia nem sempre sonho. Nem sempre. Talvez porta. Janela-mundo. Talvez palavra. Aquela palavra. A palavra talvez. Aquela.Talvez sonho. Sonho, talvez. A lembrar Henry James. Aquela novela e há muito tempo… num arrepio de frio súbito. A esquecer de novo. Voar. Portanto. Voar numa ideia que vive aqui. Imprecisa, indefinida, cuidadosa. Voar na ideia em que vive aqui. Em que vivo aqui. Voar na ideia de quem de quê não dizer. Mas que vive. Vive aqui. Aqui onde quem não vou dizer. E eu. Também. E se sem querer não quereria. Querendo, quero. Às vezes o que é e a complexidade da vida, resume-se a quinze centímetros de distância, ou mesmo cinco ou dez centímetros de letras enfileiradas, com laços que as enlaçam e tornam para sempre – palavras para sempre. Que existem e formulam destino para sempre. Ou não. Mas que existem em si para sempre. No tempo ou no lugar certo ou errado. E entre a indefinição, a indecisão e o medo, e a generosidade o risco. O erro. A dúvida de dois caminhos. Uma emoção forte. Um receio, uma fragilidade súbita. A diferença entre ser e não ser de um gesto definitivo. Como qualquer gesto que inflecte num sentido qualquer e tudo o que não foi passa a não ter sido nunca nem sabido. O que nunca foi. Aquela fotografia de muitos anos para sempre ali solta no álbum. Desde o dia em que lhe vi o outro lado. Um mistério que o rosto da frente não explica. Nunca mais vai poder explicar. Às vezes aqui, sobre a mesa. O verso, na verdade. Um esboço de dedicatória nunca terminada. E o que falta saber, a quem. E ter sido entregue. E não foi. Ou foi mas inacabada, desnecessária. Ou esquecida. Ou um gesto arrependido de o ser. Uma ideia que ficou suspensa para sempre. Misteriosamente inacabada e inconsequente. Uma carta de nada. Uma ideia quase. Que alguém não viu viver. Perdida no tempo de que já não há a memória, a possibilidade da avalanche de uma memória que volta. Que não tem onde voltar. Ou de onde voltar. Não há aquela caneta de tinta azul, nem a mão. E contudo, a ser acabada aquela frase, muito seria nada e sem vestígios de possibilidade de nada. Perante isso o que me existe é tudo. Ou o que era para ser. No quadro pintado de um destino, como em tinta invisível. Uma montanha com as suas vertentes, o pulo e o passo, um cristal com os seus ângulos, as fracturas preferenciais, a refracção a dissecar a luz, uma moeda com as suas faces. Jano. Etérea, indefinida. Em descontinuidade. Uma ideia. Há uma imagem temível. Um rio. E um obstáculo que lhe modela uma curva. Um meandro. E a erosão própria na zona de embate do caudal. E a acumulação de detritos do lado oposto. A modelar as margens. E a curva a apertar. Até que dois pontos se toquem. O início e o fim. E um dia, um caudal reforçado em fúria num inverno mais forte, ou distraidamente, esquece a curva e salta em frente. Para sempre. E da curva resta uma lua de água, uma forma de ferradura, um braço morto, isolada do rio para sempre. A vê-lo passar. A pensar que “curva de rio” é sinónimo em gíria do Brasil, de pessoa difícil, obstáculo. Bar mal frequentado. Problema. Ideia difícil, talvez. Dou passos no centro de outras e aquela, sempre. Também. Como uma cor de luz que embrulha tudo o resto. E há a habituação do olhar. Que a anula por vezes. E as coisas tornam à sua cor própria como se afinal existisse intrínseca à matéria. Por detrás daquela luz que tudo modela a si. Olho em volta e é a casa. Por todos os lados menos um. E também por aí. E por toda a casa. A casa que habito e é uma segunda pele debaixo da roupa. Do frio, do calor. Do desconsolo de ser assim, só. Olho e há uma luz quente, já. Para além do corpo e para além da casa, da cidade. Andando para trás, também da roupa, do corpo, ou mais aquém ainda. E é aí que vive. Para dentro de todas as casas, as roupas e todas as camadas de sentir de ser, de sentir e de querer. É aí. Que vive. Dorme. Acorda. Rapidamente se instala no dia novo. Às vezes com as roupas da véspera. Mais enxovalhadas de uma noite a pairar mais ou menos densa. Ou inexistente e ponte rápida entre uma e outro. Dia, momento. De acordar. Com tudo à beira da cama ou o rosto na almofada. Distante acordar. Muito perto de ser longe nos meus sapatos à beira da cama. E depois volta de rosto fresco e de ponto em branco. Conheço o que vive comigo. Todos os dias. Que me tira o sono e me faz suar palavras pela noite fora. Que esqueço pela manhã. Aquelas. Mas sei que as conheço e voltam com máscaras diferentes mas as mesmas. Vozes. Conheço as minhas. Estranha forma de vida – adoro Amália – de sensações feitas e relembradas, desatadas do corpo, memória, inquietação, anseio, desejo. Uma angústia imprecisa, com outro nome. De forma desenhada. E de ideias gente sem matéria a que se prender. Aqui, pela casa. Em mim. O corpo da ideia. Olho de relance sempre. Um rasgo de olhar, só, para ver de novo. Talvez eu tenha visto a fera. Mas a fera não me viu a mim.
