David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesExtradição na ordem do dia [dropcap]E[/dropcap]m Hong Kong esta semana ficou marcada pelas manifestações de protesto contra a proposta de lei de extradição dos condenados em fuga. Na demonstração de 9 de Junho compareceram imensas pessoas. As autoridades adiantaram o número de 153.000 participantes, ao passo que o porta-voz da organização apontava para cerca de um milhão. Mas todos sabemos que estes cálculos nunca são precisos. Durante o desfile, o responsável pelo cálculo do número de participantes tira fotos, conta as pessoas que aparecem na foto e calcula a área que ocupam. Se continuar a fotografar a mesma área a intervalos regulares é possível fazer uma estimativa do número de pessoas presentes. Esta estimativa pode variar conforme a área escolhida. Mas, seja qual for o número apontado, estiveram presentes sem dúvida muitos milhares de pessoas nesta manifestação. No dia seguinte, segunda-feira, 10 de Junho, a TVB de Hong Kong entrevistou a Chefe do Executivo Carrie Lam. No decurso da entrevista, Lam deixou bastante clara a sua posição sobre o assunto. Em primeiro lugar, admitiu que esta proposta de lei toca questões muito controversas. Estas declarações foram úteis, mas as dúvidas não ficaram eliminadas. Mas Lam também assinalou que, se a oportunidade de rever a lei não for agora aproveitada, não se saberá quando o poderá vir a ser. Além disso resta a dúvida se a próxima proposta de revisão da lei vai ser bem-sucedida. Carrie Lam foi peremptória. Acredita que não vai ser. Por estas declarações podemos deduzir que, se duvidamos que a nova proposta de lei venha a ser bem aceite, então mais vale lidar com o assunto agora do que adiar a sua resolução. Ainda a entrevista não tinha sido transmitida, quando se deu um motim em Hong Kong. A multidão ocupou as principais vias rápidas da cidade causando o congestionamento do tráfego. Depois da intervenção da polícia a situação começou a normalizar. As manifestações e marchas realizadas na quarta-feira em Admiralty provocaram ferimentos em manifestantes e em agentes da autoridade. Mas na quinta-feira a situação agravou-se. Os organizadores convocaram as pessoas para as estações de Metro. Multidões precipitaram-se para as entradas do Metro durante a hora de ponta e os comboios não puderam circular normalmemte. O caos instalou-se. As pessoas que queriam chegar ao trabalho a horas não conseguiram. É inquestionável que este método acabou por envolver nos protestos pessoas que não tinham qualquer intenção de se manifestar contra a proposta de lei de extradição. Se as manifestações são uma forma de expressar a opinião pública, a participação forçada é o seu oposto e, portanto, é uma forma de privar as pessoas dos seus direitos. É absolutamente incorrecto. Como é que podemos considerar pacífica uma manifestação que recorre ao uso de uma série de métodos para impedir o Metro de circular? A legalização das manifestações é um dos valores fundamentais de Hong Kong, bem como permitir que as pessoas expressem os seus desejos e aspirações. Mas é fundamental que não envolvam violência e que pessoas com outros pontos de vista se não vejam envolvidas à força numa luta que não lhes diz respeito. No sábado, 15 de Junho, Lin declarou suspensa a discussão da proposta de lei de extradição. O Governo estava já preparado para submeter a proposta à discusão no Conselho Legislativo. Em teoria, depois da transmissão da entrevista com Carrie Lam, os ânimos deveriam ter acalmado, mas tal não aconteceu. Durante a tarde, um homem morreu em Admiralty. Manifestações de pesar e de indignção espalharam-se rapidamente através da internet. Este incidente vai marcar o tom da manifestação de domingo, 16 de Junho. A avaliar pelos noticiários esta manifestação ainda vai ser maior do que a do domingo anterior. Embora no momento em que este artigo foi escrito ainda não houvesse cálculos, nem da parte do Governo nem da dos organizadores, tudo aponta que efectivamente o número de participantes aumentará. Mas, de qualquer forma, ainda vai ser necessário esperar pela contagem oficial. Às 19.30 de sábado, 16, os manifestantes voltaram a ocupar as vias rápidas de Central e de Sheung Wan, pelo que o trânsito ficou completamente congestionado. Mas, estranhamente, no momento em que escrevo, os condutores fizeram seguir os veículos e começaram a desimpedir as vias. É preciso continuar a acompanhar o desenrolar da situação. Felizmente hoje ninguém ficou ferido, porque todos amamos a paz. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Menezes VozesExtradição – Um elogio e um par de críticas [dropcap]O[/dropcap] presidente da Direcção da Associação dos Advogados (AAM) prestou, na Quinta feira, declarações à TDM sobre a proposta de lei de extradição de Hong Kong. Começou muito bem: foi claro, inequívoco e assertivo. Disse que aquela lei constituiria “mais um prego no caixão” do segundo sistema, no princípio da autonomia e de uma região governada pelas suas gentes. Que apoia a oposição da população de Hong Kong, que esta lei pode abrir caminhos perversos, que é mentira terem estado só jovens na manifestação, que é um insulto à população de Hong Kong dizer que foram manipulados por interesses estrangeiros. Estas palavras exprimem a postura que esperamos do presidente de uma Associação de Advogados. Cumpriu o seu dever e estou-lhe grato por isso. Mas julgo dever expressar um par de críticas. A primeira é que falou mais tarde do que deveria. O presidente da direcção deveria ter expresso o seu peso institucional quando as águas estavam agitadas e turbulentas, para ajudar à causa, não somente após a votação da proposta de lei ter sido suspensa, quando a vaga já estava a passar e a corrente a arrastar os destroços noutra direcção. Um líder forte não sobe ao campo de batalha somente quando a luta já está a terminar. Liderar é impulsionar, não ir atrás dos acontecimentos. Mas, mesmo tarde, estou grato que tenha vindo a terreno. A segunda crítica foi ter dito que se opunha a esta proposta “como pessoa”, individualmente, mas que não respondia por outros, esclarecendo, “por vezes há pessoas que se esquecem disso: a associação dos advogados não é uma associação política, não é um sindicato”. Ou seja, a lei de extradição não seria assunto para a AAM. Foi uma infelicidade. Não é da competência da Associação dos Advogados falar de direito e de justiça, manifestar-se sobre a possibilidade de cidadãos, residentes ou não residentes, serem detidos sem direito a habeas corpus, sujeitos a confissões forçadas, julgados por tribunais não independentes, à porta fechada, sem efectivo direito de defesa, nem de constituir advogado? O presidente do Tribunal de Última Instância pugnou, em 22 de Outubro de 2018, pela elaboração de um “diploma complementar” que permitisse a extradição e ampliação da assistência judiciária com a RPC (que poderia permitir buscas, revistas e apreensões em Macau por crimes investigados na China), defendendo que a sua falta prejudicava a imagem de Macau enquanto região de Direito. Competia à AAM posicionar-se sobre estas declarações. Se não foi tema tabu para a magistratura, também não o deverá ser para a AAM. A acreditar nas suas palavras, é difícil explicar por que motivo a AAM deveria ser ouvida sobre propostas de lei, incluindo sobre extradição: se a AAM não se devesse meter em “política”, deveria deixar de dar pareceres nos processos legislativos… A Hong Kong Law Society e a Hong Kong Bar Association não titubearam nos seus deveres cívicos e deontológicos, nem esperaram para ver em que direcção soprava o vento, tendo expressado desde cedo, de forma inequívoca e corajosa, a sua oposição à lei, no que foi descrito pelo SCMP como uma “strongly worded response”. Que contraste! Por outro lado, como foi noticiado pelo JTM sob o título “Neto Valente Pede Acordo de Extradição para Clarificar ‘Zonas Cinzentas” (as quais tinham que ver com a confusão entre entrega de quem entra ilegalmente em Macau e extradição de suspeitos de crimes), o Dr. Neto Valente disse em 6 de Setembro de 2015 à TDM que o acordo de extradição com a China “está atrasado”, e defendeu que “é bom que haja esse acordo para que se clarifiquem as zonas cinzentas”. E acrescentou, “houve casos de devolução à China de pessoas que não são de cá. Agora residentes de Macau é diferente. Se for para entregar às autoridades judiciárias da China residentes de Macau, aí é que tem de haver outro entendimento.” Daí ter defendido um acordo de extradição com a China. Se o presidente defendeu em 2015 que seria “bom” haver um acordo de extradição com a China e pediu ao Governo que o aprovasse, é imperativo que a Direcção da AAM venha clarificar a sua posição. E que explique se é contra uma proposta como esta discutida em Hong Kong, mas a favor de uma lei de extradição diferente (possibilidade contra a qual estão de novo na rua, enquanto escrevo este artigo, centenas de milhares de pessoas), ou se evoluiu no seu pensamento e já é, como todos ‘nós’, contra a extradição para a China tout court. Há leis melhores e leis piores. Mas, pelas razões que têm sido veiculadas quase em uníssono, não haveria qualquer mecanismo de extradição que garantisse os direitos fundamentais assegurados pela Lei Básica e pelo princípio “Um País, Dois Sistemas”. Nem seria admissível tolerar a extradição de “pessoas que não são de cá”, discriminando-se entre os que podem e os que não podem ver os seus direitos humanos trespassados por serem de ‘cá’ ou de ‘acolá’. Por outro lado, a direcção da AAM deveria exigir ao Governo que divulgasse a proposta de lei de extradição que apresentara na Assembleia Legislativa e retirou em 2016. O silêncio sobre este assunto não fica bem a ninguém. Estou ciente de que este é um momento em que nos devemos unir e não dividir. Unirmo-nos em torno dos princípios e valores que constituem a marca de uma sociedade livre e de uma advocacia ao serviço da comunidade. E por isso ouvi com satisfação as fortes palavras iniciais do Dr. Neto Valente. Mas foi com desapontamento que ouvi as restantes, onde afirma a passividade da AAM, e com frustração que o ouvi no passado recente defender um acordo de extradição com a China, ideia contra a qual saíram à rua mais de um milhão de pessoas em Hong Kong. Os cidadãos de Hong Kong já obtiveram uma vitória, ainda não definitiva, mas notável. Macau poderá seguir-se. O direito a um julgamento justo e a escolher um advogado que nos defenda é assunto sobre o qual cabe a uma Associação de Advogados pronunciar-se. E a AAM tem o dever ético e deontológico de o fazer.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesTiananmen, 30 anos depois [dropcap]A[/dropcap]penas um algarismo separa o número 29 do número 30. A diferença entre o 29º e o 30º aniversário de Tiananmen, que se assinala a 4 de Junho, também é quase nenhuma, é o que sempre foi, um momento em que se recorda o mais trágico incidente da História da China moderna. Na China continental, a atitude do Governo em relação a esta data mantém-se inalterável e o mesmo se pode dizer das “Mães de Tiananmen” que se têm mantido firmes na sua exigência de justiça aos filhos desaparecidos e mortos durante o movimento estudantil. O protesto de 4 de Junho de 1989, à semelhança do “Movimento de 4 de Maio” ocorrido há um século, foi organizado por estudantes. O “Movimento de 4 de Maio” foi honrado com o adjectivo de patriótico, ao passo que os estudantes envolvidos no protesto de 4 de Junho têm sido olhados de forma diferente. Há três décadas atrás, muitas pessoas em Macau reconheceram a acção destes estudantes como patriótica. Se o foi ou não, não serão apenas os círculos ligados ao Governo a determinar, é sim um julgamento que será feito pela História. Trinta anos é um pequeno período de tempo em termos da História da Humanidade. Do ponto de vista histórico, o que se passou há 30 anos atrás ainda é demasiado recente para ser avaliado, já que envolve indivíduos que ainda estão vivos e muitos ficheiros ainda não foram revelados. É possível que ainda sejam necessários mais 30 anos, para que surjam respostas mais objectivas às várias perguntas em aberto. Além disso, através de relatos de participantes e testemunhas do incidente de 4 de Junho, e através da recolha de informação oral e escrita, seja ela privada ou oficial, poderão ser feitos estudos comparativos que escavem fundo e revelem toda a verdade dos factos. Muitos dos participantes e apoiantes dos protestos de Tiananmen têm actualmente uma posição diferente. A vigília das velas anual e as demonstrações que assinalam esta data transformaram-se numa acção de pesar rotineira. Se compararmos com Hong Kong, em Macau os debates e discussões em torno deste tema nos noticiários, nas escolas e na sociedade em geral, são muito menores e menos frequentes. Quer isto dizer que o incidente de 4 de Junho está condenado ao esquecimento com o passar do tempo? Mas se atentarmos nas operações de segurança que ocorrem em Pequim neste período, percebemos que as autoridades não o esqueceram de todo. 中國,始終沒有逃過歷史的魔咒,悲劇一次又一次發生,原因在那裡?A História parece brincar com o povo chinês, agora e desde sempre. Após a queda da Dinastia Qing em 1911, Yuan Shikai tentou proclamar-se Imperador em 1915. A 5 de Abril 1976 também houve protestos na Praça da Paz Celestial, local do massacre de 4 de Junho. Porque será que a China não consegue fugir a este destino ao longo dos anos? Antigamente, os homens públicos chineses eram nomeados pelos Imperadores feudais de todas as Dinastias. Na transição do poder monárquico para o republicano, não existiu um período de monarquia constitucional como em muitos países europeus e, como tal, a sociedade não teve qualquer formação nas práticas democráticas. Os Três Princípios do Povo, defendidos por Sun Yat-sen, foram inspirados nos regimes ocidentais. Nos Fundamentos da Reconstrução Nacional estabelecidos por Sun, sobre a administração do país, pode ler-se “Em primeiro lugar vem a ordem militar; em segundo lugar o poder político”. Quanto ao Comunismo, que também foi importado do Ocidente, tem como pilar ideológico a ditadura do proletariado, originária da filosofia marxista. Ao longo dos últimos 100 anos, a luta pelo poder interno e as invasões de países inimigos dificultaram a instalação da democracia na China. Quando numa sociedade não existe diálogo entre governantes e governados os conflitos são inevitáveis. Trinta anos depois de Tiananmen, o Governo chinês continua a implementar as suas lucrativas reformas económicas e a apostar nas políticas de abertura, depois de envidar todos os esforços no sentido da estabilização do poder político. Contudo, sob a capa das reformas políticas prosperaram o suborno e a corrupção ao ponto de pôr em risco a segurança nacional. No que diz respeito ao incidente de 4 de Junho, factores históricos à parte, só podemos desejar que tal tragédia não se repita, e tentar encontrar formas de tornar realidade algumas das exigências ouvidas no protesto dos estudantes, ou seja introduzir reformas que não visem apenas o lucro e implementar medidas anti-corrupção. A afirmação “discursos vazios só conduzem o país à perdição e o trabalho árduo rejuvenesce a nação” deveria ter sido levada à prática de forma mais eficaz 30 anos depois.
Carlos Morais José A outra face VozesMuch ado about everything [dropcap]A[/dropcap] proposta de lei do Governo de Hong Kong, que facilita a extradição de pessoas para a China continental (RPC), é um documento estranho e lamentável, pelo menos de dois pontos de vista. O primeiro prende-se com a promessa de manutenção do mesmo sistema durante 50 anos depois da transferência de soberania e o respeito pela Lei Básica. O segundo tem a ver com o timing da apresentação da proposta. Como se pode constatar pela reacção da população de Hong Kong, a questão da extradição para a China não é um problema menor. De algum modo, o facto de até hoje ela não ter existido constitui um dos pilares invisíveis do segundo sistema, pois garante que ali podem habitar, usufruindo dos direitos cívicos expressos na Lei Básica, pessoas acusadas pela RPC de “crimes” derivados da liberdade de expressão, de reunião, de contestação pacífica, da defesa dos direitos humanos, etc.. Os tais “crimes” são, geralmente, classificados de “subversão social”, “terrorismo”, “sedição”, ou seja, implicando uma moldura penal duríssima. Como relatam os próprios jornais regionais chineses, ao longo de toda a enorme China, deparamos com casos locais de abuso de poder, de corrupção, de alienação dos valores de sobriedade e contenção. Na maior parte dos eventos, essas autoridades locais perseguem ferozmente quem as denuncia, talvez à revelia do próprio Governo central. A ausência de separação de poderes leva à desconfiança na justiça, a nível local e nacional, desconfiança essa que há muito atravessou a fronteira e se repercute nas mentes dos cidadãos de Hong Kong, que obviamente fazem questão de não se encontrarem à mercê de um sistema judicial não independente. O caso foi de tal modo aberrante que a Chefe do Executivo soluçou na televisão que não estava a “vender (sold out) Hong Kong”, depois de a polícia ter precisado de bater em manifestantes provocadores e pouco pacíficos, admitindo com as suas lágrimas que compreendia a dissensão do seu povo e a distância real que existe, em termos de valores cívicos, entre a ex-colónia e a RPC. Assistimos ao espectáculo de uma mulher estilhaçada entre o que sabe ser a cidade que governa e o “dever patriótico” de fazer aprovar uma legislação. Carrie Lam, pouco depois, anunciava suspender, adiar para as calendas, o debate sobre a malfadada proposta de lei. É inevitável lembrarmo-nos de algo idêntico, ocorrido quando o Governo de Hong Kong pretendeu implementar o artigo 23º da Lei Básica, referente à sedição e traição à Pátria. Proposta absurda, porque contrária às expectativas populares, independentemente das cambalhotas jurídicas que se executem para a justificar, viu-se igualmente obrigada a recolher ao covil do esquecimento, esperando por outros dias para voltar a emergir. Tal como deverá acontecer no caso da lei da extradição… O que leva então o Governo de Hong Kong, empurrado ou não por Pequim, a apresentar a proposta, nesta altura do campeonato? Ninguém previu a reacção popular? Além do mais, com a RPC envolvida numa guerra comercial com os Estados Unidos e com outros problemas mundo fora, seria a altura certa para provocar estas previsíveis ondas e logo na cidade conhecida pela erupção regular de dissidência e irreverência? Um país que joga go certamente que pensa em questões territoriais e na procura do equilíbrio interno como condição para a procura de poder. Pois não parece. A RPC demonstra uma incapacidade teimosa quando na mesa está Hong Kong, um bloqueio, um trauma, uma aflição. Esvai-se a sapiente e milenar paciência, ruge uma urgência de mando que pela mão suave seria mais simples de adquirir. Pequim espuma à menor travessura deste seu desejado filho. E talvez este facto devesse ser caso de reflexão profunda e de auto-análise no seio de vários comités, centrais ou periféricos. Com certeza que não é a necessidade premente de prender e extraditar perigosos agitadores na ex-colónia que motiva a acção, resulta em tanto barulho e uma mão-cheia de novos problemas e antipatias. O caso dos livreiros já nos ilustrou sobre os métodos e a matéria. É que para a população parece tratar-se, além de uma questão de liberdade, de um problema de segurança. O medo incrusta-se não apenas no político, no activista, mas também no comerciante, no industrial, no banqueiro, no especulador. E este medo, esta reacção pronta de um milhão de pessoas não era de prever? Bem pode o Global Times atribuir os protestos a uma intervenção estrangeira que, neste caso, a própria dimensão da manifestação o desmente. É certo que em Hong Kong existe uma quantidade enorme de agentes estrangeiros (só os EUA têm cerca de mil funcionários no seu consulado), alguns talvez com a missão de desestabilizar as relações com a RPC. Mas, na verdade, com propostas destas, não precisam de exibir uma grande performance. E o Governo de Carrie Lam? Não previa esta maré de protestos? Por quê avançar com esta medida, nesta altura? Depois de alguma reflexão, só encontro uma explicação para a apresentação desta proposta de lei: chama-se Grande Baía. O projecto da Grande Baía é uma das grandes apostas do Governo Central, com o objectivo expresso de intensificar a comunicação entre Macau, Hong Kong e as cidades da província de Guandong, de modo a que no futuro constituam uma região unificada; comercialmente, culturalmente, talvez politicamente, se pensarmos no pós-2047/49. Afinal, pensar-se-á em Pequim, Cantão sempre foi uma porta para o exterior, lugar de estrangeiros, tal como Macau e Hong Kong, portanto não será difícil a esta gente do Sul entender-se. A Grande Baía é um modo de potenciar a região mas, inevitavelmente, também diluirá as diferenças entre as três regiões presentes. E que diferenças… Para o caso vertente, foquemo-nos nos sistemas jurídicos: temos três e todos bem diferentes. Em Macau predomina o chamado “continental”, europeu, um corpo legal façanhudo e romano-germânico. Em Hong Kong, pratica-se a dita Common Law, o direito anglo-saxónico, fundado principalmente na jurisprudência e no “confusionismo”. Já na RPC, estamos perante um direito baseado no direito continental europeu, mas atravessado de derivas incompatíveis com os outros dois, sendo o elefante maior o facto de não existir separação de poderes entre o judicial e o executivo. Ora ao pretender uma união comercial, facilitar a circulação de pessoas e bens nesta Grande Baía, torna-se óbvio que surgirão conflitos legais, duros de roer e de resolver. Burlas, fraudes, golpes, golpadas e golpinhos por essa Grande Baía fora. Como controlar isto sem uma lei da extradição, que permita uma acção rápida e coordenada das autoridades em questão? É virtualmente impossível, um controlo condenado ao fracasso. Daí a emergência extemporânea desta proposta de lei, ainda que dela tenham sido excluídos a maior parte dos crimes económicos. Trata-se, é bom de ver, de um caso em que o carro é colocado à frente dos bois. Estranhamente, a RPC parece ter pressa de integrar Hong Kong, assumindo uma atitude pouco condicente com a postura reflectida e equidistante que tem exibido no actual palco das relações internacionais. Contudo, o que aqui demonstra é uma inusual incapacidade de compreender onde fica a linha da harmonia ou até onde pode o bambu vergar sem se partir. É verdade que a RPC está debaixo de fogo. Os Estados Unidos de Trump alargam as esferas da guerra comercial e, obviamente, procuram descredibilizar a China em diversas áreas. Hong Kong é, todos o sabem, um espaço onde esses “inimigos” pululam e agem. Mas, para contrariar essa acção, a RPC tem de contar com o apoio da população local e não com a sua animosidade. Tem de lhe instilar o “novo sonho chinês”, de uma nova Grande China, forte, plena e una, em 2047/49. Uma China de características globais, onde a liberdade dos cidadãos não entra em conflito nem põe em causa a autoridade do Estado, onde predomine a meritocracia, a justiça seja independente e a criatividade abençoada. A proposta de lei do Governo de Hong Kong, as manifestações populares, a carga policial, a entrevista de Carrie Lam, finalmente, a suspensão do debate e da consequente aprovação da lei parecem invocar a máxima de Shakespeare: “much ado about nothing”. Mas não. Aqui estamos perante um caso de “much ado about everything”. E este “everything” é a forma de sociedade prometida, a liberdade do cidadão, o estado de direito, a crença na irredutibilidade do indivíduo e no valor supremo da sua vida.</p
João Romão VozesCidades, felicidade, casas e processos participativos [dropcap]T[/dropcap]alvez a mais elementar sensatez sugerisse que este fosse assunto deixado exclusivamente ao livre arbítrio dos poetas, ou quando muito de alguns filósofos mais versáteis, mas pelos vistos também há economistas e outros analistas de contabilidades várias a dedicar-se ao tema: a felicidade, nem mais, por estes artífices (entre os quais me conto, já agora) brutalmente transformada em objecto de medida, com as suas engenhosas classificações e os seus inevitáveis “rankings” internacionais, superiormente decretados sob os auspícios da ONU (quem mais nos poderia valer nesta tão premente necessidade civilizacional e planetária, aliás?) e validados por cientistas de renome internacional. Meça-se a felicidade, então, assim por atacado, em cada país, para podermos comparar-nos enquanto povos mais ou menos felizes. Desde 2012 que isso é feito pela “Sustainable Development Solutions Network”, das Nações Unidas, e daí resulta o “World Happiness Report”, publicado desde 2012. Nesta quantificada – mas nem por isso menos subjectiva – contabilidade da felicidade dos povos, ganham sistematicamente, e com apreciável vantagem, os do norte da Europa: na mais recente versão deste gracioso “ranking”, publicada há um mês e com dados referentes a 2018 – Finlândia, Dinamarca, Noruega e Islândia ocupavam os quatro primeiros lugares, ficando a Suécia pelo 7º. Holanda, Suíça, Nova Zelândia, Canadá e Áustria completam o “top-10” desta tabela, posições manifestamente inacessíveis para os povos da Europa do Sul (a França está no 24º lugar e a Espanha no 30º), da América Latina (com excepção da particular Costa Rica, num magnífico 12º lugar, o melhor é o Chile, em 26%) ou da tragicamente infeliz África (a Líbia ocupa a mais destacada posição, no 72º lugar, ainda assim atrás de Portugal, na mui modestamente feliz 66º posição). Tem sido mais ou menos assim desde que o relatório é publicado. Verdade seja dita, mesmo que esta contabilidade só muito remotamente possa ser vista como uma aferição relevante da felicidade nacional (seja lá isso o que for), não deixa de sintetizar alguma informação interessante sobre a satisfação de cada povo com a vida que leva – assim numa média relativamente grosseira, que dentro de cada país as diferenças são muitas. O índice é construído tendo em conta indicadores socioeconómicos (riqueza, apoios sociais ou esperança de vida) e de confiança nas instituições (liberdade de associação e de voto, percepção sobre corrupção ou sensação de segurança), cujo impacto nas nossas efémeras existências não é certamente negligenciável. A cultura é que não traz felicidade – isso já se sabia – e talvez por isso não precise de ser contabilizada nesta medida da felicidade humana segundo a ONU. Vem isto a propósito de ter tido por estes dias a oportunidade de visitar a Finlândia, o país que lidera este ranking, terra de generalizada felicidade segundo os critérios cientificamente avalizados que a ONU utiliza. Participando numa conferência em que o tema geral era a planificação de cidades contemporâneas, o dito ranking foi várias vezes objecto de conversa – e ocasionalmente de sarcasmo, tendo em conta a generalizada circunspecção nórdica e a relativa escassez de sorrisos, já para não falar em abertas gargalhadas. E se havia algum consenso em relação à impossibilidade de se medir a felicidade com base nestes atributos, também se ia concordando que os ditos indicadores oferecem pistas relevantes em relação à forma como as pessoas se relacionam – de forma mais ou menos satisfatória – com os contextos socioeconómicos e institucionais em que vivem. Acabei por ter um exemplo clarificador numa visita guiada a uma zona portuária em profunda renovação no sul da cidade de Helsínquia. Um arquitecto da autarquia explicou com detalhe pormenores relativos ao desenho de espaços e edifícios, que incluem, por exemplo, caminhos a ligar blocos residenciais, espaços verdes e escolas que permitem a qualquer criança deslocar-se entre estas áreas sem ter que atravessar ruas com tráfego automóvel. Este desenho corresponde, naturalmente, a uma opção política sobre o que deve ser a cidade, mas há outras, tão ou mais relevantes: por exemplo, das habitações que vão servir cerca de 20.000 novos residentes, apenas 45% são transaccionadas no mercado (as restantes são atribuídas por concurso com rendas sociais ou sorteadas e vendidas a um preço a que não supera os custos de produção). Visitando a zona, não se consegue distinguir os vários tipos de habitação, que parecem bastante semelhantes independentemente do regime de comercialização ou utilização. Uma intervenção desta natureza e dimensão tem também o efeito de reduzir a procura de casas no circuito comercial e, por essa via, contraria a tendência para a subida preços. Quem nos mostra esta nova parte da cidade é um jovem investigador de doutoramento na Universidade de Helsínquia, também pertencente a uma organização de residentes que participa frequentemente nas discussões sobre planos urbanísticos na cidade. Em resultado dessa participação sistemática, foi convidado – com outras pessoas de perfil semelhante – a servir de “mediador” entre grupos organizados de residentes e a Câmara Municipal nos diversos processos de planeamento urbanístico em curso (entre os quais, o desta zona da cidade). Estas práticas institucionais que envolvem as pessoas nos processos de planeamento das suas cidades são radicalmente diferentes das práticas a que costumamos assistir, por exemplo, em Portugal. Da mesma forma, intervir na questão da habitação disponibilizando milhares de casas fora dos circuitos comerciais promove a defesa das pessoas contra o poder das empresas imobiliárias e financeiras. São opções políticas possíveis. E se calhar até ajudam a que se tenha alguma felicidade, afinal de contas. Pelo menos será mais fácil estar satisfeito com a economia e a democracia. Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO Brexit e a China “China is ready to take advantage of a divided Europe and weakened UK after Brexit.” China and Brexit: what’s in it for us? François Godement & Angela Stanzel [dropcap]O[/dropcap] polémico político, académico, escritor e poeta britânico, John Enoch Powell, que foi deputado pelo Partido Conservador do Reino Unido de 1950 a 1974, do Partido Unionista do Ulster de 1974 a 1987, e ministro da Saúde do Reino Unido de 1960 a 1963, afirmou que todas as carreiras políticas na Grã-Bretanha terminam em lágrimas. A primeira-ministra demissionária Theresa May, não falhou à regra e as suas palavras mostraram essa verdade não apenas figurativamente, mas literalmente. A primeira-ministra demissionária anunciou em 24 de Maio de 2019 que deixaria o cargo a 7 de Junho de 2019, e viu-se o seu rosto consumido de emoção e lágrimas nos seus olhos. Foi um balde de água fria para terminar um período caótico e, para muitos, inglório. A primeira-ministra demissionária foi derrotada quando sucedeu a David Cameron em 2016, mas jogou de forma notavelmente funesta. Os seus quase três anos no cargo foram consumidos pela questão do Brexit. Apesar disso, deixa ao seu sucessor a questão de como será alcançado. Theresa May cometeu sérios erros estratégicos ao tentar cumprir o resultado do referendo de Junho de 2016 para o Reino Unido sair da União Europeia (UE). A primeira-ministra demissionária tinha um mandato para começar as negociações infames, mas ninguém sabia exactamente qual o caminho a percorrer. A primeira-ministra demissionária descobriu que havia uma enorme gama de opções, e nenhuma delas teve amplo apoio público. Theresa May provou ser uma vendedora pobre para uma forma de Brexit que todos poderiam, até certo ponto, aceitar. Quando Theresa May se tornou primeira-ministra, sem oposição, no verão de 2016, mesmo os que haviam votado para permanecer na UE estavam dispostos a admitir a contragosto, que o enorme exercício democrático havia produzido um resultado que precisava de ser implementado. Naqueles primeiros meses, Theresa May teve a oportunidade de persuadir, e fazer o que os políticos deveriam ter feito, que era promover um resultado político específico através de uma boa comunicação e convicção. O movimento inicial de Theresa May, no entanto, como um eleitor remanescente foi tentar provar ao seu partido que era uma verdadeira convertida à causa do Brexit. Os seus comentários tipo linha dura na conferência do Partido Conservador, no Outono de 2016, foram o “Brexit significa Brexit” e não poderia haver compromissos, sendo o primeiro aviso de que seria uma refém da fortuna. Os eventos deveriam desdobrar-se com uma inevitabilidade trágica quase grega depois disso. Primeiro foi a decisão de accionar o desprezível artigo 50 do Tratado de Lisboa de 2009 que, muito brevemente, estabelece o mecanismo pelo qual os Estados-membros da UE podem sair. A única estipulação é que o processo levaria dois anos, sem detalhes sobre como exactamente seria alcançado. Antes de ter um plano de batalha claro, e em grande parte pressionado pela linha dura do seu partido, Theresa May accionou o artigo 50 em Março de 2017. A partir desse momento, perdeu o controlo de uma das poucas alavancas que tinha, que era o tempo. O seu segundo erro foi subestimar a complexidade da questão da fronteira com a Irlanda do Norte. A Irlanda do Norte, consumida por conflitos sectários durante boa parte de 1969 e anos seguintes, teve o Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998, que consolidou uma paz sustentável. Mas dependia de não haver uma fronteira rígida entre a Irlanda do Norte, que permanecia sob domínio britânico, e a República da Irlanda, no sul. O desejo de se separar completamente do mercado comum e da união alfandegária da UE, fizeram os negociadores de Theresa May enfrentar o problema intratável da necessidade de uma fronteira rígida com os controlos alfandegários na Irlanda, ou não ter, mas conseguir algum tipo de adesão ao mercado da UE. Tratava-se de um mecanismo para lidar com tal facto e que se comprometeu com uma fronteira suave, mas em um período de tempo indefinido, sendo um dos muitos aspectos do acordo final que conseguiu negociar com a UE e apresentar ao parlamento no final de 2018. A rejeição pela maior votação de sempre significaria o fim da maioria dos líderes. Mas tão extraordinários foram os tempos em que foi primeira-ministra, tendo efectivamente sido capaz de fazer o mesmo acordo perante a Câmara dos Comuns, o principal órgão legislativo, mais duas vezes. A sua queda final foi devido a uma nova tentativa de tentar aprovar esse acordo, o que tornou inaceitável até para os seus defensores mais fiéis. Apesar do Reino Unido ser uma sociedade dividida, Theresa May demonstrou uma incrível resiliência diante de um parlamento e de um partido muitas vezes em guerra consigo mesmo, com profundas divisões que pareciam piorar em vez de melhorar. O Partido Conservador está dividido desde há muitas décadas entre os que apoiam a UE e os seus membros, e os que consideram uma afronta à soberania por um super-estado liderado por Bruxelas, ao estilo continental, na esperança de reduzir o Reino Unido à servidão. Por um lado, o ónus está no pragmatismo, olhando para os benefícios económicos que a adesão à UE dá e por outro, no entanto, na identidade que é importante. Tais divisões são reflectidas na sociedade em geral. E com efeito, enfrentam-se em dois grupos que simplesmente não falam a mesma língua. Não admira que tenha sido difícil para Theresa May chegar a negociar um compromisso. A sua posição mudou durante o breve período da sua liderança, quando reconheceu os enormes desafios enfrentados pelo Reino Unido no modelo de saída. Longe de se fragmentar, o resto da UE permaneceu consistente no seu conjunto de desafios, dando a Theresa May pouco espaço para negociação. Theresa May não foi ajudada pelos independentes, e muitas vezes com a liderança inútil nos Estados Unidos após 2017 e a chegada do presidente Donald Trump ao poder. As grandes declarações do presidente Trump aconselhando-a de que só necessitava de sair da UE sem medo das consequências não eram os sentimentos da maioria do povo britânico, que mostrou que se importava com a sua prosperidade económica no futuro e a ameaça não é um acordo. Para outros, a sua crença sincera era de que havia oportunidades fora do mercado que a UE oferecia, mas a partir de meados de 2019, estes parecem esquivos. A saída de Theresa May deixará o Brexit mais próximo de uma solução do que há quase três anos. O seu sucessor precisará de encontrar o consenso que não conseguiu, ou lidar com a implementação de algo que não seja tão propenso a antagonizar e irritar quantas pessoas desejar. Ainda pior, há toda a possibilidade de que o resultado final desaponte todo o mundo. Trata-se de uma sucessão espinhosa, mas que fez sair Theresa May no momento certo. Há claramente um enorme acerto de contas para os políticos que são vistos como incompetentes e movidos pelo interesse próprio e não pelo bem da nação. É de considerar no entanto, que a mais profunda raiva talvez seja para aqueles cujas promessas, argumentos e declarações, dados com tanta confiança nos últimos anos, sobre como é fácil deixar a UE e como as negociações acabarão por terminar terão um enorme impacto. Se o Brexit for forçado a não negociar, e houver consequências económicas negativas imediatas, então a era de Theresa May poderá ser vista com alguma nostalgia e, ao contrário de alguns dos seus antecessores, como Tony Blair e David Cameron, pelo menos desfrutará de alguma simpatia, como uma pessoa que tentou fazer o melhor possível em circunstâncias impossíveis. Tal indulgência caritativa quase certamente não será concedida ao seu sucessor e há todas as possibilidades de que o Partido Conservador, depois de três séculos como uma força política no Reino Unido, possa ser consignado ao estatuto de partido minoritário, ou mesmo ao completo esquecimento. Se o sucessor de Theresa May falhar em um Brexit suave, pode significar o fim do Partido Conservador britânico. A Grã-Bretanha sofrerá pesadas perdas económicas com a iminente saída, já que está economicamente e altamente integrada na UE. Embora possa procurar mercados alternativos, o custo será alto e não será realizado imediatamente, sendo que uma das vantagens notáveis da Grã-Bretanha é o estatuto de Londres como centro financeiro internacional. Mas a saída da UE pode diminuir o papel do país nas finanças globais e é provável que afaste os investidores estrangeiros. O Citigroup estimou que o PIB anual da Grã-Bretanha pode diminuir entre 3 a 4 por cento nos próximos três anos devido à saída. O relacionamento da Grã-Bretanha com o resto do mundo também será afectado. Tem de recuperar de alguma forma a voz única e ressonante nos assuntos mundiais, uma vez rompidos os laços com a UE. No que diz respeito aos assuntos europeus, pelo contrário, a Grã-Bretanha terá menos direitos a participar na tomada de decisões no futuro. Os Estados Unidos também perdem um canal para exercer influência na UE por meio da sua estreita parceria com a Grã-Bretanha. A “relação especial” entre os dois países mudará de maneira subtil. A divisão política na sociedade britânica ampliou-se após o referendo. Os eleitores do “Pro-Leave” derrotaram os que apoiaram a campanha do “Remain” por menos de 4 por cento ou seja um milhão e duzentos mil eleitores. Além disso, muitos cidadãos podem enfrentar incertezas quanto à sua vida, emprego e rendimento devido ao referendo, agravando ainda mais os “remanescentes”. O primeiro-ministro escocês afirmou que um segundo referendo sobre a independência da Escócia era “altamente provável”. A Escócia, Irlanda do Norte e Londres são três áreas em que a maioria dos eleitores apoiou a campanha “Remain”. A ameaça à unidade nacional da Grã-Bretanha está a crescer. O Brexit é também um duro golpe para a UE e uma grande conquista da integração regional que os europeus fizeram nas últimas décadas. Dentro da UE, há livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capital, o que muitas vezes é considerado o ápice dos esforços para alcançar a unidade humana no mundo. No entanto, o eurocepticismo tem vindo a aumentar no continente ao longo dos últimos anos. Depois do referendo sobre a adesão da Grã-Bretanha à UE, as pessoas temem que mais Estados-membros sigam o exemplo, embora essa reacção em cadeia pareça improvável, o processo de integração europeia sofreu um revés significativo. Actualmente, tanto a economia europeia como a mundial permanecem frágeis, com o Brexit apenas a aumentar a incerteza global e como uma das maiores economias do mundo, o impacto da Grã-Bretanha permanece perceptível. No dia em que o resultado foi anunciado, a libra esterlina caiu, resultando em flutuações cambiais internacionais e vendas de acções recorde. A China mantém estreitos laços económicos com a Grã-Bretanha e a UE, pelo que o Brexit inevitavelmente terá alguma influência nas relações China-Reino Unido. Se o Reino Unido deixar de fazer parte do mercado único da Europa, deve reforçar os laços comerciais com outras regiões. Nesse contexto, o fortalecimento das relações chinesas seria uma opção lucrativa para a Grã-Bretanha, especialmente se o comércio britânico se desviar significativamente da UE. Além disso, a Grã-Bretanha estaria livre para acordar com a China sobre livre comércio e investimentos bilaterais sem as restrições impostas pelas leis da UE. De acordo com o Tratado de Lisboa, os membros da UE não estão autorizados a firmar acordos de livre comércio ou acordos bilaterais de investimento com terceiros. Todavia, a China perderia a Grã-Bretanha como uma porta de entrada para aceder ao mercado da UE e promover o uso do renminbi na Europa. Além disso, a Grã-Bretanha poderia ser menos atraente para o investimento estrangeiro depois de sair da UE, mas não perderia a sua vantagem competitiva nas indústrias. O investimento directo da China na Grã-Bretanha pode ser influenciado negativamente, mas não deve cair drasticamente. É bastante simples a China interpretar a estratégia da Grã-Bretanha. O Reino Unido pode parecer um local de investimento muito mais aberto para as empresas da China, ainda que desvinculado dos mercados europeus e, muito menos atraente como uma possível porta de entrada para o continente. Além disso, a influência internacional do sector de serviços financeiros de Londres deve ser significativamente reduzida pela perda dos chamados direitos de passaporte, e isso tem o potencial de afectar a ambição da cidade de assumir um papel de liderança na internacionalização da moeda chinesa. Para os cidadãos chineses que desejam estudar ou trabalhar no Reino Unido, a situação mudará. A Grã-Bretanha removida da Europa poderia oferecer mais oportunidades, ou poderia ser menos atraente; sendo menos internacional e mais paroquial. Tendo-se tornado mais isolado diplomaticamente, o Reino Unido será visto no pensamento político chinês como um actor muito menor e menos importante. Infelizmente, essa atitude em particular e o que conduzirá não foi tida em consideração por muitos eleitores britânicos em 23 de Junho de 2016 e se contentarem em viver com as consequências, teremos que esperar e ver, independentemente da situação. Os ingleses defendem que a Grã-Bretanha e a China devem aproveitar oportunidades excepcionais para forjar uma parceria global mais próxima na era pós-Brexit. Os dois países poderiam aumentar ainda mais a sua cooperação nos campos do comércio, investimento, energia limpa e outros, enfrentando desafios globais. A Grã-Bretanha está disposta a renovar o seu entusiasmo pelas relações internacionais, especialmente com a China. O Reino Unido no mundo depois do Brexit, continuará a negociar com a UE e para muitas empresas chinesas e investidores que estão sediados na Grã-Bretanha, ainda é um bom local para fazer parte da Europa. O relacionamento da Grã-Bretanha com a China é um bom exemplo do seu internacionalismo, que entrou em uma nova fase na “era de ouro” e na sua estratégia industrial recém-lançada, tendo o governo britânico identificado a transição energética como um dos principais desafios globais e a melhor solução para os solucionar é quando os países podem trabalhar juntos, sendo de recordar que ambos construíram uma base sólida de cooperação nessa matéria. O projecto Hinkley Point C não é apenas o maior investimento em energia do Reino Unido, mas também o maior projecto de investimento em infra-estrutura na Europa, sendo um bom exemplo de como a cooperação em energia limpa pode funcionar como um pilar da parceria internacional. O projecto de dezoito mil milhões de dólares, com um terço do investimento feito pela China, foi descrito como a primeira nova central nuclear da Grã-Bretanha em uma geração. Através do Acordo de Paris, tanto a Grã-Bretanha quanto a China assumiram compromissos muito significativos sobre as alterações climáticas e um dos desafios é ter certeza de que a Grã-Bretanha pode cumprir os seus compromissos a um custo acessível. O propósito da Grã-Bretanha participar no Diálogo Europeu de Energia é o de procurar oportunidades para a cooperação de energia renovável em uma ampla gama, incluindo a energia eólica offshore, pois estabeleceu uma posição de liderança neste campo, e o custo de energia foi efectivamente reduzido com a aplicação da tecnologia eólica offshore, esperando que a energia limpa seja acessível tanto para os consumidores quanto para as empresas, tendo a ambição de reduzir o custo da energia. A Grã-Bretanha está também interessada na iniciativa Made in China 2025, pois o mundo testemunhou mudanças maciças e empolgantes que ocorrem onde grandes revoluções tecnológicas têm vindo a transformar quase todos os sectores da economia, assim como a vida das pessoas. A China e o Reino Unido têm visões idênticas sobre as tendências globais, como o envelhecimento da população, e ambos elaboraram planos de acção para desenvolver a inteligência artificial, análise de dados e outros sectores para abraçar mudanças tecnológicas e construir forças económicas. Hoje Macau VozesA China está empenhada na proteção dos direitos da propriedade intelectual Gong Xin* [dropcap]A[/dropcap] propriedade intelectual é a ponte da globalização comercial e o elo de ligação da cooperação internacional. No entanto, alguns políticos norte-americanos usaram-na como pretexto para provocar fricções comerciais, tecendo críticas em que acusam a China de “roubar os direitos de propriedade intelectual” e de “exigir a transferência forçada de tecnologia”, tentando impor pressão máxima sobre a China. A China não é o ladrão da propriedade intelectual, mas sim um protector e criador dela. Ao fazer uma retrospectiva da protecção chinesa da propriedade intelectual, constata-se que a China de hoje já estabeleceu um sistema jurídico relativamente completo e com alto padrão da protecção dos direitos da propriedade intelectual, enquanto há 40 anos, a China estava ainda nas suas primeiras tentativas de protecção da propriedade intelectual. A jornada chinesa é única do mundo. Actualmente, a China está empenhada na reforma da modernização da governação da propriedade intelectual, que irá conduzir a China de um grande país de propriedade intelectual para um forte país de propriedade intelectual, e irá inspirá-la a participar com mais confiança na cooperação global da inovação. Hoje, a China encontra-se no trilho rápido da inovação científica e tecnológica e já se tornou num grande país inovador com influência global. Novas indústrias, novos modelos e formas de negócios estão a surgir uma após outra, enquanto a inovação se transformou num motor do desenvolvimento económico e social. Não só a China é pioneira na fabricação de aeronaves de grande porte, construção de caminhos-de-ferro de alta velocidade, desenvolvimento de energia nuclear da terceira geração e veículo de energia nova, como também se progrediu na inteligência artificial, Big data, computação em nuvem e outras tecnologias informáticas da nova geração. Uma reportagem do Wall Street Jornal mostrou que já alguns anos atrás a quantidade de teses chinesas sobre inteligência artificial tinha ultrapassado as dos EUA. A China tem agora a maior equipa de pesquisa e desenvolvimento do mundo, e o número de pedidos de patente de invenção fica em primeiro lugar no ranking mundial por oito anos consecutivos. Segundo o Relatório Índice de Inovação Global 2018 emitido pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a China ocupa o 17º lugar, sendo pela primeira vez que entrou nos primeiros 20 no ranking. Os esforços da China em matéria de protecção judiciária e administrativa dos direitos da propriedade intelectual têm aumentado. Foi estabelecido o sistema judicial de “Tribunal de Recurso + Tribunal Especializado na área de Propriedade Intelectual”, e foi reestruturada a Administração Nacional de Propriedade Intelectual para realizar uma série de acções especiais contra a violação dos direitos da propriedade intelectual. Em 2018, a China investiu cerca de 2 biliões de RMB em pesquisa e desenvolvimento, correspondendo 2,18 por cento do PIB chinês e ultrapassando a taxa média dos países da OCDE. Ao mesmo tempo, a China tem reforçado a protecção da propriedade intelectual, e tem mantido uma tendência de crescimento elevado do valor de royalties pago aos detentores estrangeiros de propriedade intelectual, que tem registrado um aumento anual de 17 por cento desde o ano de 2001, somando US$ 28,6 mil milhões em 2017. A propriedade intelectual desempenha um papel de ponte no intercâmbio técnico e de cooperação em inovação entre países. Os passos da China na área da protecção da propriedade intelectual só vão avançar e não recuar. A China irá participar com uma postura mais activa na governação global da propriedade intelectual. *Comentador politico David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPublicidade enganosa [dropcap]N[/dropcap]o dia 2 deste mês o jornal de Hong Kong Sing Tao Daily publicou uma notícia sobre a jovem Miss Wong, proveniente de Hong Kong e estudante no Reino Unido. Miss Wong levantou um processo num tribunal londrino contra a Universidade Angelia Ruskin. O artigo não adiantava os motivos de forma muita clara, limitando-se a mencionar “publicidade falsa aos serviços”. Miss Wong inscreveu-se nesta Universidade em 2011, para fazer uma pós-graduação em administração internacional, um curso com duração de dois anos. A jovem escolheu a Angelia Ruskin devido ao panfleto promocional que garantia “Formação de Alta Qualidade” e “Boas Perspectivas de Emprego”. Estas indicações impressionaram favoravelmente Miss Wong. Mas depois do início do ano lectivo ficou decepcionada. As aulas começavam com atraso e terminavam antes da hora. Os estudantes eram incentivados ao “auto-didactismo”. Por tudo isto, a queixosa acusou a Universidade de fraude, na medida em que estava longe de garantir a “Formação de Alta Qualidade” anunciada no prospecto. Mesmo assim, terminou a formação em 2013 certa de que tinha assegurado o início de uma sólida carreira profissional. Mas sempre que se candidatava a um emprego era rejeitada. O diploma não era reconhecido no mundo do trabalho. Portanto, para Miss Wong, o curso não assegurava formação de qualidade nem garantia perspectivas de emprego e, como tal, considerou que o prospecto publicitário era enganador. Após negociação entre as partes, a Universidade indeminizou a queixosa com o montante de 61.000 libras. Deste valor, 46.000 libras eram destinadas a custas processuais. O sistema legal britânico é diferente do de Macau. A parte que perde o processo arca com as custas da outra parte. A principal despesa deste bolo são os honorários do advogado, que neste caso foram pagos pela parte acusada. Em entrevista ao jornal Sunday Telegraph, Miss Wong afirmou sentir-se satisfeita com o resultado do julgamento. Disse ainda estar convencida que de futuro a Universidade iria ter mais cuidado com o que escrevia nos prospectos promocionais. Promessas irrealizáveis não devem estar impressas em panfletos informativos. Embora este caso não envolva uma notícia de monta, para nós, não deixa de ser motivo de reflexão. Como sabemos, actualmente existem nove Universidades em Macau. Devido à implementação da Lei do Ensino Superior, estamos a entrar numa nova era da educação. Quase todas as Universidades têm de estar certificadas. A certificação atesta o grau de qualidade de cada uma delas. Desta forma, as Universidades devem poder garantir até certo ponto o seu nível de ensino. No entanto, Miss Wong processou a Universidade por incumprimento das promessas feitas aos estudantes no programa promocional. Segundo a notícia, a queixosa baseou o seu processo na falsidade do prospecto. Se tinha ou não tinha razão, é uma questão que fica em aberto. Mas uma coisa é certa, segundo a lei do Reino Unido, a partir do momento em que os estudantes pagam as propinas e ingressam na Universidade, estes prospectos fazem parte do contrato entre as partes. A Universidade é responsável por honrar os termos do contrato. Se não o fizer, entra em incumprimento e os estudantes podem processá-la. Embora a situação em Macau seja significativamente diferente da do Reino Unido, o prospecto é considerado um documento oficial na admissão à Universidade. Se existirem diferenças consideráveis entre o programa apresentado e a experiência que os estudantes vivem posteriormente, existirão naturalmente motivos de descontentamento. Consequentemente, as Universidades terão de ter muito cuidado com a forma com que redigem estes panfletos. Se as promessas se cumprirem todos ficam satisfeitos, mas se não se cumprirem os problemas hão-de surgir. Este caso acaba por ser um alerta para todas as Universidades, lembrando que devem ser cuidadosas na forma de divulgar os seus programas e responsáveis pelas expectativas que criam aos estudantes. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk João Luz VozesLiberdade [dropcap]E[/dropcap]terna fome da alma, torrente imparável que destrói todos os obstáculos com força de elemento natural. Chama mais brilhante que se alimenta do combustível da opressão e da violência. Denominador comum de todos os mortais, aspiração dos imortais, transversalmente universal como a carne e o sangue, como um impulso de amor. A busca da liberdade confere humanidade como a ânsia pela transcendência e a habilidade de sonhar, uma avassaladora paixão que tolda os sentidos até ser consumada, como uma nuvem carregada que já não aguenta conter o derrame líquido. O grito que se solta e repele o cheiro a cárcere que se entranha no corpo e espírito, que quebra as amarras da submissão, que derrota iniquidades e exércitos de servidão. A liberdade não se domina ou modera, o seu exercício é absoluto, soberano, maior que todas as doutrinas e ideais combinados. A sua força pode parecer enfraquecida, latente, mas nunca se extingue, impossível de não cumprir o desígnio de concretização como uma maré que sobe empurrada pela massa dos astros. Expressão máxima do que é o Homem, natureza e condição humana em acção. Musa de poetas e filósofos, matéria onírica, pesadelo dos tiranos, doce e vingativa revolução que paira por cima de todas as ditaduras como uma tempestade inevitável. Simplicidade que derrota a prepotência, maioridade que ganha ao infantilismo a que os déspotas votam os seus súbditos, clarão luminoso que leva a verdade ao mais obscuro recanto. Uns quantos teorizaram que todos os homens e mulheres estão condenados a ser livres, que essa é a sua génese, a página em branco desde o primeiro segundo de vida, a condição na qual se nasce. Outros entendem que jamais alguém será totalmente livre, que o mundo vive acorrentado à pessimista equação entre desejo e escolha consciente. Onde quer que esteja a chama da verdade, entre natureza bruta e fria racionalidade, os raios de sol vão sempre iluminar a treva. Entre as muitas mentes brilhantes que se debruçaram sobre o tema, há quem entenda a liberdade como uma emanação material, longe das teorizações burguesas metafísicas e ideais abstractos, a satisfação de se poder ser e fazer. Também é comum descrever-se a liberdade como uma espécie de fronteira que demarca onde um indivíduo acaba e o outro começa, a barreira que circunscreve uma unidade de vida e a divide da seguinte. A questão dos limites da liberdade condicionada socialmente está no cerne da verdadeira definição do que é ser livre. Estarão as várias liberdades individuais conectadas e dependentes umas das outras? A condição de se ser livre é algo pessoal ou social? Apesar da validade teórica e ética de uma liberdade que se realiza no confronto individual, a sua acepção pessoal vinca a existência. A característica intrínseca, inerente à pessoa, faz com que mesmo o encarcerado seja naturalmente livre. A certeza desta autonomia ultrapassa todas as celas, métodos de controlo, violência de Estado, terror assassino, doença e mesmo a inevitabilidade da morte. Apesar de amordaçado, o grito de liberdade esgueira-se entre os dentes, como um sopro que se agiganta. Fora do plano teórico, ser livre na sociedade em que vivemos pode reduzir-se ao simples privilégio de não nos chatearem os cornos, de termos acesso ao luxo do silêncio fora do alcance do WIFI. Sair de cabeça erguida do labirinto de produção e consumo onde meio mundo anda perdido, cumprindo a profecia de Debord do cativeiro do entretenimento e das falsas escolhas. Acordar para dias formatados por obrigações de toda a ordem, viver contido, confortável em passividade segura, evitando ao máximo o risco e o perigo de ser desbragadamente livre, para além dos limites das convenções sociais e até das leis. A liberdade é difícil de definir. Já a submissão é mais fácil de identificar, sente-se na pele, aterroriza os que ainda não foram aprisionados, fustiga a pele de quem ousa dizer uma palavra verdadeira, castra a criatividade e a expressão artística. O problema para quem aspira ser livre é que também a violência é inerente ao ser humano. Enquanto a experiência da humanidade durar, duas forças contraditórias vão continuar um conflito sem tréguas: liberdade e subjugação. Olavo Rasquinho VozesO meteorologista de Estaline – O homem que viveu duas vezes [dropcap]A[/dropcap]o ler a biografia de José Estaline, de Simon Sebag Montefiore, a minha curiosidade foi aguçada pelo facto de ser mencionado que ele (Estaline) trabalhara como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tbilisi, na Geórgia. Procurei mais informação mas não consegui saber quais as suas funções no Instituto Meteorológico. Tudo indica que não teria sido meteorologista na medida em que não consta que tivesse estudado matemática e física em profundidade que lhe permitissem compreender os fenómenos meteorológicos. Provavelmente limitar-se-ia a ler os instrumentos e a registar periodicamente os valores das variáveis meteorológicas, tais como a pressão atmosférica, a temperatura do ar, a precipitação e a avaliar visualmente outros parâmetros como a nebulosidade, visibilidade, nevoeiro, neblina, bruma seca, etc. Quanto muito teria exercido as funções de observador meteorológico. Continuando a busca de algo que relacionasse Estaline com a meteorologia, deparou-se-me o livro “O Meteorologista”, do escritor francês Olivier Rolin. O meteorologista não era Estaline, mas sim o seu contemporâneo Alexei Feodossievitch Vangengheim. Além de ambos terem tido profissões na área da meteorologia e de serem entusiastas das novas ideias que alastravam pela Rússia no início do século XX, nada mais de comum teria havido entre eles. Estaline era filho de um sapateiro e nascera em 1878 em Gori, na Geórgia (Cáucaso) e Alexei descendia de uma família da pequena nobreza e nascera em 1881 numa pequena aldeia, na Ucrânia. No entanto o destino ligou-os de maneira trágica. Enquanto Estaline enveredou pelo envolvimento político ativo, Alexei dedicou-se a uma carreira nas áreas da física e da matemática. Frequentou, no início do século XX, o Departamento de Matemática da Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscovo. Depois do serviço militar frequentou o Instituto Politécnico de Kiev e o Instituto Agrícola de Moscovo. Casou em 1906, tendo ingressado mais tarde no Serviço Hidrometeorológico do Mar Cáspio. Ainda antes da revolução é mobilizado como chefe do Serviço Meteorológico do VIII Exército, tendo os seus conhecimentos de meteorologia sido aproveitados em batalhas entre russos e austríacos, em que eram empregues gases, arma de guerra cujo uso era muito dependente da direção e intensidade do vento. Após a revolução de Outubro de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu entre Brancos e Vermelhos trabalhou no Observatório Geofísico em Petrogrado, onde foi o responsável pela previsão do tempo a longo prazo. O interesse pela meteorologia foi-lhe provavelmente transmitido pelo seu pai, que montara uma estação meteorológica nas suas terras. Apesar do seu pai pertencer à pequena nobreza, o que poderia fazer cair suspeitas de comportamento reacionário, Alexei optou por permanecer na Ucrânia após a revolução de outubro de 1917, contrariamente a um seu irmão que emigrou. Foi membro do partido bolchevique e, como tal, fez parte de numerosos comités e conselhos científicos. Foi nomeado para a direção do recém-formado Serviço Hidrometeororológico Unificado da URSS, a que chamava em alguns dos seus escritos “o meu querido filho soviético”. Foi o responsável pela instalação da rede de estações meteorológicas nas vastas regiões abrangidas pela URSS. Exerceu ainda outras funções, nomeadamente presidente do Comité Hidrometeorológico junto do Soviete dos Comissários do povo, diretor do Gabinete do Tempo e presidente do Comité Soviético para a organização do segundo ano polar. Contribuiu para a obtenção do recorde mundial de altura atingida pelo homem, com a subida do estratóstato designado por URSS1, que atingiu dezanove mil e quinhentos metros, em plena estratosfera, onde foram levadas a cabo observações de grande valor científico. Alexei participou em discussões iniciadas na década de 1930, conjuntamente com os diretores de serviços meteorológicos de outros países, em que se preconizava que a Organização Meteorológica Internacional (International Meteorological Organization – IMO), organização não governamental fundada em 1873, evoluísse no sentido da criação de um organismo internacional que coordenasse as atividades meteorológicas a nível mundial e cujos membros fossem os Estados aderentes. Tal veio a acontecer algumas décadas mais tarde, em 23 de março de 1950, com a entrada em vigor da Convenção Meteorológica Mundial, criando-se assim a Organização Meteorológica Mundial (World Meteorological Organization – WMO), agência especializada das Nações Unidas. Como fruto do seu trabalho, no primeiro dia do ano 1930, foi emitido o primeiro boletim meteorológico através da rádio. Era com orgulho que contribuía assim, na sua maneira de pensar, para a construção do socialismo. As previsões do tempo poderiam contribuir grandemente para o êxito da agricultura. E provavelmente assim seria, se houvesse uma rede de estações suficientemente densa não só na URSS mas também nos países a oeste, na medida em que nessas latitudes os fenómenos meteorológicos se deslocam com forte componente de oeste para leste. Na realidade os serviços meteorológicos não estavam tão bem organizados como atualmente e o sistema de telecomunicações não era suficientemente expedito que permitisse a transmissão dos comunicados meteorológicos com eficiência em tempo real, o que motivou que a fiabilidade das previsões do tempo não fosse muito elevada. Entretanto, a coletivização da propriedade rural levou à desmotivação dos camponeses o que provocou, juntamente com outras causas, uma baixa dramática da produção agrícola. A coletivização não se limitou às imensas propriedades dos latifundiários, que tanto exploraram os camponeses antes da revolução de outubro de 1917, mas também às propriedades dos camponeses que praticavam agricultura de sobrevivência. Um camponês com uma ou duas vacas era considerado Kulak e, portanto, inimigo da revolução. A coletivização forçada e as requisições de cereais decretadas por Estaline levaram em 1932 e 1933 a milhões de mortos na Ucrânia. Para justificar o insucesso na agricultura havia que encontrar bodes expiatórios. E assim Alexei foi acusado de propositadamente difundir previsões meteorológicas erradas com o intuito de sabotar a revolução. A sua ascendência nobre e ser irmão de um emigrado também contribuíram para que as suspeitas do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (abreviadamente designado por NKVD) caíssem sobre ele. Ainda por cima tinha contactos com personalidades estrangeiras. O convite ao meteorologista escandinavo Tor Bergeron para apresentar palestras na URSS contribuiu para que caíssem sobre ele suspeitas de contactos com estrangeiros não só sobre meteorologia mas também sobre outros assuntos. Bergeron foi um dos criadores da teoria norueguesa sobre a evolução de depressões associadas a superfícies frontais que separam massas de ar polar de massas de ar tropical, teoria essa que adotou representações gráficas das frentes que ainda hoje são usadas nas cartas meteorológicas. Alexei foi preso pela polícia política em 1934 e condenado a dez anos num campo de trabalhos forçados. Mais tarde, em 1937, foi-lhe agravada a pena para fuzilamento. O Campo de trabalhos forçados situava-se no nas ilhas Solovetsky, no Mar Branco, próximo da Finlândia e do círculo polar ártico. Foi nestas ilhas que se instalou o primeiro campo, em 1923, do que veio a tornar-se na Direção Central dos Campos (Glavnoye Upravleniye Lagurey), cujo acrónimo GULAC se tornou célebre. Ironicamente, em dez de agosto de 1956, três anos após a morte de Estaline, o presidente do Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS, assinou um decreto através do qual foram canceladas a decisão do Colégio da OGPU (Direção Política Conjunta do Estado) tomada em 7 de março de 1934 (condenação a dez anos em campo de trabalhos forçados) e a decisão da troika especial do NKVD de Leninegrado de 9 de outubro de 1937 (condenação à morte por fuzilamento). É pena que o cancelamento dessas decisões não devolvesse a vida do meteorologista… A esposa de Alexei, Varvara Ivanovna, faleceu em 1977 sem saber onde nem quando e em que circunstâncias o seu marido fora assassinado. A versão oficial que lhe fora entregue em 1957 foi a de que o seu marido morrera em 17 de agosto de 1942, de uma peritonite. Olivier Rolin, seu biógrafo, decidiu investigar a sua história quando consultava documentos reunidos pela ONG Memorial, associação russa dos direitos humanos criada durante a Perestroika. A sua curiosidade foi despertada por uns desenhos enviados por um deportado para sua filha, Eleanora, tirando assim do anonimato uma das muitas vítimas inocentes dos tempos conturbados vividos na URSS durante a década dos anos trinta do século passado. Esse deportado, que oficialmente morrera de uma peritonite em 1942, mas que na realidade fora fuzilado em 1937, era Alexei Feodossievitch Vangengheim. Tânia dos Santos Sexanálise VozesTambém há censura no sexo [dropcap]A[/dropcap] censura dos órgãos genitais bem que podia ser um problema do passado. Um pé é sempre um pé. Mas os genitais podem ser outra coisa qualquer? Formas de calão como passarinha, rata ou pipi existem por alguma razão. Censuramo-nos e coramos ao som de palavras simples como vulva ou pénis. A censura não precisa de ser regulada pelo sistema. Os poderes de censura também são individuais. Gostamos de criar significados alternativos ao que nos é menos conveniente encarar, aquilo que julgamos prejudicial às nossas sociedades. O sexo à luz da tradição judaico-cristã é uma realidade dolorosa. Somos obrigados a reinventar o sexo com formas mais infantilizadas e simplistas para poder aceitá-lo. Tudo começa com o mito das abelhas, ou das cegonhas, ou de outro qualquer animal que parece estar envolvido na narrativa do sexo. A educação sexual mais progressiva é contra este fabular. Mascarar o sexo com a narrativa da abelha é evitar a naturalidade e a normalidade do prazer. Como se o sexo fosse um acto de violência que tenha que ser apagado para evitar a revolução das massas. Uma vulva é uma vulva, um pénis é um pénis e devemos usar essa linguagem desde cedo – são só os nomes cientificamente correctos. Há uma objectividade associada à simplicidade da nossa fisionomia. As múltiplas camadas de significado só ofuscam práticas de auto-consciência corporal e de sexualidade informada. A censura previne isso mesmo: conhecimento. Claro que estamos cheios de narrativas, e até a simplicidade da nossa fisionomia vem de uma narrativa. Mas a narrativa não é ameaçadora, é só informativa. A forma como encaramos e entendemos factos não produzem consequências óbvias. Não falar abertamente sobre sexo não faz com que as pessoas não o tenham. O sexo vai continuar existir, mas menos informado. Este é o medo infundado que, por exemplo, justifica a resistência de alguns pais em aceitar educação sexual nas escolas. A censura funciona como um obstáculo a conversas honestas – somente – contribuindo para o triunfo do medo. Claro que o corpo feminino é mais passível à censura, porque o entendem como explicitamente sexual. Ao ponto de se sugerir censurar os mamilos femininos com mamilos masculinos. A segurança assexual de mamilos masculinos certamente consegue esconder a sensualidade dos femininos. Aliás, um rapaz chinês com um problema endócrino raro viu crescer-lhe uma mama. A foto que foi publicada desta situação peculiar censura o mamilo esquerdo (o que agora tem um aspecto mais feminino), mas deixa o masculino. Os paradoxos do sexo e do género levam a isto. Estas são representações que devemos (temos que) transformar. Não serve a ninguém continuarmos a censurar a linguagem de vulvas e de pénis, muito menos das imagens dos mamilos femininos (ou até pêlos púbicos, outro clássico) quando as consequências apontam para uma narrativa deficiente do sexo. As situações mais flagrantes mostram mulheres adultas que não sabem onde ficam a entrada da vagina, da uretra ou o clitóris porque não se fala sobre elas. Não sabermos do nosso corpo é tramado. Não entendermos as histórias que levaram a padrões duplos também não nos capacita para os destruir. Como se ficássemos para sempre cegos com uma perspectiva da história que afinal podia ser múltipla. Como a história de nações que, perante factos, são capazes de escondê-los como um gato escondido de rabo de fora, julgando a censura inevitável, como se fosse a obra da nossa natureza instintiva de protecção. Mas é só uma estratégia – uma escolha. Hoje Macau VozesMedidas restritivas comerciais dos EUA prejudicam interesses do mundo inteiro Gong Xin * [dropcap]N[/dropcap]o mundo globalizado de hoje, as economias chinesa e americana são altamente integradas e estão vinculadas a uma união que é mutuamente benéfica e de ganha-ganha por natureza. No entanto, desde Março de 2018, a administração actual dos EUA adoptou uma série de medidas unilaterais e proteccionistas no comércio com a China. Essas medidas restritivas comerciais não são boas para China nem para os EUA, e são ainda piores para o restante do mundo. As medidas tarifárias norte-americanas levaram a um contínuo declínio no volume de exportação da China para os EUA em 2019. Como a China tem de impor tarifas como contramedida aos aumentos tarifários dos EUA, as exportações norte-americanas para a China também caíram, já por oito meses consecutivos. A incerteza trazida pela fricção económica e comercial EUA-China tornou as empresas de ambos os países mais hesitantes em investir. Além disso, as medidas tarifárias não impulsionaram o crescimento económico americano. Em vez disso, aumentaram significativamente os custos de produção das empresas norte-americanas e preços domésticos, exercendo um impacto negativo sobre o crescimento económico e a vida do povo dos EUA. De acordo com um relatório de pesquisa, se os EUA sobretaxarem todas as exportações chinesas por 25%, o PIB dos EUA diminuirá 1,01%, reduzindo cumulativamente US$ 1 bilião nos próximos dez anos. As medidas tarifárias também prejudicaram severamente as exportações dos EUA para a China. Em 2018, quando o atrito económico e comercial piorava, as exportações de 34 estados norte-americanos para a China sofreram um queda, sendo os estados das regiões agrícolas do centro-oeste os mais afectados. As medidas proteccionistas adoptadas pelos EUA constituem uma violação grave às mais fundamentais e centrais regras da Organização Mundial do Comércio, incluindo o tratamento de nação mais favorecida e obrigações tarifárias, e expuseram o sistema de comércio multilateral e a ordem de comércio internacional ao perigo. As acções norte-americanas interrompem as cadeias industriais e de fornecimento globais, perturbam a confiança do mercado, reduzem a recuperação económica mundial e prejudicam o desenvolvimento das empresas e o bem-estar das pessoas em todos os países. A OMC cortou a sua previsão para o crescimento comercial global neste ano de 3,7% para 2,6%, enquanto o Fundo Monetário Internacional reduziu a sua estimativa para 3,3%, dizendo que a fricção económica e comercial poderia deprimir ainda mais o crescimento económico global. *Comentador político Sérgio de Almeida Correia VozesE se fizessem o reset* do sistema? [dropcap]M[/dropcap]aio foi-nos trazido sob a influência de Urano, agente do despertar cósmico, das mudanças rápidas, por vezes violentas, propiciador de relâmpagos e tempestades, capaz de libertar sem aviso prévio ideias e frases de grande impacto. Ao que me dizem, a aproximação de Vénus a Saturno trar-nos-á alguma contenção e equilíbrio a partir do último dia do mês, assim se antecipando dias estivais mais calmos. Para quem já esqueceu, o mês que findou foi politicamente vibrante e isso reflectiu-se na visita do Presidente da República, nas romarias a Pequim e Lisboa dos responsáveis políticos, na exaltação das virtudes patrióticas e num sem número de declarações que deveriam merecer reflexão. E, quem sabe, diria mesmo um acto de contrição como aquele que agora aconteceu com o multimilionário Joseph Lau. Condenado pelos tribunais da RAEM por corrupção activa e branqueamento de capitais em pena a que até hoje escapou, depois de ter anunciado a sua oposição à proposta de lei que permitiria ao Governo de Hong Kong facilitar a entrega de infractores em fuga, como ele, às entidades do interior da China, de Macau e de Taiwan, veio de repente dizer que desistiu de se opor à nova lei. Diz que não vai contestá-la, que está muito triste com a desarmonia gerada e que apoia a governação de acordo com a lei por parte do Governo de Hong Kong. E antes? Desconheço se o sujeito entrou nalgum trade-off, nem com quem, mas tanto amor à lei, à Pátria e a Hong Kong, tanto empenho na harmonia deveria terminar com a sua entrega às autoridades da RAEM para cumprir a pena em que foi condenado. Então não seria bonito de um momento para o outro ver toda a bandidagem do colarinho branco (alguma já com os colarinhos encardidos de tanto esquema), de cá e de lá, a entregar-se às autoridades? Isso é que seria amor à Pátria e ao princípio “um país, dois sistemas”. A sério. Certamente que os seus advogados lhe dirão isto. Mas quanto às declarações locais, a primeira pérola veio de Ho Iat Seng, candidato a Chefe do Executivo. E que disse ele? Então não é que antecipando–se à piedosa confissão de Joseph Lau veio dizer que com ele os direitos da comunidade portuguesa irão ser respeitados, que valoriza o seu papel e que serão todos tratados da mesma forma? Quando o ouvi no canal radiofónico da TDM pensei que se tinham enganado a ler as notas. Depois, ao ler no jornal, fiquei com curiosidade de saber em que circunstâncias tais declarações foram produzidas. Se à saída de um karaoke ou se depois de uma noite de insónia. Pelo que se viu com a dispensa dos ex-assessores portugueses da AL, dando-lhes cabo das carreiras profissionais e das vidas familiares, atirando-os para o desemprego, já estaria a ensaiar o seu modelo de protecção à comunidade portuguesa. Sim, porque portugueses não quer dizer comunidade portuguesa. A comunidade é óptima, claro. Os portugueses individualmente é que não, salvo quando se comportam como uns caniches amestrados, adulando quem lhes paga e temperando os pareceres que dão para lhes renovarem os contratos. Mal refeito desta tirada do candidato a Chefe do Executivo, ouvi o Senhor Secretário para a Segurança exaltar as virtudes do jornalismo obediente, mansinho e ao serviço do poder político e das suas causas. Genial. Foi pena que, aproveitando-se a deslocação a Macau de Rocha Vieira, de Fernando Lima e de Martins da Cruz, não tivessem reunido esforços para darem um curso de jornalismo sadio, patriota, aos profissionais locais. Carecidos como eles estão, com o apoio da Fundação Macau e do Instituto Internacional do Dr. Rangel, teria sido um sucesso. Pode ser que o José Carlos Matias se lembre disso numa próxima ocasião, mas não vai ser fácil voltar a reunir na RAEM tantas sumidades versadas em matéria de escutas, rumores e controlo da comunicação social. Esse curso de jornalismo amestrado teria sido particularmente importante numa altura em que a situação da segurança começa a fazer lembrar os piores tempos da administração portuguesa. Esfaqueamentos, cenas de pugilato no Cotai, roubo de milhões de dentro de um casino, aumento da criminalidade violenta, sequestros, gatunagem em fuga e dependente do auxílio das autoridades do outro lado para ser apanhada…; enfim, tanta câmara, tanta polícia, tanta escuta e só há resultados na cobrança de multas de estacionamento e no excesso de velocidade? É claro, por falar em multas, que nada disso tem o peso das declarações do Secretário para os Transportes e Obras Públicas. Por vezes tenho a impressão de que ele perde a paciência com os deputados. Como o compreendo. E o caso não é para menos. Não bastavam as obras do metro ligeiro, as inundações, aos aluimentos de terras, o hospital, os autocarros, os táxis, a qualidade do ar, os plásticos, o terminal marítimo da Taipa, a água que jorra da ETAR de Macau, a China Road and Bridge Corporation zangada e em tribunal por causa de meia dúzia de patacas, os “talentos” espalhados pelos passeios e em risco de serem pisados a qualquer momento pelo deputado Mak Soi Kun, e ainda se vão queixar do estacionamento? Mas onde é que esta gente vive? Qualidade de vida? Andem a pé. Então não gostam de ir todos os anos na marcha do Jornal Ou Mun? Agora podem treinar durante todo o ano, emagrecer saudavelmente. A influência de Urano ainda se fez sentir nas declarações da Secretária para a Administração e Justiça. A Dra. Sónia Chan reconheceu candidamente acreditar que “depois de haver uma sentença que essa vai ser traduzida para a outra língua”. Pois é, se recebesse sentenças saberia que não devia acreditar na imaginação, porque na prática não é verdade. Ainda há dias uma simpática senhora juíza, depois de ter notificado verbalmente em chinês, com tradução simultânea em português ao ouvido do advogado, mais de uma dezena de páginas, dispensou a tradução ao arguido em língua portuguesa, entre outras razões, imagine-se, por falta de meios! Falta de meios? Em Macau? Com o PIB que temos? Ainda se fosse no Canadá ou na Suíça, que não têm casinos decentes, eu poderia entender. Ora, a Senhora Secretária devia começar por dar meios aos tribunais. Para o que bilinguismo melhore e as decisões judiciais possam ser notificadas aos interessados com cópia em papel na língua que os destinatários, advogados ou partes, dominam. Para que se cumpra a Declaração Conjunta Luso-Chinesa e a Lei Básica. Imagine o que seria se os despachos do Chefe do Executivo lhe fossem entregues em servo-croata? É mais ou menos o mesmo. Pareceu-me ver aí alguma condescendência e boa vontade quando afirmou “eu até posso dialogar com os tribunais e alterar a lei actual”. E de que está à espera? Parece-me um bom princípio e só lhe ficaria bem, tanto mais que é a própria que também diz que isso “não é difícil”. O problema está quando, logo a seguir, a Dra. Sónia Chan pergunta: “mas na verdade, e na prática, se fizermos a alteração, o que vai acontecer depois?” (HojeMacau, 28/05/2019, p.7). Ó Senhora Dra., então isso pergunta-se? E o deputado Pereira Coutinho iria responder-lhe? Eu não quero deixá-la na dúvida e posso garantir-lhe que se isso for feito vamos todos, cidadãos residentes e não-residentes, advogados, magistrados, entendermo-nos muito melhor. Vamos ser todos muito felizes. Ainda mais, quero dizer. E logo na Grande Baía, Senhora Dra.! Já viu o benefício que seria? Já nos imaginou a recebermos despachos judiciais, sentenças, acórdãos numa língua que entendemos? E se isso fosse alargado às notificações do Turismo e dos Assuntos Laborais, e a todos os serviços da Administração Pública? Já pensou nisso? A quantidade de ramos de rosas que a AAM e os meus colegas, até os avarentos e que andam sempre à procura de subsídios, não iriam enviar para o seu gabinete. E então se as sentenças viessem por correio electrónico traduzidas nem lhe conto. Alguns até iriam dançar para a Praia Grande, lançar foguetes, sei lá, dar vivas ao futuro querido líder. Hoje vou deixar descansar o Dr. Alexis Tam e o Dr. Lionel Leong. Um porque ainda está a gozar os louros do seu Honoris Causa e a recuperar do jet-lag. O outro porque ainda está a reflectir sobre as razões para não o deixarem ser candidato a Chefe do Executivo. Não convém perturbá-los, ainda têm muito para fazer. Em todo o caso, gostaria de deixar uma palavra de solidariedade e muita compreensão ao Senhor Procurador, Dr. Ip Son Sang. É certo que me parece ver ali um remar contra a maré quando se alerta para a necessidade de contratação de magistrados portugueses “qualificados e experientes” para trabalharem em Macau. Sei que contratar portugueses já será difícil, qualificados e experientes ainda mais. Concordo, aprecio o esforço e também o trabalho que tem desempenhado no sentido da melhoria dos recursos e em matéria de tradução. Espero que o escutem e que lhe dêem razões para sorrir. Porém, onde senti que era mais importante deixar uma palavra de apoio ao MP e à sua hierarquia foi na parte do relatório 2018 em que o estimado Dr. Ip se queixou das dificuldades criadas pelo seu senhorio à acção da instituição que dirige. Homessa? Então não é que o MP enfrentou “de novo” uma acção de despejo, em 2018, “mais uma vez a ‘desocupação forçada’ exigida pelo proprietário para recuperar a unidade”? E que “o caso acabou por ser resolvido com um acordo que previa o aumento do valor de renda”, o que motivou “a incerteza do decurso da negociação, sendo causa de “enorme distúrbio e preocupação ao funcionamento e gestão dos lugares de trabalho do MP” (HojeMacau, 29/05/2019, p.9)? Como é possível isso acontecer? E com um inquilino que tem um batalhão de magistrados e funcionários, conhece a lei, tem-na do seu lado e paga as rendas atempadamente? Senhorio glutão. Imaginem então como será com o desgraçado do inquilino do estúdio, sem força negocial, que está nas mãos dos tubarões das agências de mediação e dos senhorios de Hong Kong e do Interior. Espero que o deputado Chan Chak Mo, presidente da 2.ª Comissão da Assembleia Legislativa, tenha lido com atenção o relatório do MP, em especial nesta parte, esclarecendo depois a opinião pública se o MP também cai na categoria dos “arrendatários trapaceiros”. Não dava jeito nenhum. Sugiro, pois, que se comece a preparar o reset do sistema de governança. Com a época de tufões à porta, e a silly season a entrar com esta força, tantos foram os bugs de Maio que começa a ser difícil distinguir a intromissão dos piratas (hackers) no sistema da acção dos especialistas encartados. * reset: o mesmo que reconfigurar, redefinir, reiniciar Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO fim da vida “I will respect the privacy of my patients, for their problems are not disclosed to me that the world may know. Most especially must I tread with care in matters of life and death. If it is given me to save a life, all thanks. But it may also be within my power to take a life; this awesome responsibility must be faced with great humbleness and awareness of my own frailty. Above all, I must not play at God.” Hippocratic Oath-Modern Version [dropcap]A[/dropcap] população mundial está a envelhecer e a capacidade de manter as pessoas desesperadamente doentes é cada vez maior. É um dever ajudar as pessoas que querem pôr termo à vida? Em caso afirmativo, deveriam ser apenas os pacientes terminais ou incluir aqueles que sofrem de doenças psiquiátricas, como no mediático caso de Aurelia Brouwers, a holandesa de vinte e nove anos que se encontrava tão infeliz que descreveu o seu sofrimento mental como “insuportável” e bebeu veneno fornecido por um médico, e se deitou para morrer, em 26 de Janeiro de 2018. A eutanásia e o suicídio assistido por médico são legais na Holanda, e daí que a sua morte foi sancionada pelo Estado. A paciente não era uma doente em fase terminal, mas foi autorizada a acabar com a vida devido à sua doença psiquiátrica, bebendo legalmente veneno letal. O Parlamento holandês considerou que se devia criar uma lei que permitisse aos médicos ajudar os pacientes a morrer em determinadas circunstâncias. A sua história é exclusivamente holandesa. A eutanásia é contrária à lei na maioria dos países, mas na Holanda é permitida, se um médico concordar, o sofrimento de um paciente for insuportável sem perspectiva de recuperação e se não houver alternativa razoável para a sua situação. Tais critérios podem ser mais simples de aplicar no caso de alguém com um diagnóstico terminal de cancro intratável e que sente muitas dores. A grande maioria das cerca de seis mil e seiscentas mortes por eutanásia na Holanda em 2017 são referentes a casos de pessoas com uma doença física, mas oitenta e três foram ajudadas a morrer por motivos de alto sofrimento psiquiátrico e cujas condições não eram necessariamente terminais. Os médicos de Aurelia não apoiaram os seus pedidos de eutanásia o que a levou a inscrever-se numa “Clínica de Fim de Vida”, em Haia que é o local de último recurso para aqueles cujas candidaturas foram rejeitadas pelo seu psiquiatra ou médico de família. A clínica supervisionou sessenta e cinco das oitenta e três mortes aprovadas na Holanda por motivos psiquiátricos, embora apenas cerca de 10 por cento dos pedidos psiquiátricos são aprovados, e o processo pode levar anos. A “Clínica de Fim de Vida”, só oferece eutanásia ou suicídio assistido a pessoas cujo pedido de morte assistida foi negado pela primeira vez pelo seu médico. A clínica não é um hospital ou um hospício, mas uma fundação com equipas de médicos e enfermeiros que trabalham separadamente e visitam os pacientes em casa. A clínica primeiro analisa o pedido, para determinar se cumpre os estritos critérios da lei holandesa de eutanásia e em caso afirmativo, uma das equipas conversa com o paciente por diversas vezes para investigar por completo o pedido. O historial clínico é pesquisado e os médicos envolvidos na situação são consultados. Se todos os critérios forem observados, o paciente pode morrer em casa, na presença de familiares e amigos. A cínica foi fundada em 2012, com base na lei da eutanásia e o direito holandês de morrer na sociedade. Ainda que qualquer paciente possa pedir à clínica a morte assistida, tem como objectivo principal os pacientes cujos pedidos de morte assistida são mais complexos e muitas vezes negados pelos seus médicos, ou seja, pacientes psiquiátricos, pessoas com demência ou que sofrem com doenças não fatais. A lei holandesa da eutanásia determina que apenas os pacientes que têm um sofrimento insuportável, sem perspectiva de melhoria, podem ser elegíveis para a eutanásia. A lei não contempla a distinção entre sofrimento físico ou psicológico. Os pacientes devem ser persistentes na decisão de solicitar a morte assistida e devem entender as consequências do seu pedido. O médico deve estar convencido de que não existe outra solução razoável para pôr termo ao sofrimento. Mas a lucidez significa que alguém tem a capacidade mental de escolher a morte em detrimento da vida? De acordo com a lei holandesa, um médico deve encontrar-se seguro do pedido de eutanásia do paciente, “voluntário e bem examinado”. Será que um doente psiquiátrico é idóneo para tomar a decisão? O desejo de morte poderá ser um sintoma da sua doença psiquiátrica? O facto de que se pode racionalizar sobre essa situação não significa que não seja um sinal da doença. Os psiquiatras devem tudo fazer para ajudar os pacientes a diminuir os sintomas da sua patologia e em transtornos de personalidade, um desejo de morte não é incomum. Se isso é consistente, e tiveram os seus tratamentos de transtorno de personalidade, significa que o desejo de morte é o mesmo que em um paciente com cancro que diz que não quer ir até à fase terminal? Os psiquiatras nunca devem conspirar com os pacientes que alegam que querem morrer, pois é possível não ser contaminado pela falta de esperança. Os pacientes perdem a esperança, mas os médicos podem ficar do seu lado e dar-lhes esperança. A morte da holandesa tem provocado um enorme debate a nível mundial e particularmente nos Países Baixos, pois ninguém sugeriu que era ilegal, embora os críticos tenham inquirido se era o tipo de caso para o qual a legislação permitia a eutanásia. As opiniões dividem-se sobre se havia uma alternativa aceitável, sendo que alguns argumentam de quando as pessoas solicitam a eutanásia por motivos psiquiátricos, em alguns casos suicidam-se, se não a recebem e que devem ser consideradas com doenças terminais. Alguns médicos afirmam que sabiam que os pacientes iriam cometer suicídio e não os podiam ajudar, pelo que a eutanásia como alternativa os deixava mais tranquilos por que existe uma lei que a permite e os que cometerão suicídio são terminais e não os querem abandonar pelo facto de não poderem continuar a viver nessa situação. Há outros médicos que discordam, pois sempre trabalharam com pacientes suicidas e nenhum foi terminal, que tiveram pacientes que cometeram suicídio, mas na verdade não eram casos para prever tal desfecho. O desconforto em torno da eutanásia para pacientes psiquiátricos tem a ver com a preocupação de que todas as opções podem não ter sido exploradas. Na clínica holandesa mais de metade daqueles que vão à procura da eutanásia por motivos psiquiátricos são rejeitados porque não tentaram todos os tratamentos disponíveis. A eutanásia e o suicídio assistido por médico referem-se a acções deliberadas tomadas com a intenção de terminar uma vida, a fim de aliviar o sofrimento persistente. Na maioria dos países, a eutanásia é contrária à lei e pode ser decretada uma sentença de prisão, sendo que nos Estados Unidos a lei varia entre os Estados. As definições de eutanásia e suicídio assistido variam. A distinção útil é de que a eutanásia é a acção que permite a um médico, por lei, acabar com a vida de uma pessoa por meios indolores, desde que o paciente e a sua família concordem, enquanto o suicídio assistido é a acção pela qual um médico ajuda um paciente a cometer suicídio se solicitar. A eutanásia também pode ser classificada como voluntária ou involuntária. É voluntária quando é conduzida com consentimento. A eutanásia voluntária é actualmente legal na Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Suíça e nos Estados de Oregon e Washington nos Estados Unidos. É não voluntário quando é conduzida em uma pessoa que é incapaz de consentir devido às suas condições de saúde e neste cenário, a decisão é tomada por outra pessoa, em nome do paciente, com base na sua qualidade de vida e sofrimento. É involuntária quando é realizada em uma pessoa que seria capaz de dar consentimento mas não porque deseje a morte ou porque não a solicitou, e é considerado como homicídio, pois muitas das vezes é contra a vontade dos pacientes. A eutanásia tem sido um tema controverso e emotivo. Existem duas classificações processuais de eutanásia, a passiva quando os tratamentos que sustentam a vida são retidos. As definições não são precisas. Se um médico prescreve doses crescentes de medicamentos analgésicos fortes, como opióides, pode eventualmente ser tóxico para o paciente e alguns argumentam que se trata de eutanásia passiva e outros, no entanto, dizem que não é eutanásia, porque não há intenção de tirar a vida. A eutanásia activa é quando alguém usa substâncias ou forças letais para acabar com a vida de um paciente, seja pelo próprio ou por outra pessoa. A eutanásia activa é a mais controversa, e envolve argumentos religiosos, morais, éticos e compassivos. O suicídio assistido tem várias interpretações e definições diferentes sendo um o que é de forma intencional ajudando uma pessoa a cometer suicídio, fornecendo medicamentos para auto-administração, a pedido voluntário e idóneo da pessoa. Algumas definições incluem as palavras “para aliviar o sofrimento intratável (persistente, imparável) ”. A maioria dos hospitais têm unidades de cuidados paliativos e qual o seu papel? A dor é o sinal mais visível de angústia pelo sofrimento persistente, e as pessoas com cancro e outras situações crónicas que ameaçam a vida muitas vezes recebem cuidados paliativos. Os opióides são comummente usados para controlar a dor e outros sintomas. Os efeitos adversos dos opióides incluem sonolência, náusea, vómito e constipação, podendo criar dependência e uma “overdose” pode ser fatal. É de considerar que em muitos países, incluindo os Estados Unidos, um paciente pode recusar o tratamento recomendado por um profissional de saúde, desde que tenha sido devidamente informado e se encontre com capacidade para decidir. O “Juramento de Hipócrates” é um argumento contra a eutanásia ou suicídio assistido por médico que remonta a cerca de dois mil e quinhentos anos. O juramento original incluía, as seguintes palavras: “Eu não darei uma droga mortal a quem pediu, nem farei uma sugestão nesse sentido.” O mundo mudou desde a época de Hipócrates, e muitos acham que o juramento original está desactualizado. A versão actualizada é usada em alguns países, enquanto em outros, por exemplo, no Paquistão, os médicos ainda aderem ao original. À medida que mais tratamentos se tornam disponíveis, a possibilidade de prolongar a vida, seja qual for a sua qualidade, é uma questão cada vez mais complexa. A eutanásia tem sido um tema de debate desde o início do século XIX. A primeira lei anti-eutanásia nos Estados Unidos foi aprovada no Estado de Nova Iorque, em 1828 e com o tempo, outros Estados seguiram o exemplo. O oncologista e bioeticista americano Ezekiel Jonathan Emanuel, no século passado, afirmou que a era moderna da eutanásia foi introduzida pela disponibilidade de anestesia. Em 1938, uma sociedade de eutanásia foi estabelecida nos Estados Unidos para pressionar pela legalização do suicídio assistido. O suicídio assistido por médicos tornou-se legal na Suíça em 1937, desde que o médico que termine com a vida do paciente nada tenha a lucrar. Durante a década de 1960, a defesa da abordagem do direito à morte por eutanásia cresceu. A Holanda descriminalizou o suicídio assistido por médico, reduzindo algumas restrições em 2002 e no mesmo ano o suicídio assistido por médico foi aprovado na Bélgica. É de atender que nos Estados Unidos, os comités formais de ética existem em hospitais, casas de repouso e clínicas, e as directrizes de saúde antecipadas, ou testamentos em vida, são comuns em todo o mundo. Estes tornaram-se legais na Califórnia em 1977, com outros Estados a seguir o exemplo. No testamento vital, a pessoa declara os seus desejos por cuidados médicos, caso se tornem incapazes de tomar a sua própria decisão. Em 1990, o Supremo Tribunal Federal aprovou o uso de eutanásia não activa. Em 1994, os eleitores do Oregon aprovaram a “Lei da Morte com Dignidade”, permitindo que os médicos auxiliassem os pacientes terminais que não esperavam ter mais de seis meses de vida. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos adoptou essas leis em 1997 e o Texas tornou a eutanásia não-activa legal em 1999. O célebre caso de Theresa Schiavo galvanizou a opinião pública na Florida, dado ter sofrido uma paragem cardíaca em 1990, passando quinze anos em estado vegetativo antes que o pedido do seu marido para permitir que terminasse com a vida fosse concedido. O caso envolveu várias decisões, apelações, moções, petições e audiências judiciais durante vários anos, antes da decisão de desligar o suporte vital ocorresse em 18 de Março de 2005. A Legislatura da Florida, o Congresso dos Estados Unidos e o presidente Bush desempenharam um importante papel e em 2008, 58 por cento dos eleitores do Estado de Washington escolheram a “Lei da Morte com Dignidade”, que se tornou lei em 2009. Vários argumentos são comummente citados a favor e contra a eutanásia e o suicídio assistido por médicos. Os argumentos a favor têm como base a liberdade de escolha, em que os defensores argumentam que o paciente deve ser capaz de fazer a sua própria escolha; a qualidade de vida, pois só o paciente sabe realmente como se sente e como é a dor física e emocional da doença e como a morte prolongada afecta a sua qualidade de vida; a dignidade, dado que todo o indivíduo deve poder morrer com dignidade; as testemunhas, pois os que testemunham a morte lenta de outros acreditam que a morte assistida deve ser permitida; os recursos, dado fazer mais sentido canalizar os recursos de pessoal altamente qualificado, equipamentos, leitos hospitalares e medicamentos para tratamentos que salvam vidas e para os que desejam viver, ao invés dos que não desejam; o humano, permitindo que uma pessoa com sofrimento intratável possa escolher acabar com esse padecimento, pois pode ajudar a encurtar o sofrimento dos entes queridos. Tais actos são praticados quando um animal de estimação tem sofrimento intratável, e é visto como um acto de bondade. Porque essa nobreza deve ser negada aos humanos? Os argumentos contra têm por base o papel do médico, pois os profissionais de saúde podem não estar dispostos a comprometerem a sua profissão, especialmente à luz do “Juramento de Hipócrates”; os argumentos morais e religiosos, pois várias religiões vêem a eutanásia como uma forma de homicídio e moralmente inaceitável. O suicídio também é “ilegal” em algumas religiões e moralmente, há o argumento de que a eutanásia enfraquecerá o respeito da sociedade pela santidade da vida; a capacidade do paciente, pois a eutanásia só é voluntária se o paciente for mentalmente capaz, com uma compreensão lúcida das opções e consequências disponíveis e a capacidade de expressar esse entendimento e o seu desejo de terminar com a sua própria vida. Determinar ou definir tal capacidade não é simples É ainda de considerar argumentos contra a culpa, pois os pacientes podem sentir que são um fardo para a sociedade e são psicologicamente pressionados a consentir. Os pacientes podem sentir que o fardo financeiro, emocional e mental para a sua família é demasiado grande e mesmo que os custos do tratamento sejam fornecidos pelo Estado, existe o risco de que o pessoal do hospital possa ter um incentivo económico para encorajar o consentimento à eutanásia; a doença mental, pois uma pessoa com depressão é mais propensa a pedir o suicídio assistido, o que pode complicar a decisão; a escalada escorregadia, pois existe o risco de que o suicídio assistido por um médico comece com os pacientes que estão em estado terminal e desejem morrer por causa do sofrimento intratável, mas depois comecem a incluir outros indivíduos e situações. É de considerar por último como argumentos contra a possível recuperação, pois ocasionalmente, um paciente recupera, contra todas as probabilidades. O diagnóstico pode estar errado; os cuidados paliativos, dado que os bons cuidados paliativos tornam a eutanásia desnecessária; o regulamento, pois a eutanásia não pode ser adequadamente regulada e as estatísticas, dado que as opiniões parecem estar a aumentar a favor da eutanásia e do suicídio assistido. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Harvard publicaram resultados de uma pesquisa na qual inquiriram pessoas de setenta e quatro países acerca do suicídio assistido por médicos, tendo 65 por cento dos entrevistados discordado e onze dos países inquiridos foram a favor. Os mil e oitocentos entrevistados nos Estados Unidos representavam quarenta e nove Estados, tendo 67 por cento votado contra, sendo que em dezoito Estados, a maioria era a favor do suicídio assistido por médico. A pesquisa realizada pela “Gallup” em 2017, revelou que 73 por cento dos inquiridos eram a favor da eutanásia e 67 por cento eram a favor do suicídio assistido por médico nos Estados Unidos. A entrevista descobriu que 55 por cento dos que frequentavam uma igreja semanalmente eram a favor de que um médico pusesse fim à vida de um paciente que está com doença terminal, em comparação com 87 por cento dos que não frequentavam regularmente a igreja. A pesquisa descobriu ainda que se trata de uma questão política também, pois nove entre dez liberais são a favor, em comparação com 79 por cento dos moderados e 60 por cento dos conservadores. Os países onde a eutanásia ou o suicídio assistido são legais, são responsáveis por um total de entre 0,3 e 4,6 por cento das mortes, mais de 70 por cento das quais relacionadas com o cancro. João Romão VozesEuropa mais verde [dropcap]A[/dropcap] agenda ecológica vai fazendo o seu lento mas aparentemente imparável caminho na discussão política: a cada vez mais visível emergência dos problemas ambientais e a eminência de uma catástrofe global sensibilizam um número evidentemente crescente de pessoas e mobilizam-nas para ações políticas diversas: com muito pouco tempo de diferença, tivemos adolescentes nas ruas de todo o mundo numa sem precedentes reivindicação do seu direito ao futuro e assistimos à duplicação da representatividade dos partidos ecologistas no Parlamento Europeu. Em vários países da Europa, os países ecologistas foram o segundo mais votado. Portugal também contribuiu para este crescimento com a estreia de um deputado eleito pelo PAN – contrariando, de resto, a generalidade das projeções publicadas na imprensa – mas foi da Alemanha (mais 8), França (mais 6) e Reino Unido (mais 5 deputados) que chegaram os maiores contributos. Já em relação à participação eleitoral, foi modesto o contributo nacional e a abstenção manteve-se muito próxima dos níveis habituais neste tipo de sufrágio, ao contrário do que aconteceu na generalidade do território europeu – na realidade um sinal de que as questões transnacionais da governação da União Europeia se vão tornando mais interessantes e mobilizadoras para a população do continente. Talvez essa preocupação chegue também a Portugal, um destes dias. Por enquanto pareceu percorrer grande parte do continente e contribuir – aparentemente de forma decisiva, como no caso da Holanda – para neutralizar a emergência da extrema-direita xenófoba em vários países. O aumento da participação foi acompanhado por um manifesto aumento da diversidade. A tendência que se vem assinalando em quase todos os países para a perda de hegemonia dos alegados “blocos centrais” – essa mesa onde animadamente repastam as chamadas esquerda e direita “moderadas” – atingiu um patamar sem precedentes no Parlamento Europeu: pela primeira vez desde que se realiza este tipo de eleição, as duas grandes “famílias” políticas não têm, em conjunto, mais de 50% de deputados. “Geringonças” governativas cada vez mais complexas há hoje muitas, por esse mundo fora. Também no Parlamento Europeu novas e criativas aritméticas serão certamente convocadas para definir maiorias num contexto de relativa pulverização do eleitorado e diversificação programática dos seus excelsos representantes. Nesta diversificação não coube o primeiro movimento que reivindica um original caráter europeu, liderado pelo conhecido ex-ministro das finanças da Grécia, no triste período histórico em que o país tentou enfrentar – sem sucesso – as regras da austeridade definidas pelas instituições europeias e pelo FMI. Apesar do mediatismo de algumas intervenções, nenhuma das candidaturas nacionais associadas a esse movimento transeuropeu – o Diem25 – conseguiu eleger representantes. Aliás, também a “esquerda da esquerda” sofreu significativa derrota e perda de representatividade à escala europeia, ainda que o número de representantes portugueses se tenha mantido, com uma significativa troca de posições entre os dois partidos (BE e CDU) aí representados. Pelo contrário, além dos ecologistas, também os liberais (onde se inclui o partido do Presidente francês, mas também uma forte representação – provavelmente temporária – do Reino Unido) conseguiram um crescimento significativo, juntando-se aos mais tradicionais grupos da social democracia, da democracia cristã e dos conservadores enquanto forças hegemónicas no Parlamento Europeu. Uma hegemonia mais partilhada e complexa, em todo o caso. Ao contrário do que foi anunciando na imprensa da especialidade nas semanas anteriores à eleição, nem os movimentos mais assumidamente xenófobos (ou fascistas, numa designação também muito utilizada – até pelos próprios – e eventualmente mais precisa), nem os partidos mais abertamente anti-EU assumiram posições determinantes nos luxuosos hemiciclos de Bruxelas e Estrasburgo. Essa extrema direita liderada pelo movimentos anti-imigração da Itália, França e Alemanha não foi acompanhada por uma significativa emergência de movimentos semelhantes noutros sítios – na realidade, em países como a Holanda, até desapareceram do espectro. Tal como noutros momentos históricos, a emergência da extrema-direita só parece ser possível em momentos de crise económica profunda, o que não parece ser (já? ainda?) o caso. De maneira semelhante, também os movimentos claramente anti-EU acabaram por conseguir limitada representação parlamentar – e que se tornará ainda mais pequena se e quando se concretizar o Brexit e saírem do Parlamento os deputados eleitos pelo Reino Unido. Dessa saída resultarão uma nova reconfiguração de forças e novas geografias e aritméticas parlamentares. São tempos interessantes mas com respostas lentas às urgências fundamentais. Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente (continuação) [dropcap]E[/dropcap]m Portugal, a referência a pessoas de determinada localidade expressa-se, pelo adjectivo derivado do nome da mesma localidade. Por exemplo: lisboeta é o natural de Lisboa, ou gente de Lisboa. Na China, a forma para designar a naturalidade é semelhante. Por exemplo: Beijing ren, Xangai ren (gente de Pequim, gente de Xangai). No caso de Macau, único em todo o território da China, Ao Men ren (gente de Macau, em mandarim) Ou Mun yan (em cantonense) é uma designação que não inclui toda a população de Macau. Na minuciosa especificação que os chineses fazem da população de Macau, Ao Men ren ou Ou Mun yan não significa toda a população de Macau. Significa, apenas, a população chinesa de Macau. Os macaenses são designados, pelos chineses de Macau, por “t’ou-san” (filhos e filhas da terra, habitantes locais). A população chinesa de Macau distingue os portugueses em: macaenses e reinóis, ou metropolitanos. Aos euro-asiáticos ou macaenses chamam “t’ou-san”, como já se disse. Aos “portugueses de Portugal” chamam “Kuai-lôu” (gíria: diabo, ele ou ela). E especificam ainda o género: “ngau-sôk” (lit.: tio boi) e “ngaû-pó”(lit.: mulher vaca). Por seu lado, os macaenses distinguem-se dos chineses. Tradicionalmente autodenominavam-se “macaístas” ou “maquistas” e designavam os chineses por “chinas”. Os chineses de Macau que recebiam o baptismo e adquiriam um nome cristão/português eram conhecidos por “chong cao” (convertido ao cristianismo, novo cristão). O peso social dos macaenses em Macau outorgou-lhes a distinção social “t’ou-san” que, ao mesmo tempo, impede “Ao Men Ren” ou “Ou Mun yan” de significar “todos os naturais de Macau”, como acontece em todas as localidades do Continente. Isto significa que, do ponto de vista dos chineses de Macau, a sua terra é uma singularíssima excepção na China. É deles. Mas é, também, dos macaenses. O fenómeno da miscegenação não é vulgar no interior da China. Quando existe alguém, meio chinês e meio estrangeiro, a designação é “Hun Xue Er”, literalmente: misturado; mestiço. 8. A Mulher na Família Macaense “1600 – Macau conta na sua população com 600 famílias indo-portuguesas” (B.B. Silva : ob. cit.) “1635 – António Bocarro diz na sua Descrição de Macau: Os cazados que tem esta cidade são oitocentos sincoenta portugueses e seus filhos que são muito mais bem dispostos, e robustos, que nenhum que haja neste oriente, os quaes todos tem huns e outros seis escravos darmas de que os mais e milhores são cafres e outras naçoens(…). Além deste número de cazados Portuguezes tem mais esta cidade outros tantos cazados entre naturais da terra, Chinas Christãos que chamam jurubassas de q’ são os mais, e outras nações xtãos (…). Tem alem disto esta cidade muitos marinheiros pilotos e mestres solteiros Portuguezes os mais delles cazados no Reino, outros solteiros que andão, nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassar, Cochinchina, destes mais de cento e sincoenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de sincoenta mil xerafins que por nenhũ modo querem passar a Goa por não lançarē mão delles ou as justiças de Sua Magde. e assy tambem muitos mercadores solteiros muito ricos em que melitão as mesmas razões”. (idem). Ao longo do século XVII, apenas uma mulher portuguesa (europeia) existiu em Macau (MONTEIRO: 2007). Peter Mundi afirmou também que, em 1632 – quase um século depois do estabelecimento dos portugueses em Macau – não existia na cidade mais do que uma mulher europeia, sendo as outras mestiças, euro-asiáticas. Sobre a participação da mulher chinesa na construção da sociedade macaense, a historiografia divide-se. Bento da França (1897), Álvaro de Melo Machado (1913), Francisco de Carvalho e Rego (1950) e Carlos Estorninho (1952), entre outros, argumentam que a entrada das mulheres chinesas na sociedade de Macau foi tardia: “Por três séculos /…/ os portugueses não casaram com mulheres chinesas “. Posição contrária é tomada por Charles Boxer (1942) e pelo Padre Manuel Teixeira (1965), entre outros, que sustentam a participação da mulher chinesa na sociedade macaense, desde o início: “Os portugueses casaram com mulheres chinesas e, assim, (Macau) gradualmente foi povoada. (D’Avalo: 1638, citado por BOXER: 1942). Eu defendo a participação tardia da mulher chinesa na sociedade macaense pelas seguintes razões: – Os padrões de controlo social, tradicionalmente xenófobos entre os chineses, desqualificavam socialmente as mulheres chinesas que se relacionassem com estrangeiros. Esta situação parece ter começado a sentir algum alívio somente após a proclamação da República na China (1911). – Era costume antigo em Macau, a afixação e circulação de “pasquins” contendo crítica social: ao governador, a pessoas com destaque social e a factos e eventos que pisassem os limites da “normalidade macaense”. Produzidos no séc. XIX, existem “pasquins” ridicularizando, em patuá, casamentos anunciados, de homem macaense ou reinol com mulher chinesa. Isso não aconteceria se tais casamentos fossem uma prática habitual; – Construído em 1860, o Teatro D. Pedro V é propriedade da Associação dos Proprietários do Teatro D. Pedro V cujos Estatutos não permitiam a entrada a chineses. Esta discriminação étnica não aconteceria se fosse comum a mulher chinesa deter o estatuto de cônjuge nas famílias macaenses; – os chineses convertidos à religião católica, nascidos em Macau, recebiam a designação de “tchong cao” (inscrito na religião, novo cristão) mas não o de “tou san” (filho da terra), embora beneficiassem de um estatuto mais próximo do dos macaenses. – O crioulo de Macau (Patuá ou Maquista) é gémeo do crioulo de Malaca [Kristang] e o seu léxico contém escassa influência do cantonês (BATALHA: 1988). Como língua falada predominantemente na relação familiar – linguagem que se aprende no berço -, parece que a influência decisiva na construção da Família Macaense, entre os sécs. XVI e XIX , não terá sido da mulher portuguesa, nem da mulher cantonense. Esse papel terá sido desempenhado principalmente pela mulher euro-asiática não chinesa, (indo-portuguesa, de Malaca e de Timor-Flores, principalmente). À medida em que a influência da mulher euro-asiática não chinesa se foi distanciando, o Patuá foi perdendo terreno para o português padrão, acolhendo escasso número de léxico inglês – e de muito cantonense – que o conduziu ao processo de extinção, a par da entrada da mulher cantonense na sociedade macaense que alcança o seu auge entre 1945 e 1974, e marca o fim do papel da mulher asiática não chinesa na sociedade macaense e a sua substituição pela mulher cantonense. – A sociedade macaense tradicional, marcada pela mulher asiática não chinesa, tinha uma identidade própria que se empenhava na sua diferenciação activa do sul da China. Sempre resistiu à sua diluição no ambiente chinês, em retribuição, aliás, à atitude relutante dos chineses em relação à intrusão dos portugueses em território da China. 9. A ambivalência Cultural Macaense A comunidade macaense euro-asiática de origem chinesa, bem como os precedentes macaenses euro-asiáticos de origem não-chinesa, atribuíam um peso desigual aos elementos constitutivos da sua herança cultural ambivalente. Historicamente, a componente portuguesa era maximizada e a componente asiática secundarizada. Para um observador menos atento, certos comportamentos, com maior visibilidade no relacionamento de netos luso-chineses com avós maternos chineses, poderiam parecer incompreensíveis. Não resultando de conflito inter-geracional, a sua origem situava-se em “zona de diferença étnica”, aprofundada por eventual incompatibilidade cultural (escarro ou arroto ruidoso, uso dos pausinhos que vão à boca para retirar comida da travessa, etc.). A primeira geração de um casamento luso-chinês (homem português com mulher chinesa é o “casamento regra” entre 1945/74) é detentora de uma herança biológica mestiça paritária (50% chinesa-han/50% portuguesa-europeia). Mas este equilíbrio genético – que se mantém pela vida fora – não é observado no desenvolvimento comportamental dos indivíduos. Segundo Albert Bandura, psicólogo contemporâneo que elaborou a teoria da aprendizagem social, uma das mais importantes fontes de influência na aprendizagem humana é o comportamento dos outros. Diariamente somos expostos a uma enorme multiplicidade de modelos que, em diferentes contextos, exibem, desde os comportamentos mais simples, aos mais complexos. A observação desses comportamentos e das suas consequências será, em grande parte, determinante na aprendizagem. Mas a aprendizagem humana é selectiva. Os indivíduos tendem a imitar as figuras que lhe são significativas. Em regra, na primeira etapa da vida, o horizonte de observação e aprendizagem do indivíduo é o seu ambiente familiar, nomeadamente a estrutura interna da família. Quer na China, quer em Portugal, a autoridade parental, o papel de liderança da família, é atribuído ao marido / pai. Daí decorre a assumpção da herança cultural paterna como património familiar principal, mesmo quando ele opta pela educação dos seus filhos no exterior ou em escolas estrangeiras. Os casamentos inter-étnicos luso-chineses são principalmente entre homens portugueses e mulheres chinesas. Em tais casamentos, as referências culturais portuguesas são transmitidas de uma geração para a seguinte como as principais referências. 