Anabela Canas VozesO tempo do meio Parou. Sem dar por isso. Como aquele momento na noite em que, exausta esta, esgotada do tempo que lhe compete, de repente pára. E dá-se aquele silêncio abrupto que cria uma leve suspensão, uma respiração retida por um segundo mais longo, uma espectativa sempre igual, e logo a seguir a cidade retumbante de frescura a acordar em sons que tiveram ali um breve intervalo. Os de ontem, os de amanhã. Tão mesmos e tão outros se esmiuçados. Extinguem-se os ruídos de hoje e, no espaço de uma respiração surgem os de amanhã. Ou os de ontem, nesse momento, dão lugar aos de hoje. O sono, pelo meio, a organizar os tempos. Parou o tempo. Entendi depois. Parou por aqui, finalmente no olhar mais aproximado de um fenómeno que já vinha longo. Longo demais. Como uma noite que se prolonga mais do que o esperado. Parou. Podia chamar-lhe um meio tempo. O meio do tempo. Ou a meia idade. Expressão estranha de gerações anteriores. Nunca gostei de meios termos, de meias idades ou de meias palavras. Quero ser jovem enquanto isso for real e depois envelhecer confortavelmente e sem drama. Depois. Mas é cedo. Entendi que é cedo e entendi em que estação estou afinal. Neste encontro de todas as perdas. Sempre tive idades estranhas. Onde habita a idade em nós é uma coisa misteriosa. Uns dias no espelho, outros na alma, outros ainda, no falível olhar dos outros. Sempre por excesso ou por defeito. E há sempre defeitos nas idades. O maior de todos nessa estranha e inexistente meia idade. Que se sente e julga a envelhecer mais do que em qualquer outra como se antes o tempo houvesse parado. A continuidade desse fio que nunca deixou de se desenrolar e um dia criou nós. Talvez só mesmo no cartão de identidade. A habitar ali. Em mim o coração anda sempre muito perto do cérebro, ou a mente a tender para o coração. Este eterno encontro que talvez se dê a meio caminho, embrulhado neste nó da garganta sempre em formação. Ou na melhor das hipóteses a saltar infantilmente à corda. Nas cordas vocais, talvez. Coisa pouco poética de dizer, talvez. A meio caminho entre o crânio e a caixa torácica. Thorakikós. Naquele ponto onde se forma o nó. O nó na garganta a explodir facilmente em miríades de palavras. Onde habita a idade, volto a perguntar-me. Nas mudanças do corpo, na descoloração da alma, dos cabelos e dos sentimentos, na crispação da pele em rugas que marcam expressões que nunca houve. Não sei. Dos registos lineares e cromáticos, sim. Nas pintinhas das costas e nas ruguinhas da barriga. Sim. Mas, na maior parte dos dias, na vida. É aí que a idade é a envelhecer. Mas não nos sentimentos. Seja lá onde fôr que os situo. E as pessoas, as mágoas os desapontamentos tudo a envelhecer sem retorno. Os sonhos, as desilusões das ilusões. A criança das crianças. De tudo rescende um sentimento de perda. No tempo de todas as perdas. Já basta o corpo, os objectos. Nele e nisso um limbo de saída tenebrosa. Um tempo do meio em que o seguinte em nada parece poder reavivar. E foi aí que um dia o tempo parou. De exaustão e irresolução. Parou de desânimo. Deixar envelhecer na inércia de tudo, tudo. Ou esquecer. Ou o caminho do meio. Talvez mesmo como no Budismo, a distância entre a auto-indulgência e a morte. Respirar e reiniciar. Com tudo o que merece essa continuidade revista e actualizada. Com todas as quebras entre o hoje e o dia até ao qual a mágoa desidratou sentimentos. Com tudo o que não se pode querer perder, mas sem o lastro do passado naquele ângulo particular. O caminho do meio no tempo do meio. Um encontro para um destes dias. Há coisas a que o tempo de envelhecer não chega. Ver a imagem de uma criança a comer restos de comida do chão. Como um pássaro mas com a alma a pesar nos ombros e um olhar que não se pode descrever. Não é um bicho enternecedor. É parecida. Mas com uma capacidade infinitamente maior de sentir sofrimento e abandono. Estas coisas nunca envelhecem em mim. Não sei palavras para o que isto me faz sentir. Esmoreço. Encolho-me toda por dentro e odeio-me pelos meus pequenos problemas. Excesso de pessoas que perdi porque tive. De pessoas que nunca perdi porque nunca as tive. De pessoas que me desiludiram pelo muito que me deixaram iludir-me. E a vida. Fantasias boas. Memórias em despedida. Um privilégio afectivo. A pensar na Lua e como se desprendeu da Terra no impacto com um objecto desconhecido. E como ficou, como parte e perdida ali em cima, suspensa de uma eterna propensão melancólica com que sempre a olhamos. Perdida mas à distância do olhar como matéria simbólica de todos os sonhos. Presente, perdida, inalcançável. Ali. E a face visível, uma luz como o sorriso das noites. O lado que guardou o calor da Terra original por mais tempo, e a plasticidade de ganhar mares enormes e de nomes bonitos. E a face oculta, tristemente arrefecida, e assim com menos mares, mares pequeninos, isolada e misteriosa até aos anos cinquenta. Como se este ímpeto sonhador guardasse a memória ancestral do planeta de que se soltou uma parte, da qual ficou e ficamos eternamente nostálgicos. Numa saudade cósmica e primordial. A olhá-la com amor. E a aguardar cada eclipse como ao momento raro de uma carícia visível. Sombria. Ou antes sóbria. E nesta estação de paragem, num destes anos, este jovem amante. Não demasiado jovem, mas para além do que imaginasse. Para além de qualquer sentido. Ou no final do sentido. E que nunca procurei, como a nada. A colar-me a um tempo estranhamente em busca de identificação e dificilmente mensurável. O tempo alegre de dois tempos. E ele chega. E descalça os sapatos sempre. Caminha na minha vida sem ruído e sem deixar pegadas. Descalço e naquela nudez única, que não passa além do corpo. E quando parte, deixa pouco mais do que um fio ténue e delicado, quase invisível. Com um pequeno nó. Fácil de desatar e muito fácil de reatar. E depois vai. Desce sempre a rua, num tempo sereno, até à próxima vez. O desenho do peito alongado vezes sem conto. Uma fantasia de espelho. E depois era o dele. A pele lisa e clara. E sei que me encontrei ali. Quando lhe encosto o rosto do lado do coração. Sei que me encontro ali. Não no coração. Mas no peito. Em silêncio. O silêncio em que me interrogo e a cada centímetro de mim, desde o lado em que tudo começa até à pontinha dos pés, a saber se sou eu. E sou, naquele lugar, no tempo medido, delimitado e concreto. O corpo acaba ali, e é nele que sou. Não sei onde começa. Em meio a toda esta nudez finita. Estanque. Fechada sobre si própria no escoar do desejo. Estas coisas não se dizem. Dizem-se as do amor e com toda a beleza das palavras que geram poesia. Quando dizem. Ou palavras turvas e arrepiadas à frustração que tudo corrói. Armas de arremesso. Sobre o outro que é tudo. Do amor, dizer outras coisas, tudo. Todas as coisas como por vezes avalanches, tornados, ciclones, catástrofes. Que será, só, sempre possível aprisionar-me numa gaiola que levo transportada na minha mão. Com medo de perder a chave. Em direcção ao infinito. E, de algum modo feliz. O feliz do acontecer. Sempre. Sendo amor, para sempre. E sem paradigmas. Aqueles raros, coincidentes com um nome de pessoa. Incomum. Ímpar. Ou a face escondida da lua. O mistério da mansidão celeste de mares basálticos. Os negros mares desérticos. Encosto o rosto à mão, agora, enquanto penso. Um insecto voador e enorme entra pela janela num momento qualquer e entretanto fico a segui-lo na sua evolução aleatória, aparentemente, supostamente, seguramente desejoso de voltar a sair. Que sei eu…Negro, de uma família desconhecida, com um zumbido discreto. Parto do princípio de que deseja libertar-se de novo deste espaço da casa, que lhe aconteceu no acaso da sua deambulação misteriosa. E, nas múltiplas aproximações ao acaso da janela, acabou por sair. Talvez como eu. Esquecendo o detalhe particular do que é aleatório. E retomando só o momento de querer e, depois, o de não querer. Não. Não poderia renascer, mas posso reiniciar. Com tudo. Esta fantástica metáfora da informática. Respirar. Reiniciar. Porque não me apetece. Não me apetece idade nenhuma como estação. A estação que me apetece, é esta, a melhor de todas. A estação de ser quase. Quase Verão. Quase, quase Verão.