10. A educação dos macaenses Uma das decisões mais importantes nos casamentos luso-chineses diz respeito à educação das crianças. A educação nas escolas portuguesas era a escolha óbvia. Tão óbvia quanto a autoridade do pai dentro da família. A opção pela educação em português era a centrifugação definitiva que separava as duas componentes culturais das crianças macaenses, moldando a sua matriz cultural portuguesa e relegando os elementos da sua herança cultural chinesa para a periferia dessa matriz básica. É, portanto, compreensível que os macaenses falem, leiam e escrevam português, mas, em regra, não podem ler nem escrever chinês, embora falem cantonense. A capacidade de ler e escrever uma língua é a chave para o acesso à respectiva cultura. No caso dos macaenses, o domínio do português falado e escrito tem sido o factor decisivo da sua ligação à cultura portuguesa. Da mesma forma, a incapacidade de ler e escrever chinês tem sido o factor determinante do seu distanciamento da cultura chinesa, de cujas formas mais eruditas são absolutamente estranhos. Depois de concluírem os estudos secundários, alguns jovens macaenses, em regra, iam para as Universidades portuguesas e os restantes permaneciam em Macau. Para estes, a sua entrada na vida profissional, principalmente no Funcionalismo Público, coroavam os esforços iniciados com a decisão tomada pelo pai quando eram crianças e recompensava-os com o prestígio social de fazer parte da máquina administrativa que regulava a vida de Macau. Era impossível e impensável que um jovem macaense completasse o ensino secundário e fosse continuar os estudos numa universidade chinesa, no Continente ou em Taiwan. (continua) Tânia dos Santos Sexanálise VozesEstados de Úteros Saudáveis [dropcap]N[/dropcap]em todas as mulheres têm útero. Há homens que têm útero. O órgão responsável pela menstruação existe para além do género, já sabemos. Há quem não o queira porque não se identifica com ele, mas há quem não o queira também porque, às vezes, dá mais problemas do que prazeres. O estado de saúde do útero deve ser discutido – não é por acaso que no Reino Unido a co-fundadora de uma organização dedicada ao cancro do colo do útero tenha feito uma citologia ao vivo num talk show televisivo. O famoso Papanikolaou (o apelido do cientista que desenvolveu este exame) traz mais desconforto que outra coisa, mas é daqueles males que somos obrigados a engolir se queremos controlar a saúde do útero. O colo do útero é uma entrada para o útero pela vagina que se vai alterando durante o ciclo hormonal – abre-se e fecha-se de acordo com o desejo de contacto com o exterior. Durante a ovulação, como devem calcular, está muito mais receptivo. Podia estender-me aqui de como o útero é um órgão fabuloso que produz ovócitos e que consegue desenvolver a composição de células do ser vivo por parir. Este órgão é o palco e o protagonista de uma dança hormonal que faz com que a menstruação, já nossa muito conhecida, a ovulação, mais obscura, e a gestação aconteçam. A dança vai acontecendo com esperança que a fecundação se concretize – que nem sempre é uma possibilidade porque não ovulamos todos os meses. Estas formas dinâmicas e cíclicas do trabalho deste órgão podem não ser pacíficas – como para quem sofre de endometriose. A forma desastrada e dolorosa do endométrio e da menstruação se comportarem resulta no que já vi descreverem – sensação de facadas na barriga. Calcula-se 10% das mulheres no mundo sofrem de endometriose, mas o seu diagnóstico é raro. Isto vem da ‘normalidade’ com que as dores menstruais são encaradas. A endometriose é uma condição em que o endométrio (o forro do útero que permite a nidação) cresça em outros locais menos propícios, como nos ovários, nas trompas de falópio e pode chegar a outros órgãos adjacentes. Também não é de fácil diagnóstico porque é preciso realizar uma ecografia na altura certa do mês para poder ver a invasão do endométrio no seu esplendor. Ninguém sabe ao certo como é que esta condição se desenvolve. Existem formas de tratamento, mas ninguém sabe da cura. O desconforto desta condição é tal que há pessoas que preferem tirar o útero para resolver o problema. São uns dias por mês em que as sofredoras de endometriose se sentem assoberbadas de dores ao ponto de não saírem da cama. Estrelas televisivas já dão a cara por esta condição incapacitante, como a Lena Dunham, e assim contribuem para a consciencialização do que pode ser um útero doente. Assim espera-se que as 10% de mulheres por este mundo fora comecem a perceber o que há de errado com elas. A saúde do útero parece necessitar de um equilíbrio delicado para um funcionamento pleno, mas a investigação ainda não percebeu que equilíbrio é esse. O útero não participa no sexo da mesma forma que a vulva e a vagina. Não tem o factor prazer escarrapachado nas suas paredes, mas tem um papel importante na produção e regulação hormonal. A saúde da vagina é uma coisa, a saúde do útero é outra. Apesar de intimamente ligados, ficamos frequentemente presos na imaginação vulvar e vaginal e tornamos misteriosa a actividade do útero. Pensamos nele na menstruação – quando nos dá aquelas facadinhas – e pouco mais. Para estados de úteros saudáveis talvez tenhamos que trazer mais conversas: sobre o colo, sobre os dramas e os medos, sobre as vacinas que se podem tomar para prevenir doenças graves e sobre as menstruações dolorosas que as vezes os médicos têm dificuldade em identificar. Úteros de plena consciência do que são e podem ser. David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPortas do Cerco em estado de sítio [dropcap]N[/dropcap]os últimos dias, devido às obras de manutenção e reparação das escadas rolantes, as pessoas que viajavam de Zhuhai e Macau acumularam-se no corredor das partidas das Portas do Cerco. Dia 22 deste mês, a Polícia de Segurança Pública, o Gabinete das Forças de Segurança e o Gabinete de Transportes deram uma conferência de imprensa conjunta para apresentarem o plano de emergência para lidar com a situação. As medidas incluem a abertura de 13 guichets do controlo alfandegário, para que sejam evacuadas 12.000 pessoas num espaço de quatro horas. Na medida em que a entrada do edifício de controlo de fronteiras é estreita e as escadas rolantes estão em manutenção, o risco de acidentes aumenta com a enorme concentração de pessoas. É portanto urgente fazer sair esta multidão. Após a implementação das medidas, as pessoas só esperam cerca de 10 minutos até entrarem no edíficio da alfândega. Espera-se que abram mais dois guichets durante o fim de semana, passando assim de 13 para 15. O Gabinete de Transportes pediu às companhias transportadoras que os autocarros mudassem de rota, para que os passageiros pudessem sair junto aos portões de embarque. Os autocarros que fazem a volta dos hotéis foram reduzidos para um terço e os passageiros são encorajados a entrar e sair de Macau pela Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. A substituição das escadas rolantes do edifício da alfândega das Portas do Cerco causou a concentração de uma multidão, e demonstrou a capacidade de infraestrutura pública de Macau para dar resposta a incidentes. O projecto de manutenção das escadas rolantes surgiu no princípio de 2018, mas o público só foi informado no dia anterior ao início das obras. Muitos dos residentes e turistas só se aperceberam da situação quando chegaram às Portas do Cerco. Esta situação sugere que as autoridades deverão fazer um esforço para publicitar este tipo de ocorrências com maior antecedência e que haja um controlo mais apertado das entradas e saídas em Macau. Fora isso, seria possível que o Governo providenciasse no sentido de serem utilizados outros postos de controlo alfândegário, para libertar a pressão das instalações das Portas do Cerco? Como o tempo de espera para entrar e sair de Macau está a aumentar, é possível que venha a ser necessário criar condições especiais para idosos, crianças, grávidas e pessoas com incapacidades, para evitar qualquer mal estar causado pelas altas temperaturas que se fazem sentir no Verão. Mas, pior do que isso, é a possibilidade de transmissão viral, frequente em locais super-lotados. Se uma pessoa estiver doente, facilmente muitas outras serão contagiadas e todos sabemos que se há vírus inofensivos, há infelizmente outros muito perigosos. Também é necessário alertar a população para o uso de máscaras. A presença de médicos no local e o controlo sanitário poderão ser ainda questões a considerar. As obras de manutenção e reparação das escadas rolantes do átrio das Partidas do edifício alfandegário das Portas do Cerco irão demorar cerca de 60 dias. O público irá sentir os seus transtornos por igual período. As escadas estão montadas paralelamente, em grupos de três. Devido às restrições de espaço, é possível que passem para grupos de duas, diminuindo grandemente a capacidade de transporte. Há uns tempos atrás estas escadas causaram muitos acidentes. Alguns turistas do continente forçavam manualmente a paragem das escadas e as pessoas que iam mais abaixo, como não conseguiam aguentar o impacto, perdiam o equilíbrio e caíam, fazendo cair também os que estavam atrás deles. Este foi um dos motivos que levou a separar as escadas em várias secções, de forma a diminuir os danos dos possíveis acidentes. Este aspecto deve de ser considerado na actual remodelação. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk Jorge Menezes VozesAL: portas fechadas e deputados calados [dropcap]N[/dropcap]ão foi preciso a casa ter sido ‘roubada’ para a Assembleia Legislativa (AL) pôr trancas nas portas. O Regimento da AL determina que as reuniões das comissões “decorrem à porta fechada”, salvo deliberação em contrário. E assim tem sido: as portas têm estado trancadas e não há notícia de deliberações em contrário. Por este motivo, o deputado Sou Ka Hou (de quem fui advogado) foi acusado, quer por deputados, quer pelo presidente da direcção da Associação dos Advogados, de ter infringido a lei ao partilhar o que ali se discutira. Violara o que este último apelidou de “regras do jogo”: “defraudou e traiu a confiança que as pessoas podiam depositar nele”, quando “tinha de estar calado” (JTM, 05/12/2017). Porém, nem ‘jogo’ parece uma boa metáfora, nem o deputado violou a lei. E não tinha de estar calado. Os acusadores confundem ‘porta fechada’ com sigilo ou confidencia-lidade. Politicamente, é criticável que as reuniões decorram nos bastidores da vida política. A AL representa os cidadãos, que deveriam poder assistir, através da comunicação social, ao que os seus representantes defendem sobre a vida da comunidade, o modo como o fazem, os conhecimentos e ignorâncias que revelam, os preconceitos que exibem e por aí fora. Nem é possível representação autêntica sem transparência política. Porta fechada deveria ser a excepção, não a regra, numa terra já caracterizada por uma obscura cultura de governação. E assim é noutras paragens. Em Portugal, as reuniões das comissões “são públicas”, podendo, “excepcionalmente, reunir à porta fechada, quando o carácter reservado das matérias a tratar o justifique”. Em Hong Kong a lei é mais detalhada, mas similar. Juridicamente, se é certo que podem decorrer à porta fechada, é falso que seja proibido divulgar as posições assumidas por deputados em reunião de comissão. Nem há qualquer sanção para quem o faça. ‘Porta fechada’ significa que não se pode assistir. ‘Sigilo’, que não se pode revelar o que se lá passou. São conceitos distintos, de uso comum, na lei e no discurso político, que não escapariam a um legislador desatento (e que, veremos adiante, não escaparam). Ao determinar que as reuniões “decorrem” à porta fechada, proibiu-se a assistência da comunicação social ou do público. Nada mais. É como aulas de universidade, conferências ou assembleias gerais: não pode assistir quem quer, mas não é vedado debater cá fora o que foi ensinado ou discutido lá dentro. Só é confidencial o que a lei, expressamente, diz sê-lo. A Lei Básica prescreve que os direitos fundamentais só podem ser restringidos nos casos previstos na lei. E só o pode fazer dentro dos limites fixados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Constar expressamente de lei é condição necessária, mas não suficiente. O PIDCP determina que a liberdade de expressão e de expandir informações só pode ser submetida a restrições que, para além de “expressamente fixadas na lei”, sejam necessárias ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem, ou à salvaguarda da segurança nacional, ordem pública, saúde e moralidade públicas. O mesmo princípio consta da lei de imprensa. A confidencialidade das reuniões teria, pois, de ter sido expressamente fixada no Regimento. Mas não foi. Pelo contrário, deve ser feita acta das reuniões, a qual não é secreta. Só é imposto sigilo quando são convocados terceiros para prestar depoimentos ou apresentar provas, o que confirma que o legislador não andava distraído. Não tendo sido ordenado sigilo em nenhuma outra situação, o teor das reuniões de comissão pode ser partilhado e discutido. E o Regimento só poderia impor sigilo, sem violar a Lei Básica, se tal fosse necessário às finalidades referidas no PIDCP, o que nunca poderia suceder indiscriminada-mente quanto a todas as reuniões de todas as comissões. Afirmar o contrário seria caricato. Ou seja, nem a lei impõe, nem poderia impor, a apregoada confidencialidade (com a qual erradamente confundem o conceito de ‘porta fechada’). Imagine-se, aliás, o contra-senso que seria se o órgão de propensão democrática e representativa fosse gizado para actuar sob confidencialidade. Seria porta fechada e luz apagada. A própria AL revela-nos que os acusadores estão errados, pois é comum no final das reuniões um deputado narrar à comunicação social uma parte, por si cuidadosamente seleccionada, do que lá se passou. Costuma ser o presidente da comissão. Se divulgar fosse infracção, estava encontrado o infractor. Será diferente por presidir à comissão? Não. Em parecer recente, a Comissão de Regimentos e Mandatos revelou a máxima em que deve assentar a aplicação do Regimento: “onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir”, o que é correcto quando está em causa, como aqui, a restrição de um direito fundamental. O Regimento não distingue deputados-presidentes de deputados-não-presidentes quanto ao que podem ou não podem dizer. Nem nada diz sobre fechos de portas ou relatos de eventos. Logo, ou nenhum pode nada, ou todos podem o mesmo. Foi a Comissão quem nos ensinou. Aliás, o Estatuto dos Deputados determina que “todos” os deputados “têm o mesmo estatuto e são iguais em direitos, poderes e deveres”. A ideia de um eventual ‘uso parlamentar’ seria outro nado-morto. Para justificar que uns possam falar não é preciso invocar um uso: a prática de alguns falarem no final das reuniões não existe por virtude de um uso, mas por permissão da lei (extensível a todos os deputados). Nem ninguém contesta que os presidentes de comissão o possam fazer. Acresce que a prática de uns falarem não constitui um uso de outros serem proibidos de falar. Não falar, tal como não agir, não constitui existência, mas antes ausência de um uso. Não há contradição, mas concordância, entre o hábito de uns falarem e o direito de outros também falarem. Nem o silêncio constitui uso, nem existe uma prática ‘ancestral’ reiterada proibindo os deputados de falar. Aliás, nunca nenhum deputado foi proibido de o fazer. Mas se existisse tal uso, seria ilegal. É de lei que os usos só “são juridicamente atendíveis quando a lei o determine”, e o Regimento não o determina. E não são admissíveis usos que restrinjam direitos fundamentais. Nem que infrinjam a igualdade dos deputados, tornando uns ‘mais iguais’ do que outros. Uma prática ilegal não se tornaria legal por ser muitas vezes repetida. Não nos esqueçamos, aplicada aqui, da máxima que a Comissão nos ensinou: onde a lei não distingue, não devem os usos distinguir. Como todos os deputados são iguais e não há proibições ou obrigação de sigilo, qualquer deputado pode partilhar com os cidadãos o que os seus representantes pensam, em comissão ou fora dela. É o reflexo da velha sentença em que se traduz o princípio da liberdade: o que não é proibido, é permitido. Quem os acusar por divulgarem debates políticos, está a acusar duas mãos cheias de deputados de violar reiteradamente a lei. Todos erradamente acusados. Como aprendemos em criança, o que não é segredo, pode ser contado. Em política, deve ser contado. O que não é devido é querer mandar calar deputados. Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesOs dois barcos da Grande Baía [dropcap]N[/dropcap]esta vida, as coisas não acontecem à medida dos nossos desejos. Quando algumas pessoas tentam manipular os acontecimentos à luz dos dos seus interesses, sem consideração pelas reacções e pelos sentimentos dos outros, os conflitos acontecem. Se a lei não for respeitada, as normas e o civismo forem ignorados e só os poderosos tiverem capacidade de decisão, gera-se uma sociedade opressora e os confrontos tornam-se inevitáveis. Infelizmente, Hong Kong enfrenta outra grande dissensão interna. Nas “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau são considerados os quatro “motores principais”, para impulsionar a construção e o desenvolvimento da Grande Baía. Segundo os últimos dados, o poder económico e as potencialidades de Guangzhou e de Shenzhen já ultrapassaram os de Hong Kong e Macau. As duas regiões administrativas especiais deveriam assumir o papel de indutores de reformas no desenvolvimento da Grande Baía e de criadores de oportunidades para o futuro da China. Mas infelizmente o barco Hong Kong está à beira do desmantelamento, ao passo que o barco Macau ainda não levantou âncora. No planeamento para o desenvolvimento da Grande Baía, prevê-se que Hong Kong venha a ser um centro de inovação na área das altas tecnologias, um núcleo financeiro, que se assuma como centro para a resolução de conflitos legais internacionais, dentro da região Ásia-Pacífico, e que se torne uma metrópole internacional altamente competitiva. No entanto, se a revisão da lei “de extradição de condenados em fuga” se vier a impôr, todos estes objectivos cairão por terra. O Dr. Derek Mi-chang Yuen, um prestigiado docente do Departamento de Administração Pública da Universidade de Hong, publicou recentenmente um artigo intitulado “Os sinos tocam em King’s Landing, anunciando a rendição da cidade”: a escalada da controvérsia em torno da revisão da lei e a tensão sino-americana”. Yuen usa metaforicamente o cenário da série “Game of Thrones” para alertar Hong Kong para a possiblidade de se vir a tornar uma “cidade queimada”. E tudo isto porque o Governo de Hong Kong decidiu ignorar os procedimentos legislativos (debate no Comité Legislativo) para forçar a aprovação da lei de extradição dos condenados em fuga, enviando directamente a proposta para, a 12 de Junho, ser feita uma segunda apresentação no plenário. Se isto se vier a confirmar, abre-se um perigoso precedente que vai reduzir a pó o pouco que sobra dos valores fundamentais de Hong Kong. Baseado no conhecimento profissional e nos seus antecedentes especiais, o artigo de Yuen põe o dedo na ferida e reclama a atenção de todos os que estão envolvidos nesta controvérsia. O Movimento dos Chapéus de Chuva desgastou Hong Kong em larga escala e, se o Conselho Legislativo for despojado das suas funções legislativas e da sua capacidade de monitorizar a acção do Governo, vai ser impossível preservar os alicerces morais e ideológicos da cidade. Os slogans “Um País, Dois Sistemas”, “Hong Kong governado pelas suas gentes” e “um elevado grau de autonomia” não irão passar de cortinas de fumo. Quanto à revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga”, o campo Pan-democracia propôs que se aprovasse em primeiro lugar a extradição de Chan Tong-kai, o suspeito de ter assassinado a namorada em Taiwan, e que posteriormente se realizasse uma sessão de consulta pública para reunir as opiniões dos diversos sectores sobre esta matéria. Esta abordagem teria a vantagem de evitar conflitos e daria margem para a negociação entre as partes. Mas é uma pena que aqueles que estão no topo das muralhas não se queiram dar ao trabalho de escutar as sugestões do povo que por elas está cercado. Quando as muralhas caírem, o povo não tem por onde fugir. Mas depois da queda, quem é que vai lidar com a situação? Desde a transferência de soberania, Hong Kong fez duas más escolhas para Chefe do Executivo. Uma delas foi Leung Chun-ying, um homem de espírito aguerrido, a outra Carrie Lam Cheng Yuet-ngor, que não lhe fica atrás. Numa sociedade diversificada, a harmonia é preferível ao conflito. Se Henry Tang Ying-yen tivessse sido eleito em vez de Leung Chun-ying e John Tsang Chun-wah ocupasse o lugar de Carrie Lam, os assuntos teriam sido tratados de outra forma. E em Macau, o que se está a passar? Macau é um local em que nada muda e o poder governativo é muitíssimo estável. A eleição do Chefe do Executivo é basicamente um “one-man show” e as receitas provenientes das taxas do jogo e do turismo chegam para sustentar toda a população do território. Segundo as estatísticas, um total de 84.000 pessoas estão dependentes da indústria do jogo que emprega o maior número de pessoas, distribuídas por diversas profissões. Mas, à semelhança da construção do metro ligeiro, o progresso da diversificação industrial de Macau anda a passo de caracol. Macau, enquanto barco da Grande Baía, é um casino flutuante que não tem nada de construtivo para oferecer, para além de jogo, entretenimento, consumismo e lazer. A plataforma para a cooperação sino-portuguesa não passa de um simulacro da idea de criação de uma base de intercâmbio e cooperação em Macau tendo como foco principal a cultura chinesa e a coexistência da multiculturalidade. O próximo Chefe do Executivo de Macau tem a responsabilidade de tornar a cidade competitiva durante o seu mandato, caso contrário o barco “Macau” ficará encalhado nas águas estagnadas do prazer e acabará por afundar no mar da corrupção. Pôr de parte as disputas e suspender a revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga” será a única forma de evitar que Hong Kong se despedace contra os rochedos. Quanto ao fututo de Macau, tudo vai depender da capacidade das pessoas procurarem avançar, sem deixarem de desfrutar do seu conforto. Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente [dropcap]R[/dropcap]eflectindo quanto baste, parece poder concluir-se que: Não rendem votos aos partidos políticos portugueses, nem remessas de divisas, como as provenientes dos lucrativos emigrantes portugueses na Europa, no Continente Americano, na Austrália e na Nova Zelândia. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante àquele que os sucessivos governos nunca se esquecem de ter: uma Secretaria de Estado para a Emigração ou dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, conforme a semântica política mais ao gosto de cada maioria parlamentar. Nem cabem aí. Não proporcionam negócios, nem representam quota de mercado nas exportações portuguesas. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante aos que se dedicam à cooperação com a África ou a Europa. Nem cabem aí. Não proporcionam receitas ao Fisco e à Segurança Social portuguesa, nem a sua força de trabalho está à disposição de empresários portugueses. Em consequência: não há espaço em estruturas do tipo Alto Comissariado para as Minorias Étnicas e Imigração. Nem cabem aí. Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço nem atenção para as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente. Porque elas não são lucrativas para os cofres do Estado. Porque o Estado se habituou à vida fácil de, por lei ou por medidas administrativas, sobrecarregar os contribuintes com impostos e taxas que sucessivos (des)governos vão dissipando, em alegre paralisia ante a eurodestruição da economia portuguesa. Por outro lado, ex-ricas instituições privadas de utilidade pública, criadas à custa de muito dinheiro levado de Macau para Portugal, em condições que não dignificaram o País e que, em princípio, deveriam prestar atenção às Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente – saber onde estão, quantos são, que carências têm e as potencialidades que nelas existem – encaram as poucas de cuja existência vagamente sabem, como criaturas interessantes a que, de vez em quando, se dão uns “amendoins” com o afecto próprio do visitante de uma aldeia de macacos num qualquer jardim zoológico. A Universidade de S. José, em Macau, herdeira do património espiritual do glorioso Padroado Português do Oriente, ingloriamente desaparecido, que gerou espiritualmente as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, terá uma palavra a dizer, um tempo para sobre elas reflectir e um espaço institucional para elas? Fiz esta pergunta na comunicação que apresentei, em Fevereiro de 2011, na Conferência “A Lusofonia entre Encruzilhadas Culturais”, organizada, precisamente, pela Universidade de S. José… Parece não ser assunto que interesse. O seu objectivo mais importante, parece, é ser reconhecida como universidade chinesa… As Missões Portuguesas nos Estreitos, Malaca e Singapura, deixaram de existir em 1 de Julho de 1981, na sequência dos acordos celebrados entre o Bispo de Macau, D. Arquimínio da Costa, e os Bispos James Soorn Ceong, de Malaka-Johor, e Gregory Yong Soon Nghean, Arcebispo de Singapura, em 26 de Julho de 1977 e ratificados por decreto da Santa Sé, de 27 de Maio de 1981. A Missão Portuguesa de Malaca, desde a concordata de 23 de Junho de 1886, estava sujeita à dupla jurisdição exercida pelo Bispo de Macau e pelo Bispo de Malaca e incluía as igrejas de S. Pedro e de N. Senhora da Assunção e outras capelas. A Igreja de S. Pedro manteve as suas funções de Igreja paroquial e os seus padres continuaram a servi-las sob a autoridade do Bispo de Malaca, enquanto o Bispo de Macau o permitisse. Morreram os Padres Augusto Sendirn e Manuel Pintado, últimos missionários portugueses em Malaca. A Missão Portuguesa de Singapura compreendia a Igreja Paroquial de S. José que dependia do Bispo de Macau. Enquanto paróquia deixou de existir passando às funções de simples igreja de devoção e os seus padres continuaram a servi-la – padres Francisco António Bata e João Guterres. O sustento e as despesas destes padres continuaram sob a responsabilidade do Bispo de Macau. Os bens – imóveis e móveis – da Igreja de S. José continuaram a pertencer-lhe, sendo administrados pelo respectivo Reitor e sob controlo do Arcebispo de Singapura, enquanto o Bispo de Macau continuasse a enviar missionários. Quando isto deixasse de se verificar, seria realizado um acordo sobre a transferência civil desses bens. As outras propriedades pertencentes à Missão Portuguesa (Comission for the Administraüon of the States of Portuguese Mission in China) não entraram neste Acordo. A Diocese de Macau foi, portanto, o último reduto do Padroado Português do Oriente. Não esteve, o Senhor Bispo D. José Lai, na disposição de convidar os bispos das dioceses onde vivem as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente para uma conferência em que se desse início ao trabalho de unir as pontas desta teia cuja destruição teve início com o corte das relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal português em 1833 e a extinção das ordens religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834. Agora é tarde. Macau tem um Bispo estranho à Igreja de Macau. Provavelmente, para preparar a sua transformação em paróquia de Hong Kong ou de Cantão. Estabelecida como Diocese em 1576, uma das maiores dioceses do Mundo em área territorial, dela nasceram as dioceses de Funai-Nagasaki (1588), Nanjing (1658), Hanoi (1659), Hong Kong (1841), Guangdong-Guangxi (1848), Dili (1940), Malaca-Johor (1981). As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são comunidades de portugueses excluídos, apesar do seu forte sentimento de pertença a Portugal, da sua fidelidade secular à Religião Católica e do seu património linguístico – o crioulo – a que chamam “Portugis”. Ainda assim – ou talvez por isso mesmo – estão excluídas da Lusofonia. Mas o desconsolo maior, excluídos da Lusofonia somos todos nós. Porque apesar do denominador comum que é a Língua Portuguesa, padrão ou crioula, enquanto estivermos privados da liberdade básica de todas as outras que é o direito de estar e de ir de um lado para o outro, “jus manendi, ambulandi eunde ultro citroque”, a CPLP pode ser tudo o que quiserem. Não é de certeza uma Comunidade inclusiva de povos livres de circularem no espaço que se diz pertencer-lhes. 5. O fenómeno colonial e as “fonias” O fenómeno colonial, na sua formulação pura e dura, consistiu na validação entre as potências coloniais dos seus interesses de exploração em África. Formalmente assumida no Acto Geral da Conferência de Berlim, em 1885. Aí, muito antes de Shengen, Portugal viu-se forçado a aderir ao discurso europeu. A ocupação efectiva dos territórios africanos vinha ao arrepio da sua própria tradição e muito para além da sua capacidade económica, social e militar. O anticolonialismo do Século XX e a descolonização foi um facto sem precedentes na História da Expansão Europeia. Centrou-se no objectivo impreterível de reconquista da Soberania pelos povos colonizados. O Século XIX assistira à secessão das colónias americanas dos respectivos países ibéricos. O Século XVIII assistira à independência das colónias inglesas da América do Norte. À excepção do Canadá. Para aí se deslocaram os colonos que preferiram manter-se leais à Coroa Britânica. Ficaram conhecidos por United Empire Loyalists. A independência das colónias americanas foi um fenómeno “sui generis”. Os respectivos territórios não foram restituídos aos seus povos originários. Foram entregues aos europeus e seus descendentes que aí se tinham estabelecido. A descolonização dos Séculos XVIII e XIX constituiu, portanto, o resultado da secessão de interesses em conflito. Que opunham europeus geograficamente separados pelo Atlântico. Mas unidos pela mesma cultura e pela mesma língua. O Século XVII tinha sido a época de consolidação de uma nova ordem europeia no domínio do Mundo. O seu exclusivo, ditado em Tordesilhas, deixou de pertencer aos países ibéricos. Foi derrubado e substituído por holandeses, ingleses e franceses, em várias partes. A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, resultou da acção da Reforma iniciada com Martim Lutero. Reforma que levou ao esvaziamento do poder central europeu pela autoridade pontifícia romana que vigorava desde a queda do Império Romano. A Lusofonia como, aliás, a Francofonia, a Hispanofonia e a Anglofonia, são espaços que radicam no fenómeno colonial. Assentam no uso da língua do ex-colonizador como cimento aglutinador. No interior das antigas colónias; nas relações entre elas; e com as metrópoles do passado. Em tais espaços, procura-se decantar a História de episódios de força e opressão; transformar em amigos, anteriores inimigos; substituir a violência pretérita pelo diálogo; suprir a antiga exploração pela moderna cooperação. Ao contrário das teses que sustentam que tais espaços existem para manter o espírito colonial, parece que no seu estádio actual eles serão pouco mais do que áreas de catarse ou expiação. E não parece que possam ir mais além, pelos fortes compromissos existentes entre os ex-países colonizadores, no seio da União Europeia. Compromissos que inviabilizam irremediavelmente a sua participação plena em qualquer outra “Comunidade de Povos”. O Acordo de Shengen inviabiliza qualquer expectativa de livre circulação de cidadãos das antigas colónias no território das antigas metrópoles. Apesar de pertencerem à mesma comunidade linguística – anglófona, francófona hispanófona ou lusófona. 6. Portugueses em Macau A historiografia de Macau não é unânime quanto à data do estabelecimento dos portugueses neste minúsculo porto do sul da China. Existe uma variação entre os anos de 1549 e 1557. Os portugueses que se estabeleceram em Macau, no início e ao longo dos séculos, não foram apenas os nascidos no território europeu de Portugal, mas também portugueses euro-asiáticos, asiáticos convertidos à religião católica, euro-africanos e africanos. Estes, na documentação primária, são denominados “cafres”, frequentemente. Essa teia de portugueses que se identificam como “portugis” ou “cristang” localizam-se: na Índia: Diu, Damão, Dadrá, Nagar-Aveli, Goa, Korlai, Mangalore, Cananor, Mahé, Cochim, Bombaim, Negappattinam; no Sri Lanka: Batticaloa, Trincomalee e Puttalam; na Indonésia: Bali, Java, [Tugu e Brestagi], perto de Djacarta, Ilha de Flores [Larantuka e Sikka], Ilhas de Ternate e Tidore; na Malásia: Alor Star, Penang, Perak, Kuala Lumpur, Seremban e Johor Baru]; em Singapura; na Tailândia [Bangkok]; no Bangladesh: Chittagong e Daca; em Mianmar [Sirião]. O destino dos macaenses foi diferente do dos portugueses da Indonésia, da Malásia e do Sri Lanka, por terem defendido a sua terra, pela força das armas, contra várias tentativas de invasão e ocupação pelos holandeses, desde 1603, nomeadamente, pela “Retumbante vitória definitiva alcançada por Macau sobre os holandeses comandados por Kornelis Reyerszoom que, com 14 navios e 800 homens, pretendeu tomar a cidade. O inimigo foi completamente desbaratado ante o indómito esforço dos macaenses, capitaneados pelo denodado herói Lopo Sarmento de Carvalho. Colaboração do Pe. Rho S.J. (de passagem em Macau) a partir da Fortaleza do Monte, e protecção do Santo do Dia, S. João Baptista, em 24 de Junho de 1622 (Cfr. Beatriz Basto da Silva : Cronologia da História de Macau). Os Macaenses Os descendentes dos portugueses, nascidos em Macau e, posteriormente, na diáspora macaense, são os macaenses. Macaense é o euro-asiático de ascendência portuguesa nascido em Macau. O conceito de Macaense contém três elementos: – Origem étnica mista: europeia e asiática; – Ascendência portuguesa; – Macau e a diáspora Macaense como local de nascimento: Hong Kong, Xangai, Tianjin, Bangkok e, mais recentemente, Austrália, Canadá, Brasil, E. U. América e Portugal. A independência dos territórios ultramarinos de Portugal, a perda da nacionalidade portuguesa comum dos seus naturais (DL 308-A/75, de 25 de Junho) e a emergência de novas nacionalidades em cada um deles, parece tornar obsoleto o elemento “ascendência portuguesa”, no conceito de macaense. A substituição de “ascendência portuguesa” por “ascendência lusófona” é inviável por não preencher relações de parentesco e por excluir boa parte das populações dos países de língua oficial portuguesa que não falam português. Por outro lado, durante várias décadas, ao longo do séc. XX, os contingentes de tropa africana em Macau, provenientes de Angola, Moçambique e Guiné, deixaram descendência, exclusiva ou principalmente, com mulheres chinesas, de que julgo não existirem registos. De tais descendentes, de homem africano com mulher chinesa, não há notícia de terem beneficiado do estatuto de macaense. Conheci de vista uma mulher, filha de mãe chinesa e pai africano (Landim, de Moçambique), que era “criada de servir”. Desses sino-africanos ou afro-chineses, cujo número se desconhece, não há notícia de nenhum ter recebido o estatuto social de macaense. (continua) Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo Bipolar [dropcap]O[/dropcap] que dizer da semana em que o estado do Alabama passou a proposta lei do aborto mais restritiva e Taiwan tornou o casamento homossexual uma possibilidade legal? Choramos e celebramos recuos e avanços na mesma semana – para nos sentirmos profundamente confusos. Avanços e recuos num movimento perpétuo. O estado bipolar sexual em que vivemos provém da confusão que são os nossos sistemas sócio-políticos. Temos testemunhado movimentos que começaram a deixar para trás o pensamento progressista que julgávamos carregar. Têm-se construído barreiras discursivas e simbólicas para deslegitimar o que são lutas e visibilidades absolutamente necessárias. A 17 de Maio celebrou-se o dia internacional da luta contra as fobias de género e de orientação sexual – e é com insatisfação que me apercebo que o dia terá que continuar a existir por muito tempo. Quando os partidos em Portugal para as eleições europeias fazem uso do termo ‘ideologias de género’ para deslegitimar a naturalidade do nosso ser, devíamos preocuparmo-nos. Mas depois temos Taiwan, o orgulho dos nossos olhos neste grande continente Asiático. Há esperança – se calhar há. No Alabama – e sobre o aborto que é agora punido com 99 anos de prisão – a contestação é criativa e eficaz para desmascarar os supostos valores pela vida. Valores que carregam mais raivas silenciosas contra os corpos detentores de útero do que outra coisa. Um país que se recusa a regular as armas para regular os úteros – torna ainda mais visível a bipolaridade patriarcal em que vivemos. O valor da vida de um embrião é exageradamente tido como o de um bebé. Só que por alguma razão o valor da vida da mulher que é violada (no cenário mais negro) é discutível. A pena é mais alta para quem faz um aborto do que para quem viola uma mulher. Esta lógica não chegou às pobres cabeças que provavelmente nunca tiveram educação sexual, mas que tomam decisões sexuais. Não sabendo dos corpos e dos processos apelam-se a valores universais da vida em contraste com a morte (o assassinato!) e controlam-se os corpos dos outros por consequência. Houve quem sugerisse greve sexual para reforçar que os úteros, as vaginas e as vulvas são de quem as têm. Mas nem sei se isso irá funcionar porque o problema está na ausência de respeito centenária por quem os têm. Depois temos Taiwan que muito nos emocionou nesta semana. Foi tão bom apreciar as fotografias das gentes que na rua manifestaram a felicidade de um amor que agora pode ser legalmente reconhecido. Outros direitos virão. Outras lutas por esta Ásia fora serão travadas – certamente. Em Taiwan mostrou-se que a liberdade para sermos quem somos pode coexistir com o sentido de compreensão social. Ainda que os direitos não sejam plenos, como os da adopção, já é um começo. Vivemos em sociedades que usam e abusam do quão bipolar somos – entre responsabilidade individual e social, usam-se estratégias ideológicas a nosso bel-prazer. O corpo é de quem? Nosso ou de todos? Como é que se equilibra os valores liberais com solidariedade e respeito mútuo? A síndrome bipolar sexual vive desta indecisão. A forma como escolhemos justificar este dilema pode legitimar ou deslegitimar os outros. Em Taiwan, a prioridade foi a liberdade de identidade e de expressão sexual e no Alabama a lógica da vida por nascer é romanceada em contraste com as vidas que, de pele e osso, se sujeitaram ao pecado mortal. Nem quando essa vida é fruto de um incesto a liberdade prevalece. Quando queremos um mundo justo, vemo-nos confrontados com a dispersão de dificuldades e posições sociais. Talvez possa ser feliz em Taiwan e talvez nunca precise de ir ao Alabama. Mas e a nossa responsabilidade em criar um mundo menos bipolar e mais preocupado com os direitos humanos? Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA segurança do paciente e os erros médicos “All men make mistakes, but a good man yields when he knows his course is wrong, and repairs the evil. The only crime is pride.” Sophocles, Antigone” [dropcap]É[/dropcap] impossível contabilizar os milhares de pessoas que são mortas a cada ano por erros médicos, mas para ter apenas uma ideia são de centenas de milhares nos Estados Unidos e dezenas de milhares no Reino Unido, sendo conjuntamente com as doenças cardíacas e cancro, uma das principais causas de morte. Muito mais pessoas sofrem danos de forma não fatal por erros, e o custo dos pagamentos por negligência clínica nos países onde existe alguma estatística, é de muitos milhares de milhões de euros. É necessário entender que reduzir o custo humano e financeiro dos erros médicos é uma prioridade ética. O mediático caso de Bawa-Garba, que se refere a Jack Adcock , uma criança de seis anos, que foi internada na “Leicester Royal Infirmary (LRI)”, unidade pertencente ao “Serviço Nacional de Saúde (NHS)” britânico, em 18 de Fevereiro de 2011 e que morreu no mesmo dia, em parte devido a erros no seu tratamento. A Dra. Hadiza Bawa-Garba, indiana, médica que o tratou e a enfermeira portuguesa, Isabel Amaro, foram posteriormente declaradas culpadas de homicídio culposo por negligência grave no qual a médica contribuiu para a morte por septicemia, tendo sido destacado durante o julgamento a necessidade de abordar questões individuais e sistémicas para reduzir os erros. A Dra. Bawa-Garba, foi condenada a dois anos de prisão a 4 de Novembro de 2015, e a enfermeira Isabel Amaro foi condenada a três anos de prisão a 2 de Novembro de 2015. Os médicos têm a obrigação ética de ser transparentes sobre os seus erros médicos, mas como será possível encorajá-los a fazer quando as consequências pessoais e profissionais da honestidade podem ser devastadoras? A realidade é que alguns erros médicos nunca são revelados aos pacientes, que são então privados de indemnização, e pouco é aprendido com os mesmos. A Universidade Johns Hopkins publicou um relatório a 3 de Maio de 2016, em que afirma que as taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de colecta de estatísticas nacionais, e analisando os dados médicos de mortalidade ao longo de um período de oito anos, os especialistas em segurança do paciente calcularam que mais de duzentas e cinquenta mil mortes por ano são devidas a erros médicos nos Estados Unidos, sendo a principal causa de morte dos “Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC na sigla inglesa)”, que pertence ao “Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos”, e que por comparativamente as doenças respiratórias, matam cerca de cento e cinquenta mil pessoas por ano. A forma do CDC colectar estatísticas nacionais de saúde não classifica os erros médicos separadamente no atestado de óbito. Os pesquisadores defendem critérios actualizados para classificar os óbitos nos atestados de óbito. As taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de recolha de estatísticas nacionais. O sistema de codificação médica foi projectado para maximizar os serviços médicos, não para recolher estatísticas nacionais de saúde, como está ser usado actualmente. Os Estados Unidos, desde 1949, adoptaram uma forma internacional que usava os códigos da “Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID na sigla inglesa) que é publicada pela “Organização Mundial de Saúde (OMS)” e que visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde. A CID fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças para calcular as causas de morte. A partir dessa época foi sub-reconhecido que os erros de diagnóstico, erros médicos e a ausência de redes de segurança poderiam resultar na morte de alguém e, daí que os erros médicos foram involuntariamente excluídos das estatísticas nacionais de saúde. Os pesquisadores alertam que a maioria dos erros médicos não se deve à prática de actos médicos intrinsecamente nefastos, e que mais que denunciar esses erros e serem resolvidos por punição ou acção legal, afirmam que a maioria dos erros representa problemas sistémicos, incluindo cuidados mal coordenados, redes de seguro fragmentadas, ausência ou subutilização de redes de segurança e outros protocolos, além da mudança injustificada nos padrões de prática médica que carecem de responsabilidade. O “Jornal de Segurança do Paciente” dos Estados Unidos, alegam que o número de mortes por erro médico chegou a quatrocentas e quarenta mil por ano. A razão para a discrepância é de que os médicos, donos de funerárias, juristas e médicos legistas raramente notam nos atestados de óbito os erros humanos e falhas do sistema envolvidos. As certidões de óbito são o que os CDC se baseiam para colocar estatísticas de mortes em todo o país. A epidemia de danos ao paciente em hospitais deve ser levada mais a sério se quiserem que reduza. Envolver totalmente os pacientes e seus defensores durante o atendimento hospitalar, procurando sistematicamente ouvir os pacientes na identificação de danos, a transparência na responsabilização por danos e a correcção intencional das causas do dano são necessárias para atingir esse objectivo. O sistema é culpado pois é entendido como erro médico a morte causada por pessoal inadequadamente qualificado, erro no julgamento ou cuidados, um defeito do sistema ou um efeito adverso evitável, incluindo falhas do computador, misturas com as doses ou tipos de medicamentos administrados aos pacientes e complicações cirúrgicas que não são diagnosticadas. É de realçar todavia que os profissionais de saúde são em geral pessoas dedicadas e atenciosas, mas são humanos e que como seres humanos cometem erros, não sendo todavia causa de exclusão da ilicitude. Existem muitos técnicos de farmácia, em vez de farmacêuticos bem treinados e instruídos, que estão a compor quase todos os medicamentos para os pacientes e muitos têm requisitos ou comprovação de competência para esses exercer essa actividade. O uso da tecnologia da informação em saúde através do uso de registos electrónicos de saúde de pacientes hospitalizados e ambulatórios é essencial. Muitos hospitais, por sua vez, procuram acompanhar o ritmo da tecnologia cada vez mais disponível para melhorar a segurança do paciente. A maioria dos consultórios médicos dos Estados Unidos mantém registos electrónicos, bem como regista conversas entre médicos, enfermeiros e os seus pacientes, a fim de garantir que haja clareza e que não ocorram erros. As complicações comuns podem ocorrer, especialmente, no atendimento médico desnecessário, e cerca de 20 por cento de todos os procedimentos médicos podem ser desnecessários. Existe também, culpa na prescrição excessiva de medicação após a cirurgia, particularmente os opiáceos. É de considerar que os médicos são encorajados pelas empresas farmacêuticas, às vezes por meio de pagamentos em dinheiro, a “promover” os seus produtos. Tendo em consideração os “Direitos do Paciente em um Sistema de Saúde Perigoso e Orientado a Lucros”, os pacientes precisam de assumir o controlo, pois deve existir um equilíbrio entre a comunidade prestadora e os pacientes. A “Carta Nacional de Direitos do Paciente Hospitalizado” nos Estados Unidos, foi criada em 2014 em que os preconiza que quanto aos “registos médicos”, os pacientes hospitalizados devem receber diariamente o seu prontuário e ser ensinado como fazer anotações nos seus registos e corrigir qualquer desinformação. Os registos médicos devem ser electrónicos e mantidos por um período longo. O “cuidado” baseado em evidências quer que o diagnóstico e o tratamento devam estar de acordo com as directrizes federais e/ou nacionais de saúde ou de acordo com as directrizes revistas por especialistas publicadas por organizações especializadas para a condição médica do paciente. Se o médico determinar que é necessário desviar-se das directrizes, deve informar o paciente que o seu cuidado se deve desviar das directrizes e fornecer uma explicação para o desvio. Os “medicamentos terapêuticos”, preconiza que nenhum paciente deve receber uma medicação para fins “off label” sem ser informado de que o medicamento prescrito não foi aprovado pela “Food and Drug Administration (FDA)” para a condição médica do paciente. A justificativa para a prescrição do medicamento “off label” e o risco associado devem ser revelados ao paciente e documentados. O paciente deve ser informado sobre como relatar os efeitos adversos de qualquer medicamento sob prescrição médica ao FDA. A “competência do médico”, quer que os pacientes tenham o direito a serem informados sobre o “status” de competência do seu médico antes de serem tratados. Este “status” deve incluir a conclusão da “Central de Material Esterilizado (CME)” estadual, o “status” de certificação do conselho, a manutenção da certificação do conselho, a reabilitação do abuso de drogas e quaisquer outros factores que afectam a competência do médico. Os “custos” requerem que os pacientes devem conhecer os custos normais do diagnóstico e tratamento que receberão antes de concordarem com um plano de diagnóstico ou plano de tratamento. O tratamento encontrado contra directrizes sem o consentimento do paciente não precisa de ser pago. Os “eventos” adversos estipula que se acaso ocorrer um evento adverso imprevisto durante o diagnóstico ou tratamento, o paciente tem direito a uma explicação completa do que aconteceu e como o hospital pretende prevenir eventos adversos semelhantes no futuro. Se o evento adverso foi causado por um erro médico, o paciente tem direito a uma compensação justa. A falsificação de registos médicos após um evento adverso constitui adulteração de evidências. O “dever” de advertir, exigindo que os pacientes devem saber a taxa de infecção do hospital e a morbidade e mortalidade associadas a procedimentos invasivos planeados. O paciente deve ser avisado de qualquer actividade de estilo de vida que ameace a sua saúde e devem receber orientação sobre a gestão dessa actividade. O “consentimento informado” exige que o paciente deve dar o seu consentimento informado para procedimentos invasivos de acordo com as directrizes publicadas pela “American Medical Association” de 1998. O medo nunca deve ser usado para obter consentimento para procedimentos invasivos. O “feedback” sobre o cuidado quer que o paciente tenha o direito, mesmo um dever, de fornecer “feedback” a uma agência independente sobre a qualidade do atendimento recebido durante a hospitalização. Este “feedback” deve ser sistematicamente tomado e disponibilizado ao público. O “direito” a um advogado mostrou que, enquanto o hospital é o local principal para integrar o atendimento de um paciente é o advogado que deve defender os interesses do paciente. Todos os pacientes do hospital devem ter o direito a um advogado. O “Patient Safety America” lista os três níveis em que os pacientes podem proteger-se. Estes incluem ser um consumidor sábio dos cuidados de saúde, exigindo cuidados de qualidade e custo-benefício para si e para aqueles que ama; participando da liderança em segurança do paciente por meio de conselhos, painéis e comissões que implementam políticas e leis; e pressionando por leis que favoreçam cuidados, transparência e prestação de contas mais seguras. É necessário obter sempre o máximo de informações que puder do seu médico, inquirindo sobre os benefícios, efeitos colaterais e desvantagens de um medicamento ou procedimento recomendado, e usando as médias sociais para saber mais sobre a própria condição do paciente, bem como sobre os medicamentos e procedimentos para os quais foram prescritos. O paciente deve sempre procurar uma segunda opinião. Se a situação o justificar ou se existirem incertezas, deve obter uma segunda opinião de outro médico, pois um bom médico aceitará a confirmação do seu diagnóstico e resistirá a qualquer tentativa de desencorajar o paciente de aprender mais ou de “tentativas de amordaçar o paciente”. Muitas vezes o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema. Porquê muitos médicos são relutantes em especular, mas alguns admitem que as respostas vão do simples ego até à perda de um paciente para outro médico em quem confiam mais. Às vezes é difícil processar todas as informações por si mesmo, pelo que se deve trazer um membro da família ou um amigo para a sua consulta, alguém que possa entender as informações e sugestões dadas e fazer perguntas. Ao ter as informações médicas literalmente na palma da mão, pode trabalhar em equipa com o médico para reduzir o risco de erros médicos. Os aplicativos de saúde podem ser simples ou complexos e, dependendo da idade e condição, pode gerir o seu bem-estar, medicamentos e muito mais. O que têm de bom o sistema de saúde americano, inglês e outros em trabalho comparativo e cooperativo deve ser estudado e aplicado com adaptações e o que acontece nos Estados Unidos e no Reino Unido é o mesmo que acontece em outros países quanto aos maus procedimentos e devem ser instituídos todos os mecanismos em defesa da segurança do paciente, pois muitas vezes, o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema, para esconder as falhas do sistema e o erro médico. O acesso do paciente a bons cuidados de saúde e de forma gratuita é um direito fundamental e universal. David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDireitos dos Animais (II) [dropcap]A[/dropcap] semana passada falámos sobre duas das alterações à lei de protecção dos animais em Hong Kong. A primeira, reflecte-se na seccção 56 da Lei do Tráfego Rodoviário e prevê que, quem atropele um animal tem de parar, prestar auxílio e notificar a polícia num espaço de 24 horas. A segunda, estipula que os donos são responsáveis pelos seus animais, sendo sua obrigação cuidar e atender às suas necessidades. Esta obrigação constitui o “dever de cuidar”. Na sequência desta alteração, os tribunais podem privar uma pessoa do direito de possuir um animal para sempre, se este dever for seriamente violado A Lei de protecção dos animais de Macau não estipula esta condição, mas o parágrafo 1 do artigo 28 enuncia: Artigo 28.º Penas acessórias 1. A quem for condenado pela prática dos crimes previstos nos artigos 25.º e 26.º podem ser aplicadas as seguintes penas acessórias: 1) Declaração de perda a favor do IACM do animal do infractor; 2) Proibição de aquisição e criação de animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; 3) Proibição do exercício de actividades que impliquem o contacto efectivo com animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; Como vemos, este artigo estipula que quem violar a lei será privado do seu animal, o qual será entregue ao cuidado do IACM. Isto implica que os animais sujeitos a maus tratos serão imediatamente resgatados. Embora aqui se preveja que quem infligir maus tratos a animais seja proibido de os ter por um período de um a três anos, não é uma interdição para toda a vida, conforme enuncia a emenda à legislação de Hong Kong. As leis da Região Administrativa Especial de Macau foram buscar o modelo da legislação portuguesa. Segundo o Código Penal português, a pena máxima é de 25 anos. Não existe prisão perpétua. Transpondo este princípio para a lei de protecção dos direitos dos animais, faz sentido que não se proíba ninguém de ter um animal para o resto da vida. Uma das antigas propostas de alteração a esta lei previa a criação de um corpo policial dedicado em exclusivo à protecção animal. Mas a polícia opôs-se argumentando a falta de efectivos. Sem intervenção policial, existirão inevitavelmente bloqueios à implementação da lei, especialmente quando os donos se recusam a colaborar, ou resistem violentamente, os responsáveis ficam incapacitados de agir. Outra crítica às emendas da lei de Hong Kong prende-se com a falta de uniformização, o que deu origem a dificuldades na compreensão e confusões. Também dificulta o trabalho dos departamentos responsáveis ao tentarem aplicar a lei correctamente. Conforme já foi referido, a legislação de protecção animal em Hong Kong, inicialmente, apenas se destinava a preservar a segurança e a sáude públicas. Actualmente foi alargada aos conceitos de direitos e bem-estar animal. Direitos e bem-estar animal e saúde e segurança públicas são dois binários conceptuais distintos. Misturar conceitos gera confusão, daí que as críticas pareçam ser compreensíveis. Em oposição, a legislação de protecção animal de Macau é basicamente um conjunto de quatro regulamentos, a Lei No. 4/2016, o Despacho do Chefe do Executivo n.º 335/2016 que – Determina a proibição da aquisição, criação, reprodução ou importação das raças de cães e animais, o Regulamento Administrativo n.º 28/2004 que – Aprova o Regulamento Geral dos Espaços Públicos e o Despacho do Chefe do Executivo n.º 106/2005 que – Aprova o Catálogo das Infracções a que se refere o artigo 37.º, n.º 1, alínea 2, do Regulamento Geral dos Espaços Públicos. Como Macau tem basicamente nesta matéria este conjunto de leis e Despachos, e a legislação sobre protecção animal remonta a 2016, pode afirmar-se que é uma lei recente. Além disso podemos classificar a legislação de Macau como “simples e clara” . No Génesis, é dito que Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança. E Deus ordenou ” Ao homem é dado domínio sobre todas as coisas e ele recebe mandamento de se multiplicar e de encher a Terra.” Embora nem todos acreditem na Bíblia, o princípio sagrado de usar a lei para proteger os direitos dos animais e a promoção do seu bem estar, faz parte de uma sociedade saudável e evoluída. O primeiro passo para que este objectivo seja cumprido é compreender que os animais não são brinquedos, nem podem servir para descarregar frustrações; se assim não for, o agressor despe-se do sentido de moralidade que todo o ser humano deve possuir e será altamente provável que a lei de protecção animal venha a ser violada. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk «1...63646566676869...113»