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasSigno-sinal A casa onde ninguém vive. Uma imagem de solidão habitada por fantasmas. Sons, cheiros e vozes. Sobretudo vozes. Entro, e em frente o solitário com a eterna camélia vermelha. Eterna e artificial. Solitário. Essa jarra alta e esguia como uma escultura de Giacometti. Sempre gostei delas, antiquadas, elegantes e para uma flor só. Em casa, toda a vida um. Da avó, e mesmo depois de ela já não estar sempre, ficou. Até um dia. E quando se partiu esse antigo, levei um outro, pelo muito que gostei destas jarras. Ainda ali está. Na casa onde ninguém vive. Casa triste. Se dela se pode dizer ainda, ser uma casa. Mas é de algum modo um ser. E como os outros, habitado ou não. Já não. E encerra na sua escuridão, dantes acolhedora e agora só escura, restos de uma alma que ali ficou impressa. Cada vez mais desmaiada, fugidia. Que absorveu de vidas e vozes, de entradas e saídas de beijos e despedidas. Vidas cruzadas ali por momentos, horas e dias, meses e anos, vidas vividas e livres, ou aprisionadas, contrafeitas. Paragem entre viagens, estação temporária de dias ou meros momentos, futuro impreciso e para sempre. O para sempre de viver enquanto dura. O para sempre de haver crianças a abrir os olhos e com um futuro de imensidão possível. O da ilusão de eternidade. O da ilusão de imortalidade. Esquecida realidade no cadinho de tantas outras emoções. Estruturas, zangas. Tantas vozes alteradas e tantas vozes alteradas depois para outros tons. Gritos, emoções. E as primeiras rosas. E a ninhada da estação. E os trovões de que o cão grande, enorme tinha medo de morte. O único já, que depois ainda prendia ali a dona de uma casa a entristecer. Arranhava a porta ali em baixo com as unhas enormes e a sua alma infantil a sair por uns olhos aterrorizados, até à exaustão. E de uma nesga para o acalmar ele irrompia para dentro com toda a força brutal do medo, subia escadas íngremes e atirava-se como a força telúrica alojada na sua alma animal, de encontro ao sofá grande que ocupava em todo o comprimento no chão que lhe chegava. Debaixo de tecto. E fechava os olhos com um enorme suspiro humano e a força inabalável de quem só sairia à força e essa força não havia. E os eclipses. Acontecimentos a céu aberto rodeados da fantasmagoria silenciosa das rosas nocturnas. E os campeonatos de futebol a lembrar ausência depois. Ir e vir. E ser casa a que se chega. E de que se parte sempre para voltar. Casa. A casa dos pais. Uma sensação falhada de para sempre deve ser o destino onde desemboca cada solidão de casa no final. Abandonada sem querer. Até há um tempo, mesmo sem já saber para quê, cuidava-lhe do pó como quem cuida de uma criança ou de um idoso. Não deixava acabar os fósforos. O café. O frio do frigorífico de ronronar esperançoso. Regar as mesmas plantas de antes. Cuidar do passado como nas últimas décadas, e ver depois que algo na vida me foi esquecendo. E a esquece em parte quem se demora no passado. E nesse cuidar se fazia presente e ilusório na sua completude, aquela urgência de acudir. Algo me prendeu ali. E inflectiu. O meu caminho. São as contas da vida. Precisava de ter tido a força de um super-herói e duas vidas para viver. Bem. Tanta poética sem uma cronologia fixa. Topografia estável. Ir em frente sem saber se para trás. Entender tarde e temer cedo demais. Contraria a razão. Passe de magia sem deslumbre possível. A poesia é para comer. Diz Betânia. Mas a vida, para viver. Hoje visito-a para consolar a minha tristeza e a dela. Mente animista a minha. Levo-lhe duas cervejas fresquinhas para bebermos juntas. As minhas visitas curtas, agora. Em que me demoro simplesmente a revolver a própria forma da despedida. E a matéria, cada segundo. Perscrutar-lhe a viabilidade com cuidado. Homenagem a uma solidão de que não tem culpa. E à minha nostalgia incurável de outros tempos ali. Sento-me com ela num sítio diferente. Escolhi um outro lugar preferido para este tempo de solidão a duas. A dela desabitada de todos. A minha do impossível retorno. Por isso já não me sento com ela no sítio do costume. Com vista para todas as ausências. Com vista para o silêncio que vem da cozinha e da televisão vintage, silenciada pela modernidade que não consegue acompanhar, viva mas inerte. Para a porta por