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO Brexit e a China “China is ready to take advantage of a divided Europe and weakened UK after Brexit.” China and Brexit: what’s in it for us? François Godement & Angela Stanzel [dropcap]O[/dropcap] polémico político, académico, escritor e poeta britânico, John Enoch Powell, que foi deputado pelo Partido Conservador do Reino Unido de 1950 a 1974, do Partido Unionista do Ulster de 1974 a 1987, e ministro da Saúde do Reino Unido de 1960 a 1963, afirmou que todas as carreiras políticas na Grã-Bretanha terminam em lágrimas. A primeira-ministra demissionária Theresa May, não falhou à regra e as suas palavras mostraram essa verdade não apenas figurativamente, mas literalmente. A primeira-ministra demissionária anunciou em 24 de Maio de 2019 que deixaria o cargo a 7 de Junho de 2019, e viu-se o seu rosto consumido de emoção e lágrimas nos seus olhos. Foi um balde de água fria para terminar um período caótico e, para muitos, inglório. A primeira-ministra demissionária foi derrotada quando sucedeu a David Cameron em 2016, mas jogou de forma notavelmente funesta. Os seus quase três anos no cargo foram consumidos pela questão do Brexit. Apesar disso, deixa ao seu sucessor a questão de como será alcançado. Theresa May cometeu sérios erros estratégicos ao tentar cumprir o resultado do referendo de Junho de 2016 para o Reino Unido sair da União Europeia (UE). A primeira-ministra demissionária tinha um mandato para começar as negociações infames, mas ninguém sabia exactamente qual o caminho a percorrer. A primeira-ministra demissionária descobriu que havia uma enorme gama de opções, e nenhuma delas teve amplo apoio público. Theresa May provou ser uma vendedora pobre para uma forma de Brexit que todos poderiam, até certo ponto, aceitar. Quando Theresa May se tornou primeira-ministra, sem oposição, no verão de 2016, mesmo os que haviam votado para permanecer na UE estavam dispostos a admitir a contragosto, que o enorme exercício democrático havia produzido um resultado que precisava de ser implementado. Naqueles primeiros meses, Theresa May teve a oportunidade de persuadir, e fazer o que os políticos deveriam ter feito, que era promover um resultado político específico através de uma boa comunicação e convicção. O movimento inicial de Theresa May, no entanto, como um eleitor remanescente foi tentar provar ao seu partido que era uma verdadeira convertida à causa do Brexit. Os seus comentários tipo linha dura na conferência do Partido Conservador, no Outono de 2016, foram o “Brexit significa Brexit” e não poderia haver compromissos, sendo o primeiro aviso de que seria uma refém da fortuna. Os eventos deveriam desdobrar-se com uma inevitabilidade trágica quase grega depois disso. Primeiro foi a decisão de accionar o desprezível artigo 50 do Tratado de Lisboa de 2009 que, muito brevemente, estabelece o mecanismo pelo qual os Estados-membros da UE podem sair. A única estipulação é que o processo levaria dois anos, sem detalhes sobre como exactamente seria alcançado. Antes de ter um plano de batalha claro, e em grande parte pressionado pela linha dura do seu partido, Theresa May accionou o artigo 50 em Março de 2017. A partir desse momento, perdeu o controlo de uma das poucas alavancas que tinha, que era o tempo. O seu segundo erro foi subestimar a complexidade da questão da fronteira com a Irlanda do Norte. A Irlanda do Norte, consumida por conflitos sectários durante boa parte de 1969 e anos seguintes, teve o Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998, que consolidou uma paz sustentável. Mas dependia de não haver uma fronteira rígida entre a Irlanda do Norte, que permanecia sob domínio britânico, e a República da Irlanda, no sul. O desejo de se separar completamente do mercado comum e da união alfandegária da UE, fizeram os negociadores de Theresa May enfrentar o problema intratável da necessidade de uma fronteira rígida com os controlos alfandegários na Irlanda, ou não ter, mas conseguir algum tipo de adesão ao mercado da UE. Tratava-se de um mecanismo para lidar com tal facto e que se comprometeu com uma fronteira suave, mas em um período de tempo indefinido, sendo um dos muitos aspectos do acordo final que conseguiu negociar com a UE e apresentar ao parlamento no final de 2018. A rejeição pela maior votação de sempre significaria o fim da maioria dos líderes. Mas tão extraordinários foram os tempos em que foi primeira-ministra, tendo efectivamente sido capaz de fazer o mesmo acordo perante a Câmara dos Comuns, o principal órgão legislativo, mais duas vezes. A sua queda final foi devido a uma nova tentativa de tentar aprovar esse acordo, o que tornou inaceitável até para os seus defensores mais fiéis. Apesar do Reino Unido ser uma sociedade dividida, Theresa May demonstrou uma incrível resiliência diante de um parlamento e de um partido muitas vezes em guerra consigo mesmo, com profundas divisões que pareciam piorar em vez de melhorar. O Partido Conservador está dividido desde há muitas décadas entre os que apoiam a UE e os seus membros, e os que consideram uma afronta à soberania por um super-estado liderado por Bruxelas, ao estilo continental, na esperança de reduzir o Reino Unido à servidão. Por um lado, o ónus está no pragmatismo, olhando para os benefícios económicos que a adesão à UE dá e por outro, no entanto, na identidade que é importante. Tais divisões são reflectidas na sociedade em geral. E com efeito, enfrentam-se em dois grupos que simplesmente não falam a mesma língua. Não admira que tenha sido difícil para Theresa May chegar a negociar um compromisso. A sua posição mudou durante o breve período da sua liderança, quando reconheceu os enormes desafios enfrentados pelo Reino Unido no modelo de saída. Longe de se fragmentar, o resto da UE permaneceu consistente no seu conjunto de desafios, dando a Theresa May pouco espaço para negociação. Theresa May não foi ajudada pelos independentes, e muitas vezes com a liderança inútil nos Estados Unidos após 2017 e a chegada do presidente Donald Trump ao poder. As grandes declarações do presidente Trump aconselhando-a de que só necessitava de sair da UE sem medo das consequências não eram os sentimentos da maioria do povo britânico, que mostrou que se importava com a sua prosperidade económica no futuro e a ameaça não é um acordo. Para outros, a sua crença sincera era de que havia oportunidades fora do mercado que a UE oferecia, mas a partir de meados de 2019, estes parecem esquivos. A saída de Theresa May deixará o Brexit mais próximo de uma solução do que há quase três anos. O seu sucessor precisará de encontrar o consenso que não conseguiu, ou lidar com a implementação de algo que não seja tão propenso a antagonizar e irritar quantas pessoas desejar. Ainda pior, há toda a possibilidade de que o resultado final desaponte todo o mundo. Trata-se de uma sucessão espinhosa, mas que fez sair Theresa May no momento certo. Há claramente um enorme acerto de contas para os políticos que são vistos como incompetentes e movidos pelo interesse próprio e não pelo bem da nação. É de considerar no entanto, que a mais profunda raiva talvez seja para aqueles cujas promessas, argumentos e declarações, dados com tanta confiança nos últimos anos, sobre como é fácil deixar a UE e como as negociações acabarão por terminar terão um enorme impacto. Se o Brexit for forçado a não negociar, e houver consequências económicas negativas imediatas, então a era de Theresa May poderá ser vista com alguma nostalgia e, ao contrário de alguns dos seus antecessores, como Tony Blair e David Cameron, pelo menos desfrutará de alguma simpatia, como uma pessoa que tentou fazer o melhor possível em circunstâncias impossíveis. Tal indulgência caritativa quase certamente não será concedida ao seu sucessor e há todas as possibilidades de que o Partido Conservador, depois de três séculos como uma força política no Reino Unido, possa ser consignado ao estatuto de partido minoritário, ou mesmo ao completo esquecimento. Se o sucessor de Theresa May falhar em um Brexit suave, pode significar o fim do Partido Conservador britânico. A Grã-Bretanha sofrerá pesadas perdas económicas com a iminente saída, já que está economicamente e altamente integrada na UE. Embora possa procurar mercados alternativos, o custo será alto e não será realizado imediatamente, sendo que uma das vantagens notáveis da Grã-Bretanha é o estatuto de Londres como centro financeiro internacional. Mas a saída da UE pode diminuir o papel do país nas finanças globais e é provável que afaste os investidores estrangeiros. O Citigroup estimou que o PIB anual da Grã-Bretanha pode diminuir entre 3 a 4 por cento nos próximos três anos devido à saída. O relacionamento da Grã-Bretanha com o resto do mundo também será afectado. Tem de recuperar de alguma forma a voz única e ressonante nos assuntos mundiais, uma vez rompidos os laços com a UE. No que diz respeito aos assuntos europeus, pelo contrário, a Grã-Bretanha terá menos direitos a participar na tomada de decisões no futuro. Os Estados Unidos também perdem um canal para exercer influência na UE por meio da sua estreita parceria com a Grã-Bretanha. A “relação especial” entre os dois países mudará de maneira subtil. A divisão política na sociedade britânica ampliou-se após o referendo. Os eleitores do “Pro-Leave” derrotaram os que apoiaram a campanha do “Remain” por menos de 4 por cento ou seja um milhão e duzentos mil eleitores. Além disso, muitos cidadãos podem enfrentar incertezas quanto à sua vida, emprego e rendimento devido ao referendo, agravando ainda mais os “remanescentes”. O primeiro-ministro escocês afirmou que um segundo referendo sobre a independência da Escócia era “altamente provável”. A Escócia, Irlanda do Norte e Londres são três áreas em que a maioria dos eleitores apoiou a campanha “Remain”. A ameaça à unidade nacional da Grã-Bretanha está a crescer. O Brexit é também um duro golpe para a UE e uma grande conquista da integração regional que os europeus fizeram nas últimas décadas. Dentro da UE, há livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capital, o que muitas vezes é considerado o ápice dos esforços para alcançar a unidade humana no mundo. No entanto, o eurocepticismo tem vindo a aumentar no continente ao longo dos últimos anos. Depois do referendo sobre a adesão da Grã-Bretanha à UE, as pessoas temem que mais Estados-membros sigam o exemplo, embora essa reacção em cadeia pareça improvável, o processo de integração europeia sofreu um revés significativo. Actualmente, tanto a economia europeia como a mundial permanecem frágeis, com o Brexit apenas a aumentar a incerteza global e como uma das maiores economias do mundo, o impacto da Grã-Bretanha permanece perceptível. No dia em que o resultado foi anunciado, a libra esterlina caiu, resultando em flutuações cambiais internacionais e vendas de acções recorde. A China mantém estreitos laços económicos com a Grã-Bretanha e a UE, pelo que o Brexit inevitavelmente terá alguma influência nas relações China-Reino Unido. Se o Reino Unido deixar de fazer parte do mercado único da Europa, deve reforçar os laços comerciais com outras regiões. Nesse contexto, o fortalecimento das relações chinesas seria uma opção lucrativa para a Grã-Bretanha, especialmente se o comércio britânico se desviar significativamente da UE. Além disso, a Grã-Bretanha estaria livre para acordar com a China sobre livre comércio e investimentos bilaterais sem as restrições impostas pelas leis da UE. De acordo com o Tratado de Lisboa, os membros da UE não estão autorizados a firmar acordos de livre comércio ou acordos bilaterais de investimento com terceiros. Todavia, a China perderia a Grã-Bretanha como uma porta de entrada para aceder ao mercado da UE e promover o uso do renminbi na Europa. Além disso, a Grã-Bretanha poderia ser menos atraente para o investimento estrangeiro depois de sair da UE, mas não perderia a sua vantagem competitiva nas indústrias. O investimento directo da China na Grã-Bretanha pode ser influenciado negativamente, mas não deve cair drasticamente. É bastante simples a China interpretar a estratégia da Grã-Bretanha. O Reino Unido pode parecer um local de investimento muito mais aberto para as empresas da China, ainda que desvinculado dos mercados europeus e, muito menos atraente como uma possível porta de entrada para o continente. Além disso, a influência internacional do sector de serviços financeiros de Londres deve ser significativamente reduzida pela perda dos chamados direitos de passaporte, e isso tem o potencial de afectar a ambição da cidade de assumir um papel de liderança na internacionalização da moeda chinesa. Para os cidadãos chineses que desejam estudar ou trabalhar no Reino Unido, a situação mudará. A Grã-Bretanha removida da Europa poderia oferecer mais oportunidades, ou poderia ser menos atraente; sendo menos internacional e mais paroquial. Tendo-se tornado mais isolado diplomaticamente, o Reino Unido será visto no pensamento político chinês como um actor muito menor e menos importante. Infelizmente, essa atitude em particular e o que conduzirá não foi tida em consideração por muitos eleitores britânicos em 23 de Junho de 2016 e se contentarem em viver com as consequências, teremos que esperar e ver, independentemente da situação. Os ingleses defendem que a Grã-Bretanha e a China devem aproveitar oportunidades excepcionais para forjar uma parceria global mais próxima na era pós-Brexit. Os dois países poderiam aumentar ainda mais a sua cooperação nos campos do comércio, investimento, energia limpa e outros, enfrentando desafios globais. A Grã-Bretanha está disposta a renovar o seu entusiasmo pelas relações internacionais, especialmente com a China. O Reino Unido no mundo depois do Brexit, continuará a negociar com a UE e para muitas empresas chinesas e investidores que estão sediados na Grã-Bretanha, ainda é um bom local para fazer parte da Europa. O relacionamento da Grã-Bretanha com a China é um bom exemplo do seu internacionalismo, que entrou em uma nova fase na “era de ouro” e na sua estratégia industrial recém-lançada, tendo o governo britânico identificado a transição energética como um dos principais desafios globais e a melhor solução para os solucionar é quando os países podem trabalhar juntos, sendo de recordar que ambos construíram uma base sólida de cooperação nessa matéria. O projecto Hinkley Point C não é apenas o maior investimento em energia do Reino Unido, mas também o maior projecto de investimento em infra-estrutura na Europa, sendo um bom exemplo de como a cooperação em energia limpa pode funcionar como um pilar da parceria internacional. O projecto de dezoito mil milhões de dólares, com um terço do investimento feito pela China, foi descrito como a primeira nova central nuclear da Grã-Bretanha em uma geração. Através do Acordo de Paris, tanto a Grã-Bretanha quanto a China assumiram compromissos muito significativos sobre as alterações climáticas e um dos desafios é ter certeza de que a Grã-Bretanha pode cumprir os seus compromissos a um custo acessível. O propósito da Grã-Bretanha participar no Diálogo Europeu de Energia é o de procurar oportunidades para a cooperação de energia renovável em uma ampla gama, incluindo a energia eólica offshore, pois estabeleceu uma posição de liderança neste campo, e o custo de energia foi efectivamente reduzido com a aplicação da tecnologia eólica offshore, esperando que a energia limpa seja acessível tanto para os consumidores quanto para as empresas, tendo a ambição de reduzir o custo da energia. A Grã-Bretanha está também interessada na iniciativa Made in China 2025, pois o mundo testemunhou mudanças maciças e empolgantes que ocorrem onde grandes revoluções tecnológicas têm vindo a transformar quase todos os sectores da economia, assim como a vida das pessoas. A China e o Reino Unido têm visões idênticas sobre as tendências globais, como o envelhecimento da população, e ambos elaboraram planos de acção para desenvolver a inteligência artificial, análise de dados e outros sectores para abraçar mudanças tecnológicas e construir forças económicas. Hoje Macau VozesA China está empenhada na proteção dos direitos da propriedade intelectual Gong Xin* [dropcap]A[/dropcap] propriedade intelectual é a ponte da globalização comercial e o elo de ligação da cooperação internacional. No entanto, alguns políticos norte-americanos usaram-na como pretexto para provocar fricções comerciais, tecendo críticas em que acusam a China de “roubar os direitos de propriedade intelectual” e de “exigir a transferência forçada de tecnologia”, tentando impor pressão máxima sobre a China. A China não é o ladrão da propriedade intelectual, mas sim um protector e criador dela. Ao fazer uma retrospectiva da protecção chinesa da propriedade intelectual, constata-se que a China de hoje já estabeleceu um sistema jurídico relativamente completo e com alto padrão da protecção dos direitos da propriedade intelectual, enquanto há 40 anos, a China estava ainda nas suas primeiras tentativas de protecção da propriedade intelectual. A jornada chinesa é única do mundo. Actualmente, a China está empenhada na reforma da modernização da governação da propriedade intelectual, que irá conduzir a China de um grande país de propriedade intelectual para um forte país de propriedade intelectual, e irá inspirá-la a participar com mais confiança na cooperação global da inovação. Hoje, a China encontra-se no trilho rápido da inovação científica e tecnológica e já se tornou num grande país inovador com influência global. Novas indústrias, novos modelos e formas de negócios estão a surgir uma após outra, enquanto a inovação se transformou num motor do desenvolvimento económico e social. Não só a China é pioneira na fabricação de aeronaves de grande porte, construção de caminhos-de-ferro de alta velocidade, desenvolvimento de energia nuclear da terceira geração e veículo de energia nova, como também se progrediu na inteligência artificial, Big data, computação em nuvem e outras tecnologias informáticas da nova geração. Uma reportagem do Wall Street Jornal mostrou que já alguns anos atrás a quantidade de teses chinesas sobre inteligência artificial tinha ultrapassado as dos EUA. A China tem agora a maior equipa de pesquisa e desenvolvimento do mundo, e o número de pedidos de patente de invenção fica em primeiro lugar no ranking mundial por oito anos consecutivos. Segundo o Relatório Índice de Inovação Global 2018 emitido pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a China ocupa o 17º lugar, sendo pela primeira vez que entrou nos primeiros 20 no ranking. Os esforços da China em matéria de protecção judiciária e administrativa dos direitos da propriedade intelectual têm aumentado. Foi estabelecido o sistema judicial de “Tribunal de Recurso + Tribunal Especializado na área de Propriedade Intelectual”, e foi reestruturada a Administração Nacional de Propriedade Intelectual para realizar uma série de acções especiais contra a violação dos direitos da propriedade intelectual. Em 2018, a China investiu cerca de 2 biliões de RMB em pesquisa e desenvolvimento, correspondendo 2,18 por cento do PIB chinês e ultrapassando a taxa média dos países da OCDE. Ao mesmo tempo, a China tem reforçado a protecção da propriedade intelectual, e tem mantido uma tendência de crescimento elevado do valor de royalties pago aos detentores estrangeiros de propriedade intelectual, que tem registrado um aumento anual de 17 por cento desde o ano de 2001, somando US$ 28,6 mil milhões em 2017. A propriedade intelectual desempenha um papel de ponte no intercâmbio técnico e de cooperação em inovação entre países. Os passos da China na área da protecção da propriedade intelectual só vão avançar e não recuar. A China irá participar com uma postura mais activa na governação global da propriedade intelectual. *Comentador politico David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPublicidade enganosa [dropcap]N[/dropcap]o dia 2 deste mês o jornal de Hong Kong Sing Tao Daily publicou uma notícia sobre a jovem Miss Wong, proveniente de Hong Kong e estudante no Reino Unido. Miss Wong levantou um processo num tribunal londrino contra a Universidade Angelia Ruskin. O artigo não adiantava os motivos de forma muita clara, limitando-se a mencionar “publicidade falsa aos serviços”. Miss Wong inscreveu-se nesta Universidade em 2011, para fazer uma pós-graduação em administração internacional, um curso com duração de dois anos. A jovem escolheu a Angelia Ruskin devido ao panfleto promocional que garantia “Formação de Alta Qualidade” e “Boas Perspectivas de Emprego”. Estas indicações impressionaram favoravelmente Miss Wong. Mas depois do início do ano lectivo ficou decepcionada. As aulas começavam com atraso e terminavam antes da hora. Os estudantes eram incentivados ao “auto-didactismo”. Por tudo isto, a queixosa acusou a Universidade de fraude, na medida em que estava longe de garantir a “Formação de Alta Qualidade” anunciada no prospecto. Mesmo assim, terminou a formação em 2013 certa de que tinha assegurado o início de uma sólida carreira profissional. Mas sempre que se candidatava a um emprego era rejeitada. O diploma não era reconhecido no mundo do trabalho. Portanto, para Miss Wong, o curso não assegurava formação de qualidade nem garantia perspectivas de emprego e, como tal, considerou que o prospecto publicitário era enganador. Após negociação entre as partes, a Universidade indeminizou a queixosa com o montante de 61.000 libras. Deste valor, 46.000 libras eram destinadas a custas processuais. O sistema legal britânico é diferente do de Macau. A parte que perde o processo arca com as custas da outra parte. A principal despesa deste bolo são os honorários do advogado, que neste caso foram pagos pela parte acusada. Em entrevista ao jornal Sunday Telegraph, Miss Wong afirmou sentir-se satisfeita com o resultado do julgamento. Disse ainda estar convencida que de futuro a Universidade iria ter mais cuidado com o que escrevia nos prospectos promocionais. Promessas irrealizáveis não devem estar impressas em panfletos informativos. Embora este caso não envolva uma notícia de monta, para nós, não deixa de ser motivo de reflexão. Como sabemos, actualmente existem nove Universidades em Macau. Devido à implementação da Lei do Ensino Superior, estamos a entrar numa nova era da educação. Quase todas as Universidades têm de estar certificadas. A certificação atesta o grau de qualidade de cada uma delas. Desta forma, as Universidades devem poder garantir até certo ponto o seu nível de ensino. No entanto, Miss Wong processou a Universidade por incumprimento das promessas feitas aos estudantes no programa promocional. Segundo a notícia, a queixosa baseou o seu processo na falsidade do prospecto. Se tinha ou não tinha razão, é uma questão que fica em aberto. Mas uma coisa é certa, segundo a lei do Reino Unido, a partir do momento em que os estudantes pagam as propinas e ingressam na Universidade, estes prospectos fazem parte do contrato entre as partes. A Universidade é responsável por honrar os termos do contrato. Se não o fizer, entra em incumprimento e os estudantes podem processá-la. Embora a situação em Macau seja significativamente diferente da do Reino Unido, o prospecto é considerado um documento oficial na admissão à Universidade. Se existirem diferenças consideráveis entre o programa apresentado e a experiência que os estudantes vivem posteriormente, existirão naturalmente motivos de descontentamento. Consequentemente, as Universidades terão de ter muito cuidado com a forma com que redigem estes panfletos. Se as promessas se cumprirem todos ficam satisfeitos, mas se não se cumprirem os problemas hão-de surgir. Este caso acaba por ser um alerta para todas as Universidades, lembrando que devem ser cuidadosas na forma de divulgar os seus programas e responsáveis pelas expectativas que criam aos estudantes. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk João Luz VozesLiberdade [dropcap]E[/dropcap]terna fome da alma, torrente imparável que destrói todos os obstáculos com força de elemento natural. Chama mais brilhante que se alimenta do combustível da opressão e da violência. Denominador comum de todos os mortais, aspiração dos imortais, transversalmente universal como a carne e o sangue, como um impulso de amor. A busca da liberdade confere humanidade como a ânsia pela transcendência e a habilidade de sonhar, uma avassaladora paixão que tolda os sentidos até ser consumada, como uma nuvem carregada que já não aguenta conter o derrame líquido. O grito que se solta e repele o cheiro a cárcere que se entranha no corpo e espírito, que quebra as amarras da submissão, que derrota iniquidades e exércitos de servidão. A liberdade não se domina ou modera, o seu exercício é absoluto, soberano, maior que todas as doutrinas e ideais combinados. A sua força pode parecer enfraquecida, latente, mas nunca se extingue, impossível de não cumprir o desígnio de concretização como uma maré que sobe empurrada pela massa dos astros. Expressão máxima do que é o Homem, natureza e condição humana em acção. Musa de poetas e filósofos, matéria onírica, pesadelo dos tiranos, doce e vingativa revolução que paira por cima de todas as ditaduras como uma tempestade inevitável. Simplicidade que derrota a prepotência, maioridade que ganha ao infantilismo a que os déspotas votam os seus súbditos, clarão luminoso que leva a verdade ao mais obscuro recanto. Uns quantos teorizaram que todos os homens e mulheres estão condenados a ser livres, que essa é a sua génese, a página em branco desde o primeiro segundo de vida, a condição na qual se nasce. Outros entendem que jamais alguém será totalmente livre, que o mundo vive acorrentado à pessimista equação entre desejo e escolha consciente. Onde quer que esteja a chama da verdade, entre natureza bruta e fria racionalidade, os raios de sol vão sempre iluminar a treva. Entre as muitas mentes brilhantes que se debruçaram sobre o tema, há quem entenda a liberdade como uma emanação material, longe das teorizações burguesas metafísicas e ideais abstractos, a satisfação de se poder ser e fazer. Também é comum descrever-se a liberdade como uma espécie de fronteira que demarca onde um indivíduo acaba e o outro começa, a barreira que circunscreve uma unidade de vida e a divide da seguinte. A questão dos limites da liberdade condicionada socialmente está no cerne da verdadeira definição do que é ser livre. Estarão as várias liberdades individuais conectadas e dependentes umas das outras? A condição de se ser livre é algo pessoal ou social? Apesar da validade teórica e ética de uma liberdade que se realiza no confronto individual, a sua acepção pessoal vinca a existência. A característica intrínseca, inerente à pessoa, faz com que mesmo o encarcerado seja naturalmente livre. A certeza desta autonomia ultrapassa todas as celas, métodos de controlo, violência de Estado, terror assassino, doença e mesmo a inevitabilidade da morte. Apesar de amordaçado, o grito de liberdade esgueira-se entre os dentes, como um sopro que se agiganta. Fora do plano teórico, ser livre na sociedade em que vivemos pode reduzir-se ao simples privilégio de não nos chatearem os cornos, de termos acesso ao luxo do silêncio fora do alcance do WIFI. Sair de cabeça erguida do labirinto de produção e consumo onde meio mundo anda perdido, cumprindo a profecia de Debord do cativeiro do entretenimento e das falsas escolhas. Acordar para dias formatados por obrigações de toda a ordem, viver contido, confortável em passividade segura, evitando ao máximo o risco e o perigo de ser desbragadamente livre, para além dos limites das convenções sociais e até das leis. A liberdade é difícil de definir. Já a submissão é mais fácil de identificar, sente-se na pele, aterroriza os que ainda não foram aprisionados, fustiga a pele de quem ousa dizer uma palavra verdadeira, castra a criatividade e a expressão artística. O problema para quem aspira ser livre é que também a violência é inerente ao ser humano. Enquanto a experiência da humanidade durar, duas forças contraditórias vão continuar um conflito sem tréguas: liberdade e subjugação. Olavo Rasquinho VozesO meteorologista de Estaline – O homem que viveu duas vezes [dropcap]A[/dropcap]o ler a biografia de José Estaline, de Simon Sebag Montefiore, a minha curiosidade foi aguçada pelo facto de ser mencionado que ele (Estaline) trabalhara como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tbilisi, na Geórgia. Procurei mais informação mas não consegui saber quais as suas funções no Instituto Meteorológico. Tudo indica que não teria sido meteorologista na medida em que não consta que tivesse estudado matemática e física em profundidade que lhe permitissem compreender os fenómenos meteorológicos. Provavelmente limitar-se-ia a ler os instrumentos e a registar periodicamente os valores das variáveis meteorológicas, tais como a pressão atmosférica, a temperatura do ar, a precipitação e a avaliar visualmente outros parâmetros como a nebulosidade, visibilidade, nevoeiro, neblina, bruma seca, etc. Quanto muito teria exercido as funções de observador meteorológico. Continuando a busca de algo que relacionasse Estaline com a meteorologia, deparou-se-me o livro “O Meteorologista”, do escritor francês Olivier Rolin. O meteorologista não era Estaline, mas sim o seu contemporâneo Alexei Feodossievitch Vangengheim. Além de ambos terem tido profissões na área da meteorologia e de serem entusiastas das novas ideias que alastravam pela Rússia no início do século XX, nada mais de comum teria havido entre eles. Estaline era filho de um sapateiro e nascera em 1878 em Gori, na Geórgia (Cáucaso) e Alexei descendia de uma família da pequena nobreza e nascera em 1881 numa pequena aldeia, na Ucrânia. No entanto o destino ligou-os de maneira trágica. Enquanto Estaline enveredou pelo envolvimento político ativo, Alexei dedicou-se a uma carreira nas áreas da física e da matemática. Frequentou, no início do século XX, o Departamento de Matemática da Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscovo. Depois do serviço militar frequentou o Instituto Politécnico de Kiev e o Instituto Agrícola de Moscovo. Casou em 1906, tendo ingressado mais tarde no Serviço Hidrometeorológico do Mar Cáspio. Ainda antes da revolução é mobilizado como chefe do Serviço Meteorológico do VIII Exército, tendo os seus conhecimentos de meteorologia sido aproveitados em batalhas entre russos e austríacos, em que eram empregues gases, arma de guerra cujo uso era muito dependente da direção e intensidade do vento. Após a revolução de Outubro de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu entre Brancos e Vermelhos trabalhou no Observatório Geofísico em Petrogrado, onde foi o responsável pela previsão do tempo a longo prazo. O interesse pela meteorologia foi-lhe provavelmente transmitido pelo seu pai, que montara uma estação meteorológica nas suas terras. Apesar do seu pai pertencer à pequena nobreza, o que poderia fazer cair suspeitas de comportamento reacionário, Alexei optou por permanecer na Ucrânia após a revolução de outubro de 1917, contrariamente a um seu irmão que emigrou. Foi membro do partido bolchevique e, como tal, fez parte de numerosos comités e conselhos científicos. Foi nomeado para a direção do recém-formado Serviço Hidrometeororológico Unificado da URSS, a que chamava em alguns dos seus escritos “o meu querido filho soviético”. Foi o responsável pela instalação da rede de estações meteorológicas nas vastas regiões abrangidas pela URSS. Exerceu ainda outras funções, nomeadamente presidente do Comité Hidrometeorológico junto do Soviete dos Comissários do povo, diretor do Gabinete do Tempo e presidente do Comité Soviético para a organização do segundo ano polar. Contribuiu para a obtenção do recorde mundial de altura atingida pelo homem, com a subida do estratóstato designado por URSS1, que atingiu dezanove mil e quinhentos metros, em plena estratosfera, onde foram levadas a cabo observações de grande valor científico. Alexei participou em discussões iniciadas na década de 1930, conjuntamente com os diretores de serviços meteorológicos de outros países, em que se preconizava que a Organização Meteorológica Internacional (International Meteorological Organization – IMO), organização não governamental fundada em 1873, evoluísse no sentido da criação de um organismo internacional que coordenasse as atividades meteorológicas a nível mundial e cujos membros fossem os Estados aderentes. Tal veio a acontecer algumas décadas mais tarde, em 23 de março de 1950, com a entrada em vigor da Convenção Meteorológica Mundial, criando-se assim a Organização Meteorológica Mundial (World Meteorological Organization – WMO), agência especializada das Nações Unidas. Como fruto do seu trabalho, no primeiro dia do ano 1930, foi emitido o primeiro boletim meteorológico através da rádio. Era com orgulho que contribuía assim, na sua maneira de pensar, para a construção do socialismo. As previsões do tempo poderiam contribuir grandemente para o êxito da agricultura. E provavelmente assim seria, se houvesse uma rede de estações suficientemente densa não só na URSS mas também nos países a oeste, na medida em que nessas latitudes os fenómenos meteorológicos se deslocam com forte componente de oeste para leste. Na realidade os serviços meteorológicos não estavam tão bem organizados como atualmente e o sistema de telecomunicações não era suficientemente expedito que permitisse a transmissão dos comunicados meteorológicos com eficiência em tempo real, o que motivou que a fiabilidade das previsões do tempo não fosse muito elevada. Entretanto, a coletivização da propriedade rural levou à desmotivação dos camponeses o que provocou, juntamente com outras causas, uma baixa dramática da produção agrícola. A coletivização não se limitou às imensas propriedades dos latifundiários, que tanto exploraram os camponeses antes da revolução de outubro de 1917, mas também às propriedades dos camponeses que praticavam agricultura de sobrevivência. Um camponês com uma ou duas vacas era considerado Kulak e, portanto, inimigo da revolução. A coletivização forçada e as requisições de cereais decretadas por Estaline levaram em 1932 e 1933 a milhões de mortos na Ucrânia. Para justificar o insucesso na agricultura havia que encontrar bodes expiatórios. E assim Alexei foi acusado de propositadamente difundir previsões meteorológicas erradas com o intuito de sabotar a revolução. A sua ascendência nobre e ser irmão de um emigrado também contribuíram para que as suspeitas do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (abreviadamente designado por NKVD) caíssem sobre ele. Ainda por cima tinha contactos com personalidades estrangeiras. O convite ao meteorologista escandinavo Tor Bergeron para apresentar palestras na URSS contribuiu para que caíssem sobre ele suspeitas de contactos com estrangeiros não só sobre meteorologia mas também sobre outros assuntos. Bergeron foi um dos criadores da teoria norueguesa sobre a evolução de depressões associadas a superfícies frontais que separam massas de ar polar de massas de ar tropical, teoria essa que adotou representações gráficas das frentes que ainda hoje são usadas nas cartas meteorológicas. Alexei foi preso pela polícia política em 1934 e condenado a dez anos num campo de trabalhos forçados. Mais tarde, em 1937, foi-lhe agravada a pena para fuzilamento. O Campo de trabalhos forçados situava-se no nas ilhas Solovetsky, no Mar Branco, próximo da Finlândia e do círculo polar ártico. Foi nestas ilhas que se instalou o primeiro campo, em 1923, do que veio a tornar-se na Direção Central dos Campos (Glavnoye Upravleniye Lagurey), cujo acrónimo GULAC se tornou célebre. Ironicamente, em dez de agosto de 1956, três anos após a morte de Estaline, o presidente do Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS, assinou um decreto através do qual foram canceladas a decisão do Colégio da OGPU (Direção Política Conjunta do Estado) tomada em 7 de março de 1934 (condenação a dez anos em campo de trabalhos forçados) e a decisão da troika especial do NKVD de Leninegrado de 9 de outubro de 1937 (condenação à morte por fuzilamento). É pena que o cancelamento dessas decisões não devolvesse a vida do meteorologista… A esposa de Alexei, Varvara Ivanovna, faleceu em 1977 sem saber onde nem quando e em que circunstâncias o seu marido fora assassinado. A versão oficial que lhe fora entregue em 1957 foi a de que o seu marido morrera em 17 de agosto de 1942, de uma peritonite. Olivier Rolin, seu biógrafo, decidiu investigar a sua história quando consultava documentos reunidos pela ONG Memorial, associação russa dos direitos humanos criada durante a Perestroika. A sua curiosidade foi despertada por uns desenhos enviados por um deportado para sua filha, Eleanora, tirando assim do anonimato uma das muitas vítimas inocentes dos tempos conturbados vividos na URSS durante a década dos anos trinta do século passado. Esse deportado, que oficialmente morrera de uma peritonite em 1942, mas que na realidade fora fuzilado em 1937, era Alexei Feodossievitch Vangengheim. Tânia dos Santos Sexanálise VozesTambém há censura no sexo [dropcap]A[/dropcap] censura dos órgãos genitais bem que podia ser um problema do passado. Um pé é sempre um pé. Mas os genitais podem ser outra coisa qualquer? Formas de calão como passarinha, rata ou pipi existem por alguma razão. Censuramo-nos e coramos ao som de palavras simples como vulva ou pénis. A censura não precisa de ser regulada pelo sistema. Os poderes de censura também são individuais. Gostamos de criar significados alternativos ao que nos é menos conveniente encarar, aquilo que julgamos prejudicial às nossas sociedades. O sexo à luz da tradição judaico-cristã é uma realidade dolorosa. Somos obrigados a reinventar o sexo com formas mais infantilizadas e simplistas para poder aceitá-lo. Tudo começa com o mito das abelhas, ou das cegonhas, ou de outro qualquer animal que parece estar envolvido na narrativa do sexo. A educação sexual mais progressiva é contra este fabular. Mascarar o sexo com a narrativa da abelha é evitar a naturalidade e a normalidade do prazer. Como se o sexo fosse um acto de violência que tenha que ser apagado para evitar a revolução das massas. Uma vulva é uma vulva, um pénis é um pénis e devemos usar essa linguagem desde cedo – são só os nomes cientificamente correctos. Há uma objectividade associada à simplicidade da nossa fisionomia. As múltiplas camadas de significado só ofuscam práticas de auto-consciência corporal e de sexualidade informada. A censura previne isso mesmo: conhecimento. Claro que estamos cheios de narrativas, e até a simplicidade da nossa fisionomia vem de uma narrativa. Mas a narrativa não é ameaçadora, é só informativa. A forma como encaramos e entendemos factos não produzem consequências óbvias. Não falar abertamente sobre sexo não faz com que as pessoas não o tenham. O sexo vai continuar existir, mas menos informado. Este é o medo infundado que, por exemplo, justifica a resistência de alguns pais em aceitar educação sexual nas escolas. A censura funciona como um obstáculo a conversas honestas – somente – contribuindo para o triunfo do medo. Claro que o corpo feminino é mais passível à censura, porque o entendem como explicitamente sexual. Ao ponto de se sugerir censurar os mamilos femininos com mamilos masculinos. A segurança assexual de mamilos masculinos certamente consegue esconder a sensualidade dos femininos. Aliás, um rapaz chinês com um problema endócrino raro viu crescer-lhe uma mama. A foto que foi publicada desta situação peculiar censura o mamilo esquerdo (o que agora tem um aspecto mais feminino), mas deixa o masculino. Os paradoxos do sexo e do género levam a isto. Estas são representações que devemos (temos que) transformar. Não serve a ninguém continuarmos a censurar a linguagem de vulvas e de pénis, muito menos das imagens dos mamilos femininos (ou até pêlos púbicos, outro clássico) quando as consequências apontam para uma narrativa deficiente do sexo. As situações mais flagrantes mostram mulheres adultas que não sabem onde ficam a entrada da vagina, da uretra ou o clitóris porque não se fala sobre elas. Não sabermos do nosso corpo é tramado. Não entendermos as histórias que levaram a padrões duplos também não nos capacita para os destruir. Como se ficássemos para sempre cegos com uma perspectiva da história que afinal podia ser múltipla. Como a história de nações que, perante factos, são capazes de escondê-los como um gato escondido de rabo de fora, julgando a censura inevitável, como se fosse a obra da nossa natureza instintiva de protecção. Mas é só uma estratégia – uma escolha. Hoje Macau VozesMedidas restritivas comerciais dos EUA prejudicam interesses do mundo inteiro Gong Xin * [dropcap]N[/dropcap]o mundo globalizado de hoje, as economias chinesa e americana são altamente integradas e estão vinculadas a uma união que é mutuamente benéfica e de ganha-ganha por natureza. No entanto, desde Março de 2018, a administração actual dos EUA adoptou uma série de medidas unilaterais e proteccionistas no comércio com a China. Essas medidas restritivas comerciais não são boas para China nem para os EUA, e são ainda piores para o restante do mundo. As medidas tarifárias norte-americanas levaram a um contínuo declínio no volume de exportação da China para os EUA em 2019. Como a China tem de impor tarifas como contramedida aos aumentos tarifários dos EUA, as exportações norte-americanas para a China também caíram, já por oito meses consecutivos. A incerteza trazida pela fricção económica e comercial EUA-China tornou as empresas de ambos os países mais hesitantes em investir. Além disso, as medidas tarifárias não impulsionaram o crescimento económico americano. Em vez disso, aumentaram significativamente os custos de produção das empresas norte-americanas e preços domésticos, exercendo um impacto negativo sobre o crescimento económico e a vida do povo dos EUA. De acordo com um relatório de pesquisa, se os EUA sobretaxarem todas as exportações chinesas por 25%, o PIB dos EUA diminuirá 1,01%, reduzindo cumulativamente US$ 1 bilião nos próximos dez anos. As medidas tarifárias também prejudicaram severamente as exportações dos EUA para a China. Em 2018, quando o atrito económico e comercial piorava, as exportações de 34 estados norte-americanos para a China sofreram um queda, sendo os estados das regiões agrícolas do centro-oeste os mais afectados. As medidas proteccionistas adoptadas pelos EUA constituem uma violação grave às mais fundamentais e centrais regras da Organização Mundial do Comércio, incluindo o tratamento de nação mais favorecida e obrigações tarifárias, e expuseram o sistema de comércio multilateral e a ordem de comércio internacional ao perigo. As acções norte-americanas interrompem as cadeias industriais e de fornecimento globais, perturbam a confiança do mercado, reduzem a recuperação económica mundial e prejudicam o desenvolvimento das empresas e o bem-estar das pessoas em todos os países. A OMC cortou a sua previsão para o crescimento comercial global neste ano de 3,7% para 2,6%, enquanto o Fundo Monetário Internacional reduziu a sua estimativa para 3,3%, dizendo que a fricção económica e comercial poderia deprimir ainda mais o crescimento económico global. *Comentador político Sérgio de Almeida Correia VozesE se fizessem o reset* do sistema? [dropcap]M[/dropcap]aio foi-nos trazido sob a influência de Urano, agente do despertar cósmico, das mudanças rápidas, por vezes violentas, propiciador de relâmpagos e tempestades, capaz de libertar sem aviso prévio ideias e frases de grande impacto. Ao que me dizem, a aproximação de Vénus a Saturno trar-nos-á alguma contenção e equilíbrio a partir do último dia do mês, assim se antecipando dias estivais mais calmos. Para quem já esqueceu, o mês que findou foi politicamente vibrante e isso reflectiu-se na visita do Presidente da República, nas romarias a Pequim e Lisboa dos responsáveis políticos, na exaltação das virtudes patrióticas e num sem número de declarações que deveriam merecer reflexão. E, quem sabe, diria mesmo um acto de contrição como aquele que agora aconteceu com o multimilionário Joseph Lau. Condenado pelos tribunais da RAEM por corrupção activa e branqueamento de capitais em pena a que até hoje escapou, depois de ter anunciado a sua oposição à proposta de lei que permitiria ao Governo de Hong Kong facilitar a entrega de infractores em fuga, como ele, às entidades do interior da China, de Macau e de Taiwan, veio de repente dizer que desistiu de se opor à nova lei. Diz que não vai contestá-la, que está muito triste com a desarmonia gerada e que apoia a governação de acordo com a lei por parte do Governo de Hong Kong. E antes? Desconheço se o sujeito entrou nalgum trade-off, nem com quem, mas tanto amor à lei, à Pátria e a Hong Kong, tanto empenho na harmonia deveria terminar com a sua entrega às autoridades da RAEM para cumprir a pena em que foi condenado. Então não seria bonito de um momento para o outro ver toda a bandidagem do colarinho branco (alguma já com os colarinhos encardidos de tanto esquema), de cá e de lá, a entregar-se às autoridades? Isso é que seria amor à Pátria e ao princípio “um país, dois sistemas”. A sério. Certamente que os seus advogados lhe dirão isto. Mas quanto às declarações locais, a primeira pérola veio de Ho Iat Seng, candidato a Chefe do Executivo. E que disse ele? Então não é que antecipando–se à piedosa confissão de Joseph Lau veio dizer que com ele os direitos da comunidade portuguesa irão ser respeitados, que valoriza o seu papel e que serão todos tratados da mesma forma? Quando o ouvi no canal radiofónico da TDM pensei que se tinham enganado a ler as notas. Depois, ao ler no jornal, fiquei com curiosidade de saber em que circunstâncias tais declarações foram produzidas. Se à saída de um karaoke ou se depois de uma noite de insónia. Pelo que se viu com a dispensa dos ex-assessores portugueses da AL, dando-lhes cabo das carreiras profissionais e das vidas familiares, atirando-os para o desemprego, já estaria a ensaiar o seu modelo de protecção à comunidade portuguesa. Sim, porque portugueses não quer dizer comunidade portuguesa. A comunidade é óptima, claro. Os portugueses individualmente é que não, salvo quando se comportam como uns caniches amestrados, adulando quem lhes paga e temperando os pareceres que dão para lhes renovarem os contratos. Mal refeito desta tirada do candidato a Chefe do Executivo, ouvi o Senhor Secretário para a Segurança exaltar as virtudes do jornalismo obediente, mansinho e ao serviço do poder político e das suas causas. Genial. Foi pena que, aproveitando-se a deslocação a Macau de Rocha Vieira, de Fernando Lima e de Martins da Cruz, não tivessem reunido esforços para darem um curso de jornalismo sadio, patriota, aos profissionais locais. Carecidos como eles estão, com o apoio da Fundação Macau e do Instituto Internacional do Dr. Rangel, teria sido um sucesso. Pode ser que o José Carlos Matias se lembre disso numa próxima ocasião, mas não vai ser fácil voltar a reunir na RAEM tantas sumidades versadas em matéria de escutas, rumores e controlo da comunicação social. Esse curso de jornalismo amestrado teria sido particularmente importante numa altura em que a situação da segurança começa a fazer lembrar os piores tempos da administração portuguesa. Esfaqueamentos, cenas de pugilato no Cotai, roubo de milhões de dentro de um casino, aumento da criminalidade violenta, sequestros, gatunagem em fuga e dependente do auxílio das autoridades do outro lado para ser apanhada…; enfim, tanta câmara, tanta polícia, tanta escuta e só há resultados na cobrança de multas de estacionamento e no excesso de velocidade? É claro, por falar em multas, que nada disso tem o peso das declarações do Secretário para os Transportes e Obras Públicas. Por vezes tenho a impressão de que ele perde a paciência com os deputados. Como o compreendo. E o caso não é para menos. Não bastavam as obras do metro ligeiro, as inundações, aos aluimentos de terras, o hospital, os autocarros, os táxis, a qualidade do ar, os plásticos, o terminal marítimo da Taipa, a água que jorra da ETAR de Macau, a China Road and Bridge Corporation zangada e em tribunal por causa de meia dúzia de patacas, os “talentos” espalhados pelos passeios e em risco de serem pisados a qualquer momento pelo deputado Mak Soi Kun, e ainda se vão queixar do estacionamento? Mas onde é que esta gente vive? Qualidade de vida? Andem a pé. Então não gostam de ir todos os anos na marcha do Jornal Ou Mun? Agora podem treinar durante todo o ano, emagrecer saudavelmente. A influência de Urano ainda se fez sentir nas declarações da Secretária para a Administração e Justiça. A Dra. Sónia Chan reconheceu candidamente acreditar que “depois de haver uma sentença que essa vai ser traduzida para a outra língua”. Pois é, se recebesse sentenças saberia que não devia acreditar na imaginação, porque na prática não é verdade. Ainda há dias uma simpática senhora juíza, depois de ter notificado verbalmente em chinês, com tradução simultânea em português ao ouvido do advogado, mais de uma dezena de páginas, dispensou a tradução ao arguido em língua portuguesa, entre outras razões, imagine-se, por falta de meios! Falta de meios? Em Macau? Com o PIB que temos? Ainda se fosse no Canadá ou na Suíça, que não têm casinos decentes, eu poderia entender. Ora, a Senhora Secretária devia começar por dar meios aos tribunais. Para o que bilinguismo melhore e as decisões judiciais possam ser notificadas aos interessados com cópia em papel na língua que os destinatários, advogados ou partes, dominam. Para que se cumpra a Declaração Conjunta Luso-Chinesa e a Lei Básica. Imagine o que seria se os despachos do Chefe do Executivo lhe fossem entregues em servo-croata? É mais ou menos o mesmo. Pareceu-me ver aí alguma condescendência e boa vontade quando afirmou “eu até posso dialogar com os tribunais e alterar a lei actual”. E de que está à espera? Parece-me um bom princípio e só lhe ficaria bem, tanto mais que é a própria que também diz que isso “não é difícil”. O problema está quando, logo a seguir, a Dra. Sónia Chan pergunta: “mas na verdade, e na prática, se fizermos a alteração, o que vai acontecer depois?” (HojeMacau, 28/05/2019, p.7). Ó Senhora Dra., então isso pergunta-se? E o deputado Pereira Coutinho iria responder-lhe? Eu não quero deixá-la na dúvida e posso garantir-lhe que se isso for feito vamos todos, cidadãos residentes e não-residentes, advogados, magistrados, entendermo-nos muito melhor. Vamos ser todos muito felizes. Ainda mais, quero dizer. E logo na Grande Baía, Senhora Dra.! Já viu o benefício que seria? Já nos imaginou a recebermos despachos judiciais, sentenças, acórdãos numa língua que entendemos? E se isso fosse alargado às notificações do Turismo e dos Assuntos Laborais, e a todos os serviços da Administração Pública? Já pensou nisso? A quantidade de ramos de rosas que a AAM e os meus colegas, até os avarentos e que andam sempre à procura de subsídios, não iriam enviar para o seu gabinete. E então se as sentenças viessem por correio electrónico traduzidas nem lhe conto. Alguns até iriam dançar para a Praia Grande, lançar foguetes, sei lá, dar vivas ao futuro querido líder. Hoje vou deixar descansar o Dr. Alexis Tam e o Dr. Lionel Leong. Um porque ainda está a gozar os louros do seu Honoris Causa e a recuperar do jet-lag. O outro porque ainda está a reflectir sobre as razões para não o deixarem ser candidato a Chefe do Executivo. Não convém perturbá-los, ainda têm muito para fazer. Em todo o caso, gostaria de deixar uma palavra de solidariedade e muita compreensão ao Senhor Procurador, Dr. Ip Son Sang. É certo que me parece ver ali um remar contra a maré quando se alerta para a necessidade de contratação de magistrados portugueses “qualificados e experientes” para trabalharem em Macau. Sei que contratar portugueses já será difícil, qualificados e experientes ainda mais. Concordo, aprecio o esforço e também o trabalho que tem desempenhado no sentido da melhoria dos recursos e em matéria de tradução. Espero que o escutem e que lhe dêem razões para sorrir. Porém, onde senti que era mais importante deixar uma palavra de apoio ao MP e à sua hierarquia foi na parte do relatório 2018 em que o estimado Dr. Ip se queixou das dificuldades criadas pelo seu senhorio à acção da instituição que dirige. Homessa? Então não é que o MP enfrentou “de novo” uma acção de despejo, em 2018, “mais uma vez a ‘desocupação forçada’ exigida pelo proprietário para recuperar a unidade”? E que “o caso acabou por ser resolvido com um acordo que previa o aumento do valor de renda”, o que motivou “a incerteza do decurso da negociação, sendo causa de “enorme distúrbio e preocupação ao funcionamento e gestão dos lugares de trabalho do MP” (HojeMacau, 29/05/2019, p.9)? Como é possível isso acontecer? E com um inquilino que tem um batalhão de magistrados e funcionários, conhece a lei, tem-na do seu lado e paga as rendas atempadamente? Senhorio glutão. Imaginem então como será com o desgraçado do inquilino do estúdio, sem força negocial, que está nas mãos dos tubarões das agências de mediação e dos senhorios de Hong Kong e do Interior. Espero que o deputado Chan Chak Mo, presidente da 2.ª Comissão da Assembleia Legislativa, tenha lido com atenção o relatório do MP, em especial nesta parte, esclarecendo depois a opinião pública se o MP também cai na categoria dos “arrendatários trapaceiros”. Não dava jeito nenhum. Sugiro, pois, que se comece a preparar o reset do sistema de governança. Com a época de tufões à porta, e a silly season a entrar com esta força, tantos foram os bugs de Maio que começa a ser difícil distinguir a intromissão dos piratas (hackers) no sistema da acção dos especialistas encartados. * reset: o mesmo que reconfigurar, redefinir, reiniciar Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO fim da vida “I will respect the privacy of my patients, for their problems are not disclosed to me that the world may know. Most especially must I tread with care in matters of life and death. If it is given me to save a life, all thanks. But it may also be within my power to take a life; this awesome responsibility must be faced with great humbleness and awareness of my own frailty. Above all, I must not play at God.” Hippocratic Oath-Modern Version [dropcap]A[/dropcap] população mundial está a envelhecer e a capacidade de manter as pessoas desesperadamente doentes é cada vez maior. É um dever ajudar as pessoas que querem pôr termo à vida? Em caso afirmativo, deveriam ser apenas os pacientes terminais ou incluir aqueles que sofrem de doenças psiquiátricas, como no mediático caso de Aurelia Brouwers, a holandesa de vinte e nove anos que se encontrava tão infeliz que descreveu o seu sofrimento mental como “insuportável” e bebeu veneno fornecido por um médico, e se deitou para morrer, em 26 de Janeiro de 2018. A eutanásia e o suicídio assistido por médico são legais na Holanda, e daí que a sua morte foi sancionada pelo Estado. A paciente não era uma doente em fase terminal, mas foi autorizada a acabar com a vida devido à sua doença psiquiátrica, bebendo legalmente veneno letal. O Parlamento holandês considerou que se devia criar uma lei que permitisse aos médicos ajudar os pacientes a morrer em determinadas circunstâncias. A sua história é exclusivamente holandesa. A eutanásia é contrária à lei na maioria dos países, mas na Holanda é permitida, se um médico concordar, o sofrimento de um paciente for insuportável sem perspectiva de recuperação e se não houver alternativa razoável para a sua situação. Tais critérios podem ser mais simples de aplicar no caso de alguém com um diagnóstico terminal de cancro intratável e que sente muitas dores. A grande maioria das cerca de seis mil e seiscentas mortes por eutanásia na Holanda em 2017 são referentes a casos de pessoas com uma doença física, mas oitenta e três foram ajudadas a morrer por motivos de alto sofrimento psiquiátrico e cujas condições não eram necessariamente terminais. Os médicos de Aurelia não apoiaram os seus pedidos de eutanásia o que a levou a inscrever-se numa “Clínica de Fim de Vida”, em Haia que é o local de último recurso para aqueles cujas candidaturas foram rejeitadas pelo seu psiquiatra ou médico de família. A clínica supervisionou sessenta e cinco das oitenta e três mortes aprovadas na Holanda por motivos psiquiátricos, embora apenas cerca de 10 por cento dos pedidos psiquiátricos são aprovados, e o processo pode levar anos. A “Clínica de Fim de Vida”, só oferece eutanásia ou suicídio assistido a pessoas cujo pedido de morte assistida foi negado pela primeira vez pelo seu médico. A clínica não é um hospital ou um hospício, mas uma fundação com equipas de médicos e enfermeiros que trabalham separadamente e visitam os pacientes em casa. A clínica primeiro analisa o pedido, para determinar se cumpre os estritos critérios da lei holandesa de eutanásia e em caso afirmativo, uma das equipas conversa com o paciente por diversas vezes para investigar por completo o pedido. O historial clínico é pesquisado e os médicos envolvidos na situação são consultados. Se todos os critérios forem observados, o paciente pode morrer em casa, na presença de familiares e amigos. A cínica foi fundada em 2012, com base na lei da eutanásia e o direito holandês de morrer na sociedade. Ainda que qualquer paciente possa pedir à clínica a morte assistida, tem como objectivo principal os pacientes cujos pedidos de morte assistida são mais complexos e muitas vezes negados pelos seus médicos, ou seja, pacientes psiquiátricos, pessoas com demência ou que sofrem com doenças não fatais. A lei holandesa da eutanásia determina que apenas os pacientes que têm um sofrimento insuportável, sem perspectiva de melhoria, podem ser elegíveis para a eutanásia. A lei não contempla a distinção entre sofrimento físico ou psicológico. Os pacientes devem ser persistentes na decisão de solicitar a morte assistida e devem entender as consequências do seu pedido. O médico deve estar convencido de que não existe outra solução razoável para pôr termo ao sofrimento. Mas a lucidez significa que alguém tem a capacidade mental de escolher a morte em detrimento da vida? De acordo com a lei holandesa, um médico deve encontrar-se seguro do pedido de eutanásia do paciente, “voluntário e bem examinado”. Será que um doente psiquiátrico é idóneo para tomar a decisão? O desejo de morte poderá ser um sintoma da sua doença psiquiátrica? O facto de que se pode racionalizar sobre essa situação não significa que não seja um sinal da doença. Os psiquiatras devem tudo fazer para ajudar os pacientes a diminuir os sintomas da sua patologia e em transtornos de personalidade, um desejo de morte não é incomum. Se isso é consistente, e tiveram os seus tratamentos de transtorno de personalidade, significa que o desejo de morte é o mesmo que em um paciente com cancro que diz que não quer ir até à fase terminal? Os psiquiatras nunca devem conspirar com os pacientes que alegam que querem morrer, pois é possível não ser contaminado pela falta de esperança. Os pacientes perdem a esperança, mas os médicos podem ficar do seu lado e dar-lhes esperança. A morte da holandesa tem provocado um enorme debate a nível mundial e particularmente nos Países Baixos, pois ninguém sugeriu que era ilegal, embora os críticos tenham inquirido se era o tipo de caso para o qual a legislação permitia a eutanásia. As opiniões dividem-se sobre se havia uma alternativa aceitável, sendo que alguns argumentam de quando as pessoas solicitam a eutanásia por motivos psiquiátricos, em alguns casos suicidam-se, se não a recebem e que devem ser consideradas com doenças terminais. Alguns médicos afirmam que sabiam que os pacientes iriam cometer suicídio e não os podiam ajudar, pelo que a eutanásia como alternativa os deixava mais tranquilos por que existe uma lei que a permite e os que cometerão suicídio são terminais e não os querem abandonar pelo facto de não poderem continuar a viver nessa situação. Há outros médicos que discordam, pois sempre trabalharam com pacientes suicidas e nenhum foi terminal, que tiveram pacientes que cometeram suicídio, mas na verdade não eram casos para prever tal desfecho. O desconforto em torno da eutanásia para pacientes psiquiátricos tem a ver com a preocupação de que todas as opções podem não ter sido exploradas. Na clínica holandesa mais de metade daqueles que vão à procura da eutanásia por motivos psiquiátricos são rejeitados porque não tentaram todos os tratamentos disponíveis. A eutanásia e o suicídio assistido por médico referem-se a acções deliberadas tomadas com a intenção de terminar uma vida, a fim de aliviar o sofrimento persistente. Na maioria dos países, a eutanásia é contrária à lei e pode ser decretada uma sentença de prisão, sendo que nos Estados Unidos a lei varia entre os Estados. As definições de eutanásia e suicídio assistido variam. A distinção útil é de que a eutanásia é a acção que permite a um médico, por lei, acabar com a vida de uma pessoa por meios indolores, desde que o paciente e a sua família concordem, enquanto o suicídio assistido é a acção pela qual um médico ajuda um paciente a cometer suicídio se solicitar. A eutanásia também pode ser classificada como voluntária ou involuntária. É voluntária quando é conduzida com consentimento. A eutanásia voluntária é actualmente legal na Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Suíça e nos Estados de Oregon e Washington nos Estados Unidos. É não voluntário quando é conduzida em uma pessoa que é incapaz de consentir devido às suas condições de saúde e neste cenário, a decisão é tomada por outra pessoa, em nome do paciente, com base na sua qualidade de vida e sofrimento. É involuntária quando é realizada em uma pessoa que seria capaz de dar consentimento mas não porque deseje a morte ou porque não a solicitou, e é considerado como homicídio, pois muitas das vezes é contra a vontade dos pacientes. A eutanásia tem sido um tema controverso e emotivo. Existem duas classificações processuais de eutanásia, a passiva quando os tratamentos que sustentam a vida são retidos. As definições não são precisas. Se um médico prescreve doses crescentes de medicamentos analgésicos fortes, como opióides, pode eventualmente ser tóxico para o paciente e alguns argumentam que se trata de eutanásia passiva e outros, no entanto, dizem que não é eutanásia, porque não há intenção de tirar a vida. A eutanásia activa é quando alguém usa substâncias ou forças letais para acabar com a vida de um paciente, seja pelo próprio ou por outra pessoa. A eutanásia activa é a mais controversa, e envolve argumentos religiosos, morais, éticos e compassivos. O suicídio assistido tem várias interpretações e definições diferentes sendo um o que é de forma intencional ajudando uma pessoa a cometer suicídio, fornecendo medicamentos para auto-administração, a pedido voluntário e idóneo da pessoa. Algumas definições incluem as palavras “para aliviar o sofrimento intratável (persistente, imparável) ”. A maioria dos hospitais têm unidades de cuidados paliativos e qual o seu papel? A dor é o sinal mais visível de angústia pelo sofrimento persistente, e as pessoas com cancro e outras situações crónicas que ameaçam a vida muitas vezes recebem cuidados paliativos. Os opióides são comummente usados para controlar a dor e outros sintomas. Os efeitos adversos dos opióides incluem sonolência, náusea, vómito e constipação, podendo criar dependência e uma “overdose” pode ser fatal. É de considerar que em muitos países, incluindo os Estados Unidos, um paciente pode recusar o tratamento recomendado por um profissional de saúde, desde que tenha sido devidamente informado e se encontre com capacidade para decidir. O “Juramento de Hipócrates” é um argumento contra a eutanásia ou suicídio assistido por médico que remonta a cerca de dois mil e quinhentos anos. O juramento original incluía, as seguintes palavras: “Eu não darei uma droga mortal a quem pediu, nem farei uma sugestão nesse sentido.” O mundo mudou desde a época de Hipócrates, e muitos acham que o juramento original está desactualizado. A versão actualizada é usada em alguns países, enquanto em outros, por exemplo, no Paquistão, os médicos ainda aderem ao original. À medida que mais tratamentos se tornam disponíveis, a possibilidade de prolongar a vida, seja qual for a sua qualidade, é uma questão cada vez mais complexa. A eutanásia tem sido um tema de debate desde o início do século XIX. A primeira lei anti-eutanásia nos Estados Unidos foi aprovada no Estado de Nova Iorque, em 1828 e com o tempo, outros Estados seguiram o exemplo. O oncologista e bioeticista americano Ezekiel Jonathan Emanuel, no século passado, afirmou que a era moderna da eutanásia foi introduzida pela disponibilidade de anestesia. Em 1938, uma sociedade de eutanásia foi estabelecida nos Estados Unidos para pressionar pela legalização do suicídio assistido. O suicídio assistido por médicos tornou-se legal na Suíça em 1937, desde que o médico que termine com a vida do paciente nada tenha a lucrar. Durante a década de 1960, a defesa da abordagem do direito à morte por eutanásia cresceu. A Holanda descriminalizou o suicídio assistido por médico, reduzindo algumas restrições em 2002 e no mesmo ano o suicídio assistido por médico foi aprovado na Bélgica. É de atender que nos Estados Unidos, os comités formais de ética existem em hospitais, casas de repouso e clínicas, e as directrizes de saúde antecipadas, ou testamentos em vida, são comuns em todo o mundo. Estes tornaram-se legais na Califórnia em 1977, com outros Estados a seguir o exemplo. No testamento vital, a pessoa declara os seus desejos por cuidados médicos, caso se tornem incapazes de tomar a sua própria decisão. Em 1990, o Supremo Tribunal Federal aprovou o uso de eutanásia não activa. Em 1994, os eleitores do Oregon aprovaram a “Lei da Morte com Dignidade”, permitindo que os médicos auxiliassem os pacientes terminais que não esperavam ter mais de seis meses de vida. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos adoptou essas leis em 1997 e o Texas tornou a eutanásia não-activa legal em 1999. O célebre caso de Theresa Schiavo galvanizou a opinião pública na Florida, dado ter sofrido uma paragem cardíaca em 1990, passando quinze anos em estado vegetativo antes que o pedido do seu marido para permitir que terminasse com a vida fosse concedido. O caso envolveu várias decisões, apelações, moções, petições e audiências judiciais durante vários anos, antes da decisão de desligar o suporte vital ocorresse em 18 de Março de 2005. A Legislatura da Florida, o Congresso dos Estados Unidos e o presidente Bush desempenharam um importante papel e em 2008, 58 por cento dos eleitores do Estado de Washington escolheram a “Lei da Morte com Dignidade”, que se tornou lei em 2009. Vários argumentos são comummente citados a favor e contra a eutanásia e o suicídio assistido por médicos. Os argumentos a favor têm como base a liberdade de escolha, em que os defensores argumentam que o paciente deve ser capaz de fazer a sua própria escolha; a qualidade de vida, pois só o paciente sabe realmente como se sente e como é a dor física e emocional da doença e como a morte prolongada afecta a sua qualidade de vida; a dignidade, dado que todo o indivíduo deve poder morrer com dignidade; as testemunhas, pois os que testemunham a morte lenta de outros acreditam que a morte assistida deve ser permitida; os recursos, dado fazer mais sentido canalizar os recursos de pessoal altamente qualificado, equipamentos, leitos hospitalares e medicamentos para tratamentos que salvam vidas e para os que desejam viver, ao invés dos que não desejam; o humano, permitindo que uma pessoa com sofrimento intratável possa escolher acabar com esse padecimento, pois pode ajudar a encurtar o sofrimento dos entes queridos. Tais actos são praticados quando um animal de estimação tem sofrimento intratável, e é visto como um acto de bondade. Porque essa nobreza deve ser negada aos humanos? Os argumentos contra têm por base o papel do médico, pois os profissionais de saúde podem não estar dispostos a comprometerem a sua profissão, especialmente à luz do “Juramento de Hipócrates”; os argumentos morais e religiosos, pois várias religiões vêem a eutanásia como uma forma de homicídio e moralmente inaceitável. O suicídio também é “ilegal” em algumas religiões e moralmente, há o argumento de que a eutanásia enfraquecerá o respeito da sociedade pela santidade da vida; a capacidade do paciente, pois a eutanásia só é voluntária se o paciente for mentalmente capaz, com uma compreensão lúcida das opções e consequências disponíveis e a capacidade de expressar esse entendimento e o seu desejo de terminar com a sua própria vida. Determinar ou definir tal capacidade não é simples É ainda de considerar argumentos contra a culpa, pois os pacientes podem sentir que são um fardo para a sociedade e são psicologicamente pressionados a consentir. Os pacientes podem sentir que o fardo financeiro, emocional e mental para a sua família é demasiado grande e mesmo que os custos do tratamento sejam fornecidos pelo Estado, existe o risco de que o pessoal do hospital possa ter um incentivo económico para encorajar o consentimento à eutanásia; a doença mental, pois uma pessoa com depressão é mais propensa a pedir o suicídio assistido, o que pode complicar a decisão; a escalada escorregadia, pois existe o risco de que o suicídio assistido por um médico comece com os pacientes que estão em estado terminal e desejem morrer por causa do sofrimento intratável, mas depois comecem a incluir outros indivíduos e situações. É de considerar por último como argumentos contra a possível recuperação, pois ocasionalmente, um paciente recupera, contra todas as probabilidades. O diagnóstico pode estar errado; os cuidados paliativos, dado que os bons cuidados paliativos tornam a eutanásia desnecessária; o regulamento, pois a eutanásia não pode ser adequadamente regulada e as estatísticas, dado que as opiniões parecem estar a aumentar a favor da eutanásia e do suicídio assistido. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Harvard publicaram resultados de uma pesquisa na qual inquiriram pessoas de setenta e quatro países acerca do suicídio assistido por médicos, tendo 65 por cento dos entrevistados discordado e onze dos países inquiridos foram a favor. Os mil e oitocentos entrevistados nos Estados Unidos representavam quarenta e nove Estados, tendo 67 por cento votado contra, sendo que em dezoito Estados, a maioria era a favor do suicídio assistido por médico. A pesquisa realizada pela “Gallup” em 2017, revelou que 73 por cento dos inquiridos eram a favor da eutanásia e 67 por cento eram a favor do suicídio assistido por médico nos Estados Unidos. A entrevista descobriu que 55 por cento dos que frequentavam uma igreja semanalmente eram a favor de que um médico pusesse fim à vida de um paciente que está com doença terminal, em comparação com 87 por cento dos que não frequentavam regularmente a igreja. A pesquisa descobriu ainda que se trata de uma questão política também, pois nove entre dez liberais são a favor, em comparação com 79 por cento dos moderados e 60 por cento dos conservadores. Os países onde a eutanásia ou o suicídio assistido são legais, são responsáveis por um total de entre 0,3 e 4,6 por cento das mortes, mais de 70 por cento das quais relacionadas com o cancro. João Romão VozesEuropa mais verde [dropcap]A[/dropcap] agenda ecológica vai fazendo o seu lento mas aparentemente imparável caminho na discussão política: a cada vez mais visível emergência dos problemas ambientais e a eminência de uma catástrofe global sensibilizam um número evidentemente crescente de pessoas e mobilizam-nas para ações políticas diversas: com muito pouco tempo de diferença, tivemos adolescentes nas ruas de todo o mundo numa sem precedentes reivindicação do seu direito ao futuro e assistimos à duplicação da representatividade dos partidos ecologistas no Parlamento Europeu. Em vários países da Europa, os países ecologistas foram o segundo mais votado. Portugal também contribuiu para este crescimento com a estreia de um deputado eleito pelo PAN – contrariando, de resto, a generalidade das projeções publicadas na imprensa – mas foi da Alemanha (mais 8), França (mais 6) e Reino Unido (mais 5 deputados) que chegaram os maiores contributos. Já em relação à participação eleitoral, foi modesto o contributo nacional e a abstenção manteve-se muito próxima dos níveis habituais neste tipo de sufrágio, ao contrário do que aconteceu na generalidade do território europeu – na realidade um sinal de que as questões transnacionais da governação da União Europeia se vão tornando mais interessantes e mobilizadoras para a população do continente. Talvez essa preocupação chegue também a Portugal, um destes dias. Por enquanto pareceu percorrer grande parte do continente e contribuir – aparentemente de forma decisiva, como no caso da Holanda – para neutralizar a emergência da extrema-direita xenófoba em vários países. O aumento da participação foi acompanhado por um manifesto aumento da diversidade. A tendência que se vem assinalando em quase todos os países para a perda de hegemonia dos alegados “blocos centrais” – essa mesa onde animadamente repastam as chamadas esquerda e direita “moderadas” – atingiu um patamar sem precedentes no Parlamento Europeu: pela primeira vez desde que se realiza este tipo de eleição, as duas grandes “famílias” políticas não têm, em conjunto, mais de 50% de deputados. “Geringonças” governativas cada vez mais complexas há hoje muitas, por esse mundo fora. Também no Parlamento Europeu novas e criativas aritméticas serão certamente convocadas para definir maiorias num contexto de relativa pulverização do eleitorado e diversificação programática dos seus excelsos representantes. Nesta diversificação não coube o primeiro movimento que reivindica um original caráter europeu, liderado pelo conhecido ex-ministro das finanças da Grécia, no triste período histórico em que o país tentou enfrentar – sem sucesso – as regras da austeridade definidas pelas instituições europeias e pelo FMI. Apesar do mediatismo de algumas intervenções, nenhuma das candidaturas nacionais associadas a esse movimento transeuropeu – o Diem25 – conseguiu eleger representantes. Aliás, também a “esquerda da esquerda” sofreu significativa derrota e perda de representatividade à escala europeia, ainda que o número de representantes portugueses se tenha mantido, com uma significativa troca de posições entre os dois partidos (BE e CDU) aí representados. Pelo contrário, além dos ecologistas, também os liberais (onde se inclui o partido do Presidente francês, mas também uma forte representação – provavelmente temporária – do Reino Unido) conseguiram um crescimento significativo, juntando-se aos mais tradicionais grupos da social democracia, da democracia cristã e dos conservadores enquanto forças hegemónicas no Parlamento Europeu. Uma hegemonia mais partilhada e complexa, em todo o caso. Ao contrário do que foi anunciando na imprensa da especialidade nas semanas anteriores à eleição, nem os movimentos mais assumidamente xenófobos (ou fascistas, numa designação também muito utilizada – até pelos próprios – e eventualmente mais precisa), nem os partidos mais abertamente anti-EU assumiram posições determinantes nos luxuosos hemiciclos de Bruxelas e Estrasburgo. Essa extrema direita liderada pelo movimentos anti-imigração da Itália, França e Alemanha não foi acompanhada por uma significativa emergência de movimentos semelhantes noutros sítios – na realidade, em países como a Holanda, até desapareceram do espectro. Tal como noutros momentos históricos, a emergência da extrema-direita só parece ser possível em momentos de crise económica profunda, o que não parece ser (já? ainda?) o caso. De maneira semelhante, também os movimentos claramente anti-EU acabaram por conseguir limitada representação parlamentar – e que se tornará ainda mais pequena se e quando se concretizar o Brexit e saírem do Parlamento os deputados eleitos pelo Reino Unido. Dessa saída resultarão uma nova reconfiguração de forças e novas geografias e aritméticas parlamentares. São tempos interessantes mas com respostas lentas às urgências fundamentais. Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente (continuação) [dropcap]E[/dropcap]m Portugal, a referência a pessoas de determinada localidade expressa-se, pelo adjectivo derivado do nome da mesma localidade. Por exemplo: lisboeta é o natural de Lisboa, ou gente de Lisboa. Na China, a forma para designar a naturalidade é semelhante. Por exemplo: Beijing ren, Xangai ren (gente de Pequim, gente de Xangai). No caso de Macau, único em todo o território da China, Ao Men ren (gente de Macau, em mandarim) Ou Mun yan (em cantonense) é uma designação que não inclui toda a população de Macau. Na minuciosa especificação que os chineses fazem da população de Macau, Ao Men ren ou Ou Mun yan não significa toda a população de Macau. Significa, apenas, a população chinesa de Macau. Os macaenses são designados, pelos chineses de Macau, por “t’ou-san” (filhos e filhas da terra, habitantes locais). A população chinesa de Macau distingue os portugueses em: macaenses e reinóis, ou metropolitanos. Aos euro-asiáticos ou macaenses chamam “t’ou-san”, como já se disse. Aos “portugueses de Portugal” chamam “Kuai-lôu” (gíria: diabo, ele ou ela). E especificam ainda o género: “ngau-sôk” (lit.: tio boi) e “ngaû-pó”(lit.: mulher vaca). Por seu lado, os macaenses distinguem-se dos chineses. Tradicionalmente autodenominavam-se “macaístas” ou “maquistas” e designavam os chineses por “chinas”. Os chineses de Macau que recebiam o baptismo e adquiriam um nome cristão/português eram conhecidos por “chong cao” (convertido ao cristianismo, novo cristão). O peso social dos macaenses em Macau outorgou-lhes a distinção social “t’ou-san” que, ao mesmo tempo, impede “Ao Men Ren” ou “Ou Mun yan” de significar “todos os naturais de Macau”, como acontece em todas as localidades do Continente. Isto significa que, do ponto de vista dos chineses de Macau, a sua terra é uma singularíssima excepção na China. É deles. Mas é, também, dos macaenses. O fenómeno da miscegenação não é vulgar no interior da China. Quando existe alguém, meio chinês e meio estrangeiro, a designação é “Hun Xue Er”, literalmente: misturado; mestiço. 8. A Mulher na Família Macaense “1600 – Macau conta na sua população com 600 famílias indo-portuguesas” (B.B. Silva : ob. cit.) “1635 – António Bocarro diz na sua Descrição de Macau: Os cazados que tem esta cidade são oitocentos sincoenta portugueses e seus filhos que são muito mais bem dispostos, e robustos, que nenhum que haja neste oriente, os quaes todos tem huns e outros seis escravos darmas de que os mais e milhores são cafres e outras naçoens(…). Além deste número de cazados Portuguezes tem mais esta cidade outros tantos cazados entre naturais da terra, Chinas Christãos que chamam jurubassas de q’ são os mais, e outras nações xtãos (…). Tem alem disto esta cidade muitos marinheiros pilotos e mestres solteiros Portuguezes os mais delles cazados no Reino, outros solteiros que andão, nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassar, Cochinchina, destes mais de cento e sincoenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de sincoenta mil xerafins que por nenhũ modo querem passar a Goa por não lançarē mão delles ou as justiças de Sua Magde. e assy tambem muitos mercadores solteiros muito ricos em que melitão as mesmas razões”. (idem). Ao longo do século XVII, apenas uma mulher portuguesa (europeia) existiu em Macau (MONTEIRO: 2007). Peter Mundi afirmou também que, em 1632 – quase um século depois do estabelecimento dos portugueses em Macau – não existia na cidade mais do que uma mulher europeia, sendo as outras mestiças, euro-asiáticas. Sobre a participação da mulher chinesa na construção da sociedade macaense, a historiografia divide-se. Bento da França (1897), Álvaro de Melo Machado (1913), Francisco de Carvalho e Rego (1950) e Carlos Estorninho (1952), entre outros, argumentam que a entrada das mulheres chinesas na sociedade de Macau foi tardia: “Por três séculos /…/ os portugueses não casaram com mulheres chinesas “. Posição contrária é tomada por Charles Boxer (1942) e pelo Padre Manuel Teixeira (1965), entre outros, que sustentam a participação da mulher chinesa na sociedade macaense, desde o início: “Os portugueses casaram com mulheres chinesas e, assim, (Macau) gradualmente foi povoada. (D’Avalo: 1638, citado por BOXER: 1942). Eu defendo a participação tardia da mulher chinesa na sociedade macaense pelas seguintes razões: – Os padrões de controlo social, tradicionalmente xenófobos entre os chineses, desqualificavam socialmente as mulheres chinesas que se relacionassem com estrangeiros. Esta situação parece ter começado a sentir algum alívio somente após a proclamação da República na China (1911). – Era costume antigo em Macau, a afixação e circulação de “pasquins” contendo crítica social: ao governador, a pessoas com destaque social e a factos e eventos que pisassem os limites da “normalidade macaense”. Produzidos no séc. XIX, existem “pasquins” ridicularizando, em patuá, casamentos anunciados, de homem macaense ou reinol com mulher chinesa. Isso não aconteceria se tais casamentos fossem uma prática habitual; – Construído em 1860, o Teatro D. Pedro V é propriedade da Associação dos Proprietários do Teatro D. Pedro V cujos Estatutos não permitiam a entrada a chineses. Esta discriminação étnica não aconteceria se fosse comum a mulher chinesa deter o estatuto de cônjuge nas famílias macaenses; – os chineses convertidos à religião católica, nascidos em Macau, recebiam a designação de “tchong cao” (inscrito na religião, novo cristão) mas não o de “tou san” (filho da terra), embora beneficiassem de um estatuto mais próximo do dos macaenses. – O crioulo de Macau (Patuá ou Maquista) é gémeo do crioulo de Malaca [Kristang] e o seu léxico contém escassa influência do cantonês (BATALHA: 1988). Como língua falada predominantemente na relação familiar – linguagem que se aprende no berço -, parece que a influência decisiva na construção da Família Macaense, entre os sécs. XVI e XIX , não terá sido da mulher portuguesa, nem da mulher cantonense. Esse papel terá sido desempenhado principalmente pela mulher euro-asiática não chinesa, (indo-portuguesa, de Malaca e de Timor-Flores, principalmente). À medida em que a influência da mulher euro-asiática não chinesa se foi distanciando, o Patuá foi perdendo terreno para o português padrão, acolhendo escasso número de léxico inglês – e de muito cantonense – que o conduziu ao processo de extinção, a par da entrada da mulher cantonense na sociedade macaense que alcança o seu auge entre 1945 e 1974, e marca o fim do papel da mulher asiática não chinesa na sociedade macaense e a sua substituição pela mulher cantonense. – A sociedade macaense tradicional, marcada pela mulher asiática não chinesa, tinha uma identidade própria que se empenhava na sua diferenciação activa do sul da China. Sempre resistiu à sua diluição no ambiente chinês, em retribuição, aliás, à atitude relutante dos chineses em relação à intrusão dos portugueses em território da China. 9. A ambivalência Cultural Macaense A comunidade macaense euro-asiática de origem chinesa, bem como os precedentes macaenses euro-asiáticos de origem não-chinesa, atribuíam um peso desigual aos elementos constitutivos da sua herança cultural ambivalente. Historicamente, a componente portuguesa era maximizada e a componente asiática secundarizada. Para um observador menos atento, certos comportamentos, com maior visibilidade no relacionamento de netos luso-chineses com avós maternos chineses, poderiam parecer incompreensíveis. Não resultando de conflito inter-geracional, a sua origem situava-se em “zona de diferença étnica”, aprofundada por eventual incompatibilidade cultural (escarro ou arroto ruidoso, uso dos pausinhos que vão à boca para retirar comida da travessa, etc.). A primeira geração de um casamento luso-chinês (homem português com mulher chinesa é o “casamento regra” entre 1945/74) é detentora de uma herança biológica mestiça paritária (50% chinesa-han/50% portuguesa-europeia). Mas este equilíbrio genético – que se mantém pela vida fora – não é observado no desenvolvimento comportamental dos indivíduos. Segundo Albert Bandura, psicólogo contemporâneo que elaborou a teoria da aprendizagem social, uma das mais importantes fontes de influência na aprendizagem humana é o comportamento dos outros. Diariamente somos expostos a uma enorme multiplicidade de modelos que, em diferentes contextos, exibem, desde os comportamentos mais simples, aos mais complexos. A observação desses comportamentos e das suas consequências será, em grande parte, determinante na aprendizagem. Mas a aprendizagem humana é selectiva. Os indivíduos tendem a imitar as figuras que lhe são significativas. Em regra, na primeira etapa da vida, o horizonte de observação e aprendizagem do indivíduo é o seu ambiente familiar, nomeadamente a estrutura interna da família. Quer na China, quer em Portugal, a autoridade parental, o papel de liderança da família, é atribuído ao marido / pai. Daí decorre a assumpção da herança cultural paterna como património familiar principal, mesmo quando ele opta pela educação dos seus filhos no exterior ou em escolas estrangeiras. Os casamentos inter-étnicos luso-chineses são principalmente entre homens portugueses e mulheres chinesas. Em tais casamentos, as referências culturais portuguesas são transmitidas de uma geração para a seguinte como as principais referências. 10. A educação dos macaenses Uma das decisões mais importantes nos casamentos luso-chineses diz respeito à educação das crianças. A educação nas escolas portuguesas era a escolha óbvia. Tão óbvia quanto a autoridade do pai dentro da família. A opção pela educação em português era a centrifugação definitiva que separava as duas componentes culturais das crianças macaenses, moldando a sua matriz cultural portuguesa e relegando os elementos da sua herança cultural chinesa para a periferia dessa matriz básica. É, portanto, compreensível que os macaenses falem, leiam e escrevam português, mas, em regra, não podem ler nem escrever chinês, embora falem cantonense. A capacidade de ler e escrever uma língua é a chave para o acesso à respectiva cultura. No caso dos macaenses, o domínio do português falado e escrito tem sido o factor decisivo da sua ligação à cultura portuguesa. Da mesma forma, a incapacidade de ler e escrever chinês tem sido o factor determinante do seu distanciamento da cultura chinesa, de cujas formas mais eruditas são absolutamente estranhos. Depois de concluírem os estudos secundários, alguns jovens macaenses, em regra, iam para as Universidades portuguesas e os restantes permaneciam em Macau. Para estes, a sua entrada na vida profissional, principalmente no Funcionalismo Público, coroavam os esforços iniciados com a decisão tomada pelo pai quando eram crianças e recompensava-os com o prestígio social de fazer parte da máquina administrativa que regulava a vida de Macau. Era impossível e impensável que um jovem macaense completasse o ensino secundário e fosse continuar os estudos numa universidade chinesa, no Continente ou em Taiwan. (continua) Tânia dos Santos Sexanálise VozesEstados de Úteros Saudáveis [dropcap]N[/dropcap]em todas as mulheres têm útero. Há homens que têm útero. O órgão responsável pela menstruação existe para além do género, já sabemos. Há quem não o queira porque não se identifica com ele, mas há quem não o queira também porque, às vezes, dá mais problemas do que prazeres. O estado de saúde do útero deve ser discutido – não é por acaso que no Reino Unido a co-fundadora de uma organização dedicada ao cancro do colo do útero tenha feito uma citologia ao vivo num talk show televisivo. O famoso Papanikolaou (o apelido do cientista que desenvolveu este exame) traz mais desconforto que outra coisa, mas é daqueles males que somos obrigados a engolir se queremos controlar a saúde do útero. O colo do útero é uma entrada para o útero pela vagina que se vai alterando durante o ciclo hormonal – abre-se e fecha-se de acordo com o desejo de contacto com o exterior. Durante a ovulação, como devem calcular, está muito mais receptivo. Podia estender-me aqui de como o útero é um órgão fabuloso que produz ovócitos e que consegue desenvolver a composição de células do ser vivo por parir. Este órgão é o palco e o protagonista de uma dança hormonal que faz com que a menstruação, já nossa muito conhecida, a ovulação, mais obscura, e a gestação aconteçam. A dança vai acontecendo com esperança que a fecundação se concretize – que nem sempre é uma possibilidade porque não ovulamos todos os meses. Estas formas dinâmicas e cíclicas do trabalho deste órgão podem não ser pacíficas – como para quem sofre de endometriose. A forma desastrada e dolorosa do endométrio e da menstruação se comportarem resulta no que já vi descreverem – sensação de facadas na barriga. Calcula-se 10% das mulheres no mundo sofrem de endometriose, mas o seu diagnóstico é raro. Isto vem da ‘normalidade’ com que as dores menstruais são encaradas. A endometriose é uma condição em que o endométrio (o forro do útero que permite a nidação) cresça em outros locais menos propícios, como nos ovários, nas trompas de falópio e pode chegar a outros órgãos adjacentes. Também não é de fácil diagnóstico porque é preciso realizar uma ecografia na altura certa do mês para poder ver a invasão do endométrio no seu esplendor. Ninguém sabe ao certo como é que esta condição se desenvolve. Existem formas de tratamento, mas ninguém sabe da cura. O desconforto desta condição é tal que há pessoas que preferem tirar o útero para resolver o problema. São uns dias por mês em que as sofredoras de endometriose se sentem assoberbadas de dores ao ponto de não saírem da cama. Estrelas televisivas já dão a cara por esta condição incapacitante, como a Lena Dunham, e assim contribuem para a consciencialização do que pode ser um útero doente. Assim espera-se que as 10% de mulheres por este mundo fora comecem a perceber o que há de errado com elas. A saúde do útero parece necessitar de um equilíbrio delicado para um funcionamento pleno, mas a investigação ainda não percebeu que equilíbrio é esse. O útero não participa no sexo da mesma forma que a vulva e a vagina. Não tem o factor prazer escarrapachado nas suas paredes, mas tem um papel importante na produção e regulação hormonal. A saúde da vagina é uma coisa, a saúde do útero é outra. Apesar de intimamente ligados, ficamos frequentemente presos na imaginação vulvar e vaginal e tornamos misteriosa a actividade do útero. Pensamos nele na menstruação – quando nos dá aquelas facadinhas – e pouco mais. Para estados de úteros saudáveis talvez tenhamos que trazer mais conversas: sobre o colo, sobre os dramas e os medos, sobre as vacinas que se podem tomar para prevenir doenças graves e sobre as menstruações dolorosas que as vezes os médicos têm dificuldade em identificar. Úteros de plena consciência do que são e podem ser. David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPortas do Cerco em estado de sítio [dropcap]N[/dropcap]os últimos dias, devido às obras de manutenção e reparação das escadas rolantes, as pessoas que viajavam de Zhuhai e Macau acumularam-se no corredor das partidas das Portas do Cerco. Dia 22 deste mês, a Polícia de Segurança Pública, o Gabinete das Forças de Segurança e o Gabinete de Transportes deram uma conferência de imprensa conjunta para apresentarem o plano de emergência para lidar com a situação. As medidas incluem a abertura de 13 guichets do controlo alfandegário, para que sejam evacuadas 12.000 pessoas num espaço de quatro horas. Na medida em que a entrada do edifício de controlo de fronteiras é estreita e as escadas rolantes estão em manutenção, o risco de acidentes aumenta com a enorme concentração de pessoas. É portanto urgente fazer sair esta multidão. Após a implementação das medidas, as pessoas só esperam cerca de 10 minutos até entrarem no edíficio da alfândega. Espera-se que abram mais dois guichets durante o fim de semana, passando assim de 13 para 15. O Gabinete de Transportes pediu às companhias transportadoras que os autocarros mudassem de rota, para que os passageiros pudessem sair junto aos portões de embarque. Os autocarros que fazem a volta dos hotéis foram reduzidos para um terço e os passageiros são encorajados a entrar e sair de Macau pela Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. A substituição das escadas rolantes do edifício da alfândega das Portas do Cerco causou a concentração de uma multidão, e demonstrou a capacidade de infraestrutura pública de Macau para dar resposta a incidentes. O projecto de manutenção das escadas rolantes surgiu no princípio de 2018, mas o público só foi informado no dia anterior ao início das obras. Muitos dos residentes e turistas só se aperceberam da situação quando chegaram às Portas do Cerco. Esta situação sugere que as autoridades deverão fazer um esforço para publicitar este tipo de ocorrências com maior antecedência e que haja um controlo mais apertado das entradas e saídas em Macau. Fora isso, seria possível que o Governo providenciasse no sentido de serem utilizados outros postos de controlo alfândegário, para libertar a pressão das instalações das Portas do Cerco? Como o tempo de espera para entrar e sair de Macau está a aumentar, é possível que venha a ser necessário criar condições especiais para idosos, crianças, grávidas e pessoas com incapacidades, para evitar qualquer mal estar causado pelas altas temperaturas que se fazem sentir no Verão. Mas, pior do que isso, é a possibilidade de transmissão viral, frequente em locais super-lotados. Se uma pessoa estiver doente, facilmente muitas outras serão contagiadas e todos sabemos que se há vírus inofensivos, há infelizmente outros muito perigosos. Também é necessário alertar a população para o uso de máscaras. A presença de médicos no local e o controlo sanitário poderão ser ainda questões a considerar. As obras de manutenção e reparação das escadas rolantes do átrio das Partidas do edifício alfandegário das Portas do Cerco irão demorar cerca de 60 dias. O público irá sentir os seus transtornos por igual período. As escadas estão montadas paralelamente, em grupos de três. Devido às restrições de espaço, é possível que passem para grupos de duas, diminuindo grandemente a capacidade de transporte. Há uns tempos atrás estas escadas causaram muitos acidentes. Alguns turistas do continente forçavam manualmente a paragem das escadas e as pessoas que iam mais abaixo, como não conseguiam aguentar o impacto, perdiam o equilíbrio e caíam, fazendo cair também os que estavam atrás deles. Este foi um dos motivos que levou a separar as escadas em várias secções, de forma a diminuir os danos dos possíveis acidentes. Este aspecto deve de ser considerado na actual remodelação. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk Jorge Menezes VozesAL: portas fechadas e deputados calados [dropcap]N[/dropcap]ão foi preciso a casa ter sido ‘roubada’ para a Assembleia Legislativa (AL) pôr trancas nas portas. O Regimento da AL determina que as reuniões das comissões “decorrem à porta fechada”, salvo deliberação em contrário. E assim tem sido: as portas têm estado trancadas e não há notícia de deliberações em contrário. Por este motivo, o deputado Sou Ka Hou (de quem fui advogado) foi acusado, quer por deputados, quer pelo presidente da direcção da Associação dos Advogados, de ter infringido a lei ao partilhar o que ali se discutira. Violara o que este último apelidou de “regras do jogo”: “defraudou e traiu a confiança que as pessoas podiam depositar nele”, quando “tinha de estar calado” (JTM, 05/12/2017). Porém, nem ‘jogo’ parece uma boa metáfora, nem o deputado violou a lei. E não tinha de estar calado. Os acusadores confundem ‘porta fechada’ com sigilo ou confidencia-lidade. Politicamente, é criticável que as reuniões decorram nos bastidores da vida política. A AL representa os cidadãos, que deveriam poder assistir, através da comunicação social, ao que os seus representantes defendem sobre a vida da comunidade, o modo como o fazem, os conhecimentos e ignorâncias que revelam, os preconceitos que exibem e por aí fora. Nem é possível representação autêntica sem transparência política. Porta fechada deveria ser a excepção, não a regra, numa terra já caracterizada por uma obscura cultura de governação. E assim é noutras paragens. Em Portugal, as reuniões das comissões “são públicas”, podendo, “excepcionalmente, reunir à porta fechada, quando o carácter reservado das matérias a tratar o justifique”. Em Hong Kong a lei é mais detalhada, mas similar. Juridicamente, se é certo que podem decorrer à porta fechada, é falso que seja proibido divulgar as posições assumidas por deputados em reunião de comissão. Nem há qualquer sanção para quem o faça. ‘Porta fechada’ significa que não se pode assistir. ‘Sigilo’, que não se pode revelar o que se lá passou. São conceitos distintos, de uso comum, na lei e no discurso político, que não escapariam a um legislador desatento (e que, veremos adiante, não escaparam). Ao determinar que as reuniões “decorrem” à porta fechada, proibiu-se a assistência da comunicação social ou do público. Nada mais. É como aulas de universidade, conferências ou assembleias gerais: não pode assistir quem quer, mas não é vedado debater cá fora o que foi ensinado ou discutido lá dentro. Só é confidencial o que a lei, expressamente, diz sê-lo. A Lei Básica prescreve que os direitos fundamentais só podem ser restringidos nos casos previstos na lei. E só o pode fazer dentro dos limites fixados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Constar expressamente de lei é condição necessária, mas não suficiente. O PIDCP determina que a liberdade de expressão e de expandir informações só pode ser submetida a restrições que, para além de “expressamente fixadas na lei”, sejam necessárias ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem, ou à salvaguarda da segurança nacional, ordem pública, saúde e moralidade públicas. O mesmo princípio consta da lei de imprensa. A confidencialidade das reuniões teria, pois, de ter sido expressamente fixada no Regimento. Mas não foi. Pelo contrário, deve ser feita acta das reuniões, a qual não é secreta. Só é imposto sigilo quando são convocados terceiros para prestar depoimentos ou apresentar provas, o que confirma que o legislador não andava distraído. Não tendo sido ordenado sigilo em nenhuma outra situação, o teor das reuniões de comissão pode ser partilhado e discutido. E o Regimento só poderia impor sigilo, sem violar a Lei Básica, se tal fosse necessário às finalidades referidas no PIDCP, o que nunca poderia suceder indiscriminada-mente quanto a todas as reuniões de todas as comissões. Afirmar o contrário seria caricato. Ou seja, nem a lei impõe, nem poderia impor, a apregoada confidencialidade (com a qual erradamente confundem o conceito de ‘porta fechada’). Imagine-se, aliás, o contra-senso que seria se o órgão de propensão democrática e representativa fosse gizado para actuar sob confidencialidade. Seria porta fechada e luz apagada. A própria AL revela-nos que os acusadores estão errados, pois é comum no final das reuniões um deputado narrar à comunicação social uma parte, por si cuidadosamente seleccionada, do que lá se passou. Costuma ser o presidente da comissão. Se divulgar fosse infracção, estava encontrado o infractor. Será diferente por presidir à comissão? Não. Em parecer recente, a Comissão de Regimentos e Mandatos revelou a máxima em que deve assentar a aplicação do Regimento: “onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir”, o que é correcto quando está em causa, como aqui, a restrição de um direito fundamental. O Regimento não distingue deputados-presidentes de deputados-não-presidentes quanto ao que podem ou não podem dizer. Nem nada diz sobre fechos de portas ou relatos de eventos. Logo, ou nenhum pode nada, ou todos podem o mesmo. Foi a Comissão quem nos ensinou. Aliás, o Estatuto dos Deputados determina que “todos” os deputados “têm o mesmo estatuto e são iguais em direitos, poderes e deveres”. A ideia de um eventual ‘uso parlamentar’ seria outro nado-morto. Para justificar que uns possam falar não é preciso invocar um uso: a prática de alguns falarem no final das reuniões não existe por virtude de um uso, mas por permissão da lei (extensível a todos os deputados). Nem ninguém contesta que os presidentes de comissão o possam fazer. Acresce que a prática de uns falarem não constitui um uso de outros serem proibidos de falar. Não falar, tal como não agir, não constitui existência, mas antes ausência de um uso. Não há contradição, mas concordância, entre o hábito de uns falarem e o direito de outros também falarem. Nem o silêncio constitui uso, nem existe uma prática ‘ancestral’ reiterada proibindo os deputados de falar. Aliás, nunca nenhum deputado foi proibido de o fazer. Mas se existisse tal uso, seria ilegal. É de lei que os usos só “são juridicamente atendíveis quando a lei o determine”, e o Regimento não o determina. E não são admissíveis usos que restrinjam direitos fundamentais. Nem que infrinjam a igualdade dos deputados, tornando uns ‘mais iguais’ do que outros. Uma prática ilegal não se tornaria legal por ser muitas vezes repetida. Não nos esqueçamos, aplicada aqui, da máxima que a Comissão nos ensinou: onde a lei não distingue, não devem os usos distinguir. Como todos os deputados são iguais e não há proibições ou obrigação de sigilo, qualquer deputado pode partilhar com os cidadãos o que os seus representantes pensam, em comissão ou fora dela. É o reflexo da velha sentença em que se traduz o princípio da liberdade: o que não é proibido, é permitido. Quem os acusar por divulgarem debates políticos, está a acusar duas mãos cheias de deputados de violar reiteradamente a lei. Todos erradamente acusados. Como aprendemos em criança, o que não é segredo, pode ser contado. Em política, deve ser contado. O que não é devido é querer mandar calar deputados. Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesOs dois barcos da Grande Baía [dropcap]N[/dropcap]esta vida, as coisas não acontecem à medida dos nossos desejos. Quando algumas pessoas tentam manipular os acontecimentos à luz dos dos seus interesses, sem consideração pelas reacções e pelos sentimentos dos outros, os conflitos acontecem. Se a lei não for respeitada, as normas e o civismo forem ignorados e só os poderosos tiverem capacidade de decisão, gera-se uma sociedade opressora e os confrontos tornam-se inevitáveis. Infelizmente, Hong Kong enfrenta outra grande dissensão interna. Nas “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau são considerados os quatro “motores principais”, para impulsionar a construção e o desenvolvimento da Grande Baía. Segundo os últimos dados, o poder económico e as potencialidades de Guangzhou e de Shenzhen já ultrapassaram os de Hong Kong e Macau. As duas regiões administrativas especiais deveriam assumir o papel de indutores de reformas no desenvolvimento da Grande Baía e de criadores de oportunidades para o futuro da China. Mas infelizmente o barco Hong Kong está à beira do desmantelamento, ao passo que o barco Macau ainda não levantou âncora. No planeamento para o desenvolvimento da Grande Baía, prevê-se que Hong Kong venha a ser um centro de inovação na área das altas tecnologias, um núcleo financeiro, que se assuma como centro para a resolução de conflitos legais internacionais, dentro da região Ásia-Pacífico, e que se torne uma metrópole internacional altamente competitiva. No entanto, se a revisão da lei “de extradição de condenados em fuga” se vier a impôr, todos estes objectivos cairão por terra. O Dr. Derek Mi-chang Yuen, um prestigiado docente do Departamento de Administração Pública da Universidade de Hong, publicou recentenmente um artigo intitulado “Os sinos tocam em King’s Landing, anunciando a rendição da cidade”: a escalada da controvérsia em torno da revisão da lei e a tensão sino-americana”. Yuen usa metaforicamente o cenário da série “Game of Thrones” para alertar Hong Kong para a possiblidade de se vir a tornar uma “cidade queimada”. E tudo isto porque o Governo de Hong Kong decidiu ignorar os procedimentos legislativos (debate no Comité Legislativo) para forçar a aprovação da lei de extradição dos condenados em fuga, enviando directamente a proposta para, a 12 de Junho, ser feita uma segunda apresentação no plenário. Se isto se vier a confirmar, abre-se um perigoso precedente que vai reduzir a pó o pouco que sobra dos valores fundamentais de Hong Kong. Baseado no conhecimento profissional e nos seus antecedentes especiais, o artigo de Yuen põe o dedo na ferida e reclama a atenção de todos os que estão envolvidos nesta controvérsia. O Movimento dos Chapéus de Chuva desgastou Hong Kong em larga escala e, se o Conselho Legislativo for despojado das suas funções legislativas e da sua capacidade de monitorizar a acção do Governo, vai ser impossível preservar os alicerces morais e ideológicos da cidade. Os slogans “Um País, Dois Sistemas”, “Hong Kong governado pelas suas gentes” e “um elevado grau de autonomia” não irão passar de cortinas de fumo. Quanto à revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga”, o campo Pan-democracia propôs que se aprovasse em primeiro lugar a extradição de Chan Tong-kai, o suspeito de ter assassinado a namorada em Taiwan, e que posteriormente se realizasse uma sessão de consulta pública para reunir as opiniões dos diversos sectores sobre esta matéria. Esta abordagem teria a vantagem de evitar conflitos e daria margem para a negociação entre as partes. Mas é uma pena que aqueles que estão no topo das muralhas não se queiram dar ao trabalho de escutar as sugestões do povo que por elas está cercado. Quando as muralhas caírem, o povo não tem por onde fugir. Mas depois da queda, quem é que vai lidar com a situação? Desde a transferência de soberania, Hong Kong fez duas más escolhas para Chefe do Executivo. Uma delas foi Leung Chun-ying, um homem de espírito aguerrido, a outra Carrie Lam Cheng Yuet-ngor, que não lhe fica atrás. Numa sociedade diversificada, a harmonia é preferível ao conflito. Se Henry Tang Ying-yen tivessse sido eleito em vez de Leung Chun-ying e John Tsang Chun-wah ocupasse o lugar de Carrie Lam, os assuntos teriam sido tratados de outra forma. E em Macau, o que se está a passar? Macau é um local em que nada muda e o poder governativo é muitíssimo estável. A eleição do Chefe do Executivo é basicamente um “one-man show” e as receitas provenientes das taxas do jogo e do turismo chegam para sustentar toda a população do território. Segundo as estatísticas, um total de 84.000 pessoas estão dependentes da indústria do jogo que emprega o maior número de pessoas, distribuídas por diversas profissões. Mas, à semelhança da construção do metro ligeiro, o progresso da diversificação industrial de Macau anda a passo de caracol. Macau, enquanto barco da Grande Baía, é um casino flutuante que não tem nada de construtivo para oferecer, para além de jogo, entretenimento, consumismo e lazer. A plataforma para a cooperação sino-portuguesa não passa de um simulacro da idea de criação de uma base de intercâmbio e cooperação em Macau tendo como foco principal a cultura chinesa e a coexistência da multiculturalidade. O próximo Chefe do Executivo de Macau tem a responsabilidade de tornar a cidade competitiva durante o seu mandato, caso contrário o barco “Macau” ficará encalhado nas águas estagnadas do prazer e acabará por afundar no mar da corrupção. Pôr de parte as disputas e suspender a revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga” será a única forma de evitar que Hong Kong se despedace contra os rochedos. Quanto ao fututo de Macau, tudo vai depender da capacidade das pessoas procurarem avançar, sem deixarem de desfrutar do seu conforto. Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente [dropcap]R[/dropcap]eflectindo quanto baste, parece poder concluir-se que: Não rendem votos aos partidos políticos portugueses, nem remessas de divisas, como as provenientes dos lucrativos emigrantes portugueses na Europa, no Continente Americano, na Austrália e na Nova Zelândia. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante àquele que os sucessivos governos nunca se esquecem de ter: uma Secretaria de Estado para a Emigração ou dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, conforme a semântica política mais ao gosto de cada maioria parlamentar. Nem cabem aí. Não proporcionam negócios, nem representam quota de mercado nas exportações portuguesas. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante aos que se dedicam à cooperação com a África ou a Europa. Nem cabem aí. Não proporcionam receitas ao Fisco e à Segurança Social portuguesa, nem a sua força de trabalho está à disposição de empresários portugueses. Em consequência: não há espaço em estruturas do tipo Alto Comissariado para as Minorias Étnicas e Imigração. Nem cabem aí. Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço nem atenção para as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente. Porque elas não são lucrativas para os cofres do Estado. Porque o Estado se habituou à vida fácil de, por lei ou por medidas administrativas, sobrecarregar os contribuintes com impostos e taxas que sucessivos (des)governos vão dissipando, em alegre paralisia ante a eurodestruição da economia portuguesa. Por outro lado, ex-ricas instituições privadas de utilidade pública, criadas à custa de muito dinheiro levado de Macau para Portugal, em condições que não dignificaram o País e que, em princípio, deveriam prestar atenção às Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente – saber onde estão, quantos são, que carências têm e as potencialidades que nelas existem – encaram as poucas de cuja existência vagamente sabem, como criaturas interessantes a que, de vez em quando, se dão uns “amendoins” com o afecto próprio do visitante de uma aldeia de macacos num qualquer jardim zoológico. A Universidade de S. José, em Macau, herdeira do património espiritual do glorioso Padroado Português do Oriente, ingloriamente desaparecido, que gerou espiritualmente as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, terá uma palavra a dizer, um tempo para sobre elas reflectir e um espaço institucional para elas? Fiz esta pergunta na comunicação que apresentei, em Fevereiro de 2011, na Conferência “A Lusofonia entre Encruzilhadas Culturais”, organizada, precisamente, pela Universidade de S. José… Parece não ser assunto que interesse. O seu objectivo mais importante, parece, é ser reconhecida como universidade chinesa… As Missões Portuguesas nos Estreitos, Malaca e Singapura, deixaram de existir em 1 de Julho de 1981, na sequência dos acordos celebrados entre o Bispo de Macau, D. Arquimínio da Costa, e os Bispos James Soorn Ceong, de Malaka-Johor, e Gregory Yong Soon Nghean, Arcebispo de Singapura, em 26 de Julho de 1977 e ratificados por decreto da Santa Sé, de 27 de Maio de 1981. A Missão Portuguesa de Malaca, desde a concordata de 23 de Junho de 1886, estava sujeita à dupla jurisdição exercida pelo Bispo de Macau e pelo Bispo de Malaca e incluía as igrejas de S. Pedro e de N. Senhora da Assunção e outras capelas. A Igreja de S. Pedro manteve as suas funções de Igreja paroquial e os seus padres continuaram a servi-las sob a autoridade do Bispo de Malaca, enquanto o Bispo de Macau o permitisse. Morreram os Padres Augusto Sendirn e Manuel Pintado, últimos missionários portugueses em Malaca. A Missão Portuguesa de Singapura compreendia a Igreja Paroquial de S. José que dependia do Bispo de Macau. Enquanto paróquia deixou de existir passando às funções de simples igreja de devoção e os seus padres continuaram a servi-la – padres Francisco António Bata e João Guterres. O sustento e as despesas destes padres continuaram sob a responsabilidade do Bispo de Macau. Os bens – imóveis e móveis – da Igreja de S. José continuaram a pertencer-lhe, sendo administrados pelo respectivo Reitor e sob controlo do Arcebispo de Singapura, enquanto o Bispo de Macau continuasse a enviar missionários. Quando isto deixasse de se verificar, seria realizado um acordo sobre a transferência civil desses bens. As outras propriedades pertencentes à Missão Portuguesa (Comission for the Administraüon of the States of Portuguese Mission in China) não entraram neste Acordo. A Diocese de Macau foi, portanto, o último reduto do Padroado Português do Oriente. Não esteve, o Senhor Bispo D. José Lai, na disposição de convidar os bispos das dioceses onde vivem as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente para uma conferência em que se desse início ao trabalho de unir as pontas desta teia cuja destruição teve início com o corte das relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal português em 1833 e a extinção das ordens religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834. Agora é tarde. Macau tem um Bispo estranho à Igreja de Macau. Provavelmente, para preparar a sua transformação em paróquia de Hong Kong ou de Cantão. Estabelecida como Diocese em 1576, uma das maiores dioceses do Mundo em área territorial, dela nasceram as dioceses de Funai-Nagasaki (1588), Nanjing (1658), Hanoi (1659), Hong Kong (1841), Guangdong-Guangxi (1848), Dili (1940), Malaca-Johor (1981). As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são comunidades de portugueses excluídos, apesar do seu forte sentimento de pertença a Portugal, da sua fidelidade secular à Religião Católica e do seu património linguístico – o crioulo – a que chamam “Portugis”. Ainda assim – ou talvez por isso mesmo – estão excluídas da Lusofonia. Mas o desconsolo maior, excluídos da Lusofonia somos todos nós. Porque apesar do denominador comum que é a Língua Portuguesa, padrão ou crioula, enquanto estivermos privados da liberdade básica de todas as outras que é o direito de estar e de ir de um lado para o outro, “jus manendi, ambulandi eunde ultro citroque”, a CPLP pode ser tudo o que quiserem. Não é de certeza uma Comunidade inclusiva de povos livres de circularem no espaço que se diz pertencer-lhes. 5. O fenómeno colonial e as “fonias” O fenómeno colonial, na sua formulação pura e dura, consistiu na validação entre as potências coloniais dos seus interesses de exploração em África. Formalmente assumida no Acto Geral da Conferência de Berlim, em 1885. Aí, muito antes de Shengen, Portugal viu-se forçado a aderir ao discurso europeu. A ocupação efectiva dos territórios africanos vinha ao arrepio da sua própria tradição e muito para além da sua capacidade económica, social e militar. O anticolonialismo do Século XX e a descolonização foi um facto sem precedentes na História da Expansão Europeia. Centrou-se no objectivo impreterível de reconquista da Soberania pelos povos colonizados. O Século XIX assistira à secessão das colónias americanas dos respectivos países ibéricos. O Século XVIII assistira à independência das colónias inglesas da América do Norte. À excepção do Canadá. Para aí se deslocaram os colonos que preferiram manter-se leais à Coroa Britânica. Ficaram conhecidos por United Empire Loyalists. A independência das colónias americanas foi um fenómeno “sui generis”. Os respectivos territórios não foram restituídos aos seus povos originários. Foram entregues aos europeus e seus descendentes que aí se tinham estabelecido. A descolonização dos Séculos XVIII e XIX constituiu, portanto, o resultado da secessão de interesses em conflito. Que opunham europeus geograficamente separados pelo Atlântico. Mas unidos pela mesma cultura e pela mesma língua. O Século XVII tinha sido a época de consolidação de uma nova ordem europeia no domínio do Mundo. O seu exclusivo, ditado em Tordesilhas, deixou de pertencer aos países ibéricos. Foi derrubado e substituído por holandeses, ingleses e franceses, em várias partes. A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, resultou da acção da Reforma iniciada com Martim Lutero. Reforma que levou ao esvaziamento do poder central europeu pela autoridade pontifícia romana que vigorava desde a queda do Império Romano. A Lusofonia como, aliás, a Francofonia, a Hispanofonia e a Anglofonia, são espaços que radicam no fenómeno colonial. Assentam no uso da língua do ex-colonizador como cimento aglutinador. No interior das antigas colónias; nas relações entre elas; e com as metrópoles do passado. Em tais espaços, procura-se decantar a História de episódios de força e opressão; transformar em amigos, anteriores inimigos; substituir a violência pretérita pelo diálogo; suprir a antiga exploração pela moderna cooperação. Ao contrário das teses que sustentam que tais espaços existem para manter o espírito colonial, parece que no seu estádio actual eles serão pouco mais do que áreas de catarse ou expiação. E não parece que possam ir mais além, pelos fortes compromissos existentes entre os ex-países colonizadores, no seio da União Europeia. Compromissos que inviabilizam irremediavelmente a sua participação plena em qualquer outra “Comunidade de Povos”. O Acordo de Shengen inviabiliza qualquer expectativa de livre circulação de cidadãos das antigas colónias no território das antigas metrópoles. Apesar de pertencerem à mesma comunidade linguística – anglófona, francófona hispanófona ou lusófona. 