onde ninguém entra, e para a poeira densa que tudo recobre a proteger da vivacidade dos tons que feririam na sua paragem, mais do que o constatar de que tudo mudou. Um bicho sem dono, este ser de casa. Que ninguém cuida. Escolhi um lugar novo de estar ali na minha melancolia, de costas para tudo. Pela casa. Este lugar, a olhar para fora. Ao contrário do meu de muitos anos, no canto direito do sofá grande. Sento-me com ela, e silenciosamente ela entende. Estar ali naquele lado do redondo da outra mesa e a olhar a janela, a desviar os olhos das orquídeas que ainda resistem. Antigas mas a ceder ao abandono. A janela é tudo. Fora e dentro para amenizar a tristeza. Bebo a minha cerveja e vou fumando a dar contas à vida e a contar-lhe segredos de agora. Bebo a minha cerveja lentamente por mim e por ela. Bebo a outra por ela e pela minha tristeza dela. E sinto que lhe fiz companhia e ela a mim. No possível de cada uma de nós hoje. Um dia diferente no tempo e já muito fora da realidade que é habitar e ser habitada. Isso já não é. Mas há a memória. Por isso atraso ou dou tempo, até desgastar qualquer sensação de desarrumar, destruir, desmanchar uma casa. Que já começou, mas estendo no tempo um pouco mais. Mesmo quando a casa que ninguém habita, nem as minhas saudades têm o poder de trazer de novo à vida. A perder-se no desvanecimento próprio à memória das coisas a sair do lugar da sua organização própria, que tinha cheiros e imperfeições. Ruídos e sujidades novas. Não esta poeira que se sobrepõe, indiferente, camada sobre camada de esquecimento, vazio e silêncio. Da inutilidade. Aconteceu algo aqui. Oiço as vozes por trás de mim. Quando oiço. Mas as vozes tendem a calar-se discretamente à medida da minha despedida. É isso. Viro-lhes as costas e tento ouvir de novo. Ou que se calem apaziguadas na espuma do tempo que passou para sempre, sem ressentimentos nem amarras. Tento que se desliguem deste suporte que vai ter que se desatar. E se depurem em outras formas de habitar, e que pairem por ali nas sonoridades mais coloridas. Risos. Chamamentos. Perfumes de cozinha sempre viva. Jogos. Novidades das flores e das árvores inábeis e generosas. Venho beber um copo com ela mas na realidade poiso um só em cima da mesa. E bebemos eu e ela alternadamente como amantes que partilham segredos. Dizem. Do mesmo copo. Tantas coisas. Aconteceu algo aqui durante anos. E foi. E agora é preciso libertar e libertar-me desta teia quase física onde estão presas memórias. Bebo para celebrar o que foi e para me juntar ainda uns momentos a este bicho estranho que é a memória boa-má. Eu sei o que isto foi. Mas a casa está exausta de abandono e a deixar fugir entre os dedos aquilo que o tempo levou para sempre. Esses dedos que vejo estendidos lá fora. Como um signo – sinal. Dizem que também tenho que sair do novelo de memórias, fechadas um dia destes finalmente na arca de madeira lavrada. Tantas coisas que, conhecendo de sempre, me apetece levar comigo, como animais abandonados. E que preciso de revolver nas mãos vezes sem fim antes de lhes dar destino. Relembrando tudo o que trazem em si e de mim. Avaliando as possibilidades de nunca mais ver. De esquecer. A força que tenho ou não. E sempre a vontade de guardar tudo. Mesmo noutro lugar e já sem a cartografia exacta do uso ou do cenário. E depois? Algumas coisas quase mágicas davam uma grande história se o despudor chegasse a tanto. Outras só desenhando uma cronologia de tempos passados e arrumados. E as vozes. Ecos. Já só. Que tento continuar a ouvir, por um lado, e esquecer por outro. Porque tudo era imperfeito como a vida. Estas são visitas de despedida. Despedida lenta como o tem que ser para mim. E a sós como o devem ser as grandes despedidas. Dizia Gerardo Castelo Lopes de um fotógrafo, que devia abordar o alvo da fotografia como num acto de sedução, delicada e lentamente. A sedução que se concretiza no fotografar de um ser, que o prende no fascínio do olhar por detrás da câmara. E se esgota ali. Mas esse acto de predação, dizia, devia ser amenizado por uma retirada também lenta e suave. Com o mesmo charme cuidadoso da abordagem, sem cortes abruptos. Sem dor. São assim estas despedidas. Mas não sem dor. Só com todo o tempo. A desgastar e a aplainar cada nó de mágoa, mais não seja pela repetição. Pela diluição. Mesmo os espelhos já não parecem reconhecer o momento. Antes tristes e ressentidos. Na realidade já não devolvem uma imagem com rigor e plenitude. A deixar de nos reconhecer como se o momento único e desgarrado de toda a memória para eles não fosse o suficiente para reconhecer-nos e assim nos devolver em imagem. Como se faltasse a espessura de todo o entretanto para dar consistência à imagem- reflexo que emitem. Amuados, magoados de tanta ausência de movimento na sua frente. De tanto desconhecimento de tudo o que hoje se passa longe dali. Porque a vida, uma vida debandou dali. Em alguns num bater de asas leve e inconsciente e noutros como eu, presa à minha propensão para a nostalgia. Mesmo eu, que já não tenho espaço de vida para aquela casa e aquela memória. A necessidade das despedidas também desse lado de mim. Não só porque a casa, a alma da casa, se foi. E foi para nunca mais. E é preciso que o nunca mais se torne eterno. Saia do limbo da saudade presa ainda por fios aos passos possíveis, aos objectos no seu lugar de ainda. Aos ângulos ainda vagamente semelhantes a sempre. Mas sem as pessoas. E sem as pessoas, uma casa deixa de ser uma casa. E há que retirar- lhe delicadamente os fragmentos da alma agarrada aos objectos e trazê-los para uma nova vida. Ou sepultar. Sento-me nesse lugar novo, de costas para toda a casa por onde já circulam as ausências de coisas, a desarrumação lenta e inadiável a ganhar a forma da desconstrução. E por isso também. Mas pela janela, vejo quase só a janela. E sei porque o faço. E ali, também a árvore de sempre, de copa altiva durante anos, decepada progressivamente por temporais repetidos ao longo de invernos. Com pernadas presas por um fio de fibras temporariamente perigosas e que iam depois caindo. Dessa árvore sobra um tronco a ressequir de formas dramáticas. E um dia aquelas mãos. Outra referência a Giacometti. Como uma escultura orgânica, esta. Abertas num gesto expressivo. E com o dramatismo contraído até à ínfima expressão sob a pressão do mundo, e ferozmente lançado em frente dos “Walking man”. Sei. Este sinal. Por isso me sento agora nesta janela a olhar para fora e de costas para a casa onde ninguém vive. Já. Não sei já se aquela era o castanheiro temerário muito podado e crescido em altura para lá do razoável, que a cada inverno e temporal ameaçava estragar algo na queda. Como as pessoas. Mas este inverno foi definitivo para ela. E aquelas mãos, negras e magras a espreitar de fora, um dia disseram de forma diferente. E foi bom. Fecho a porta à chave e prometo voltar. A ela ou a mim. Mentalmente. Ainda para uma última despedida, antes da última. E vou. É tarde.
Anabela Canas de tudo e de nada h | Artes, Letras e IdeiasComo um mantra E contudo. Gosto de começar no pressuposto de todas as outras vertentes, encostas e desfiladeiros por onde resvalo ao longo dos dias sem forma de me suster na queda. De todas as borrascas. As pessoas. De todos os sustos em cada trovão inesperado, de todas as aragens bruscas e entrópicas que desnorteiam. Outras vezes tão mais subtis. Uma estranha sensação. Olho em volta e tudo igual a umas horas atrás. A mesma luz, quase. O mesmo abatimento de domingo. Ou de outro dia qualquer. Os mesmos ruídos esparsos, de dia de descanso para muitos. Ou das rotinas do bairro. E, no entanto, é como se a terra se tivesse movido num eixo diferente. Uma paragem brusca. Uma alteração nítida no polo magnético. E tudo diferente, a seguir. Talvez por isso a meteorologia diz nestes dias coisas estranhas. Para estes dias. Algo se deslocou no universo. As cores mudam de saturação e violência, a alegria e vivacidade ou vice-versa. Palavras. Sem transição. Dizer, e no entanto. O que significa que também, por outro lado e convivendo com outros estados de alma, às vezes, aquela sensação de euforia. Não que invoque um estado histriónico. Não é esse terreno de desconforto. É um frémito de bem- estar que vem de repente ou em virtude de um olhar particular. Sem plurais retóricos, ou majestáticos ou de modéstia, a induzir cumplicidades ou universalidades e a aliviar convicções pessoais. Privadas. No limite do que pode ser privado. Sinto. Uma branda, nítida e secreta sensação de estar bem. Como um oásis. As diferentes formas do tédio como as definiu Heidegger, nomeadamente o tédio profundo sem causa determinada e que cobre todas as coisas e a nós mesmos como uma névoa