6. Portugueses em Macau A historiografia de Macau não é unânime quanto à data do estabelecimento dos portugueses neste minúsculo porto do sul da China. Existe uma variação entre os anos de 1549 e 1557. Os portugueses que se estabeleceram em Macau, no início e ao longo dos séculos, não foram apenas os nascidos no território europeu de Portugal, mas também portugueses euro-asiáticos, asiáticos convertidos à religião católica, euro-africanos e africanos. Estes, na documentação primária, são denominados “cafres”, frequentemente. Essa teia de portugueses que se identificam como “portugis” ou “cristang” localizam-se: na Índia: Diu, Damão, Dadrá, Nagar-Aveli, Goa, Korlai, Mangalore, Cananor, Mahé, Cochim, Bombaim, Negappattinam; no Sri Lanka: Batticaloa, Trincomalee e Puttalam; na Indonésia: Bali, Java, [Tugu e Brestagi], perto de Djacarta, Ilha de Flores [Larantuka e Sikka], Ilhas de Ternate e Tidore; na Malásia: Alor Star, Penang, Perak, Kuala Lumpur, Seremban e Johor Baru]; em Singapura; na Tailândia [Bangkok]; no Bangladesh: Chittagong e Daca; em Mianmar [Sirião]. O destino dos macaenses foi diferente do dos portugueses da Indonésia, da Malásia e do Sri Lanka, por terem defendido a sua terra, pela força das armas, contra várias tentativas de invasão e ocupação pelos holandeses, desde 1603, nomeadamente, pela “Retumbante vitória definitiva alcançada por Macau sobre os holandeses comandados por Kornelis Reyerszoom que, com 14 navios e 800 homens, pretendeu tomar a cidade. O inimigo foi completamente desbaratado ante o indómito esforço dos macaenses, capitaneados pelo denodado herói Lopo Sarmento de Carvalho. Colaboração do Pe. Rho S.J. (de passagem em Macau) a partir da Fortaleza do Monte, e protecção do Santo do Dia, S. João Baptista, em 24 de Junho de 1622 (Cfr. Beatriz Basto da Silva : Cronologia da História de Macau). Os Macaenses Os descendentes dos portugueses, nascidos em Macau e, posteriormente, na diáspora macaense, são os macaenses. Macaense é o euro-asiático de ascendência portuguesa nascido em Macau. O conceito de Macaense contém três elementos: – Origem étnica mista: europeia e asiática; – Ascendência portuguesa; – Macau e a diáspora Macaense como local de nascimento: Hong Kong, Xangai, Tianjin, Bangkok e, mais recentemente, Austrália, Canadá, Brasil, E. U. América e Portugal. A independência dos territórios ultramarinos de Portugal, a perda da nacionalidade portuguesa comum dos seus naturais (DL 308-A/75, de 25 de Junho) e a emergência de novas nacionalidades em cada um deles, parece tornar obsoleto o elemento “ascendência portuguesa”, no conceito de macaense. A substituição de “ascendência portuguesa” por “ascendência lusófona” é inviável por não preencher relações de parentesco e por excluir boa parte das populações dos países de língua oficial portuguesa que não falam português. Por outro lado, durante várias décadas, ao longo do séc. XX, os contingentes de tropa africana em Macau, provenientes de Angola, Moçambique e Guiné, deixaram descendência, exclusiva ou principalmente, com mulheres chinesas, de que julgo não existirem registos. De tais descendentes, de homem africano com mulher chinesa, não há notícia de terem beneficiado do estatuto de macaense. Conheci de vista uma mulher, filha de mãe chinesa e pai africano (Landim, de Moçambique), que era “criada de servir”. Desses sino-africanos ou afro-chineses, cujo número se desconhece, não há notícia de nenhum ter recebido o estatuto social de macaense. (continua) Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo Bipolar [dropcap]O[/dropcap] que dizer da semana em que o estado do Alabama passou a proposta lei do aborto mais restritiva e Taiwan tornou o casamento homossexual uma possibilidade legal? Choramos e celebramos recuos e avanços na mesma semana – para nos sentirmos profundamente confusos. Avanços e recuos num movimento perpétuo. O estado bipolar sexual em que vivemos provém da confusão que são os nossos sistemas sócio-políticos. Temos testemunhado movimentos que começaram a deixar para trás o pensamento progressista que julgávamos carregar. Têm-se construído barreiras discursivas e simbólicas para deslegitimar o que são lutas e visibilidades absolutamente necessárias. A 17 de Maio celebrou-se o dia internacional da luta contra as fobias de género e de orientação sexual – e é com insatisfação que me apercebo que o dia terá que continuar a existir por muito tempo. Quando os partidos em Portugal para as eleições europeias fazem uso do termo ‘ideologias de género’ para deslegitimar a naturalidade do nosso ser, devíamos preocuparmo-nos. Mas depois temos Taiwan, o orgulho dos nossos olhos neste grande continente Asiático. Há esperança – se calhar há. No Alabama – e sobre o aborto que é agora punido com 99 anos de prisão – a contestação é criativa e eficaz para desmascarar os supostos valores pela vida. Valores que carregam mais raivas silenciosas contra os corpos detentores de útero do que outra coisa. Um país que se recusa a regular as armas para regular os úteros – torna ainda mais visível a bipolaridade patriarcal em que vivemos. O valor da vida de um embrião é exageradamente tido como o de um bebé. Só que por alguma razão o valor da vida da mulher que é violada (no cenário mais negro) é discutível. A pena é mais alta para quem faz um aborto do que para quem viola uma mulher. Esta lógica não chegou às pobres cabeças que provavelmente nunca tiveram educação sexual, mas que tomam decisões sexuais. Não sabendo dos corpos e dos processos apelam-se a valores universais da vida em contraste com a morte (o assassinato!) e controlam-se os corpos dos outros por consequência. Houve quem sugerisse greve sexual para reforçar que os úteros, as vaginas e as vulvas são de quem as têm. Mas nem sei se isso irá funcionar porque o problema está na ausência de respeito centenária por quem os têm. Depois temos Taiwan que muito nos emocionou nesta semana. Foi tão bom apreciar as fotografias das gentes que na rua manifestaram a felicidade de um amor que agora pode ser legalmente reconhecido. Outros direitos virão. Outras lutas por esta Ásia fora serão travadas – certamente. Em Taiwan mostrou-se que a liberdade para sermos quem somos pode coexistir com o sentido de compreensão social. Ainda que os direitos não sejam plenos, como os da adopção, já é um começo. Vivemos em sociedades que usam e abusam do quão bipolar somos – entre responsabilidade individual e social, usam-se estratégias ideológicas a nosso bel-prazer. O corpo é de quem? Nosso ou de todos? Como é que se equilibra os valores liberais com solidariedade e respeito mútuo? A síndrome bipolar sexual vive desta indecisão. A forma como escolhemos justificar este dilema pode legitimar ou deslegitimar os outros. Em Taiwan, a prioridade foi a liberdade de identidade e de expressão sexual e no Alabama a lógica da vida por nascer é romanceada em contraste com as vidas que, de pele e osso, se sujeitaram ao pecado mortal. Nem quando essa vida é fruto de um incesto a liberdade prevalece. Quando queremos um mundo justo, vemo-nos confrontados com a dispersão de dificuldades e posições sociais. Talvez possa ser feliz em Taiwan e talvez nunca precise de ir ao Alabama. Mas e a nossa responsabilidade em criar um mundo menos bipolar e mais preocupado com os direitos humanos? Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA segurança do paciente e os erros médicos “All men make mistakes, but a good man yields when he knows his course is wrong, and repairs the evil. The only crime is pride.” Sophocles, Antigone” [dropcap]É[/dropcap] impossível contabilizar os milhares de pessoas que são mortas a cada ano por erros médicos, mas para ter apenas uma ideia são de centenas de milhares nos Estados Unidos e dezenas de milhares no Reino Unido, sendo conjuntamente com as doenças cardíacas e cancro, uma das principais causas de morte. Muito mais pessoas sofrem danos de forma não fatal por erros, e o custo dos pagamentos por negligência clínica nos países onde existe alguma estatística, é de muitos milhares de milhões de euros. É necessário entender que reduzir o custo humano e financeiro dos erros médicos é uma prioridade ética. O mediático caso de Bawa-Garba, que se refere a Jack Adcock , uma criança de seis anos, que foi internada na “Leicester Royal Infirmary (LRI)”, unidade pertencente ao “Serviço Nacional de Saúde (NHS)” britânico, em 18 de Fevereiro de 2011 e que morreu no mesmo dia, em parte devido a erros no seu tratamento. A Dra. Hadiza Bawa-Garba, indiana, médica que o tratou e a enfermeira portuguesa, Isabel Amaro, foram posteriormente declaradas culpadas de homicídio culposo por negligência grave no qual a médica contribuiu para a morte por septicemia, tendo sido destacado durante o julgamento a necessidade de abordar questões individuais e sistémicas para reduzir os erros. A Dra. Bawa-Garba, foi condenada a dois anos de prisão a 4 de Novembro de 2015, e a enfermeira Isabel Amaro foi condenada a três anos de prisão a 2 de Novembro de 2015. Os médicos têm a obrigação ética de ser transparentes sobre os seus erros médicos, mas como será possível encorajá-los a fazer quando as consequências pessoais e profissionais da honestidade podem ser devastadoras? A realidade é que alguns erros médicos nunca são revelados aos pacientes, que são então privados de indemnização, e pouco é aprendido com os mesmos. A Universidade Johns Hopkins publicou um relatório a 3 de Maio de 2016, em que afirma que as taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de colecta de estatísticas nacionais, e analisando os dados médicos de mortalidade ao longo de um período de oito anos, os especialistas em segurança do paciente calcularam que mais de duzentas e cinquenta mil mortes por ano são devidas a erros médicos nos Estados Unidos, sendo a principal causa de morte dos “Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC na sigla inglesa)”, que pertence ao “Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos”, e que por comparativamente as doenças respiratórias, matam cerca de cento e cinquenta mil pessoas por ano. A forma do CDC colectar estatísticas nacionais de saúde não classifica os erros médicos separadamente no atestado de óbito. Os pesquisadores defendem critérios actualizados para classificar os óbitos nos atestados de óbito. As taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de recolha de estatísticas nacionais. O sistema de codificação médica foi projectado para maximizar os serviços médicos, não para recolher estatísticas nacionais de saúde, como está ser usado actualmente. Os Estados Unidos, desde 1949, adoptaram uma forma internacional que usava os códigos da “Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID na sigla inglesa) que é publicada pela “Organização Mundial de Saúde (OMS)” e que visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde. A CID fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças para calcular as causas de morte. A partir dessa época foi sub-reconhecido que os erros de diagnóstico, erros médicos e a ausência de redes de segurança poderiam resultar na morte de alguém e, daí que os erros médicos foram involuntariamente excluídos das estatísticas nacionais de saúde. Os pesquisadores alertam que a maioria dos erros médicos não se deve à prática de actos médicos intrinsecamente nefastos, e que mais que denunciar esses erros e serem resolvidos por punição ou acção legal, afirmam que a maioria dos erros representa problemas sistémicos, incluindo cuidados mal coordenados, redes de seguro fragmentadas, ausência ou subutilização de redes de segurança e outros protocolos, além da mudança injustificada nos padrões de prática médica que carecem de responsabilidade. O “Jornal de Segurança do Paciente” dos Estados Unidos, alegam que o número de mortes por erro médico chegou a quatrocentas e quarenta mil por ano. A razão para a discrepância é de que os médicos, donos de funerárias, juristas e médicos legistas raramente notam nos atestados de óbito os erros humanos e falhas do sistema envolvidos. As certidões de óbito são o que os CDC se baseiam para colocar estatísticas de mortes em todo o país. A epidemia de danos ao paciente em hospitais deve ser levada mais a sério se quiserem que reduza. Envolver totalmente os pacientes e seus defensores durante o atendimento hospitalar, procurando sistematicamente ouvir os pacientes na identificação de danos, a transparência na responsabilização por danos e a correcção intencional das causas do dano são necessárias para atingir esse objectivo. O sistema é culpado pois é entendido como erro médico a morte causada por pessoal inadequadamente qualificado, erro no julgamento ou cuidados, um defeito do sistema ou um efeito adverso evitável, incluindo falhas do computador, misturas com as doses ou tipos de medicamentos administrados aos pacientes e complicações cirúrgicas que não são diagnosticadas. É de realçar todavia que os profissionais de saúde são em geral pessoas dedicadas e atenciosas, mas são humanos e que como seres humanos cometem erros, não sendo todavia causa de exclusão da ilicitude. Existem muitos técnicos de farmácia, em vez de farmacêuticos bem treinados e instruídos, que estão a compor quase todos os medicamentos para os pacientes e muitos têm requisitos ou comprovação de competência para esses exercer essa actividade. O uso da tecnologia da informação em saúde através do uso de registos electrónicos de saúde de pacientes hospitalizados e ambulatórios é essencial. Muitos hospitais, por sua vez, procuram acompanhar o ritmo da tecnologia cada vez mais disponível para melhorar a segurança do paciente. A maioria dos consultórios médicos dos Estados Unidos mantém registos electrónicos, bem como regista conversas entre médicos, enfermeiros e os seus pacientes, a fim de garantir que haja clareza e que não ocorram erros. As complicações comuns podem ocorrer, especialmente, no atendimento médico desnecessário, e cerca de 20 por cento de todos os procedimentos médicos podem ser desnecessários. Existe também, culpa na prescrição excessiva de medicação após a cirurgia, particularmente os opiáceos. É de considerar que os médicos são encorajados pelas empresas farmacêuticas, às vezes por meio de pagamentos em dinheiro, a “promover” os seus produtos. Tendo em consideração os “Direitos do Paciente em um Sistema de Saúde Perigoso e Orientado a Lucros”, os pacientes precisam de assumir o controlo, pois deve existir um equilíbrio entre a comunidade prestadora e os pacientes. A “Carta Nacional de Direitos do Paciente Hospitalizado” nos Estados Unidos, foi criada em 2014 em que os preconiza que quanto aos “registos médicos”, os pacientes hospitalizados devem receber diariamente o seu prontuário e ser ensinado como fazer anotações nos seus registos e corrigir qualquer desinformação. Os registos médicos devem ser electrónicos e mantidos por um período longo. O “cuidado” baseado em evidências quer que o diagnóstico e o tratamento devam estar de acordo com as directrizes federais e/ou nacionais de saúde ou de acordo com as directrizes revistas por especialistas publicadas por organizações especializadas para a condição médica do paciente. Se o médico determinar que é necessário desviar-se das directrizes, deve informar o paciente que o seu cuidado se deve desviar das directrizes e fornecer uma explicação para o desvio. Os “medicamentos terapêuticos”, preconiza que nenhum paciente deve receber uma medicação para fins “off label” sem ser informado de que o medicamento prescrito não foi aprovado pela “Food and Drug Administration (FDA)” para a condição médica do paciente. A justificativa para a prescrição do medicamento “off label” e o risco associado devem ser revelados ao paciente e documentados. O paciente deve ser informado sobre como relatar os efeitos adversos de qualquer medicamento sob prescrição médica ao FDA. A “competência do médico”, quer que os pacientes tenham o direito a serem informados sobre o “status” de competência do seu médico antes de serem tratados. Este “status” deve incluir a conclusão da “Central de Material Esterilizado (CME)” estadual, o “status” de certificação do conselho, a manutenção da certificação do conselho, a reabilitação do abuso de drogas e quaisquer outros factores que afectam a competência do médico. Os “custos” requerem que os pacientes devem conhecer os custos normais do diagnóstico e tratamento que receberão antes de concordarem com um plano de diagnóstico ou plano de tratamento. O tratamento encontrado contra directrizes sem o consentimento do paciente não precisa de ser pago. Os “eventos” adversos estipula que se acaso ocorrer um evento adverso imprevisto durante o diagnóstico ou tratamento, o paciente tem direito a uma explicação completa do que aconteceu e como o hospital pretende prevenir eventos adversos semelhantes no futuro. Se o evento adverso foi causado por um erro médico, o paciente tem direito a uma compensação justa. A falsificação de registos médicos após um evento adverso constitui adulteração de evidências. O “dever” de advertir, exigindo que os pacientes devem saber a taxa de infecção do hospital e a morbidade e mortalidade associadas a procedimentos invasivos planeados. O paciente deve ser avisado de qualquer actividade de estilo de vida que ameace a sua saúde e devem receber orientação sobre a gestão dessa actividade. O “consentimento informado” exige que o paciente deve dar o seu consentimento informado para procedimentos invasivos de acordo com as directrizes publicadas pela “American Medical Association” de 1998. O medo nunca deve ser usado para obter consentimento para procedimentos invasivos. O “feedback” sobre o cuidado quer que o paciente tenha o direito, mesmo um dever, de fornecer “feedback” a uma agência independente sobre a qualidade do atendimento recebido durante a hospitalização. Este “feedback” deve ser sistematicamente tomado e disponibilizado ao público. O “direito” a um advogado mostrou que, enquanto o hospital é o local principal para integrar o atendimento de um paciente é o advogado que deve defender os interesses do paciente. Todos os pacientes do hospital devem ter o direito a um advogado. O “Patient Safety America” lista os três níveis em que os pacientes podem proteger-se. Estes incluem ser um consumidor sábio dos cuidados de saúde, exigindo cuidados de qualidade e custo-benefício para si e para aqueles que ama; participando da liderança em segurança do paciente por meio de conselhos, painéis e comissões que implementam políticas e leis; e pressionando por leis que favoreçam cuidados, transparência e prestação de contas mais seguras. É necessário obter sempre o máximo de informações que puder do seu médico, inquirindo sobre os benefícios, efeitos colaterais e desvantagens de um medicamento ou procedimento recomendado, e usando as médias sociais para saber mais sobre a própria condição do paciente, bem como sobre os medicamentos e procedimentos para os quais foram prescritos. O paciente deve sempre procurar uma segunda opinião. Se a situação o justificar ou se existirem incertezas, deve obter uma segunda opinião de outro médico, pois um bom médico aceitará a confirmação do seu diagnóstico e resistirá a qualquer tentativa de desencorajar o paciente de aprender mais ou de “tentativas de amordaçar o paciente”. Muitas vezes o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema. Porquê muitos médicos são relutantes em especular, mas alguns admitem que as respostas vão do simples ego até à perda de um paciente para outro médico em quem confiam mais. Às vezes é difícil processar todas as informações por si mesmo, pelo que se deve trazer um membro da família ou um amigo para a sua consulta, alguém que possa entender as informações e sugestões dadas e fazer perguntas. Ao ter as informações médicas literalmente na palma da mão, pode trabalhar em equipa com o médico para reduzir o risco de erros médicos. Os aplicativos de saúde podem ser simples ou complexos e, dependendo da idade e condição, pode gerir o seu bem-estar, medicamentos e muito mais. O que têm de bom o sistema de saúde americano, inglês e outros em trabalho comparativo e cooperativo deve ser estudado e aplicado com adaptações e o que acontece nos Estados Unidos e no Reino Unido é o mesmo que acontece em outros países quanto aos maus procedimentos e devem ser instituídos todos os mecanismos em defesa da segurança do paciente, pois muitas vezes, o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema, para esconder as falhas do sistema e o erro médico. O acesso do paciente a bons cuidados de saúde e de forma gratuita é um direito fundamental e universal. David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDireitos dos Animais (II) [dropcap]A[/dropcap] semana passada falámos sobre duas das alterações à lei de protecção dos animais em Hong Kong. A primeira, reflecte-se na seccção 56 da Lei do Tráfego Rodoviário e prevê que, quem atropele um animal tem de parar, prestar auxílio e notificar a polícia num espaço de 24 horas. A segunda, estipula que os donos são responsáveis pelos seus animais, sendo sua obrigação cuidar e atender às suas necessidades. Esta obrigação constitui o “dever de cuidar”. Na sequência desta alteração, os tribunais podem privar uma pessoa do direito de possuir um animal para sempre, se este dever for seriamente violado A Lei de protecção dos animais de Macau não estipula esta condição, mas o parágrafo 1 do artigo 28 enuncia: Artigo 28.º Penas acessórias 1. A quem for condenado pela prática dos crimes previstos nos artigos 25.º e 26.º podem ser aplicadas as seguintes penas acessórias: 1) Declaração de perda a favor do IACM do animal do infractor; 2) Proibição de aquisição e criação de animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; 3) Proibição do exercício de actividades que impliquem o contacto efectivo com animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; Como vemos, este artigo estipula que quem violar a lei será privado do seu animal, o qual será entregue ao cuidado do IACM. Isto implica que os animais sujeitos a maus tratos serão imediatamente resgatados. Embora aqui se preveja que quem infligir maus tratos a animais seja proibido de os ter por um período de um a três anos, não é uma interdição para toda a vida, conforme enuncia a emenda à legislação de Hong Kong. As leis da Região Administrativa Especial de Macau foram buscar o modelo da legislação portuguesa. Segundo o Código Penal português, a pena máxima é de 25 anos. Não existe prisão perpétua. Transpondo este princípio para a lei de protecção dos direitos dos animais, faz sentido que não se proíba ninguém de ter um animal para o resto da vida. Uma das antigas propostas de alteração a esta lei previa a criação de um corpo policial dedicado em exclusivo à protecção animal. Mas a polícia opôs-se argumentando a falta de efectivos. Sem intervenção policial, existirão inevitavelmente bloqueios à implementação da lei, especialmente quando os donos se recusam a colaborar, ou resistem violentamente, os responsáveis ficam incapacitados de agir. Outra crítica às emendas da lei de Hong Kong prende-se com a falta de uniformização, o que deu origem a dificuldades na compreensão e confusões. Também dificulta o trabalho dos departamentos responsáveis ao tentarem aplicar a lei correctamente. Conforme já foi referido, a legislação de protecção animal em Hong Kong, inicialmente, apenas se destinava a preservar a segurança e a sáude públicas. Actualmente foi alargada aos conceitos de direitos e bem-estar animal. Direitos e bem-estar animal e saúde e segurança públicas são dois binários conceptuais distintos. Misturar conceitos gera confusão, daí que as críticas pareçam ser compreensíveis. Em oposição, a legislação de protecção animal de Macau é basicamente um conjunto de quatro regulamentos, a Lei No. 4/2016, o Despacho do Chefe do Executivo n.º 335/2016 que – Determina a proibição da aquisição, criação, reprodução ou importação das raças de cães e animais, o Regulamento Administrativo n.º 28/2004 que – Aprova o Regulamento Geral dos Espaços Públicos e o Despacho do Chefe do Executivo n.º 106/2005 que – Aprova o Catálogo das Infracções a que se refere o artigo 37.º, n.º 1, alínea 2, do Regulamento Geral dos Espaços Públicos. Como Macau tem basicamente nesta matéria este conjunto de leis e Despachos, e a legislação sobre protecção animal remonta a 2016, pode afirmar-se que é uma lei recente. Além disso podemos classificar a legislação de Macau como “simples e clara” . No Génesis, é dito que Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança. E Deus ordenou ” Ao homem é dado domínio sobre todas as coisas e ele recebe mandamento de se multiplicar e de encher a Terra.” Embora nem todos acreditem na Bíblia, o princípio sagrado de usar a lei para proteger os direitos dos animais e a promoção do seu bem estar, faz parte de uma sociedade saudável e evoluída. O primeiro passo para que este objectivo seja cumprido é compreender que os animais não são brinquedos, nem podem servir para descarregar frustrações; se assim não for, o agressor despe-se do sentido de moralidade que todo o ser humano deve possuir e será altamente provável que a lei de protecção animal venha a ser violada. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk «1...63646566676869...113»
Hoje Macau VozesA China está empenhada na proteção dos direitos da propriedade intelectual Gong Xin* [dropcap]A[/dropcap] propriedade intelectual é a ponte da globalização comercial e o elo de ligação da cooperação internacional. No entanto, alguns políticos norte-americanos usaram-na como pretexto para provocar fricções comerciais, tecendo críticas em que acusam a China de “roubar os direitos de propriedade intelectual” e de “exigir a transferência forçada de tecnologia”, tentando impor pressão máxima sobre a China. A China não é o ladrão da propriedade intelectual, mas sim um protector e criador dela. Ao fazer uma retrospectiva da protecção chinesa da propriedade intelectual, constata-se que a China de hoje já estabeleceu um sistema jurídico relativamente completo e com alto padrão da protecção dos direitos da propriedade intelectual, enquanto há 40 anos, a China estava ainda nas suas primeiras tentativas de protecção da propriedade intelectual. A jornada chinesa é única do mundo. Actualmente, a China está empenhada na reforma da modernização da governação da propriedade intelectual, que irá conduzir a China de um grande país de propriedade intelectual para um forte país de propriedade intelectual, e irá inspirá-la a participar com mais confiança na cooperação global da inovação. Hoje, a China encontra-se no trilho rápido da inovação científica e tecnológica e já se tornou num grande país inovador com influência global. Novas indústrias, novos modelos e formas de negócios estão a surgir uma após outra, enquanto a inovação se transformou num motor do desenvolvimento económico e social. Não só a China é pioneira na fabricação de aeronaves de grande porte, construção de caminhos-de-ferro de alta velocidade, desenvolvimento de energia nuclear da terceira geração e veículo de energia nova, como também se progrediu na inteligência artificial, Big data, computação em nuvem e outras tecnologias informáticas da nova geração. Uma reportagem do Wall Street Jornal mostrou que já alguns anos atrás a quantidade de teses chinesas sobre inteligência artificial tinha ultrapassado as dos EUA. A China tem agora a maior equipa de pesquisa e desenvolvimento do mundo, e o número de pedidos de patente de invenção fica em primeiro lugar no ranking mundial por oito anos consecutivos. Segundo o Relatório Índice de Inovação Global 2018 emitido pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a China ocupa o 17º lugar, sendo pela primeira vez que entrou nos primeiros 20 no ranking. Os esforços da China em matéria de protecção judiciária e administrativa dos direitos da propriedade intelectual têm aumentado. Foi estabelecido o sistema judicial de “Tribunal de Recurso + Tribunal Especializado na área de Propriedade Intelectual”, e foi reestruturada a Administração Nacional de Propriedade Intelectual para realizar uma série de acções especiais contra a violação dos direitos da propriedade intelectual. Em 2018, a China investiu cerca de 2 biliões de RMB em pesquisa e desenvolvimento, correspondendo 2,18 por cento do PIB chinês e ultrapassando a taxa média dos países da OCDE. Ao mesmo tempo, a China tem reforçado a protecção da propriedade intelectual, e tem mantido uma tendência de crescimento elevado do valor de royalties pago aos detentores estrangeiros de propriedade intelectual, que tem registrado um aumento anual de 17 por cento desde o ano de 2001, somando US$ 28,6 mil milhões em 2017. A propriedade intelectual desempenha um papel de ponte no intercâmbio técnico e de cooperação em inovação entre países. Os passos da China na área da protecção da propriedade intelectual só vão avançar e não recuar. A China irá participar com uma postura mais activa na governação global da propriedade intelectual. *Comentador politico
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPublicidade enganosa [dropcap]N[/dropcap]o dia 2 deste mês o jornal de Hong Kong Sing Tao Daily publicou uma notícia sobre a jovem Miss Wong, proveniente de Hong Kong e estudante no Reino Unido. Miss Wong levantou um processo num tribunal londrino contra a Universidade Angelia Ruskin. O artigo não adiantava os motivos de forma muita clara, limitando-se a mencionar “publicidade falsa aos serviços”. Miss Wong inscreveu-se nesta Universidade em 2011, para fazer uma pós-graduação em administração internacional, um curso com duração de dois anos. A jovem escolheu a Angelia Ruskin devido ao panfleto promocional que garantia “Formação de Alta Qualidade” e “Boas Perspectivas de Emprego”. Estas indicações impressionaram favoravelmente Miss Wong. Mas depois do início do ano lectivo ficou decepcionada. As aulas começavam com atraso e terminavam antes da hora. Os estudantes eram incentivados ao “auto-didactismo”. Por tudo isto, a queixosa acusou a Universidade de fraude, na medida em que estava longe de garantir a “Formação de Alta Qualidade” anunciada no prospecto. Mesmo assim, terminou a formação em 2013 certa de que tinha assegurado o início de uma sólida carreira profissional. Mas sempre que se candidatava a um emprego era rejeitada. O diploma não era reconhecido no mundo do trabalho. Portanto, para Miss Wong, o curso não assegurava formação de qualidade nem garantia perspectivas de emprego e, como tal, considerou que o prospecto publicitário era enganador. Após negociação entre as partes, a Universidade indeminizou a queixosa com o montante de 61.000 libras. Deste valor, 46.000 libras eram destinadas a custas processuais. O sistema legal britânico é diferente do de Macau. A parte que perde o processo arca com as custas da outra parte. A principal despesa deste bolo são os honorários do advogado, que neste caso foram pagos pela parte acusada. Em entrevista ao jornal Sunday Telegraph, Miss Wong afirmou sentir-se satisfeita com o resultado do julgamento. Disse ainda estar convencida que de futuro a Universidade iria ter mais cuidado com o que escrevia nos prospectos promocionais. Promessas irrealizáveis não devem estar impressas em panfletos informativos. Embora este caso não envolva uma notícia de monta, para nós, não deixa de ser motivo de reflexão. Como sabemos, actualmente existem nove Universidades em Macau. Devido à implementação da Lei do Ensino Superior, estamos a entrar numa nova era da educação. Quase todas as Universidades têm de estar certificadas. A certificação atesta o grau de qualidade de cada uma delas. Desta forma, as Universidades devem poder garantir até certo ponto o seu nível de ensino. No entanto, Miss Wong processou a Universidade por incumprimento das promessas feitas aos estudantes no programa promocional. Segundo a notícia, a queixosa baseou o seu processo na falsidade do prospecto. Se tinha ou não tinha razão, é uma questão que fica em aberto. Mas uma coisa é certa, segundo a lei do Reino Unido, a partir do momento em que os estudantes pagam as propinas e ingressam na Universidade, estes prospectos fazem parte do contrato entre as partes. A Universidade é responsável por honrar os termos do contrato. Se não o fizer, entra em incumprimento e os estudantes podem processá-la. Embora a situação em Macau seja significativamente diferente da do Reino Unido, o prospecto é considerado um documento oficial na admissão à Universidade. Se existirem diferenças consideráveis entre o programa apresentado e a experiência que os estudantes vivem posteriormente, existirão naturalmente motivos de descontentamento. Consequentemente, as Universidades terão de ter muito cuidado com a forma com que redigem estes panfletos. Se as promessas se cumprirem todos ficam satisfeitos, mas se não se cumprirem os problemas hão-de surgir. Este caso acaba por ser um alerta para todas as Universidades, lembrando que devem ser cuidadosas na forma de divulgar os seus programas e responsáveis pelas expectativas que criam aos estudantes. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Luz VozesLiberdade [dropcap]E[/dropcap]terna fome da alma, torrente imparável que destrói todos os obstáculos com força de elemento natural. Chama mais brilhante que se alimenta do combustível da opressão e da violência. Denominador comum de todos os mortais, aspiração dos imortais, transversalmente universal como a carne e o sangue, como um impulso de amor. A busca da liberdade confere humanidade como a ânsia pela transcendência e a habilidade de sonhar, uma avassaladora paixão que tolda os sentidos até ser consumada, como uma nuvem carregada que já não aguenta conter o derrame líquido. O grito que se solta e repele o cheiro a cárcere que se entranha no corpo e espírito, que quebra as amarras da submissão, que derrota iniquidades e exércitos de servidão. A liberdade não se domina ou modera, o seu exercício é absoluto, soberano, maior que todas as doutrinas e ideais combinados. A sua força pode parecer enfraquecida, latente, mas nunca se extingue, impossível de não cumprir o desígnio de concretização como uma maré que sobe empurrada pela massa dos astros. Expressão máxima do que é o Homem, natureza e condição humana em acção. Musa de poetas e filósofos, matéria onírica, pesadelo dos tiranos, doce e vingativa revolução que paira por cima de todas as ditaduras como uma tempestade inevitável. Simplicidade que derrota a prepotência, maioridade que ganha ao infantilismo a que os déspotas votam os seus súbditos, clarão luminoso que leva a verdade ao mais obscuro recanto. Uns quantos teorizaram que todos os homens e mulheres estão condenados a ser livres, que essa é a sua génese, a página em branco desde o primeiro segundo de vida, a condição na qual se nasce. Outros entendem que jamais alguém será totalmente livre, que o mundo vive acorrentado à pessimista equação entre desejo e escolha consciente. Onde quer que esteja a chama da verdade, entre natureza bruta e fria racionalidade, os raios de sol vão sempre iluminar a treva. Entre as muitas mentes brilhantes que se debruçaram sobre o tema, há quem entenda a liberdade como uma emanação material, longe das teorizações burguesas metafísicas e ideais abstractos, a satisfação de se poder ser e fazer. Também é comum descrever-se a liberdade como uma espécie de fronteira que demarca onde um indivíduo acaba e o outro começa, a barreira que circunscreve uma unidade de vida e a divide da seguinte. A questão dos limites da liberdade condicionada socialmente está no cerne da verdadeira definição do que é ser livre. Estarão as várias liberdades individuais conectadas e dependentes umas das outras? A condição de se ser livre é algo pessoal ou social? Apesar da validade teórica e ética de uma liberdade que se realiza no confronto individual, a sua acepção pessoal vinca a existência. A característica intrínseca, inerente à pessoa, faz com que mesmo o encarcerado seja naturalmente livre. A certeza desta autonomia ultrapassa todas as celas, métodos de controlo, violência de Estado, terror assassino, doença e mesmo a inevitabilidade da morte. Apesar de amordaçado, o grito de liberdade esgueira-se entre os dentes, como um sopro que se agiganta. Fora do plano teórico, ser livre na sociedade em que vivemos pode reduzir-se ao simples privilégio de não nos chatearem os cornos, de termos acesso ao luxo do silêncio fora do alcance do WIFI. Sair de cabeça erguida do labirinto de produção e consumo onde meio mundo anda perdido, cumprindo a profecia de Debord do cativeiro do entretenimento e das falsas escolhas. Acordar para dias formatados por obrigações de toda a ordem, viver contido, confortável em passividade segura, evitando ao máximo o risco e o perigo de ser desbragadamente livre, para além dos limites das convenções sociais e até das leis. A liberdade é difícil de definir. Já a submissão é mais fácil de identificar, sente-se na pele, aterroriza os que ainda não foram aprisionados, fustiga a pele de quem ousa dizer uma palavra verdadeira, castra a criatividade e a expressão artística. O problema para quem aspira ser livre é que também a violência é inerente ao ser humano. Enquanto a experiência da humanidade durar, duas forças contraditórias vão continuar um conflito sem tréguas: liberdade e subjugação. Olavo Rasquinho VozesO meteorologista de Estaline – O homem que viveu duas vezes [dropcap]A[/dropcap]o ler a biografia de José Estaline, de Simon Sebag Montefiore, a minha curiosidade foi aguçada pelo facto de ser mencionado que ele (Estaline) trabalhara como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tbilisi, na Geórgia. Procurei mais informação mas não consegui saber quais as suas funções no Instituto Meteorológico. Tudo indica que não teria sido meteorologista na medida em que não consta que tivesse estudado matemática e física em profundidade que lhe permitissem compreender os fenómenos meteorológicos. Provavelmente limitar-se-ia a ler os instrumentos e a registar periodicamente os valores das variáveis meteorológicas, tais como a pressão atmosférica, a temperatura do ar, a precipitação e a avaliar visualmente outros parâmetros como a nebulosidade, visibilidade, nevoeiro, neblina, bruma seca, etc. Quanto muito teria exercido as funções de observador meteorológico. Continuando a busca de algo que relacionasse Estaline com a meteorologia, deparou-se-me o livro “O Meteorologista”, do escritor francês Olivier Rolin. O meteorologista não era Estaline, mas sim o seu contemporâneo Alexei Feodossievitch Vangengheim. Além de ambos terem tido profissões na área da meteorologia e de serem entusiastas das novas ideias que alastravam pela Rússia no início do século XX, nada mais de comum teria havido entre eles. Estaline era filho de um sapateiro e nascera em 1878 em Gori, na Geórgia (Cáucaso) e Alexei descendia de uma família da pequena nobreza e nascera em 1881 numa pequena aldeia, na Ucrânia. No entanto o destino ligou-os de maneira trágica. Enquanto Estaline enveredou pelo envolvimento político ativo, Alexei dedicou-se a uma carreira nas áreas da física e da matemática. Frequentou, no início do século XX, o Departamento de Matemática da Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscovo. Depois do serviço militar frequentou o Instituto Politécnico de Kiev e o Instituto Agrícola de Moscovo. Casou em 1906, tendo ingressado mais tarde no Serviço Hidrometeorológico do Mar Cáspio. Ainda antes da revolução é mobilizado como chefe do Serviço Meteorológico do VIII Exército, tendo os seus conhecimentos de meteorologia sido aproveitados em batalhas entre russos e austríacos, em que eram empregues gases, arma de guerra cujo uso era muito dependente da direção e intensidade do vento. Após a revolução de Outubro de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu entre Brancos e Vermelhos trabalhou no Observatório Geofísico em Petrogrado, onde foi o responsável pela previsão do tempo a longo prazo. O interesse pela meteorologia foi-lhe provavelmente transmitido pelo seu pai, que montara uma estação meteorológica nas suas terras. Apesar do seu pai pertencer à pequena nobreza, o que poderia fazer cair suspeitas de comportamento reacionário, Alexei optou por permanecer na Ucrânia após a revolução de outubro de 1917, contrariamente a um seu irmão que emigrou. Foi membro do partido bolchevique e, como tal, fez parte de numerosos comités e conselhos científicos. Foi nomeado para a direção do recém-formado Serviço Hidrometeororológico Unificado da URSS, a que chamava em alguns dos seus escritos “o meu querido filho soviético”. Foi o responsável pela instalação da rede de estações meteorológicas nas vastas regiões abrangidas pela URSS. Exerceu ainda outras funções, nomeadamente presidente do Comité Hidrometeorológico junto do Soviete dos Comissários do povo, diretor do Gabinete do Tempo e presidente do Comité Soviético para a organização do segundo ano polar. Contribuiu para a obtenção do recorde mundial de altura atingida pelo homem, com a subida do estratóstato designado por URSS1, que atingiu dezanove mil e quinhentos metros, em plena estratosfera, onde foram levadas a cabo observações de grande valor científico. Alexei participou em discussões iniciadas na década de 1930, conjuntamente com os diretores de serviços meteorológicos de outros países, em que se preconizava que a Organização Meteorológica Internacional (International Meteorological Organization – IMO), organização não governamental fundada em 1873, evoluísse no sentido da criação de um organismo internacional que coordenasse as atividades meteorológicas a nível mundial e cujos membros fossem os Estados aderentes. Tal veio a acontecer algumas décadas mais tarde, em 23 de março de 1950, com a entrada em vigor da Convenção Meteorológica Mundial, criando-se assim a Organização Meteorológica Mundial (World Meteorological Organization – WMO), agência especializada das Nações Unidas. Como fruto do seu trabalho, no primeiro dia do ano 1930, foi emitido o primeiro boletim meteorológico através da rádio. Era com orgulho que contribuía assim, na sua maneira de pensar, para a construção do socialismo. As previsões do tempo poderiam contribuir grandemente para o êxito da agricultura. E provavelmente assim seria, se houvesse uma rede de estações suficientemente densa não só na URSS mas também nos países a oeste, na medida em que nessas latitudes os fenómenos meteorológicos se deslocam com forte componente de oeste para leste. Na realidade os serviços meteorológicos não estavam tão bem organizados como atualmente e o sistema de telecomunicações não era suficientemente expedito que permitisse a transmissão dos comunicados meteorológicos com eficiência em tempo real, o que motivou que a fiabilidade das previsões do tempo não fosse muito elevada. Entretanto, a coletivização da propriedade rural levou à desmotivação dos camponeses o que provocou, juntamente com outras causas, uma baixa dramática da produção agrícola. A coletivização não se limitou às imensas propriedades dos latifundiários, que tanto exploraram os camponeses antes da revolução de outubro de 1917, mas também às propriedades dos camponeses que praticavam agricultura de sobrevivência. Um camponês com uma ou duas vacas era considerado Kulak e, portanto, inimigo da revolução. A coletivização forçada e as requisições de cereais decretadas por Estaline levaram em 1932 e 1933 a milhões de mortos na Ucrânia. Para justificar o insucesso na agricultura havia que encontrar bodes expiatórios. E assim Alexei foi acusado de propositadamente difundir previsões meteorológicas erradas com o intuito de sabotar a revolução. A sua ascendência nobre e ser irmão de um emigrado também contribuíram para que as suspeitas do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (abreviadamente designado por NKVD) caíssem sobre ele. Ainda por cima tinha contactos com personalidades estrangeiras. O convite ao meteorologista escandinavo Tor Bergeron para apresentar palestras na URSS contribuiu para que caíssem sobre ele suspeitas de contactos com estrangeiros não só sobre meteorologia mas também sobre outros assuntos. Bergeron foi um dos criadores da teoria norueguesa sobre a evolução de depressões associadas a superfícies frontais que separam massas de ar polar de massas de ar tropical, teoria essa que adotou representações gráficas das frentes que ainda hoje são usadas nas cartas meteorológicas. Alexei foi preso pela polícia política em 1934 e condenado a dez anos num campo de trabalhos forçados. Mais tarde, em 1937, foi-lhe agravada a pena para fuzilamento. O Campo de trabalhos forçados situava-se no nas ilhas Solovetsky, no Mar Branco, próximo da Finlândia e do círculo polar ártico. Foi nestas ilhas que se instalou o primeiro campo, em 1923, do que veio a tornar-se na Direção Central dos Campos (Glavnoye Upravleniye Lagurey), cujo acrónimo GULAC se tornou célebre. Ironicamente, em dez de agosto de 1956, três anos após a morte de Estaline, o presidente do Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS, assinou um decreto através do qual foram canceladas a decisão do Colégio da OGPU (Direção Política Conjunta do Estado) tomada em 7 de março de 1934 (condenação a dez anos em campo de trabalhos forçados) e a decisão da troika especial do NKVD de Leninegrado de 9 de outubro de 1937 (condenação à morte por fuzilamento). É pena que o cancelamento dessas decisões não devolvesse a vida do meteorologista… A esposa de Alexei, Varvara Ivanovna, faleceu em 1977 sem saber onde nem quando e em que circunstâncias o seu marido fora assassinado. A versão oficial que lhe fora entregue em 1957 foi a de que o seu marido morrera em 17 de agosto de 1942, de uma peritonite. Olivier Rolin, seu biógrafo, decidiu investigar a sua história quando consultava documentos reunidos pela ONG Memorial, associação russa dos direitos humanos criada durante a Perestroika. A sua curiosidade foi despertada por uns desenhos enviados por um deportado para sua filha, Eleanora, tirando assim do anonimato uma das muitas vítimas inocentes dos tempos conturbados vividos na URSS durante a década dos anos trinta do século passado. Esse deportado, que oficialmente morrera de uma peritonite em 1942, mas que na realidade fora fuzilado em 1937, era Alexei Feodossievitch Vangengheim. Tânia dos Santos Sexanálise VozesTambém há censura no sexo [dropcap]A[/dropcap] censura dos órgãos genitais bem que podia ser um problema do passado. Um pé é sempre um pé. Mas os genitais podem ser outra coisa qualquer? Formas de calão como passarinha, rata ou pipi existem por alguma razão. Censuramo-nos e coramos ao som de palavras simples como vulva ou pénis. A censura não precisa de ser regulada pelo sistema. Os poderes de censura também são individuais. Gostamos de criar significados alternativos ao que nos é menos conveniente encarar, aquilo que julgamos prejudicial às nossas sociedades. O sexo à luz da tradição judaico-cristã é uma realidade dolorosa. Somos obrigados a reinventar o sexo com formas mais infantilizadas e simplistas para poder aceitá-lo. Tudo começa com o mito das abelhas, ou das cegonhas, ou de outro qualquer animal que parece estar envolvido na narrativa do sexo. A educação sexual mais progressiva é contra este fabular. Mascarar o sexo com a narrativa da abelha é evitar a naturalidade e a normalidade do prazer. Como se o sexo fosse um acto de violência que tenha que ser apagado para evitar a revolução das massas. Uma vulva é uma vulva, um pénis é um pénis e devemos usar essa linguagem desde cedo – são só os nomes cientificamente correctos. Há uma objectividade associada à simplicidade da nossa fisionomia. As múltiplas camadas de significado só ofuscam práticas de auto-consciência corporal e de sexualidade informada. A censura previne isso mesmo: conhecimento. Claro que estamos cheios de narrativas, e até a simplicidade da nossa fisionomia vem de uma narrativa. Mas a narrativa não é ameaçadora, é só informativa. A forma como encaramos e entendemos factos não produzem consequências óbvias. Não falar abertamente sobre sexo não faz com que as pessoas não o tenham. O sexo vai continuar existir, mas menos informado. Este é o medo infundado que, por exemplo, justifica a resistência de alguns pais em aceitar educação sexual nas escolas. A censura funciona como um obstáculo a conversas honestas – somente – contribuindo para o triunfo do medo. Claro que o corpo feminino é mais passível à censura, porque o entendem como explicitamente sexual. Ao ponto de se sugerir censurar os mamilos femininos com mamilos masculinos. A segurança assexual de mamilos masculinos certamente consegue esconder a sensualidade dos femininos. Aliás, um rapaz chinês com um problema endócrino raro viu crescer-lhe uma mama. A foto que foi publicada desta situação peculiar censura o mamilo esquerdo (o que agora tem um aspecto mais feminino), mas deixa o masculino. Os paradoxos do sexo e do género levam a isto. Estas são representações que devemos (temos que) transformar. Não serve a ninguém continuarmos a censurar a linguagem de vulvas e de pénis, muito menos das imagens dos mamilos femininos (ou até pêlos púbicos, outro clássico) quando as consequências apontam para uma narrativa deficiente do sexo. As situações mais flagrantes mostram mulheres adultas que não sabem onde ficam a entrada da vagina, da uretra ou o clitóris porque não se fala sobre elas. Não sabermos do nosso corpo é tramado. Não entendermos as histórias que levaram a padrões duplos também não nos capacita para os destruir. Como se ficássemos para sempre cegos com uma perspectiva da história que afinal podia ser múltipla. Como a história de nações que, perante factos, são capazes de escondê-los como um gato escondido de rabo de fora, julgando a censura inevitável, como se fosse a obra da nossa natureza instintiva de protecção. Mas é só uma estratégia – uma escolha. Hoje Macau VozesMedidas restritivas comerciais dos EUA prejudicam interesses do mundo inteiro Gong Xin * [dropcap]N[/dropcap]o mundo globalizado de hoje, as economias chinesa e americana são altamente integradas e estão vinculadas a uma união que é mutuamente benéfica e de ganha-ganha por natureza. No entanto, desde Março de 2018, a administração actual dos EUA adoptou uma série de medidas unilaterais e proteccionistas no comércio com a China. Essas medidas restritivas comerciais não são boas para China nem para os EUA, e são ainda piores para o restante do mundo. As medidas tarifárias norte-americanas levaram a um contínuo declínio no volume de exportação da China para os EUA em 2019. Como a China tem de impor tarifas como contramedida aos aumentos tarifários dos EUA, as exportações norte-americanas para a China também caíram, já por oito meses consecutivos. A incerteza trazida pela fricção económica e comercial EUA-China tornou as empresas de ambos os países mais hesitantes em investir. Além disso, as medidas tarifárias não impulsionaram o crescimento económico americano. Em vez disso, aumentaram significativamente os custos de produção das empresas norte-americanas e preços domésticos, exercendo um impacto negativo sobre o crescimento económico e a vida do povo dos EUA. De acordo com um relatório de pesquisa, se os EUA sobretaxarem todas as exportações chinesas por 25%, o PIB dos EUA diminuirá 1,01%, reduzindo cumulativamente US$ 1 bilião nos próximos dez anos. As medidas tarifárias também prejudicaram severamente as exportações dos EUA para a China. Em 2018, quando o atrito económico e comercial piorava, as exportações de 34 estados norte-americanos para a China sofreram um queda, sendo os estados das regiões agrícolas do centro-oeste os mais afectados. As medidas proteccionistas adoptadas pelos EUA constituem uma violação grave às mais fundamentais e centrais regras da Organização Mundial do Comércio, incluindo o tratamento de nação mais favorecida e obrigações tarifárias, e expuseram o sistema de comércio multilateral e a ordem de comércio internacional ao perigo. As acções norte-americanas interrompem as cadeias industriais e de fornecimento globais, perturbam a confiança do mercado, reduzem a recuperação económica mundial e prejudicam o desenvolvimento das empresas e o bem-estar das pessoas em todos os países. A OMC cortou a sua previsão para o crescimento comercial global neste ano de 3,7% para 2,6%, enquanto o Fundo Monetário Internacional reduziu a sua estimativa para 3,3%, dizendo que a fricção económica e comercial poderia deprimir ainda mais o crescimento económico global. *Comentador político Sérgio de Almeida Correia VozesE se fizessem o reset* do sistema? [dropcap]M[/dropcap]aio foi-nos trazido sob a influência de Urano, agente do despertar cósmico, das mudanças rápidas, por vezes violentas, propiciador de relâmpagos e tempestades, capaz de libertar sem aviso prévio ideias e frases de grande impacto. Ao que me dizem, a aproximação de Vénus a Saturno trar-nos-á alguma contenção e equilíbrio a partir do último dia do mês, assim se antecipando dias estivais mais calmos. Para quem já esqueceu, o mês que findou foi politicamente vibrante e isso reflectiu-se na visita do Presidente da República, nas romarias a Pequim e Lisboa dos responsáveis políticos, na exaltação das virtudes patrióticas e num sem número de declarações que deveriam merecer reflexão. E, quem sabe, diria mesmo um acto de contrição como aquele que agora aconteceu com o multimilionário Joseph Lau. Condenado pelos tribunais da RAEM por corrupção activa e branqueamento de capitais em pena a que até hoje escapou, depois de ter anunciado a sua oposição à proposta de lei que permitiria ao Governo de Hong Kong facilitar a entrega de infractores em fuga, como ele, às entidades do interior da China, de Macau e de Taiwan, veio de repente dizer que desistiu de se opor à nova lei. Diz que não vai contestá-la, que está muito triste com a desarmonia gerada e que apoia a governação de acordo com a lei por parte do Governo de Hong Kong. E antes? Desconheço se o sujeito entrou nalgum trade-off, nem com quem, mas tanto amor à lei, à Pátria e a Hong Kong, tanto empenho na harmonia deveria terminar com a sua entrega às autoridades da RAEM para cumprir a pena em que foi condenado. Então não seria bonito de um momento para o outro ver toda a bandidagem do colarinho branco (alguma já com os colarinhos encardidos de tanto esquema), de cá e de lá, a entregar-se às autoridades? Isso é que seria amor à Pátria e ao princípio “um país, dois sistemas”. A sério. Certamente que os seus advogados lhe dirão isto. Mas quanto às declarações locais, a primeira pérola veio de Ho Iat Seng, candidato a Chefe do Executivo. E que disse ele? Então não é que antecipando–se à piedosa confissão de Joseph Lau veio dizer que com ele os direitos da comunidade portuguesa irão ser respeitados, que valoriza o seu papel e que serão todos tratados da mesma forma? Quando o ouvi no canal radiofónico da TDM pensei que se tinham enganado a ler as notas. Depois, ao ler no jornal, fiquei com curiosidade de saber em que circunstâncias tais declarações foram produzidas. Se à saída de um karaoke ou se depois de uma noite de insónia. Pelo que se viu com a dispensa dos ex-assessores portugueses da AL, dando-lhes cabo das carreiras profissionais e das vidas familiares, atirando-os para o desemprego, já estaria a ensaiar o seu modelo de protecção à comunidade portuguesa. Sim, porque portugueses não quer dizer comunidade portuguesa. A comunidade é óptima, claro. Os portugueses individualmente é que não, salvo quando se comportam como uns caniches amestrados, adulando quem lhes paga e temperando os pareceres que dão para lhes renovarem os contratos. Mal refeito desta tirada do candidato a Chefe do Executivo, ouvi o Senhor Secretário para a Segurança exaltar as virtudes do jornalismo obediente, mansinho e ao serviço do poder político e das suas causas. Genial. Foi pena que, aproveitando-se a deslocação a Macau de Rocha Vieira, de Fernando Lima e de Martins da Cruz, não tivessem reunido esforços para darem um curso de jornalismo sadio, patriota, aos profissionais locais. Carecidos como eles estão, com o apoio da Fundação Macau e do Instituto Internacional do Dr. Rangel, teria sido um sucesso. Pode ser que o José Carlos Matias se lembre disso numa próxima ocasião, mas não vai ser fácil voltar a reunir na RAEM tantas sumidades versadas em matéria de escutas, rumores e controlo da comunicação social. Esse curso de jornalismo amestrado teria sido particularmente importante numa altura em que a situação da segurança começa a fazer lembrar os piores tempos da administração portuguesa. Esfaqueamentos, cenas de pugilato no Cotai, roubo de milhões de dentro de um casino, aumento da criminalidade violenta, sequestros, gatunagem em fuga e dependente do auxílio das autoridades do outro lado para ser apanhada…; enfim, tanta câmara, tanta polícia, tanta escuta e só há resultados na cobrança de multas de estacionamento e no excesso de velocidade? É claro, por falar em multas, que nada disso tem o peso das declarações do Secretário para os Transportes e Obras Públicas. Por vezes tenho a impressão de que ele perde a paciência com os deputados. Como o compreendo. E o caso não é para menos. Não bastavam as obras do metro ligeiro, as inundações, aos aluimentos de terras, o hospital, os autocarros, os táxis, a qualidade do ar, os plásticos, o terminal marítimo da Taipa, a água que jorra da ETAR de Macau, a China Road and Bridge Corporation zangada e em tribunal por causa de meia dúzia de patacas, os “talentos” espalhados pelos passeios e em risco de serem pisados a qualquer momento pelo deputado Mak Soi Kun, e ainda se vão queixar do estacionamento? Mas onde é que esta gente vive? Qualidade de vida? Andem a pé. Então não gostam de ir todos os anos na marcha do Jornal Ou Mun? Agora podem treinar durante todo o ano, emagrecer saudavelmente. A influência de Urano ainda se fez sentir nas declarações da Secretária para a Administração e Justiça. A Dra. Sónia Chan reconheceu candidamente acreditar que “depois de haver uma sentença que essa vai ser traduzida para a outra língua”. Pois é, se recebesse sentenças saberia que não devia acreditar na imaginação, porque na prática não é verdade. Ainda há dias uma simpática senhora juíza, depois de ter notificado verbalmente em chinês, com tradução simultânea em português ao ouvido do advogado, mais de uma dezena de páginas, dispensou a tradução ao arguido em língua portuguesa, entre outras razões, imagine-se, por falta de meios! Falta de meios? Em Macau? Com o PIB que temos? Ainda se fosse no Canadá ou na Suíça, que não têm casinos decentes, eu poderia entender. Ora, a Senhora Secretária devia começar por dar meios aos tribunais. Para o que bilinguismo melhore e as decisões judiciais possam ser notificadas aos interessados com cópia em papel na língua que os destinatários, advogados ou partes, dominam. Para que se cumpra a Declaração Conjunta Luso-Chinesa e a Lei Básica. Imagine o que seria se os despachos do Chefe do Executivo lhe fossem entregues em servo-croata? É mais ou menos o mesmo. Pareceu-me ver aí alguma condescendência e boa vontade quando afirmou “eu até posso dialogar com os tribunais e alterar a lei actual”. E de que está à espera? Parece-me um bom princípio e só lhe ficaria bem, tanto mais que é a própria que também diz que isso “não é difícil”. O problema está quando, logo a seguir, a Dra. Sónia Chan pergunta: “mas na verdade, e na prática, se fizermos a alteração, o que vai acontecer depois?” (HojeMacau, 28/05/2019, p.7). Ó Senhora Dra., então isso pergunta-se? E o deputado Pereira Coutinho iria responder-lhe? Eu não quero deixá-la na dúvida e posso garantir-lhe que se isso for feito vamos todos, cidadãos residentes e não-residentes, advogados, magistrados, entendermo-nos muito melhor. Vamos ser todos muito felizes. Ainda mais, quero dizer. E logo na Grande Baía, Senhora Dra.! Já viu o benefício que seria? Já nos imaginou a recebermos despachos judiciais, sentenças, acórdãos numa língua que entendemos? E se isso fosse alargado às notificações do Turismo e dos Assuntos Laborais, e a todos os serviços da Administração Pública? Já pensou nisso? A quantidade de ramos de rosas que a AAM e os meus colegas, até os avarentos e que andam sempre à procura de subsídios, não iriam enviar para o seu gabinete. E então se as sentenças viessem por correio electrónico traduzidas nem lhe conto. Alguns até iriam dançar para a Praia Grande, lançar foguetes, sei lá, dar vivas ao futuro querido líder. Hoje vou deixar descansar o Dr. Alexis Tam e o Dr. Lionel Leong. Um porque ainda está a gozar os louros do seu Honoris Causa e a recuperar do jet-lag. O outro porque ainda está a reflectir sobre as razões para não o deixarem ser candidato a Chefe do Executivo. Não convém perturbá-los, ainda têm muito para fazer. Em todo o caso, gostaria de deixar uma palavra de solidariedade e muita compreensão ao Senhor Procurador, Dr. Ip Son Sang. É certo que me parece ver ali um remar contra a maré quando se alerta para a necessidade de contratação de magistrados portugueses “qualificados e experientes” para trabalharem em Macau. Sei que contratar portugueses já será difícil, qualificados e experientes ainda mais. Concordo, aprecio o esforço e também o trabalho que tem desempenhado no sentido da melhoria dos recursos e em matéria de tradução. Espero que o escutem e que lhe dêem razões para sorrir. Porém, onde senti que era mais importante deixar uma palavra de apoio ao MP e à sua hierarquia foi na parte do relatório 2018 em que o estimado Dr. Ip se queixou das dificuldades criadas pelo seu senhorio à acção da instituição que dirige. Homessa? Então não é que o MP enfrentou “de novo” uma acção de despejo, em 2018, “mais uma vez a ‘desocupação forçada’ exigida pelo proprietário para recuperar a unidade”? E que “o caso acabou por ser resolvido com um acordo que previa o aumento do valor de renda”, o que motivou “a incerteza do decurso da negociação, sendo causa de “enorme distúrbio e preocupação ao funcionamento e gestão dos lugares de trabalho do MP” (HojeMacau, 29/05/2019, p.9)? Como é possível isso acontecer? E com um inquilino que tem um batalhão de magistrados e funcionários, conhece a lei, tem-na do seu lado e paga as rendas atempadamente? Senhorio glutão. Imaginem então como será com o desgraçado do inquilino do estúdio, sem força negocial, que está nas mãos dos tubarões das agências de mediação e dos senhorios de Hong Kong e do Interior. Espero que o deputado Chan Chak Mo, presidente da 2.