de ausência de sentido, uma indeterminação ou indiferença, sim, o tédio. Muitas vezes senti algumas formas desse sem sentido, sem energia e sem alma. Esse estado presente em si, ilustrativo dos “caminhos que não levam a parte alguma”. De que basta percorrer o caminho inverso ao tempo para chegar a um início e só por si ser sentido. Ou, de volta a qualquer estação da vida, o estar, o simples estar ou ser, tão bem sintetizados num mesmo verbo na língua inglesa. Mas agora raro, o tédio. Mais raro. Naquele momento lá atrás, nasci. Em todos os outros momentos, também. Usa-se de facto inúmeras vezes essa metáfora e muitas outras de vida e morte. Nomeadamente no amor. Tantas mortes anunciadas e ninguém deixa de estar cá para as anunciar e repetir. Como cartas de suicídio falhado. Ou arrependido. Ou pior ainda, de homicídio. Literário. Menos vezes, passional. Mata-se e morre-se, aparentemente com a facilidade de um jogo infantil. Em que alguns meninos “eram mortos” mas não morriam… insurgindo-se face às regras do jogo. Não se morre facilmente por amor. O que é pena. Morre-se por acaso, como num dos paradigmas das grandes histórias de amor, “Romeu e Julieta”. Quanto muito vem a vontade como uma camada que tudo parece encobrir, ou aquela enorme indiferença pela morte. Às vezes. O tamanho que me falta não é o muito que não tenho. Não é o muito que não sei. É o que não sinto. Como senti-lo se não o sei, ou sabê-lo se não o tacteio em mim. Melhor dizendo, o que não sei, posso por vezes imaginar e o que não sinto, também. Por empatia ou projecção. Mas sentir mesmo é outra coisa. O tamanho que me falta, vislumbro-o às vezes na possibilidade. O tamanho que não sinto, sei-o, de outras vezes no relance de um olhar. Mas de novo se evola como um fumo discreto de que duvido a fugacidade da existência. Duvido do olhar porque muito o turva. Duvido do saber porque se recobre de velaturas parciais, de que só o todo da sobreposição revela a imagem. Quase opaca por vezes. E no entanto feita de cobertura de muitas tintas finas, delicadas e frágeis de incompletude. É esse saber-me nos outros de que duvido sempre quando não sinto. Um tamanho que me falta. Ainda a propósito de pequenos pensamentos. Aqueles ínfimos, à escala das preocupações globais que muitas vezes são também o mar de preocupações em que não se consegue nem quer deixar de nadar, aquelas ditadas pelas inúmeras empatias que se sentem pelos outros pelo bem-estar dos outros, pelo futuro dos que queremos bem de perto ou de longe, e dos outros que queremos bem só porque são pessoas em sofrimento, e o futuro das coisas que prezamos e admiramos e da história que é a memória que nos estrutura também. Para além da pequenez desses pequenos pensamentos, que não se comparam em importância a tantos outros, é o amor que dá, na sua omnipresença, uma enorme forma de motivação e sofrimento. Não fosse a alma ser de uma plasticidade enorme que a tantas coisas dá espaço e ainda mais que fossem, e o coração, onde cabe tanto sem tirar o lugar a nada, e a razão, que sobre tanta coisa se debruça, e diria que é o amor que nos toma de súbito ou lentamente e de mansinho, nos ataca à traição quando menos se espera por vezes, e domina. E domina sempre. E é também, ou talvez por essa obsessão, fonte de um enorme pudor. De falar de admitir a relevância na vida, a importância abismal. Como se não fosse um dos grandes temas da humanidade e aquele em que se revela um todo. Mesmo se virado só para o interior. As pessoas amam por razões tão diferentes. De maneiras diferentes, também. Talvez. Que sei eu sobre o amor que não é o que sinto? Não amar por carência, não amar por necessidade de salvação, não amar por solidão e desamparo. Por dependência. Por vazio existencial. Mesmo que tudo isso possa coexistir. Mas depois penso que, a necessidade do amor, o gosto específico de amar ocupa um lugar único que não é preenchível por qualquer outra paixão. Não é em mim. Por isso preciso de amar. Quando amo. Sinto que quero e me faria falta havendo o não amar. É uma expectativa que se cumpre em si. Em mim. Sobretudo. Não me parece pouco. Uma sorte estranha e solitária quando o é e mesmo assim, querida. Reservada dos desapontamentos de outras expectativas. Não. A memória não é o lugar melhor do amor. Mas começa aí a história. Pequeninos, íamos sozinhos de comboio até Lisboa, a uma loja de filatelia na rua 1º de Dezembro. Aos sábados de manhã. Ver os selos. Às vezes comprar, mas mais ver. Coleccionávamos selos, mas com carimbo. Que tinham um encanto maior por terem percorrido a distância entre uma terra por vezes distante e outra, e nós. O fascínio da lonjura ali centrada num rectângulo picotado e tão pequeno. Que depois trocávamos entre nós em casa. Numa dessas viagens, a minha primeira paixão. Um homem jovem sentado na minha frente com a roupa da marinha. Não de oficial. A roupa comum de marinheiro. Branca. Nunca gostei de fardas, não lhes entendo o encanto. Uniformes, palavra e conceito horrível. Mas as roupas da marinha são outra coisa. Brancas. Ou azuis. O mar e a viagem no meio do nada. Sempre me suscitaram alguma nostalgia. Mas só se fosse de vidas passadas. Não era bonito. Nem feio. Ele. Nem agradável e nem tão pouco desagradável. Tinha uma postura firme. Uma atitude dos ombros, do queixo. Mas tinha nos olhos um brilho de lágrimas que não rolavam. Um brilho subtil de lágrimas. Os olhos que cruzaram os meus, miúda. Talvez na lembrança de uma criança longe. De um amor desfeito. De uma partida inevitável. Acho que me apaixonei. Por aquele olhar húmido de melancolia. Talvez reencontrado bem mais tarde em Corto Maltese, sem o marejado das lágrimas e com um cépticismo já tocado de um romantismo vago. Da inevitabilidade da viagem. Apaixonei-me. Talvez para sempre por homens que chorem por amor. Que consigam chorar por amor. Ou a quem, mesmo só, os olhos se marejem de um brilho que não seca facilmente quando assaltados por um desgosto ou uma recordação. Foi a minha primeira paixão e durou o tempo de uma viagem curta no comboio de Lisboa-Sintra. Mas ficou-me na memória até hoje. Antes, ou depois, já não sei, o meu primeiro amor. Éramos seis. O meu irmão, o meu amigo de infância, os três primos dele. Um mais pequeno, o outro antipático e o terceiro, o do meio, o meu amor. Rosado de apelido e tez. Pupilos do exército na ausência dos pais, no ultramar. Vicissitudes da guerra. Mas aqueles uniformes eram registo de uma certa prisão. E a memória daquela mão que se me estendia nos caminhos mais rudes e a pique, naqueles fins- de- semana a perder de vista e tão desejados. Talvez por isso até hoje e mesmo metaforicamente pensando, o estender de uma mão, a sensação boa de uma mão, me é tão querida. Sem idade. Construções. E antes de tudo o meu pai. Paradigma de algum modo edificado para sempre, que Freud explicaria e nem quero saber. Antes de tudo o meu pai, aquela longa e difícil aprendizagem do amor, àquele testemunho de imperfeição, mesclada de alegria infantil e negrume. De paixão pelas coisas pequeninas e das grandes fúrias secretas e irracionais. Sempre presente e distante. Pequeno mas poderoso. Ao ponto de ter deixado quando partiu, um enorme buraco, recortado com o seu contorno, no sofá do costume, em frente à televisão. Que levou tanto tempo a reabsorver a ausência e voltar à forma inicial. Há uma memória impressa nas coisas. Plástica, mutante. Dois palmos à frente, no chão de madeira corrida, gravado o som do baque seco da queda. Que o levou do coração. Ele tinha que ir por aí. Tantas coisas. Que senti e sinto. Nem o corpo nem a alma – a razão – me são solitários. Só o coração. Mas não do lado do sentir. O lado de cá. Para além da inultrapassável solidão do corpo, da alma e do coração nas suas reservas mais irredutíveis. E difíceis de habitar. Pelo outro. Aqui, como antes, o imensurável abismo entre o real do dizer, na sua realidade, o real do sentir, na sua reconhecível e palpável realidade, e a enorme ambivalência e imperfeição de ambos. Tenho sorte no acaso daqueles que a vida me trouxe aos dias de hoje. Um vidro tripartido em que me encontro reflectida. Mas também aí não vejo a arrogância do mérito. Talvez alguma da inevitável identidade. Há um território, o que sinto. Como uma espécie de enorme privilégio. Diria uma bênção se houvesse um pouco mais de religiosidade ao meu alcance. E por isso aquela sensação que me chega de vez em quando. Quando sei que é melhor não esperar nada. O que tenho. Tenho sorte, tenho sorte, tenho sorte. Repito. Às vezes surpreendida. Principalmente nos dias de sol e em algumas noites de lua, como a de há três dias, estrelada, inesperadamente cálida e de estrelas cadentes. Tenho sorte. Repito. Como um mantra.