ª Comissão da Assembleia Legislativa, tenha lido com atenção o relatório do MP, em especial nesta parte, esclarecendo depois a opinião pública se o MP também cai na categoria dos “arrendatários trapaceiros”. Não dava jeito nenhum. Sugiro, pois, que se comece a preparar o reset do sistema de governança. Com a época de tufões à porta, e a silly season a entrar com esta força, tantos foram os bugs de Maio que começa a ser difícil distinguir a intromissão dos piratas (hackers) no sistema da acção dos especialistas encartados. * reset: o mesmo que reconfigurar, redefinir, reiniciar Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO fim da vida “I will respect the privacy of my patients, for their problems are not disclosed to me that the world may know. Most especially must I tread with care in matters of life and death. If it is given me to save a life, all thanks. But it may also be within my power to take a life; this awesome responsibility must be faced with great humbleness and awareness of my own frailty. Above all, I must not play at God.” Hippocratic Oath-Modern Version [dropcap]A[/dropcap] população mundial está a envelhecer e a capacidade de manter as pessoas desesperadamente doentes é cada vez maior. É um dever ajudar as pessoas que querem pôr termo à vida? Em caso afirmativo, deveriam ser apenas os pacientes terminais ou incluir aqueles que sofrem de doenças psiquiátricas, como no mediático caso de Aurelia Brouwers, a holandesa de vinte e nove anos que se encontrava tão infeliz que descreveu o seu sofrimento mental como “insuportável” e bebeu veneno fornecido por um médico, e se deitou para morrer, em 26 de Janeiro de 2018. A eutanásia e o suicídio assistido por médico são legais na Holanda, e daí que a sua morte foi sancionada pelo Estado. A paciente não era uma doente em fase terminal, mas foi autorizada a acabar com a vida devido à sua doença psiquiátrica, bebendo legalmente veneno letal. O Parlamento holandês considerou que se devia criar uma lei que permitisse aos médicos ajudar os pacientes a morrer em determinadas circunstâncias. A sua história é exclusivamente holandesa. A eutanásia é contrária à lei na maioria dos países, mas na Holanda é permitida, se um médico concordar, o sofrimento de um paciente for insuportável sem perspectiva de recuperação e se não houver alternativa razoável para a sua situação. Tais critérios podem ser mais simples de aplicar no caso de alguém com um diagnóstico terminal de cancro intratável e que sente muitas dores. A grande maioria das cerca de seis mil e seiscentas mortes por eutanásia na Holanda em 2017 são referentes a casos de pessoas com uma doença física, mas oitenta e três foram ajudadas a morrer por motivos de alto sofrimento psiquiátrico e cujas condições não eram necessariamente terminais. Os médicos de Aurelia não apoiaram os seus pedidos de eutanásia o que a levou a inscrever-se numa “Clínica de Fim de Vida”, em Haia que é o local de último recurso para aqueles cujas candidaturas foram rejeitadas pelo seu psiquiatra ou médico de família. A clínica supervisionou sessenta e cinco das oitenta e três mortes aprovadas na Holanda por motivos psiquiátricos, embora apenas cerca de 10 por cento dos pedidos psiquiátricos são aprovados, e o processo pode levar anos. A “Clínica de Fim de Vida”, só oferece eutanásia ou suicídio assistido a pessoas cujo pedido de morte assistida foi negado pela primeira vez pelo seu médico. A clínica não é um hospital ou um hospício, mas uma fundação com equipas de médicos e enfermeiros que trabalham separadamente e visitam os pacientes em casa. A clínica primeiro analisa o pedido, para determinar se cumpre os estritos critérios da lei holandesa de eutanásia e em caso afirmativo, uma das equipas conversa com o paciente por diversas vezes para investigar por completo o pedido. O historial clínico é pesquisado e os médicos envolvidos na situação são consultados. Se todos os critérios forem observados, o paciente pode morrer em casa, na presença de familiares e amigos. A cínica foi fundada em 2012, com base na lei da eutanásia e o direito holandês de morrer na sociedade. Ainda que qualquer paciente possa pedir à clínica a morte assistida, tem como objectivo principal os pacientes cujos pedidos de morte assistida são mais complexos e muitas vezes negados pelos seus médicos, ou seja, pacientes psiquiátricos, pessoas com demência ou que sofrem com doenças não fatais. A lei holandesa da eutanásia determina que apenas os pacientes que têm um sofrimento insuportável, sem perspectiva de melhoria, podem ser elegíveis para a eutanásia. A lei não contempla a distinção entre sofrimento físico ou psicológico. Os pacientes devem ser persistentes na decisão de solicitar a morte assistida e devem entender as consequências do seu pedido. O médico deve estar convencido de que não existe outra solução razoável para pôr termo ao sofrimento. Mas a lucidez significa que alguém tem a capacidade mental de escolher a morte em detrimento da vida? De acordo com a lei holandesa, um médico deve encontrar-se seguro do pedido de eutanásia do paciente, “voluntário e bem examinado”. Será que um doente psiquiátrico é idóneo para tomar a decisão? O desejo de morte poderá ser um sintoma da sua doença psiquiátrica? O facto de que se pode racionalizar sobre essa situação não significa que não seja um sinal da doença. Os psiquiatras devem tudo fazer para ajudar os pacientes a diminuir os sintomas da sua patologia e em transtornos de personalidade, um desejo de morte não é incomum. Se isso é consistente, e tiveram os seus tratamentos de transtorno de personalidade, significa que o desejo de morte é o mesmo que em um paciente com cancro que diz que não quer ir até à fase terminal? Os psiquiatras nunca devem conspirar com os pacientes que alegam que querem morrer, pois é possível não ser contaminado pela falta de esperança. Os pacientes perdem a esperança, mas os médicos podem ficar do seu lado e dar-lhes esperança. A morte da holandesa tem provocado um enorme debate a nível mundial e particularmente nos Países Baixos, pois ninguém sugeriu que era ilegal, embora os críticos tenham inquirido se era o tipo de caso para o qual a legislação permitia a eutanásia. As opiniões dividem-se sobre se havia uma alternativa aceitável, sendo que alguns argumentam de quando as pessoas solicitam a eutanásia por motivos psiquiátricos, em alguns casos suicidam-se, se não a recebem e que devem ser consideradas com doenças terminais. Alguns médicos afirmam que sabiam que os pacientes iriam cometer suicídio e não os podiam ajudar, pelo que a eutanásia como alternativa os deixava mais tranquilos por que existe uma lei que a permite e os que cometerão suicídio são terminais e não os querem abandonar pelo facto de não poderem continuar a viver nessa situação. Há outros médicos que discordam, pois sempre trabalharam com pacientes suicidas e nenhum foi terminal, que tiveram pacientes que cometeram suicídio, mas na verdade não eram casos para prever tal desfecho. O desconforto em torno da eutanásia para pacientes psiquiátricos tem a ver com a preocupação de que todas as opções podem não ter sido exploradas. Na clínica holandesa mais de metade daqueles que vão à procura da eutanásia por motivos psiquiátricos são rejeitados porque não tentaram todos os tratamentos disponíveis. A eutanásia e o suicídio assistido por médico referem-se a acções deliberadas tomadas com a intenção de terminar uma vida, a fim de aliviar o sofrimento persistente. Na maioria dos países, a eutanásia é contrária à lei e pode ser decretada uma sentença de prisão, sendo que nos Estados Unidos a lei varia entre os Estados. As definições de eutanásia e suicídio assistido variam. A distinção útil é de que a eutanásia é a acção que permite a um médico, por lei, acabar com a vida de uma pessoa por meios indolores, desde que o paciente e a sua família concordem, enquanto o suicídio assistido é a acção pela qual um médico ajuda um paciente a cometer suicídio se solicitar. A eutanásia também pode ser classificada como voluntária ou involuntária. É voluntária quando é conduzida com consentimento. A eutanásia voluntária é actualmente legal na Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Suíça e nos Estados de Oregon e Washington nos Estados Unidos. É não voluntário quando é conduzida em uma pessoa que é incapaz de consentir devido às suas condições de saúde e neste cenário, a decisão é tomada por outra pessoa, em nome do paciente, com base na sua qualidade de vida e sofrimento. É involuntária quando é realizada em uma pessoa que seria capaz de dar consentimento mas não porque deseje a morte ou porque não a solicitou, e é considerado como homicídio, pois muitas das vezes é contra a vontade dos pacientes. A eutanásia tem sido um tema controverso e emotivo. Existem duas classificações processuais de eutanásia, a passiva quando os tratamentos que sustentam a vida são retidos. As definições não são precisas. Se um médico prescreve doses crescentes de medicamentos analgésicos fortes, como opióides, pode eventualmente ser tóxico para o paciente e alguns argumentam que se trata de eutanásia passiva e outros, no entanto, dizem que não é eutanásia, porque não há intenção de tirar a vida. A eutanásia activa é quando alguém usa substâncias ou forças letais para acabar com a vida de um paciente, seja pelo próprio ou por outra pessoa. A eutanásia activa é a mais controversa, e envolve argumentos religiosos, morais, éticos e compassivos. O suicídio assistido tem várias interpretações e definições diferentes sendo um o que é de forma intencional ajudando uma pessoa a cometer suicídio, fornecendo medicamentos para auto-administração, a pedido voluntário e idóneo da pessoa. Algumas definições incluem as palavras “para aliviar o sofrimento intratável (persistente, imparável) ”. A maioria dos hospitais têm unidades de cuidados paliativos e qual o seu papel? A dor é o sinal mais visível de angústia pelo sofrimento persistente, e as pessoas com cancro e outras situações crónicas que ameaçam a vida muitas vezes recebem cuidados paliativos. Os opióides são comummente usados para controlar a dor e outros sintomas. Os efeitos adversos dos opióides incluem sonolência, náusea, vómito e constipação, podendo criar dependência e uma “overdose” pode ser fatal. É de considerar que em muitos países, incluindo os Estados Unidos, um paciente pode recusar o tratamento recomendado por um profissional de saúde, desde que tenha sido devidamente informado e se encontre com capacidade para decidir. O “Juramento de Hipócrates” é um argumento contra a eutanásia ou suicídio assistido por médico que remonta a cerca de dois mil e quinhentos anos. O juramento original incluía, as seguintes palavras: “Eu não darei uma droga mortal a quem pediu, nem farei uma sugestão nesse sentido.” O mundo mudou desde a época de Hipócrates, e muitos acham que o juramento original está desactualizado. A versão actualizada é usada em alguns países, enquanto em outros, por exemplo, no Paquistão, os médicos ainda aderem ao original. À medida que mais tratamentos se tornam disponíveis, a possibilidade de prolongar a vida, seja qual for a sua qualidade, é uma questão cada vez mais complexa. A eutanásia tem sido um tema de debate desde o início do século XIX. A primeira lei anti-eutanásia nos Estados Unidos foi aprovada no Estado de Nova Iorque, em 1828 e com o tempo, outros Estados seguiram o exemplo. O oncologista e bioeticista americano Ezekiel Jonathan Emanuel, no século passado, afirmou que a era moderna da eutanásia foi introduzida pela disponibilidade de anestesia. Em 1938, uma sociedade de eutanásia foi estabelecida nos Estados Unidos para pressionar pela legalização do suicídio assistido. O suicídio assistido por médicos tornou-se legal na Suíça em 1937, desde que o médico que termine com a vida do paciente nada tenha a lucrar. Durante a década de 1960, a defesa da abordagem do direito à morte por eutanásia cresceu. A Holanda descriminalizou o suicídio assistido por médico, reduzindo algumas restrições em 2002 e no mesmo ano o suicídio assistido por médico foi aprovado na Bélgica. É de atender que nos Estados Unidos, os comités formais de ética existem em hospitais, casas de repouso e clínicas, e as directrizes de saúde antecipadas, ou testamentos em vida, são comuns em todo o mundo. Estes tornaram-se legais na Califórnia em 1977, com outros Estados a seguir o exemplo. No testamento vital, a pessoa declara os seus desejos por cuidados médicos, caso se tornem incapazes de tomar a sua própria decisão. Em 1990, o Supremo Tribunal Federal aprovou o uso de eutanásia não activa. Em 1994, os eleitores do Oregon aprovaram a “Lei da Morte com Dignidade”, permitindo que os médicos auxiliassem os pacientes terminais que não esperavam ter mais de seis meses de vida. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos adoptou essas leis em 1997 e o Texas tornou a eutanásia não-activa legal em 1999. O célebre caso de Theresa Schiavo galvanizou a opinião pública na Florida, dado ter sofrido uma paragem cardíaca em 1990, passando quinze anos em estado vegetativo antes que o pedido do seu marido para permitir que terminasse com a vida fosse concedido. O caso envolveu várias decisões, apelações, moções, petições e audiências judiciais durante vários anos, antes da decisão de desligar o suporte vital ocorresse em 18 de Março de 2005. A Legislatura da Florida, o Congresso dos Estados Unidos e o presidente Bush desempenharam um importante papel e em 2008, 58 por cento dos eleitores do Estado de Washington escolheram a “Lei da Morte com Dignidade”, que se tornou lei em 2009. Vários argumentos são comummente citados a favor e contra a eutanásia e o suicídio assistido por médicos. Os argumentos a favor têm como base a liberdade de escolha, em que os defensores argumentam que o paciente deve ser capaz de fazer a sua própria escolha; a qualidade de vida, pois só o paciente sabe realmente como se sente e como é a dor física e emocional da doença e como a morte prolongada afecta a sua qualidade de vida; a dignidade, dado que todo o indivíduo deve poder morrer com dignidade; as testemunhas, pois os que testemunham a morte lenta de outros acreditam que a morte assistida deve ser permitida; os recursos, dado fazer mais sentido canalizar os recursos de pessoal altamente qualificado, equipamentos, leitos hospitalares e medicamentos para tratamentos que salvam vidas e para os que desejam viver, ao invés dos que não desejam; o humano, permitindo que uma pessoa com sofrimento intratável possa escolher acabar com esse padecimento, pois pode ajudar a encurtar o sofrimento dos entes queridos. Tais actos são praticados quando um animal de estimação tem sofrimento intratável, e é visto como um acto de bondade. Porque essa nobreza deve ser negada aos humanos? Os argumentos contra têm por base o papel do médico, pois os profissionais de saúde podem não estar dispostos a comprometerem a sua profissão, especialmente à luz do “Juramento de Hipócrates”; os argumentos morais e religiosos, pois várias religiões vêem a eutanásia como uma forma de homicídio e moralmente inaceitável. O suicídio também é “ilegal” em algumas religiões e moralmente, há o argumento de que a eutanásia enfraquecerá o respeito da sociedade pela santidade da vida; a capacidade do paciente, pois a eutanásia só é voluntária se o paciente for mentalmente capaz, com uma compreensão lúcida das opções e consequências disponíveis e a capacidade de expressar esse entendimento e o seu desejo de terminar com a sua própria vida. Determinar ou definir tal capacidade não é simples É ainda de considerar argumentos contra a culpa, pois os pacientes podem sentir que são um fardo para a sociedade e são psicologicamente pressionados a consentir. Os pacientes podem sentir que o fardo financeiro, emocional e mental para a sua família é demasiado grande e mesmo que os custos do tratamento sejam fornecidos pelo Estado, existe o risco de que o pessoal do hospital possa ter um incentivo económico para encorajar o consentimento à eutanásia; a doença mental, pois uma pessoa com depressão é mais propensa a pedir o suicídio assistido, o que pode complicar a decisão; a escalada escorregadia, pois existe o risco de que o suicídio assistido por um médico comece com os pacientes que estão em estado terminal e desejem morrer por causa do sofrimento intratável, mas depois comecem a incluir outros indivíduos e situações. É de considerar por último como argumentos contra a possível recuperação, pois ocasionalmente, um paciente recupera, contra todas as probabilidades. O diagnóstico pode estar errado; os cuidados paliativos, dado que os bons cuidados paliativos tornam a eutanásia desnecessária; o regulamento, pois a eutanásia não pode ser adequadamente regulada e as estatísticas, dado que as opiniões parecem estar a aumentar a favor da eutanásia e do suicídio assistido. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Harvard publicaram resultados de uma pesquisa na qual inquiriram pessoas de setenta e quatro países acerca do suicídio assistido por médicos, tendo 65 por cento dos entrevistados discordado e onze dos países inquiridos foram a favor. Os mil e oitocentos entrevistados nos Estados Unidos representavam quarenta e nove Estados, tendo 67 por cento votado contra, sendo que em dezoito Estados, a maioria era a favor do suicídio assistido por médico. A pesquisa realizada pela “Gallup” em 2017, revelou que 73 por cento dos inquiridos eram a favor da eutanásia e 67 por cento eram a favor do suicídio assistido por médico nos Estados Unidos. A entrevista descobriu que 55 por cento dos que frequentavam uma igreja semanalmente eram a favor de que um médico pusesse fim à vida de um paciente que está com doença terminal, em comparação com 87 por cento dos que não frequentavam regularmente a igreja. A pesquisa descobriu ainda que se trata de uma questão política também, pois nove entre dez liberais são a favor, em comparação com 79 por cento dos moderados e 60 por cento dos conservadores. Os países onde a eutanásia ou o suicídio assistido são legais, são responsáveis por um total de entre 0,3 e 4,6 por cento das mortes, mais de 70 por cento das quais relacionadas com o cancro. João Romão VozesEuropa mais verde [dropcap]A[/dropcap] agenda ecológica vai fazendo o seu lento mas aparentemente imparável caminho na discussão política: a cada vez mais visível emergência dos problemas ambientais e a eminência de uma catástrofe global sensibilizam um número evidentemente crescente de pessoas e mobilizam-nas para ações políticas diversas: com muito pouco tempo de diferença, tivemos adolescentes nas ruas de todo o mundo numa sem precedentes reivindicação do seu direito ao futuro e assistimos à duplicação da representatividade dos partidos ecologistas no Parlamento Europeu. Em vários países da Europa, os países ecologistas foram o segundo mais votado. Portugal também contribuiu para este crescimento com a estreia de um deputado eleito pelo PAN – contrariando, de resto, a generalidade das projeções publicadas na imprensa – mas foi da Alemanha (mais 8), França (mais 6) e Reino Unido (mais 5 deputados) que chegaram os maiores contributos. Já em relação à participação eleitoral, foi modesto o contributo nacional e a abstenção manteve-se muito próxima dos níveis habituais neste tipo de sufrágio, ao contrário do que aconteceu na generalidade do território europeu – na realidade um sinal de que as questões transnacionais da governação da União Europeia se vão tornando mais interessantes e mobilizadoras para a população do continente. Talvez essa preocupação chegue também a Portugal, um destes dias. Por enquanto pareceu percorrer grande parte do continente e contribuir – aparentemente de forma decisiva, como no caso da Holanda – para neutralizar a emergência da extrema-direita xenófoba em vários países. O aumento da participação foi acompanhado por um manifesto aumento da diversidade. A tendência que se vem assinalando em quase todos os países para a perda de hegemonia dos alegados “blocos centrais” – essa mesa onde animadamente repastam as chamadas esquerda e direita “moderadas” – atingiu um patamar sem precedentes no Parlamento Europeu: pela primeira vez desde que se realiza este tipo de eleição, as duas grandes “famílias” políticas não têm, em conjunto, mais de 50% de deputados. “Geringonças” governativas cada vez mais complexas há hoje muitas, por esse mundo fora. Também no Parlamento Europeu novas e criativas aritméticas serão certamente convocadas para definir maiorias num contexto de relativa pulverização do eleitorado e diversificação programática dos seus excelsos representantes. Nesta diversificação não coube o primeiro movimento que reivindica um original caráter europeu, liderado pelo conhecido ex-ministro das finanças da Grécia, no triste período histórico em que o país tentou enfrentar – sem sucesso – as regras da austeridade definidas pelas instituições europeias e pelo FMI. Apesar do mediatismo de algumas intervenções, nenhuma das candidaturas nacionais associadas a esse movimento transeuropeu – o Diem25 – conseguiu eleger representantes. Aliás, também a “esquerda da esquerda” sofreu significativa derrota e perda de representatividade à escala europeia, ainda que o número de representantes portugueses se tenha mantido, com uma significativa troca de posições entre os dois partidos (BE e CDU) aí representados. Pelo contrário, além dos ecologistas, também os liberais (onde se inclui o partido do Presidente francês, mas também uma forte representação – provavelmente temporária – do Reino Unido) conseguiram um crescimento significativo, juntando-se aos mais tradicionais grupos da social democracia, da democracia cristã e dos conservadores enquanto forças hegemónicas no Parlamento Europeu. Uma hegemonia mais partilhada e complexa, em todo o caso. Ao contrário do que foi anunciando na imprensa da especialidade nas semanas anteriores à eleição, nem os movimentos mais assumidamente xenófobos (ou fascistas, numa designação também muito utilizada – até pelos próprios – e eventualmente mais precisa), nem os partidos mais abertamente anti-EU assumiram posições determinantes nos luxuosos hemiciclos de Bruxelas e Estrasburgo. Essa extrema direita liderada pelo movimentos anti-imigração da Itália, França e Alemanha não foi acompanhada por uma significativa emergência de movimentos semelhantes noutros sítios – na realidade, em países como a Holanda, até desapareceram do espectro. Tal como noutros momentos históricos, a emergência da extrema-direita só parece ser possível em momentos de crise económica profunda, o que não parece ser (já? ainda?) o caso. De maneira semelhante, também os movimentos claramente anti-EU acabaram por conseguir limitada representação parlamentar – e que se tornará ainda mais pequena se e quando se concretizar o Brexit e saírem do Parlamento os deputados eleitos pelo Reino Unido. Dessa saída resultarão uma nova reconfiguração de forças e novas geografias e aritméticas parlamentares. São tempos interessantes mas com respostas lentas às urgências fundamentais. Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente (continuação) [dropcap]E[/dropcap]m Portugal, a referência a pessoas de determinada localidade expressa-se, pelo adjectivo derivado do nome da mesma localidade. Por exemplo: lisboeta é o natural de Lisboa, ou gente de Lisboa. Na China, a forma para designar a naturalidade é semelhante. Por exemplo: Beijing ren, Xangai ren (gente de Pequim, gente de Xangai). No caso de Macau, único em todo o território da China, Ao Men ren (gente de Macau, em mandarim) Ou Mun yan (em cantonense) é uma designação que não inclui toda a população de Macau. Na minuciosa especificação que os chineses fazem da população de Macau, Ao Men ren ou Ou Mun yan não significa toda a população de Macau. Significa, apenas, a população chinesa de Macau. Os macaenses são designados, pelos chineses de Macau, por “t’ou-san” (filhos e filhas da terra, habitantes locais). A população chinesa de Macau distingue os portugueses em: macaenses e reinóis, ou metropolitanos. Aos euro-asiáticos ou macaenses chamam “t’ou-san”, como já se disse. Aos “portugueses de Portugal” chamam “Kuai-lôu” (gíria: diabo, ele ou ela). E especificam ainda o género: “ngau-sôk” (lit.: tio boi) e “ngaû-pó”(lit.: mulher vaca). Por seu lado, os macaenses distinguem-se dos chineses. Tradicionalmente autodenominavam-se “macaístas” ou “maquistas” e designavam os chineses por “chinas”. Os chineses de Macau que recebiam o baptismo e adquiriam um nome cristão/português eram conhecidos por “chong cao” (convertido ao cristianismo, novo cristão). O peso social dos macaenses em Macau outorgou-lhes a distinção social “t’ou-san” que, ao mesmo tempo, impede “Ao Men Ren” ou “Ou Mun yan” de significar “todos os naturais de Macau”, como acontece em todas as localidades do Continente. Isto significa que, do ponto de vista dos chineses de Macau, a sua terra é uma singularíssima excepção na China. É deles. Mas é, também, dos macaenses. O fenómeno da miscegenação não é vulgar no interior da China. Quando existe alguém, meio chinês e meio estrangeiro, a designação é “Hun Xue Er”, literalmente: misturado; mestiço. 8. A Mulher na Família Macaense “1600 – Macau conta na sua população com 600 famílias indo-portuguesas” (B.B. Silva : ob. cit.) “1635 – António Bocarro diz na sua Descrição de Macau: Os cazados que tem esta cidade são oitocentos sincoenta portugueses e seus filhos que são muito mais bem dispostos, e robustos, que nenhum que haja neste oriente, os quaes todos tem huns e outros seis escravos darmas de que os mais e milhores são cafres e outras naçoens(…). Além deste número de cazados Portuguezes tem mais esta cidade outros tantos cazados entre naturais da terra, Chinas Christãos que chamam jurubassas de q’ são os mais, e outras nações xtãos (…). Tem alem disto esta cidade muitos marinheiros pilotos e mestres solteiros Portuguezes os mais delles cazados no Reino, outros solteiros que andão, nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassar, Cochinchina, destes mais de cento e sincoenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de sincoenta mil xerafins que por nenhũ modo querem passar a Goa por não lançarē mão delles ou as justiças de Sua Magde. e assy tambem muitos mercadores solteiros muito ricos em que melitão as mesmas razões”. (idem). Ao longo do século XVII, apenas uma mulher portuguesa (europeia) existiu em Macau (MONTEIRO: 2007). Peter Mundi afirmou também que, em 1632 – quase um século depois do estabelecimento dos portugueses em Macau – não existia na cidade mais do que uma mulher europeia, sendo as outras mestiças, euro-asiáticas. Sobre a participação da mulher chinesa na construção da sociedade macaense, a historiografia divide-se. Bento da França (1897), Álvaro de Melo Machado (1913), Francisco de Carvalho e Rego (1950) e Carlos Estorninho (1952), entre outros, argumentam que a entrada das mulheres chinesas na sociedade de Macau foi tardia: “Por três séculos /…/ os portugueses não casaram com mulheres chinesas “. Posição contrária é tomada por Charles Boxer (1942) e pelo Padre Manuel Teixeira (1965), entre outros, que sustentam a participação da mulher chinesa na sociedade macaense, desde o início: “Os portugueses casaram com mulheres chinesas e, assim, (Macau) gradualmente foi povoada. (D’Avalo: 1638, citado por BOXER: 1942). Eu defendo a participação tardia da mulher chinesa na sociedade macaense pelas seguintes razões: – Os padrões de controlo social, tradicionalmente xenófobos entre os chineses, desqualificavam socialmente as mulheres chinesas que se relacionassem com estrangeiros. Esta situação parece ter começado a sentir algum alívio somente após a proclamação da República na China (1911). – Era costume antigo em Macau, a afixação e circulação de “pasquins” contendo crítica social: ao governador, a pessoas com destaque social e a factos e eventos que pisassem os limites da “normalidade macaense”. Produzidos no séc. XIX, existem “pasquins” ridicularizando, em patuá, casamentos anunciados, de homem macaense ou reinol com mulher chinesa. Isso não aconteceria se tais casamentos fossem uma prática habitual; – Construído em 1860, o Teatro D. Pedro V é propriedade da Associação dos Proprietários do Teatro D. Pedro V cujos Estatutos não permitiam a entrada a chineses. Esta discriminação étnica não aconteceria se fosse comum a mulher chinesa deter o estatuto de cônjuge nas famílias macaenses; – os chineses convertidos à religião católica, nascidos em Macau, recebiam a designação de “tchong cao” (inscrito na religião, novo cristão) mas não o de “tou san” (filho da terra), embora beneficiassem de um estatuto mais próximo do dos macaenses. – O crioulo de Macau (Patuá ou Maquista) é gémeo do crioulo de Malaca [Kristang] e o seu léxico contém escassa influência do cantonês (BATALHA: 1988). Como língua falada predominantemente na relação familiar – linguagem que se aprende no berço -, parece que a influência decisiva na construção da Família Macaense, entre os sécs. XVI e XIX , não terá sido da mulher portuguesa, nem da mulher cantonense. Esse papel terá sido desempenhado principalmente pela mulher euro-asiática não chinesa, (indo-portuguesa, de Malaca e de Timor-Flores, principalmente). À medida em que a influência da mulher euro-asiática não chinesa se foi distanciando, o Patuá foi perdendo terreno para o português padrão, acolhendo escasso número de léxico inglês – e de muito cantonense – que o conduziu ao processo de extinção, a par da entrada da mulher cantonense na sociedade macaense que alcança o seu auge entre 1945 e 1974, e marca o fim do papel da mulher asiática não chinesa na sociedade macaense e a sua substituição pela mulher cantonense. – A sociedade macaense tradicional, marcada pela mulher asiática não chinesa, tinha uma identidade própria que se empenhava na sua diferenciação activa do sul da China. Sempre resistiu à sua diluição no ambiente chinês, em retribuição, aliás, à atitude relutante dos chineses em relação à intrusão dos portugueses em território da China. 9. A ambivalência Cultural Macaense A comunidade macaense euro-asiática de origem chinesa, bem como os precedentes macaenses euro-asiáticos de origem não-chinesa, atribuíam um peso desigual aos elementos constitutivos da sua herança cultural ambivalente. Historicamente, a componente portuguesa era maximizada e a componente asiática secundarizada. Para um observador menos atento, certos comportamentos, com maior visibilidade no relacionamento de netos luso-chineses com avós maternos chineses, poderiam parecer incompreensíveis. Não resultando de conflito inter-geracional, a sua origem situava-se em “zona de diferença étnica”, aprofundada por eventual incompatibilidade cultural (escarro ou arroto ruidoso, uso dos pausinhos que vão à boca para retirar comida da travessa, etc.). A primeira geração de um casamento luso-chinês (homem português com mulher chinesa é o “casamento regra” entre 1945/74) é detentora de uma herança biológica mestiça paritária (50% chinesa-han/50% portuguesa-europeia). Mas este equilíbrio genético – que se mantém pela vida fora – não é observado no desenvolvimento comportamental dos indivíduos. Segundo Albert Bandura, psicólogo contemporâneo que elaborou a teoria da aprendizagem social, uma das mais importantes fontes de influência na aprendizagem humana é o comportamento dos outros. Diariamente somos expostos a uma enorme multiplicidade de modelos que, em diferentes contextos, exibem, desde os comportamentos mais simples, aos mais complexos. A observação desses comportamentos e das suas consequências será, em grande parte, determinante na aprendizagem. Mas a aprendizagem humana é selectiva. Os indivíduos tendem a imitar as figuras que lhe são significativas. Em regra, na primeira etapa da vida, o horizonte de observação e aprendizagem do indivíduo é o seu ambiente familiar, nomeadamente a estrutura interna da família. Quer na China, quer em Portugal, a autoridade parental, o papel de liderança da família, é atribuído ao marido / pai. Daí decorre a assumpção da herança cultural paterna como património familiar principal, mesmo quando ele opta pela educação dos seus filhos no exterior ou em escolas estrangeiras. Os casamentos inter-étnicos luso-chineses são principalmente entre homens portugueses e mulheres chinesas. Em tais casamentos, as referências culturais portuguesas são transmitidas de uma geração para a seguinte como as principais referências. 10. A educação dos macaenses Uma das decisões mais importantes nos casamentos luso-chineses diz respeito à educação das crianças. A educação nas escolas portuguesas era a escolha óbvia. Tão óbvia quanto a autoridade do pai dentro da família. A opção pela educação em português era a centrifugação definitiva que separava as duas componentes culturais das crianças macaenses, moldando a sua matriz cultural portuguesa e relegando os elementos da sua herança cultural chinesa para a periferia dessa matriz básica. É, portanto, compreensível que os macaenses falem, leiam e escrevam português, mas, em regra, não podem ler nem escrever chinês, embora falem cantonense. A capacidade de ler e escrever uma língua é a chave para o acesso à respectiva cultura. No caso dos macaenses, o domínio do português falado e escrito tem sido o factor decisivo da sua ligação à cultura portuguesa. Da mesma forma, a incapacidade de ler e escrever chinês tem sido o factor determinante do seu distanciamento da cultura chinesa, de cujas formas mais eruditas são absolutamente estranhos. Depois de concluírem os estudos secundários, alguns jovens macaenses, em regra, iam para as Universidades portuguesas e os restantes permaneciam em Macau. Para estes, a sua entrada na vida profissional, principalmente no Funcionalismo Público, coroavam os esforços iniciados com a decisão tomada pelo pai quando eram crianças e recompensava-os com o prestígio social de fazer parte da máquina administrativa que regulava a vida de Macau. Era impossível e impensável que um jovem macaense completasse o ensino secundário e fosse continuar os estudos numa universidade chinesa, no Continente ou em Taiwan. (continua) Tânia dos Santos Sexanálise VozesEstados de Úteros Saudáveis [dropcap]N[/dropcap]em todas as mulheres têm útero. Há homens que têm útero. O órgão responsável pela menstruação existe para além do género, já sabemos. Há quem não o queira porque não se identifica com ele, mas há quem não o queira também porque, às vezes, dá mais problemas do que prazeres. O estado de saúde do útero deve ser discutido – não é por acaso que no Reino Unido a co-fundadora de uma organização dedicada ao cancro do colo do útero tenha feito uma citologia ao vivo num talk show televisivo. O famoso Papanikolaou (o apelido do cientista que desenvolveu este exame) traz mais desconforto que outra coisa, mas é daqueles males que somos obrigados a engolir se queremos controlar a saúde do útero. O colo do útero é uma entrada para o útero pela vagina que se vai alterando durante o ciclo hormonal – abre-se e fecha-se de acordo com o desejo de contacto com o exterior. Durante a ovulação, como devem calcular, está muito mais receptivo. Podia estender-me aqui de como o útero é um órgão fabuloso que produz ovócitos e que consegue desenvolver a composição de células do ser vivo por parir. Este órgão é o palco e o protagonista de uma dança hormonal que faz com que a menstruação, já nossa muito conhecida, a ovulação, mais obscura, e a gestação aconteçam. A dança vai acontecendo com esperança que a fecundação se concretize – que nem sempre é uma possibilidade porque não ovulamos todos os meses. Estas formas dinâmicas e cíclicas do trabalho deste órgão podem não ser pacíficas – como para quem sofre de endometriose. A forma desastrada e dolorosa do endométrio e da menstruação se comportarem resulta no que já vi descreverem – sensação de facadas na barriga. Calcula-se 10% das mulheres no mundo sofrem de endometriose, mas o seu diagnóstico é raro. Isto vem da ‘normalidade’ com que as dores menstruais são encaradas. A endometriose é uma condição em que o endométrio (o forro do útero que permite a nidação) cresça em outros locais menos propícios, como nos ovários, nas trompas de falópio e pode chegar a outros órgãos adjacentes. Também não é de fácil diagnóstico porque é preciso realizar uma ecografia na altura certa do mês para poder ver a invasão do endométrio no seu esplendor. Ninguém sabe ao certo como é que esta condição se desenvolve. Existem formas de tratamento, mas ninguém sabe da cura. O desconforto desta condição é tal que há pessoas que preferem tirar o útero para resolver o problema. São uns dias por mês em que as sofredoras de endometriose se sentem assoberbadas de dores ao ponto de não saírem da cama. Estrelas televisivas já dão a cara por esta condição incapacitante, como a Lena Dunham, e assim contribuem para a consciencialização do que pode ser um útero doente. Assim espera-se que as 10% de mulheres por este mundo fora comecem a perceber o que há de errado com elas. A saúde do útero parece necessitar de um equilíbrio delicado para um funcionamento pleno, mas a investigação ainda não percebeu que equilíbrio é esse. O útero não participa no sexo da mesma forma que a vulva e a vagina. Não tem o factor prazer escarrapachado nas suas paredes, mas tem um papel importante na produção e regulação hormonal. A saúde da vagina é uma coisa, a saúde do útero é outra. Apesar de intimamente ligados, ficamos frequentemente presos na imaginação vulvar e vaginal e tornamos misteriosa a actividade do útero. Pensamos nele na menstruação – quando nos dá aquelas facadinhas – e pouco mais. Para estados de úteros saudáveis talvez tenhamos que trazer mais conversas: sobre o colo, sobre os dramas e os medos, sobre as vacinas que se podem tomar para prevenir doenças graves e sobre as menstruações dolorosas que as vezes os médicos têm dificuldade em identificar. Úteros de plena consciência do que são e podem ser. David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPortas do Cerco em estado de sítio [dropcap]N[/dropcap]os últimos dias, devido às obras de manutenção e reparação das escadas rolantes, as pessoas que viajavam de Zhuhai e Macau acumularam-se no corredor das partidas das Portas do Cerco. Dia 22 deste mês, a Polícia de Segurança Pública, o Gabinete das Forças de Segurança e o Gabinete de Transportes deram uma conferência de imprensa conjunta para apresentarem o plano de emergência para lidar com a situação. As medidas incluem a abertura de 13 guichets do controlo alfandegário, para que sejam evacuadas 12.000 pessoas num espaço de quatro horas. Na medida em que a entrada do edifício de controlo de fronteiras é estreita e as escadas rolantes estão em manutenção, o risco de acidentes aumenta com a enorme concentração de pessoas. É portanto urgente fazer sair esta multidão. Após a implementação das medidas, as pessoas só esperam cerca de 10 minutos até entrarem no edíficio da alfândega. Espera-se que abram mais dois guichets durante o fim de semana, passando assim de 13 para 15. O Gabinete de Transportes pediu às companhias transportadoras que os autocarros mudassem de rota, para que os passageiros pudessem sair junto aos portões de embarque. Os autocarros que fazem a volta dos hotéis foram reduzidos para um terço e os passageiros são encorajados a entrar e sair de Macau pela Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. A substituição das escadas rolantes do edifício da alfândega das Portas do Cerco causou a concentração de uma multidão, e demonstrou a capacidade de infraestrutura pública de Macau para dar resposta a incidentes. O projecto de manutenção das escadas rolantes surgiu no princípio de 2018, mas o público só foi informado no dia anterior ao início das obras. Muitos dos residentes e turistas só se aperceberam da situação quando chegaram às Portas do Cerco. Esta situação sugere que as autoridades deverão fazer um esforço para publicitar este tipo de ocorrências com maior antecedência e que haja um controlo mais apertado das entradas e saídas em Macau. Fora isso, seria possível que o Governo providenciasse no sentido de serem utilizados outros postos de controlo alfândegário, para libertar a pressão das instalações das Portas do Cerco? Como o tempo de espera para entrar e sair de Macau está a aumentar, é possível que venha a ser necessário criar condições especiais para idosos, crianças, grávidas e pessoas com incapacidades, para evitar qualquer mal estar causado pelas altas temperaturas que se fazem sentir no Verão. Mas, pior do que isso, é a possibilidade de transmissão viral, frequente em locais super-lotados. Se uma pessoa estiver doente, facilmente muitas outras serão contagiadas e todos sabemos que se há vírus inofensivos, há infelizmente outros muito perigosos. Também é necessário alertar a população para o uso de máscaras. A presença de médicos no local e o controlo sanitário poderão ser ainda questões a considerar. As obras de manutenção e reparação das escadas rolantes do átrio das Partidas do edifício alfandegário das Portas do Cerco irão demorar cerca de 60 dias. O público irá sentir os seus transtornos por igual período. As escadas estão montadas paralelamente, em grupos de três. Devido às restrições de espaço, é possível que passem para grupos de duas, diminuindo grandemente a capacidade de transporte. Há uns tempos atrás estas escadas causaram muitos acidentes. Alguns turistas do continente forçavam manualmente a paragem das escadas e as pessoas que iam mais abaixo, como não conseguiam aguentar o impacto, perdiam o equilíbrio e caíam, fazendo cair também os que estavam atrás deles. Este foi um dos motivos que levou a separar as escadas em várias secções, de forma a diminuir os danos dos possíveis acidentes. Este aspecto deve de ser considerado na actual remodelação. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk Jorge Menezes VozesAL: portas fechadas e deputados calados [dropcap]N[/dropcap]ão foi preciso a casa ter sido ‘roubada’ para a Assembleia Legislativa (AL) pôr trancas nas portas. O Regimento da AL determina que as reuniões das comissões “decorrem à porta fechada”, salvo deliberação em contrário. E assim tem sido: as portas têm estado trancadas e não há notícia de deliberações em contrário. Por este motivo, o deputado Sou Ka Hou (de quem fui advogado) foi acusado, quer por deputados, quer pelo presidente da direcção da Associação dos Advogados, de ter infringido a lei ao partilhar o que ali se discutira. Violara o que este último apelidou de “regras do jogo”: “defraudou e traiu a confiança que as pessoas podiam depositar nele”, quando “tinha de estar calado” (JTM, 05/12/2017). Porém, nem ‘jogo’ parece uma boa metáfora, nem o deputado violou a lei. E não tinha de estar calado. Os acusadores confundem ‘porta fechada’ com sigilo ou confidencia-lidade. Politicamente, é criticável que as reuniões decorram nos bastidores da vida política. A AL representa os cidadãos, que deveriam poder assistir, através da comunicação social, ao que os seus representantes defendem sobre a vida da comunidade, o modo como o fazem, os conhecimentos e ignorâncias que revelam, os preconceitos que exibem e por aí fora. Nem é possível representação autêntica sem transparência política. Porta fechada deveria ser a excepção, não a regra, numa terra já caracterizada por uma obscura cultura de governação. E assim é noutras paragens. Em Portugal, as reuniões das comissões “são públicas”, podendo, “excepcionalmente, reunir à porta fechada, quando o carácter reservado das matérias a tratar o justifique”. Em Hong Kong a lei é mais detalhada, mas similar. Juridicamente, se é certo que podem decorrer à porta fechada, é falso que seja proibido divulgar as posições assumidas por deputados em reunião de comissão. Nem há qualquer sanção para quem o faça. ‘Porta fechada’ significa que não se pode assistir. ‘Sigilo’, que não se pode revelar o que se lá passou. São conceitos distintos, de uso comum, na lei e no discurso político, que não escapariam a um legislador desatento (e que, veremos adiante, não escaparam). Ao determinar que as reuniões “decorrem” à porta fechada, proibiu-se a assistência da comunicação social ou do público. Nada mais. É como aulas de universidade, conferências ou assembleias gerais: não pode assistir quem quer, mas não é vedado debater cá fora o que foi ensinado ou discutido lá dentro. Só é confidencial o que a lei, expressamente, diz sê-lo. A Lei Básica prescreve que os direitos fundamentais só podem ser restringidos nos casos previstos na lei. E só o pode fazer dentro dos limites fixados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Constar expressamente de lei é condição necessária, mas não suficiente. O PIDCP determina que a liberdade de expressão e de expandir informações só pode ser submetida a restrições que, para além de “expressamente fixadas na lei”, sejam necessárias ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem, ou à salvaguarda da segurança nacional, ordem pública, saúde e moralidade públicas. O mesmo princípio consta da lei de imprensa. A confidencialidade das reuniões teria, pois, de ter sido expressamente fixada no Regimento. Mas não foi. Pelo contrário, deve ser feita acta das reuniões, a qual não é secreta. Só é imposto sigilo quando são convocados terceiros para prestar depoimentos ou apresentar provas, o que confirma que o legislador não andava distraído. Não tendo sido ordenado sigilo em nenhuma outra situação, o teor das reuniões de comissão pode ser partilhado e discutido. E o Regimento só poderia impor sigilo, sem violar a Lei Básica, se tal fosse necessário às finalidades referidas no PIDCP, o que nunca poderia suceder indiscriminada-mente quanto a todas as reuniões de todas as comissões. Afirmar o contrário seria caricato. Ou seja, nem a lei impõe, nem poderia impor, a apregoada confidencialidade (com a qual erradamente confundem o conceito de ‘porta fechada’). Imagine-se, aliás, o contra-senso que seria se o órgão de propensão democrática e representativa fosse gizado para actuar sob confidencialidade. Seria porta fechada e luz apagada. A própria AL revela-nos que os acusadores estão errados, pois é comum no final das reuniões um deputado narrar à comunicação social uma parte, por si cuidadosamente seleccionada, do que lá se passou. Costuma ser o presidente da comissão. Se divulgar fosse infracção, estava encontrado o infractor. Será diferente por presidir à comissão? Não. Em parecer recente, a Comissão de Regimentos e Mandatos revelou a máxima em que deve assentar a aplicação do Regimento: “onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir”, o que é correcto quando está em causa, como aqui, a restrição de um direito fundamental. O Regimento não distingue deputados-presidentes de deputados-não-presidentes quanto ao que podem ou não podem dizer. Nem nada diz sobre fechos de portas ou relatos de eventos. Logo, ou nenhum pode nada, ou todos podem o mesmo. Foi a Comissão quem nos ensinou. Aliás, o Estatuto dos Deputados determina que “todos” os deputados “têm o mesmo estatuto e são iguais em direitos, poderes e deveres”. A ideia de um eventual ‘uso parlamentar’ seria outro nado-morto. Para justificar que uns possam falar não é preciso invocar um uso: a prática de alguns falarem no final das reuniões não existe por virtude de um uso, mas por permissão da lei (extensível a todos os deputados). Nem ninguém contesta que os presidentes de comissão o possam fazer. Acresce que a prática de uns falarem não constitui um uso de outros serem proibidos de falar. Não falar, tal como não agir, não constitui existência, mas antes ausência de um uso. Não há contradição, mas concordância, entre o hábito de uns falarem e o direito de outros também falarem. Nem o silêncio constitui uso, nem existe uma prática ‘ancestral’ reiterada proibindo os deputados de falar. Aliás, nunca nenhum deputado foi proibido de o fazer. Mas se existisse tal uso, seria ilegal. É de lei que os usos só “são juridicamente atendíveis quando a lei o determine”, e o Regimento não o determina. E não são admissíveis usos que restrinjam direitos fundamentais. Nem que infrinjam a igualdade dos deputados, tornando uns ‘mais iguais’ do que outros. Uma prática ilegal não se tornaria legal por ser muitas vezes repetida. Não nos esqueçamos, aplicada aqui, da máxima que a Comissão nos ensinou: onde a lei não distingue, não devem os usos distinguir. Como todos os deputados são iguais e não há proibições ou obrigação de sigilo, qualquer deputado pode partilhar com os cidadãos o que os seus representantes pensam, em comissão ou fora dela. É o reflexo da velha sentença em que se traduz o princípio da liberdade: o que não é proibido, é permitido. Quem os acusar por divulgarem debates políticos, está a acusar duas mãos cheias de deputados de violar reiteradamente a lei. Todos erradamente acusados. Como aprendemos em criança, o que não é segredo, pode ser contado. Em política, deve ser contado. O que não é devido é querer mandar calar deputados. Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesOs dois barcos da Grande Baía [dropcap]N[/dropcap]esta vida, as coisas não acontecem à medida dos nossos desejos. Quando algumas pessoas tentam manipular os acontecimentos à luz dos dos seus interesses, sem consideração pelas reacções e pelos sentimentos dos outros, os conflitos acontecem. Se a lei não for respeitada, as normas e o civismo forem ignorados e só os poderosos tiverem capacidade de decisão, gera-se uma sociedade opressora e os confrontos tornam-se inevitáveis. Infelizmente, Hong Kong enfrenta outra grande dissensão interna. Nas “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau são considerados os quatro “motores principais”, para impulsionar a construção e o desenvolvimento da Grande Baía. Segundo os últimos dados, o poder económico e as potencialidades de Guangzhou e de Shenzhen já ultrapassaram os de Hong Kong e Macau. As duas regiões administrativas especiais deveriam assumir o papel de indutores de reformas no desenvolvimento da Grande Baía e de criadores de oportunidades para o futuro da China. Mas infelizmente o barco Hong Kong está à beira do desmantelamento, ao passo que o barco Macau ainda não levantou âncora. No planeamento para o desenvolvimento da Grande Baía, prevê-se que Hong Kong venha a ser um centro de inovação na área das altas tecnologias, um núcleo financeiro, que se assuma como centro para a resolução de conflitos legais internacionais, dentro da região Ásia-Pacífico, e que se torne uma metrópole internacional altamente competitiva. No entanto, se a revisão da lei “de extradição de condenados em fuga” se vier a impôr, todos estes objectivos cairão por terra. O Dr. Derek Mi-chang Yuen, um prestigiado docente do Departamento de Administração Pública da Universidade de Hong, publicou recentenmente um artigo intitulado “Os sinos tocam em King’s Landing, anunciando a rendição da cidade”: a escalada da controvérsia em torno da revisão da lei e a tensão sino-americana”. Yuen usa metaforicamente o cenário da série “Game of Thrones” para alertar Hong Kong para a possiblidade de se vir a tornar uma “cidade queimada”. E tudo isto porque o Governo de Hong Kong decidiu ignorar os procedimentos legislativos (debate no Comité Legislativo) para forçar a aprovação da lei de extradição dos condenados em fuga, enviando directamente a proposta para, a 12 de Junho, ser feita uma segunda apresentação no plenário. Se isto se vier a confirmar, abre-se um perigoso precedente que vai reduzir a pó o pouco que sobra dos valores fundamentais de Hong Kong. Baseado no conhecimento profissional e nos seus antecedentes especiais, o artigo de Yuen põe o dedo na ferida e reclama a atenção de todos os que estão envolvidos nesta controvérsia. O Movimento dos Chapéus de Chuva desgastou Hong Kong em larga escala e, se o Conselho Legislativo for despojado das suas funções legislativas e da sua capacidade de monitorizar a acção do Governo, vai ser impossível preservar os alicerces morais e ideológicos da cidade. Os slogans “Um País, Dois Sistemas”, “Hong Kong governado pelas suas gentes” e “um elevado grau de autonomia” não irão passar de cortinas de fumo. Quanto à revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga”, o campo Pan-democracia propôs que se aprovasse em primeiro lugar a extradição de Chan Tong-kai, o suspeito de ter assassinado a namorada em Taiwan, e que posteriormente se realizasse uma sessão de consulta pública para reunir as opiniões dos diversos sectores sobre esta matéria. Esta abordagem teria a vantagem de evitar conflitos e daria margem para a negociação entre as partes. Mas é uma pena que aqueles que estão no topo das muralhas não se queiram dar ao trabalho de escutar as sugestões do povo que por elas está cercado. Quando as muralhas caírem, o povo não tem por onde fugir. Mas depois da queda, quem é que vai lidar com a situação? Desde a transferência de soberania, Hong Kong fez duas más escolhas para Chefe do Executivo. Uma delas foi Leung Chun-ying, um homem de espírito aguerrido, a outra Carrie Lam Cheng Yuet-ngor, que não lhe fica atrás. Numa sociedade diversificada, a harmonia é preferível ao conflito. Se Henry Tang Ying-yen tivessse sido eleito em vez de Leung Chun-ying e John Tsang Chun-wah ocupasse o lugar de Carrie Lam, os assuntos teriam sido tratados de outra forma. E em Macau, o que se está a passar? Macau é um local em que nada muda e o poder governativo é muitíssimo estável. A eleição do Chefe do Executivo é basicamente um “one-man show” e as receitas provenientes das taxas do jogo e do turismo chegam para sustentar toda a população do território. Segundo as estatísticas, um total de 84.000 pessoas estão dependentes da indústria do jogo que emprega o maior número de pessoas, distribuídas por diversas profissões. Mas, à semelhança da construção do metro ligeiro, o progresso da diversificação industrial de Macau anda a passo de caracol. Macau, enquanto barco da Grande Baía, é um casino flutuante que não tem nada de construtivo para oferecer, para além de jogo, entretenimento, consumismo e lazer. A plataforma para a cooperação sino-portuguesa não passa de um simulacro da idea de criação de uma base de intercâmbio e cooperação em Macau tendo como foco principal a cultura chinesa e a coexistência da multiculturalidade. O próximo Chefe do Executivo de Macau tem a responsabilidade de tornar a cidade competitiva durante o seu mandato, caso contrário o barco “Macau” ficará encalhado nas águas estagnadas do prazer e acabará por afundar no mar da corrupção. Pôr de parte as disputas e suspender a revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga” será a única forma de evitar que Hong Kong se despedace contra os rochedos. Quanto ao fututo de Macau, tudo vai depender da capacidade das pessoas procurarem avançar, sem deixarem de desfrutar do seu conforto. Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente [dropcap]R[/dropcap]eflectindo quanto baste, parece poder concluir-se que: Não rendem votos aos partidos políticos portugueses, nem remessas de divisas, como as provenientes dos lucrativos emigrantes portugueses na Europa, no Continente Americano, na Austrália e na Nova Zelândia. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante àquele que os sucessivos governos nunca se esquecem de ter: uma Secretaria de Estado para a Emigração ou dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, conforme a semântica política mais ao gosto de cada maioria parlamentar. Nem cabem aí. Não proporcionam negócios, nem representam quota de mercado nas exportações portuguesas. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante aos que se dedicam à cooperação com a África ou a Europa. Nem cabem aí. Não proporcionam receitas ao Fisco e à Segurança Social portuguesa, nem a sua força de trabalho está à disposição de empresários portugueses. Em consequência: não há espaço em estruturas do tipo Alto Comissariado para as Minorias Étnicas e Imigração. Nem cabem aí. Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço nem atenção para as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente. Porque elas não são lucrativas para os cofres do Estado. Porque o Estado se habituou à vida fácil de, por lei ou por medidas administrativas, sobrecarregar os contribuintes com impostos e taxas que sucessivos (des)governos vão dissipando, em alegre paralisia ante a eurodestruição da economia portuguesa. Por outro lado, ex-ricas instituições privadas de utilidade pública, criadas à custa de muito dinheiro levado de Macau para Portugal, em condições que não dignificaram o País e que, em princípio, deveriam prestar atenção às Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente – saber onde estão, quantos são, que carências têm e as potencialidades que nelas existem – encaram as poucas de cuja existência vagamente sabem, como criaturas interessantes a que, de vez em quando, se dão uns “amendoins” com o afecto próprio do visitante de uma aldeia de macacos num qualquer jardim zoológico. A Universidade de S. José, em Macau, herdeira do património espiritual do glorioso Padroado Português do Oriente, ingloriamente desaparecido, que gerou espiritualmente as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, terá uma palavra a dizer, um tempo para sobre elas reflectir e um espaço institucional para elas? Fiz esta pergunta na comunicação que apresentei, em Fevereiro de 2011, na Conferência “A Lusofonia entre Encruzilhadas Culturais”, organizada, precisamente, pela Universidade de S. José… Parece não ser assunto que interesse. O seu objectivo mais importante, parece, é ser reconhecida como universidade chinesa… As Missões Portuguesas nos Estreitos, Malaca e Singapura, deixaram de existir em 1 de Julho de 1981, na sequência dos acordos celebrados entre o Bispo de Macau, D. Arquimínio da Costa, e os Bispos James Soorn Ceong, de Malaka-Johor, e Gregory Yong Soon Nghean, Arcebispo de Singapura, em 26 de Julho de 1977 e ratificados por decreto da Santa Sé, de 27 de Maio de 1981. A Missão Portuguesa de Malaca, desde a concordata de 23 de Junho de 1886, estava sujeita à dupla jurisdição exercida pelo Bispo de Macau e pelo Bispo de Malaca e incluía as igrejas de S. Pedro e de N. Senhora da Assunção e outras capelas. A Igreja de S. Pedro manteve as suas funções de Igreja paroquial e os seus padres continuaram a servi-las sob a autoridade do Bispo de Malaca, enquanto o Bispo de Macau o permitisse. Morreram os Padres Augusto Sendirn e Manuel Pintado, últimos missionários portugueses em Malaca. A Missão Portuguesa de Singapura compreendia a Igreja Paroquial de S. José que dependia do Bispo de Macau. Enquanto paróquia deixou de existir passando às funções de simples igreja de devoção e os seus padres continuaram a servi-la – padres Francisco António Bata e João Guterres. O sustento e as despesas destes padres continuaram sob a responsabilidade do Bispo de Macau. Os bens – imóveis e móveis – da Igreja de S. José continuaram a pertencer-lhe, sendo administrados pelo respectivo Reitor e sob controlo do Arcebispo de Singapura, enquanto o Bispo de Macau continuasse a enviar missionários. Quando isto deixasse de se verificar, seria realizado um acordo sobre a transferência civil desses bens. As outras propriedades pertencentes à Missão Portuguesa (Comission for the Administraüon of the States of Portuguese Mission in China) não entraram neste Acordo. A Diocese de Macau foi, portanto, o último reduto do Padroado Português do Oriente. Não esteve, o Senhor Bispo D. José Lai, na disposição de convidar os bispos das dioceses onde vivem as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente para uma conferência em que se desse início ao trabalho de unir as pontas desta teia cuja destruição teve início com o corte das relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal português em 1833 e a extinção das ordens religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834. Agora é tarde. Macau tem um Bispo estranho à Igreja de Macau. Provavelmente, para preparar a sua transformação em paróquia de Hong Kong ou de Cantão. Estabelecida como Diocese em 1576, uma das maiores dioceses do Mundo em área territorial, dela nasceram as dioceses de Funai-Nagasaki (1588), Nanjing (1658), Hanoi (1659), Hong Kong (1841), Guangdong-Guangxi (1848), Dili (1940), Malaca-Johor (1981). As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são comunidades de portugueses excluídos, apesar do seu forte sentimento de pertença a Portugal, da sua fidelidade secular à Religião Católica e do seu património linguístico – o crioulo – a que chamam “Portugis”. Ainda assim – ou talvez por isso mesmo – estão excluídas da Lusofonia. Mas o desconsolo maior, excluídos da Lusofonia somos todos nós. Porque apesar do denominador comum que é a Língua Portuguesa, padrão ou crioula, enquanto estivermos privados da liberdade básica de todas as outras que é o direito de estar e de ir de um lado para o outro, “jus manendi, ambulandi eunde ultro citroque”, a CPLP pode ser tudo o que quiserem. Não é de certeza uma Comunidade inclusiva de povos livres de circularem no espaço que se diz pertencer-lhes. 5. O fenómeno colonial e as “fonias” O fenómeno colonial, na sua formulação pura e dura, consistiu na validação entre as potências coloniais dos seus interesses de exploração em África. Formalmente assumida no Acto Geral da Conferência de Berlim, em 1885. Aí, muito antes de Shengen, Portugal viu-se forçado a aderir ao discurso europeu. A ocupação efectiva dos territórios africanos vinha ao arrepio da sua própria tradição e muito para além da sua capacidade económica, social e militar. O anticolonialismo do Século XX e a descolonização foi um facto sem precedentes na História da Expansão Europeia. Centrou-se no objectivo impreterível de reconquista da Soberania pelos povos colonizados. O Século XIX assistira à secessão das colónias americanas dos respectivos países ibéricos. O Século XVIII assistira à independência das colónias inglesas da América do Norte. À excepção do Canadá. Para aí se deslocaram os colonos que preferiram manter-se leais à Coroa Britânica. Ficaram conhecidos por United Empire Loyalists. A independência das colónias americanas foi um fenómeno “sui generis”. Os respectivos territórios não foram restituídos aos seus povos originários. Foram entregues aos europeus e seus descendentes que aí se tinham estabelecido. A descolonização dos Séculos XVIII e XIX constituiu, portanto, o resultado da secessão de interesses em conflito. Que opunham europeus geograficamente separados pelo Atlântico. Mas unidos pela mesma cultura e pela mesma língua. O Século XVII tinha sido a época de consolidação de uma nova ordem europeia no domínio do Mundo. O seu exclusivo, ditado em Tordesilhas, deixou de pertencer aos países ibéricos. Foi derrubado e substituído por holandeses, ingleses e franceses, em várias partes. A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, resultou da acção da Reforma iniciada com Martim Lutero. Reforma que levou ao esvaziamento do poder central europeu pela autoridade pontifícia romana que vigorava desde a queda do Império Romano. A Lusofonia como, aliás, a Francofonia, a Hispanofonia e a Anglofonia, são espaços que radicam no fenómeno colonial. Assentam no uso da língua do ex-colonizador como cimento aglutinador. No interior das antigas colónias; nas relações entre elas; e com as metrópoles do passado. Em tais espaços, procura-se decantar a História de episódios de força e opressão; transformar em amigos, anteriores inimigos; substituir a violência pretérita pelo diálogo; suprir a antiga exploração pela moderna cooperação. Ao contrário das teses que sustentam que tais espaços existem para manter o espírito colonial, parece que no seu estádio actual eles serão pouco mais do que áreas de catarse ou expiação. E não parece que possam ir mais além, pelos fortes compromissos existentes entre os ex-países colonizadores, no seio da União Europeia. Compromissos que inviabilizam irremediavelmente a sua participação plena em qualquer outra “Comunidade de Povos”. O Acordo de Shengen inviabiliza qualquer expectativa de livre circulação de cidadãos das antigas colónias no território das antigas metrópoles. Apesar de pertencerem à mesma comunidade linguística – anglófona, francófona hispanófona ou lusófona. 6. Portugueses em Macau A historiografia de Macau não é unânime quanto à data do estabelecimento dos portugueses neste minúsculo porto do sul da China. Existe uma variação entre os anos de 1549 e 1557. Os portugueses que se estabeleceram em Macau, no início e ao longo dos séculos, não foram apenas os nascidos no território europeu de Portugal, mas também portugueses euro-asiáticos, asiáticos convertidos à religião católica, euro-africanos e africanos. Estes, na documentação primária, são denominados “cafres”, frequentemente. Essa teia de portugueses que se identificam como “portugis” ou “cristang” localizam-se: na Índia: Diu, Damão, Dadrá, Nagar-Aveli, Goa, Korlai, Mangalore, Cananor, Mahé, Cochim, Bombaim, Negappattinam; no Sri Lanka: Batticaloa, Trincomalee e Puttalam; na Indonésia: Bali, Java, [Tugu e Brestagi], perto de Djacarta, Ilha de Flores [Larantuka e Sikka], Ilhas de Ternate e Tidore; na Malásia: Alor Star, Penang, Perak, Kuala Lumpur, Seremban e Johor Baru]; em Singapura; na Tailândia [Bangkok]; no Bangladesh: Chittagong e Daca; em Mianmar [Sirião]. O destino dos macaenses foi diferente do dos portugueses da Indonésia, da Malásia e do Sri Lanka, por terem defendido a sua terra, pela força das armas, contra várias tentativas de invasão e ocupação pelos holandeses, desde 1603, nomeadamente, pela “Retumbante vitória definitiva alcançada por Macau sobre os holandeses comandados por Kornelis Reyerszoom que, com 14 navios e 800 homens, pretendeu tomar a cidade. O inimigo foi completamente desbaratado ante o indómito esforço dos macaenses, capitaneados pelo denodado herói Lopo Sarmento de Carvalho. Colaboração do Pe. Rho S.J. (de passagem em Macau) a partir da Fortaleza do Monte, e protecção do Santo do Dia, S. João Baptista, em 24 de Junho de 1622 (Cfr. Beatriz Basto da Silva : Cronologia da História de Macau). Os Macaenses Os descendentes dos portugueses, nascidos em Macau e, posteriormente, na diáspora macaense, são os macaenses. Macaense é o euro-asiático de ascendência portuguesa nascido em Macau. O conceito de Macaense contém três elementos: – Origem étnica mista: europeia e asiática; – Ascendência portuguesa; – Macau e a diáspora Macaense como local de nascimento: Hong Kong, Xangai, Tianjin, Bangkok e, mais recentemente, Austrália, Canadá, Brasil, E. U. América e Portugal. A independência dos territórios ultramarinos de Portugal, a perda da nacionalidade portuguesa comum dos seus naturais (DL 308-A/75, de 25 de Junho) e a emergência de novas nacionalidades em cada um deles, parece tornar obsoleto o elemento “ascendência portuguesa”, no conceito de macaense. A substituição de “ascendência portuguesa” por “ascendência lusófona” é inviável por não preencher relações de parentesco e por excluir boa parte das populações dos países de língua oficial portuguesa que não falam português. Por outro lado, durante várias décadas, ao longo do séc. XX, os contingentes de tropa africana em Macau, provenientes de Angola, Moçambique e Guiné, deixaram descendência, exclusiva ou principalmente, com mulheres chinesas, de que julgo não existirem registos. De tais descendentes, de homem africano com mulher chinesa, não há notícia de terem beneficiado do estatuto de macaense. Conheci de vista uma mulher, filha de mãe chinesa e pai africano (Landim, de Moçambique), que era “criada de servir”. Desses sino-africanos ou afro-chineses, cujo número se desconhece, não há notícia de nenhum ter recebido o estatuto social de macaense. (continua) Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo Bipolar [dropcap]O[/dropcap] que dizer da semana em que o estado do Alabama passou a proposta lei do aborto mais restritiva e Taiwan tornou o casamento homossexual uma possibilidade legal? Choramos e celebramos recuos e avanços na mesma semana – para nos sentirmos profundamente confusos. Avanços e recuos num movimento perpétuo. O estado bipolar sexual em que vivemos provém da confusão que são os nossos sistemas sócio-políticos. Temos testemunhado movimentos que começaram a deixar para trás o pensamento progressista que julgávamos carregar. Têm-se construído barreiras discursivas e simbólicas para deslegitimar o que são lutas e visibilidades absolutamente necessárias. A 17 de Maio celebrou-se o dia internacional da luta contra as fobias de género e de orientação sexual – e é com insatisfação que me apercebo que o dia terá que continuar a existir por muito tempo. Quando os partidos em Portugal para as eleições europeias fazem uso do termo ‘ideologias de género’ para deslegitimar a naturalidade do nosso ser, devíamos preocuparmo-nos. Mas depois temos Taiwan, o orgulho dos nossos olhos neste grande continente Asiático. Há esperança – se calhar há. No Alabama – e sobre o aborto que é agora punido com 99 anos de prisão – a contestação é criativa e eficaz para desmascarar os supostos valores pela vida. Valores que carregam mais raivas silenciosas contra os corpos detentores de útero do que outra coisa. Um país que se recusa a regular as armas para regular os úteros – torna ainda mais visível a bipolaridade patriarcal em que vivemos. O valor da vida de um embrião é exageradamente tido como o de um bebé. Só que por alguma razão o valor da vida da mulher que é violada (no cenário mais negro) é discutível. A pena é mais alta para quem faz um aborto do que para quem viola uma mulher. Esta lógica não chegou às pobres cabeças que provavelmente nunca tiveram educação sexual, mas que tomam decisões sexuais. Não sabendo dos corpos e dos processos apelam-se a valores universais da vida em contraste com a morte (o assassinato!) e controlam-se os corpos dos outros por consequência. Houve quem sugerisse greve sexual para reforçar que os úteros, as vaginas e as vulvas são de quem as têm. Mas nem sei se isso irá funcionar porque o problema está na ausência de respeito centenária por quem os têm. Depois temos Taiwan que muito nos emocionou nesta semana. Foi tão bom apreciar as fotografias das gentes que na rua manifestaram a felicidade de um amor que agora pode ser legalmente reconhecido. Outros direitos virão. Outras lutas por esta Ásia fora serão travadas – certamente. Em Taiwan mostrou-se que a liberdade para sermos quem somos pode coexistir com o sentido de compreensão social. Ainda que os direitos não sejam plenos, como os da adopção, já é um começo. Vivemos em sociedades que usam e abusam do quão bipolar somos – entre responsabilidade individual e social, usam-se estratégias ideológicas a nosso bel-prazer. O corpo é de quem? Nosso ou de todos? Como é que se equilibra os valores liberais com solidariedade e respeito mútuo? A síndrome bipolar sexual vive desta indecisão. A forma como escolhemos justificar este dilema pode legitimar ou deslegitimar os outros. Em Taiwan, a prioridade foi a liberdade de identidade e de expressão sexual e no Alabama a lógica da vida por nascer é romanceada em contraste com as vidas que, de pele e osso, se sujeitaram ao pecado mortal. Nem quando essa vida é fruto de um incesto a liberdade prevalece. Quando queremos um mundo justo, vemo-nos confrontados com a dispersão de dificuldades e posições sociais. Talvez possa ser feliz em Taiwan e talvez nunca precise de ir ao Alabama. Mas e a nossa responsabilidade em criar um mundo menos bipolar e mais preocupado com os direitos humanos? Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA segurança do paciente e os erros médicos “All men make mistakes, but a good man yields when he knows his course is wrong, and repairs the evil. The only crime is pride.” Sophocles, Antigone” [dropcap]É[/dropcap] impossível contabilizar os milhares de pessoas que são mortas a cada ano por erros médicos, mas para ter apenas uma ideia são de centenas de milhares nos Estados Unidos e dezenas de milhares no Reino Unido, sendo conjuntamente com as doenças cardíacas e cancro, uma das principais causas de morte. Muito mais pessoas sofrem danos de forma não fatal por erros, e o custo dos pagamentos por negligência clínica nos países onde existe alguma estatística, é de muitos milhares de milhões de euros. É necessário entender que reduzir o custo humano e financeiro dos erros médicos é uma prioridade ética. O mediático caso de Bawa-Garba, que se refere a Jack Adcock , uma criança de seis anos, que foi internada na “Leicester Royal Infirmary (LRI)”, unidade pertencente ao “Serviço Nacional de Saúde (NHS)” britânico, em 18 de Fevereiro de 2011 e que morreu no mesmo dia, em parte devido a erros no seu tratamento. A Dra. Hadiza Bawa-Garba, indiana, médica que o tratou e a enfermeira portuguesa, Isabel Amaro, foram posteriormente declaradas culpadas de homicídio culposo por negligência grave no qual a médica contribuiu para a morte por septicemia, tendo sido destacado durante o julgamento a necessidade de abordar questões individuais e sistémicas para reduzir os erros. A Dra. Bawa-Garba, foi condenada a dois anos de prisão a 4 de Novembro de 2015, e a enfermeira Isabel Amaro foi condenada a três anos de prisão a 2 de Novembro de 2015. Os médicos têm a obrigação ética de ser transparentes sobre os seus erros médicos, mas como será possível encorajá-los a fazer quando as consequências pessoais e profissionais da honestidade podem ser devastadoras? A realidade é que alguns erros médicos nunca são revelados aos pacientes, que são então privados de indemnização, e pouco é aprendido com os mesmos. A Universidade Johns Hopkins publicou um relatório a 3 de Maio de 2016, em que afirma que as taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de colecta de estatísticas nacionais, e analisando os dados médicos de mortalidade ao longo de um período de oito anos, os especialistas em segurança do paciente calcularam que mais de duzentas e cinquenta mil mortes por ano são devidas a erros médicos nos Estados Unidos, sendo a principal causa de morte dos “Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC na sigla inglesa)”, que pertence ao “Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos”, e que por comparativamente as doenças respiratórias, matam cerca de cento e cinquenta mil pessoas por ano. A forma do CDC colectar estatísticas nacionais de saúde não classifica os erros médicos separadamente no atestado de óbito. Os pesquisadores defendem critérios actualizados para classificar os óbitos nos atestados de óbito. As taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de recolha de estatísticas nacionais. O sistema de codificação médica foi projectado para maximizar os serviços médicos, não para recolher estatísticas nacionais de saúde, como está ser usado actualmente. Os Estados Unidos, desde 1949, adoptaram uma forma internacional que usava os códigos da “Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID na sigla inglesa) que é publicada pela “Organização Mundial de Saúde (OMS)” e que visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde. A CID fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças para calcular as causas de morte. A partir dessa época foi sub-reconhecido que os erros de diagnóstico, erros médicos e a ausência de redes de segurança poderiam resultar na morte de alguém e, daí que os erros médicos foram involuntariamente excluídos das estatísticas nacionais de saúde. Os pesquisadores alertam que a maioria dos erros médicos não se deve à prática de actos médicos intrinsecamente nefastos, e que mais que denunciar esses erros e serem resolvidos por punição ou acção legal, afirmam que a maioria dos erros representa problemas sistémicos, incluindo cuidados mal coordenados, redes de seguro fragmentadas, ausência ou subutilização de redes de segurança e outros protocolos, além da mudança injustificada nos padrões de prática médica que carecem de responsabilidade. O “Jornal de Segurança do Paciente” dos Estados Unidos, alegam que o número de mortes por erro médico chegou a quatrocentas e quarenta mil por ano. A razão para a discrepância é de que os médicos, donos de funerárias, juristas e médicos legistas raramente notam nos atestados de óbito os erros humanos e falhas do sistema envolvidos. As certidões de óbito são o que os CDC se baseiam para colocar estatísticas de mortes em todo o país. A epidemia de danos ao paciente em hospitais deve ser levada mais a sério se quiserem que reduza. Envolver totalmente os pacientes e seus defensores durante o atendimento hospitalar, procurando sistematicamente ouvir os pacientes na identificação de danos, a transparência na responsabilização por danos e a correcção intencional das causas do dano são necessárias para atingir esse objectivo. O sistema é culpado pois é entendido como erro médico a morte causada por pessoal inadequadamente qualificado, erro no julgamento ou cuidados, um defeito do sistema ou um efeito adverso evitável, incluindo falhas do computador, misturas com as doses ou tipos de medicamentos administrados aos pacientes e complicações cirúrgicas que não são diagnosticadas. É de realçar todavia que os profissionais de saúde são em geral pessoas dedicadas e atenciosas, mas são humanos e que como seres humanos cometem erros, não sendo todavia causa de exclusão da ilicitude. Existem muitos técnicos de farmácia, em vez de farmacêuticos bem treinados e instruídos, que estão a compor quase todos os medicamentos para os pacientes e muitos têm requisitos ou comprovação de competência para esses exercer essa actividade. O uso da tecnologia da informação em saúde através do uso de registos electrónicos de saúde de pacientes hospitalizados e ambulatórios é essencial. Muitos hospitais, por sua vez, procuram acompanhar o ritmo da tecnologia cada vez mais disponível para melhorar a segurança do paciente. A maioria dos consultórios médicos dos Estados Unidos mantém registos electrónicos, bem como regista conversas entre médicos, enfermeiros e os seus pacientes, a fim de garantir que haja clareza e que não ocorram erros. As complicações comuns podem ocorrer, especialmente, no atendimento médico desnecessário, e cerca de 20 por cento de todos os procedimentos médicos podem ser desnecessários. Existe também, culpa na prescrição excessiva de medicação após a cirurgia, particularmente os opiáceos. É de considerar que os médicos são encorajados pelas empresas farmacêuticas, às vezes por meio de pagamentos em dinheiro, a “promover” os seus produtos. Tendo em consideração os “Direitos do Paciente em um Sistema de Saúde Perigoso e Orientado a Lucros”, os pacientes precisam de assumir o controlo, pois deve existir um equilíbrio entre a comunidade prestadora e os pacientes. A “Carta Nacional de Direitos do Paciente Hospitalizado” nos Estados Unidos, foi criada em 2014 em que os preconiza que quanto aos “registos médicos”, os pacientes hospitalizados devem receber diariamente o seu prontuário e ser ensinado como fazer anotações nos seus registos e corrigir qualquer desinformação. Os registos médicos devem ser electrónicos e mantidos por um período longo. O “cuidado” baseado em evidências quer que o diagnóstico e o tratamento devam estar de acordo com as directrizes federais e/ou nacionais de saúde ou de acordo com as directrizes revistas por especialistas publicadas por organizações especializadas para a condição médica do paciente. Se o médico determinar que é necessário desviar-se das directrizes, deve informar o paciente que o seu cuidado se deve desviar das directrizes e fornecer uma explicação para o desvio. Os “medicamentos terapêuticos”, preconiza que nenhum paciente deve receber uma medicação para fins “off label” sem ser informado de que o medicamento prescrito não foi aprovado pela “Food and Drug Administration (FDA)” para a condição médica do paciente. A justificativa para a prescrição do medicamento “off label” e o risco associado devem ser revelados ao paciente e documentados. O paciente deve ser informado sobre como relatar os efeitos adversos de qualquer medicamento sob prescrição médica ao FDA. A “competência do médico”, quer que os pacientes tenham o direito a serem informados sobre o “status” de competência do seu médico antes de serem tratados. Este “status” deve incluir a conclusão da “Central de Material Esterilizado (CME)” estadual, o “status” de certificação do conselho, a manutenção da certificação do conselho, a reabilitação do abuso de drogas e quaisquer outros factores que afectam a competência do médico. Os “custos” requerem que os pacientes devem conhecer os custos normais do diagnóstico e tratamento que receberão antes de concordarem com um plano de diagnóstico ou plano de tratamento. O tratamento encontrado contra directrizes sem o consentimento do paciente não precisa de ser pago. Os “eventos” adversos estipula que se acaso ocorrer um evento adverso imprevisto durante o diagnóstico ou tratamento, o paciente tem direito a uma explicação completa do que aconteceu e como o hospital pretende prevenir eventos adversos semelhantes no futuro. Se o evento adverso foi causado por um erro médico, o paciente tem direito a uma compensação justa. A falsificação de registos médicos após um evento adverso constitui adulteração de evidências. O “dever” de advertir, exigindo que os pacientes devem saber a taxa de infecção do hospital e a morbidade e mortalidade associadas a procedimentos invasivos planeados. O paciente deve ser avisado de qualquer actividade de estilo de vida que ameace a sua saúde e devem receber orientação sobre a gestão dessa actividade. O “consentimento informado” exige que o paciente deve dar o seu consentimento informado para procedimentos invasivos de acordo com as directrizes publicadas pela “American Medical Association” de 1998. O medo nunca deve ser usado para obter consentimento para procedimentos invasivos. O “feedback” sobre o cuidado quer que o paciente tenha o direito, mesmo um dever, de fornecer “feedback” a uma agência independente sobre a qualidade do atendimento recebido durante a hospitalização. Este “feedback” deve ser sistematicamente tomado e disponibilizado ao público. O “direito” a um advogado mostrou que, enquanto o hospital é o local principal para integrar o atendimento de um paciente é o advogado que deve defender os interesses do paciente. Todos os pacientes do hospital devem ter o direito a um advogado. O “Patient Safety America” lista os três níveis em que os pacientes podem proteger-se. Estes incluem ser um consumidor sábio dos cuidados de saúde, exigindo cuidados de qualidade e custo-benefício para si e para aqueles que ama; participando da liderança em segurança do paciente por meio de conselhos, painéis e comissões que implementam políticas e leis; e pressionando por leis que favoreçam cuidados, transparência e prestação de contas mais seguras. É necessário obter sempre o máximo de informações que puder do seu médico, inquirindo sobre os benefícios, efeitos colaterais e desvantagens de um medicamento ou procedimento recomendado, e usando as médias sociais para saber mais sobre a própria condição do paciente, bem como sobre os medicamentos e procedimentos para os quais foram prescritos. O paciente deve sempre procurar uma segunda opinião. Se a situação o justificar ou se existirem incertezas, deve obter uma segunda opinião de outro médico, pois um bom médico aceitará a confirmação do seu diagnóstico e resistirá a qualquer tentativa de desencorajar o paciente de aprender mais ou de “tentativas de amordaçar o paciente”. Muitas vezes o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema. Porquê muitos médicos são relutantes em especular, mas alguns admitem que as respostas vão do simples ego até à perda de um paciente para outro médico em quem confiam mais. Às vezes é difícil processar todas as informações por si mesmo, pelo que se deve trazer um membro da família ou um amigo para a sua consulta, alguém que possa entender as informações e sugestões dadas e fazer perguntas. Ao ter as informações médicas literalmente na palma da mão, pode trabalhar em equipa com o médico para reduzir o risco de erros médicos. Os aplicativos de saúde podem ser simples ou complexos e, dependendo da idade e condição, pode gerir o seu bem-estar, medicamentos e muito mais. O que têm de bom o sistema de saúde americano, inglês e outros em trabalho comparativo e cooperativo deve ser estudado e aplicado com adaptações e o que acontece nos Estados Unidos e no Reino Unido é o mesmo que acontece em outros países quanto aos maus procedimentos e devem ser instituídos todos os mecanismos em defesa da segurança do paciente, pois muitas vezes, o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema, para esconder as falhas do sistema e o erro médico. O acesso do paciente a bons cuidados de saúde e de forma gratuita é um direito fundamental e universal. David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDireitos dos Animais (II) [dropcap]A[/dropcap] semana passada falámos sobre duas das alterações à lei de protecção dos animais em Hong Kong. A primeira, reflecte-se na seccção 56 da Lei do Tráfego Rodoviário e prevê que, quem atropele um animal tem de parar, prestar auxílio e notificar a polícia num espaço de 24 horas. A segunda, estipula que os donos são responsáveis pelos seus animais, sendo sua obrigação cuidar e atender às suas necessidades. Esta obrigação constitui o “dever de cuidar”. Na sequência desta alteração, os tribunais podem privar uma pessoa do direito de possuir um animal para sempre, se este dever for seriamente violado A Lei de protecção dos animais de Macau não estipula esta condição, mas o parágrafo 1 do artigo 28 enuncia: Artigo 28.º Penas acessórias 1. A quem for condenado pela prática dos crimes previstos nos artigos 25.º e 26.º podem ser aplicadas as seguintes penas acessórias: 1) Declaração de perda a favor do IACM do animal do infractor; 2) Proibição de aquisição e criação de animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; 3) Proibição do exercício de actividades que impliquem o contacto efectivo com animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; Como vemos, este artigo estipula que quem violar a lei será privado do seu animal, o qual será entregue ao cuidado do IACM. Isto implica que os animais sujeitos a maus tratos serão imediatamente resgatados. Embora aqui se preveja que quem infligir maus tratos a animais seja proibido de os ter por um período de um a três anos, não é uma interdição para toda a vida, conforme enuncia a emenda à legislação de Hong Kong. As leis da Região Administrativa Especial de Macau foram buscar o modelo da legislação portuguesa. Segundo o Código Penal português, a pena máxima é de 25 anos. Não existe prisão perpétua. Transpondo este princípio para a lei de protecção dos direitos dos animais, faz sentido que não se proíba ninguém de ter um animal para o resto da vida. Uma das antigas propostas de alteração a esta lei previa a criação de um corpo policial dedicado em exclusivo à protecção animal. Mas a polícia opôs-se argumentando a falta de efectivos. Sem intervenção policial, existirão inevitavelmente bloqueios à implementação da lei, especialmente quando os donos se recusam a colaborar, ou resistem violentamente, os responsáveis ficam incapacitados de agir. Outra crítica às emendas da lei de Hong Kong prende-se com a falta de uniformização, o que deu origem a dificuldades na compreensão e confusões. Também dificulta o trabalho dos departamentos responsáveis ao tentarem aplicar a lei correctamente. Conforme já foi referido, a legislação de protecção animal em Hong Kong, inicialmente, apenas se destinava a preservar a segurança e a sáude públicas. Actualmente foi alargada aos conceitos de direitos e bem-estar animal. Direitos e bem-estar animal e saúde e segurança públicas são dois binários conceptuais distintos. Misturar conceitos gera confusão, daí que as críticas pareçam ser compreensíveis. Em oposição, a legislação de protecção animal de Macau é basicamente um conjunto de quatro regulamentos, a Lei No. 4/2016, o Despacho do Chefe do Executivo n.º 335/2016 que – Determina a proibição da aquisição, criação, reprodução ou importação das raças de cães e animais, o Regulamento Administrativo n.º 28/2004 que – Aprova o Regulamento Geral dos Espaços Públicos e o Despacho do Chefe do Executivo n.º 106/2005 que – Aprova o Catálogo das Infracções a que se refere o artigo 37.º, n.º 1, alínea 2, do Regulamento Geral dos Espaços Públicos. Como Macau tem basicamente nesta matéria este conjunto de leis e Despachos, e a legislação sobre protecção animal remonta a 2016, pode afirmar-se que é uma lei recente. Além disso podemos classificar a legislação de Macau como “simples e clara” . No Génesis, é dito que Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança. E Deus ordenou ” Ao homem é dado domínio sobre todas as coisas e ele recebe mandamento de se multiplicar e de encher a Terra.” Embora nem todos acreditem na Bíblia, o princípio sagrado de usar a lei para proteger os direitos dos animais e a promoção do seu bem estar, faz parte de uma sociedade saudável e evoluída. O primeiro passo para que este objectivo seja cumprido é compreender que os animais não são brinquedos, nem podem servir para descarregar frustrações; se assim não for, o agressor despe-se do sentido de moralidade que todo o ser humano deve possuir e será altamente provável que a lei de protecção animal venha a ser violada. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk «1...63646566676869...113»
Olavo Rasquinho VozesO meteorologista de Estaline – O homem que viveu duas vezes [dropcap]A[/dropcap]o ler a biografia de José Estaline, de Simon Sebag Montefiore, a minha curiosidade foi aguçada pelo facto de ser mencionado que ele (Estaline) trabalhara como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tbilisi, na Geórgia. Procurei mais informação mas não consegui saber quais as suas funções no Instituto Meteorológico. Tudo indica que não teria sido meteorologista na medida em que não consta que tivesse estudado matemática e física em profundidade que lhe permitissem compreender os fenómenos meteorológicos. Provavelmente limitar-se-ia a ler os instrumentos e a registar periodicamente os valores das variáveis meteorológicas, tais como a pressão atmosférica, a temperatura do ar, a precipitação e a avaliar visualmente outros parâmetros como a nebulosidade, visibilidade, nevoeiro, neblina, bruma seca, etc. Quanto muito teria exercido as funções de observador meteorológico. Continuando a busca de algo que relacionasse Estaline com a meteorologia, deparou-se-me o livro “O Meteorologista”, do escritor francês Olivier Rolin. O meteorologista não era Estaline, mas sim o seu contemporâneo Alexei Feodossievitch Vangengheim. Além de ambos terem tido profissões na área da meteorologia e de serem entusiastas das novas ideias que alastravam pela Rússia no início do século XX, nada mais de comum teria havido entre eles. Estaline era filho de um sapateiro e nascera em 1878 em Gori, na Geórgia (Cáucaso) e Alexei descendia de uma família da pequena nobreza e nascera em 1881 numa pequena aldeia, na Ucrânia. No entanto o destino ligou-os de maneira trágica. Enquanto Estaline enveredou pelo envolvimento político ativo, Alexei dedicou-se a uma carreira nas áreas da física e da matemática. Frequentou, no início do século XX, o Departamento de Matemática da Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscovo. Depois do serviço militar frequentou o Instituto Politécnico de Kiev e o Instituto Agrícola de Moscovo. Casou em 1906, tendo ingressado mais tarde no Serviço Hidrometeorológico do Mar Cáspio. Ainda antes da revolução é mobilizado como chefe do Serviço Meteorológico do VIII Exército, tendo os seus conhecimentos de meteorologia sido aproveitados em batalhas entre russos e austríacos, em que eram empregues gases, arma de guerra cujo uso era muito dependente da direção e intensidade do vento. Após a revolução de Outubro de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu entre Brancos e Vermelhos trabalhou no Observatório Geofísico em Petrogrado, onde foi o responsável pela previsão do tempo a longo prazo. O interesse pela meteorologia foi-lhe provavelmente transmitido pelo seu pai, que montara uma estação meteorológica nas suas terras. Apesar do seu pai pertencer à pequena nobreza, o que poderia fazer cair suspeitas de comportamento reacionário, Alexei optou por permanecer na Ucrânia após a revolução de outubro de 1917, contrariamente a um seu irmão que emigrou. Foi membro do partido bolchevique e, como tal, fez parte de numerosos comités e conselhos científicos. Foi nomeado para a direção do recém-formado Serviço Hidrometeororológico Unificado da URSS, a que chamava em alguns dos seus escritos “o meu querido filho soviético”. Foi o responsável pela instalação da rede de estações meteorológicas nas vastas regiões abrangidas pela URSS. Exerceu ainda outras funções, nomeadamente presidente do Comité Hidrometeorológico junto do Soviete dos Comissários do povo, diretor do Gabinete do Tempo e presidente do Comité Soviético para a organização do segundo ano polar. Contribuiu para a obtenção do recorde mundial de altura atingida pelo homem, com a subida do estratóstato designado por URSS1, que atingiu dezanove mil e quinhentos metros, em plena estratosfera, onde foram levadas a cabo observações de grande valor científico. Alexei participou em discussões iniciadas na década de 1930, conjuntamente com os diretores de serviços meteorológicos de outros países, em que se preconizava que a Organização Meteorológica Internacional (International Meteorological Organization – IMO), organização não governamental fundada em 1873, evoluísse no sentido da criação de um organismo internacional que coordenasse as atividades meteorológicas a nível mundial e cujos membros fossem os Estados aderentes. Tal veio a acontecer algumas décadas mais tarde, em 23 de março de 1950, com a entrada em vigor da Convenção Meteorológica Mundial, criando-se assim a Organização Meteorológica Mundial (World Meteorological Organization – WMO), agência especializada das Nações Unidas. Como fruto do seu trabalho, no primeiro dia do ano 1930, foi emitido o primeiro boletim meteorológico através da rádio. Era com orgulho que contribuía assim, na sua maneira de pensar, para a construção do socialismo. As previsões do tempo poderiam contribuir grandemente para o êxito da agricultura. E provavelmente assim seria, se houvesse uma rede de estações suficientemente densa não só na URSS mas também nos países a oeste, na medida em que nessas latitudes os fenómenos meteorológicos se deslocam com forte componente de oeste para leste. Na realidade os serviços meteorológicos não estavam tão bem organizados como atualmente e o sistema de telecomunicações não era suficientemente expedito que permitisse a transmissão dos comunicados meteorológicos com eficiência em tempo real, o que motivou que a fiabilidade das previsões do tempo não fosse muito elevada. Entretanto, a coletivização da propriedade rural levou à desmotivação dos camponeses o que provocou, juntamente com outras causas, uma baixa dramática da produção agrícola. A coletivização não se limitou às imensas propriedades dos latifundiários, que tanto exploraram os camponeses antes da revolução de outubro de 1917, mas também às propriedades dos camponeses que praticavam agricultura de sobrevivência. Um camponês com uma ou duas vacas era considerado Kulak e, portanto, inimigo da revolução. A coletivização forçada e as requisições de cereais decretadas por Estaline levaram em 1932 e 1933 a milhões de mortos na Ucrânia. Para justificar o insucesso na agricultura havia que encontrar bodes expiatórios. E assim Alexei foi acusado de propositadamente difundir previsões meteorológicas erradas com o intuito de sabotar a revolução. A sua ascendência nobre e ser irmão de um emigrado também contribuíram para que as suspeitas do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (abreviadamente designado por NKVD) caíssem sobre ele. Ainda por cima tinha contactos com personalidades estrangeiras. O convite ao meteorologista escandinavo Tor Bergeron para apresentar palestras na URSS contribuiu para que caíssem sobre ele suspeitas de contactos com estrangeiros não só sobre meteorologia mas também sobre outros assuntos. Bergeron foi um dos criadores da teoria norueguesa sobre a evolução de depressões associadas a superfícies frontais que separam massas de ar polar de massas de ar tropical, teoria essa que adotou representações gráficas das frentes que ainda hoje são usadas nas cartas meteorológicas. Alexei foi preso pela polícia política em 1934 e condenado a dez anos num campo de trabalhos forçados. Mais tarde, em 1937, foi-lhe agravada a pena para fuzilamento. O Campo de trabalhos forçados situava-se no nas ilhas Solovetsky, no Mar Branco, próximo da Finlândia e do círculo polar ártico. Foi nestas ilhas que se instalou o primeiro campo, em 1923, do que veio a tornar-se na Direção Central dos Campos (Glavnoye Upravleniye Lagurey), cujo acrónimo GULAC se tornou célebre. Ironicamente, em dez de agosto de 1956, três anos após a morte de Estaline, o presidente do Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS, assinou um decreto através do qual foram canceladas a decisão do Colégio da OGPU (Direção Política Conjunta do Estado) tomada em 7 de março de 1934 (condenação a dez anos em campo de trabalhos forçados) e a decisão da troika especial do NKVD de Leninegrado de 9 de outubro de 1937 (condenação à morte por fuzilamento). É pena que o cancelamento dessas decisões não devolvesse a vida do meteorologista… A esposa de Alexei, Varvara Ivanovna, faleceu em 1977 sem saber onde nem quando e em que circunstâncias o seu marido fora assassinado. A versão oficial que lhe fora entregue em 1957 foi a de que o seu marido morrera em 17 de agosto de 1942, de uma peritonite. Olivier Rolin, seu biógrafo, decidiu investigar a sua história quando consultava documentos reunidos pela ONG Memorial, associação russa dos direitos humanos criada durante a Perestroika. A sua curiosidade foi despertada por uns desenhos enviados por um deportado para sua filha, Eleanora, tirando assim do anonimato uma das muitas vítimas inocentes dos tempos conturbados vividos na URSS durante a década dos anos trinta do século passado. Esse deportado, que oficialmente morrera de uma peritonite em 1942, mas que na realidade fora fuzilado em 1937, era Alexei Feodossievitch Vangengheim.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesTambém há censura no sexo [dropcap]A[/dropcap] censura dos órgãos genitais bem que podia ser um problema do passado. Um pé é sempre um pé. Mas os genitais podem ser outra coisa qualquer? Formas de calão como passarinha, rata ou pipi existem por alguma razão. Censuramo-nos e coramos ao som de palavras simples como vulva ou pénis. A censura não precisa de ser regulada pelo sistema. Os poderes de censura também são individuais. Gostamos de criar significados alternativos ao que nos é menos conveniente encarar, aquilo que julgamos prejudicial às nossas sociedades. O sexo à luz da tradição judaico-cristã é uma realidade dolorosa. Somos obrigados a reinventar o sexo com formas mais infantilizadas e simplistas para poder aceitá-lo. Tudo começa com o mito das abelhas, ou das cegonhas, ou de outro qualquer animal que parece estar envolvido na narrativa do sexo. A educação sexual mais progressiva é contra este fabular. Mascarar o sexo com a narrativa da abelha é evitar a naturalidade e a normalidade do prazer. Como se o sexo fosse um acto de violência que tenha que ser apagado para evitar a revolução das massas. Uma vulva é uma vulva, um pénis é um pénis e devemos usar essa linguagem desde cedo – são só os nomes cientificamente correctos. Há uma objectividade associada à simplicidade da nossa fisionomia. As múltiplas camadas de significado só ofuscam práticas de auto-consciência corporal e de sexualidade informada. A censura previne isso mesmo: conhecimento. Claro que estamos cheios de narrativas, e até a simplicidade da nossa fisionomia vem de uma narrativa. Mas a narrativa não é ameaçadora, é só informativa. A forma como encaramos e entendemos factos não produzem consequências óbvias. Não falar abertamente sobre sexo não faz com que as pessoas não o tenham. O sexo vai continuar existir, mas menos informado. Este é o medo infundado que, por exemplo, justifica a resistência de alguns pais em aceitar educação sexual nas escolas. A censura funciona como um obstáculo a conversas honestas – somente – contribuindo para o triunfo do medo. Claro que o corpo feminino é mais passível à censura, porque o entendem como explicitamente sexual. Ao ponto de se sugerir censurar os mamilos femininos com mamilos masculinos. A segurança assexual de mamilos masculinos certamente consegue esconder a sensualidade dos femininos. Aliás, um rapaz chinês com um problema endócrino raro viu crescer-lhe uma mama. A foto que foi publicada desta situação peculiar censura o mamilo esquerdo (o que agora tem um aspecto mais feminino), mas deixa o masculino. Os paradoxos do sexo e do género levam a isto. Estas são representações que devemos (temos que) transformar. Não serve a ninguém continuarmos a censurar a linguagem de vulvas e de pénis, muito menos das imagens dos mamilos femininos (ou até pêlos púbicos, outro clássico) quando as consequências apontam para uma narrativa deficiente do sexo. As situações mais flagrantes mostram mulheres adultas que não sabem onde ficam a entrada da vagina, da uretra ou o clitóris porque não se fala sobre elas. Não sabermos do nosso corpo é tramado. Não entendermos as histórias que levaram a padrões duplos também não nos capacita para os destruir. Como se ficássemos para sempre cegos com uma perspectiva da história que afinal podia ser múltipla. Como a história de nações que, perante factos, são capazes de escondê-los como um gato escondido de rabo de fora, julgando a censura inevitável, como se fosse a obra da nossa natureza instintiva de protecção. Mas é só uma estratégia – uma escolha.
Hoje Macau VozesMedidas restritivas comerciais dos EUA prejudicam interesses do mundo inteiro Gong Xin * [dropcap]N[/dropcap]o mundo globalizado de hoje, as economias chinesa e americana são altamente integradas e estão vinculadas a uma união que é mutuamente benéfica e de ganha-ganha por natureza. No entanto, desde Março de 2018, a administração actual dos EUA adoptou uma série de medidas unilaterais e proteccionistas no comércio com a China. Essas medidas restritivas comerciais não são boas para China nem para os EUA, e são ainda piores para o restante do mundo. As medidas tarifárias norte-americanas levaram a um contínuo declínio no volume de exportação da China para os EUA em 2019. Como a China tem de impor tarifas como contramedida aos aumentos tarifários dos EUA, as exportações norte-americanas para a China também caíram, já por oito meses consecutivos. A incerteza trazida pela fricção económica e comercial EUA-China tornou as empresas de ambos os países mais hesitantes em investir. Além disso, as medidas tarifárias não impulsionaram o crescimento económico americano. Em vez disso, aumentaram significativamente os custos de produção das empresas norte-americanas e preços domésticos, exercendo um impacto negativo sobre o crescimento económico e a vida do povo dos EUA. De acordo com um relatório de pesquisa, se os EUA sobretaxarem todas as exportações chinesas por 25%, o PIB dos EUA diminuirá 1,01%, reduzindo cumulativamente US$ 1 bilião nos próximos dez anos. As medidas tarifárias também prejudicaram severamente as exportações dos EUA para a China. Em 2018, quando o atrito económico e comercial piorava, as exportações de 34 estados norte-americanos para a China sofreram um queda, sendo os estados das regiões agrícolas do centro-oeste os mais afectados. As medidas proteccionistas adoptadas pelos EUA constituem uma violação grave às mais fundamentais e centrais regras da Organização Mundial do Comércio, incluindo o tratamento de nação mais favorecida e obrigações tarifárias, e expuseram o sistema de comércio multilateral e a ordem de comércio internacional ao perigo. As acções norte-americanas interrompem as cadeias industriais e de fornecimento globais, perturbam a confiança do mercado, reduzem a recuperação económica mundial e prejudicam o desenvolvimento das empresas e o bem-estar das pessoas em todos os países. A OMC cortou a sua previsão para o crescimento comercial global neste ano de 3,7% para 2,6%, enquanto o Fundo Monetário Internacional reduziu a sua estimativa para 3,3%, dizendo que a fricção económica e comercial poderia deprimir ainda mais o crescimento económico global. *Comentador político
Sérgio de Almeida Correia VozesE se fizessem o reset* do sistema? [dropcap]M[/dropcap]aio foi-nos trazido sob a influência de Urano, agente do despertar cósmico, das mudanças rápidas, por vezes violentas, propiciador de relâmpagos e tempestades, capaz de libertar sem aviso prévio ideias e frases de grande impacto. Ao que me dizem, a aproximação de Vénus a Saturno trar-nos-á alguma contenção e equilíbrio a partir do último dia do mês, assim se antecipando dias estivais mais calmos. Para quem já esqueceu, o mês que findou foi politicamente vibrante e isso reflectiu-se na visita do Presidente da República, nas romarias a Pequim e Lisboa dos responsáveis políticos, na exaltação das virtudes patrióticas e num sem número de declarações que deveriam merecer reflexão. E, quem sabe, diria mesmo um acto de contrição como aquele que agora aconteceu com o multimilionário Joseph Lau. Condenado pelos tribunais da RAEM por corrupção activa e branqueamento de capitais em pena a que até hoje escapou, depois de ter anunciado a sua oposição à proposta de lei que permitiria ao Governo de Hong Kong facilitar a entrega de infractores em fuga, como ele, às entidades do interior da China, de Macau e de Taiwan, veio de repente dizer que desistiu de se opor à nova lei. Diz que não vai contestá-la, que está muito triste com a desarmonia gerada e que apoia a governação de acordo com a lei por parte do Governo de Hong Kong. E antes? Desconheço se o sujeito entrou nalgum trade-off, nem com quem, mas tanto amor à lei, à Pátria e a Hong Kong, tanto empenho na harmonia deveria terminar com a sua entrega às autoridades da RAEM para cumprir a pena em que foi condenado. Então não seria bonito de um momento para o outro ver toda a bandidagem do colarinho branco (alguma já com os colarinhos encardidos de tanto esquema), de cá e de lá, a entregar-se às autoridades? Isso é que seria amor à Pátria e ao princípio “um país, dois sistemas”. A sério. Certamente que os seus advogados lhe dirão isto. Mas quanto às declarações locais, a primeira pérola veio de Ho Iat Seng, candidato a Chefe do Executivo. E que disse ele? Então não é que antecipando–se à piedosa confissão de Joseph Lau veio dizer que com ele os direitos da comunidade portuguesa irão ser respeitados, que valoriza o seu papel e que serão todos tratados da mesma forma? Quando o ouvi no canal radiofónico da TDM pensei que se tinham enganado a ler as notas. Depois, ao ler no jornal, fiquei com curiosidade de saber em que circunstâncias tais declarações foram produzidas. Se à saída de um karaoke ou se depois de uma noite de insónia. Pelo que se viu com a dispensa dos ex-assessores portugueses da AL, dando-lhes cabo das carreiras profissionais e das vidas familiares, atirando-os para o desemprego, já estaria a ensaiar o seu modelo de protecção à comunidade portuguesa. Sim, porque portugueses não quer dizer comunidade portuguesa. A comunidade é óptima, claro. Os portugueses individualmente é que não, salvo quando se comportam como uns caniches amestrados, adulando quem lhes paga e temperando os pareceres que dão para lhes renovarem os contratos. Mal refeito desta tirada do candidato a Chefe do Executivo, ouvi o Senhor Secretário para a Segurança exaltar as virtudes do jornalismo obediente, mansinho e ao serviço do poder político e das suas causas. Genial. Foi pena que, aproveitando-se a deslocação a Macau de Rocha Vieira, de Fernando Lima e de Martins da Cruz, não tivessem reunido esforços para darem um curso de jornalismo sadio, patriota, aos profissionais locais. Carecidos como eles estão, com o apoio da Fundação Macau e do Instituto Internacional do Dr. Rangel, teria sido um sucesso. Pode ser que o José Carlos Matias se lembre disso numa próxima ocasião, mas não vai ser fácil voltar a reunir na RAEM tantas sumidades versadas em matéria de escutas, rumores e controlo da comunicação social. Esse curso de jornalismo amestrado teria sido particularmente importante numa altura em que a situação da segurança começa a fazer lembrar os piores tempos da administração portuguesa. Esfaqueamentos, cenas de pugilato no Cotai, roubo de milhões de dentro de um casino, aumento da criminalidade violenta, sequestros, gatunagem em fuga e dependente do auxílio das autoridades do outro lado para ser apanhada…; enfim, tanta câmara, tanta polícia, tanta escuta e só há resultados na cobrança de multas de estacionamento e no excesso de velocidade? É claro, por falar em multas, que nada disso tem o peso das declarações do Secretário para os Transportes e Obras Públicas. Por vezes tenho a impressão de que ele perde a paciência com os deputados. Como o compreendo. E o caso não é para menos. Não bastavam as obras do metro ligeiro, as inundações, aos aluimentos de terras, o hospital, os autocarros, os táxis, a qualidade do ar, os plásticos, o terminal marítimo da Taipa, a água que jorra da ETAR de Macau, a China Road and Bridge Corporation zangada e em tribunal por causa de meia dúzia de patacas, os “talentos” espalhados pelos passeios e em risco de serem pisados a qualquer momento pelo deputado Mak Soi Kun, e ainda se vão queixar do estacionamento? Mas onde é que esta gente vive? Qualidade de vida? Andem a pé. Então não gostam de ir todos os anos na marcha do Jornal Ou Mun? Agora podem treinar durante todo o ano, emagrecer saudavelmente. A influência de Urano ainda se fez sentir nas declarações da Secretária para a Administração e Justiça. A Dra. Sónia Chan reconheceu candidamente acreditar que “depois de haver uma sentença que essa vai ser traduzida para a outra língua”. Pois é, se recebesse sentenças saberia que não devia acreditar na imaginação, porque na prática não é verdade. Ainda há dias uma simpática senhora juíza, depois de ter notificado verbalmente em chinês, com tradução simultânea em português ao ouvido do advogado, mais de uma dezena de páginas, dispensou a tradução ao arguido em língua portuguesa, entre outras razões, imagine-se, por falta de meios! Falta de meios? Em Macau? Com o PIB que temos? Ainda se fosse no Canadá ou na Suíça, que não têm casinos decentes, eu poderia entender. Ora, a Senhora Secretária devia começar por dar meios aos tribunais. Para o que bilinguismo melhore e as decisões judiciais possam ser notificadas aos interessados com cópia em papel na língua que os destinatários, advogados ou partes, dominam. Para que se cumpra a Declaração Conjunta Luso-Chinesa e a Lei Básica. Imagine o que seria se os despachos do Chefe do Executivo lhe fossem entregues em servo-croata? É mais ou menos o mesmo. Pareceu-me ver aí alguma condescendência e boa vontade quando afirmou “eu até posso dialogar com os tribunais e alterar a lei actual”. E de que está à espera? Parece-me um bom princípio e só lhe ficaria bem, tanto mais que é a própria que também diz que isso “não é difícil”. O problema está quando, logo a seguir, a Dra. Sónia Chan pergunta: “mas na verdade, e na prática, se fizermos a alteração, o que vai acontecer depois?” (HojeMacau, 28/05/2019, p.7). Ó Senhora Dra., então isso pergunta-se? E o deputado Pereira Coutinho iria responder-lhe? Eu não quero deixá-la na dúvida e posso garantir-lhe que se isso for feito vamos todos, cidadãos residentes e não-residentes, advogados, magistrados, entendermo-nos muito melhor. Vamos ser todos muito felizes. Ainda mais, quero dizer. E logo na Grande Baía, Senhora Dra.! Já viu o benefício que seria? Já nos imaginou a recebermos despachos judiciais, sentenças, acórdãos numa língua que entendemos? E se isso fosse alargado às notificações do Turismo e dos Assuntos Laborais, e a todos os serviços da Administração Pública? Já pensou nisso? A quantidade de ramos de rosas que a AAM e os meus colegas, até os avarentos e que andam sempre à procura de subsídios, não iriam enviar para o seu gabinete. E então se as sentenças viessem por correio electrónico traduzidas nem lhe conto. Alguns até iriam dançar para a Praia Grande, lançar foguetes, sei lá, dar vivas ao futuro querido líder. Hoje vou deixar descansar o Dr. Alexis Tam e o Dr. Lionel Leong. Um porque ainda está a gozar os louros do seu Honoris Causa e a recuperar do jet-lag. O outro porque ainda está a reflectir sobre as razões para não o deixarem ser candidato a Chefe do Executivo. Não convém perturbá-los, ainda têm muito para fazer. Em todo o caso, gostaria de deixar uma palavra de solidariedade e muita compreensão ao Senhor Procurador, Dr. Ip Son Sang. É certo que me parece ver ali um remar contra a maré quando se alerta para a necessidade de contratação de magistrados portugueses “qualificados e experientes” para trabalharem em Macau. Sei que contratar portugueses já será difícil, qualificados e experientes ainda mais. Concordo, aprecio o esforço e também o trabalho que tem desempenhado no sentido da melhoria dos recursos e em matéria de tradução. Espero que o escutem e que lhe dêem razões para sorrir. Porém, onde senti que era mais importante deixar uma palavra de apoio ao MP e à sua hierarquia foi na parte do relatório 2018 em que o estimado Dr. Ip se queixou das dificuldades criadas pelo seu senhorio à acção da instituição que dirige. Homessa? Então não é que o MP enfrentou “de novo” uma acção de despejo, em 2018, “mais uma vez a ‘desocupação forçada’ exigida pelo proprietário para recuperar a unidade”? E que “o caso acabou por ser resolvido com um acordo que previa o aumento do valor de renda”, o que motivou “a incerteza do decurso da negociação, sendo causa de “enorme distúrbio e preocupação ao funcionamento e gestão dos lugares de trabalho do MP” (HojeMacau, 29/05/2019, p.9)? Como é possível isso acontecer? E com um inquilino que tem um batalhão de magistrados e funcionários, conhece a lei, tem-na do seu lado e paga as rendas atempadamente? Senhorio glutão. Imaginem então como será com o desgraçado do inquilino do estúdio, sem força negocial, que está nas mãos dos tubarões das agências de mediação e dos senhorios de Hong Kong e do Interior. Espero que o deputado Chan Chak Mo, presidente da 2.ª Comissão da Assembleia Legislativa, tenha lido com atenção o relatório do MP, em especial nesta parte, esclarecendo depois a opinião pública se o MP também cai na categoria dos “arrendatários trapaceiros”. Não dava jeito nenhum. Sugiro, pois, que se comece a preparar o reset do sistema de governança. Com a época de tufões à porta, e a silly season a entrar com esta força, tantos foram os bugs de Maio que começa a ser difícil distinguir a intromissão dos piratas (hackers) no sistema da acção dos especialistas encartados. * reset: o mesmo que reconfigurar, redefinir, reiniciar
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO fim da vida “I will respect the privacy of my patients, for their problems are not disclosed to me that the world may know. Most especially must I tread with care in matters of life and death. If it is given me to save a life, all thanks. But it may also be within my power to take a life; this awesome responsibility must be faced with great humbleness and awareness of my own frailty. Above all, I must not play at God.” Hippocratic Oath-Modern Version [dropcap]A[/dropcap] população mundial está a envelhecer e a capacidade de manter as pessoas desesperadamente doentes é cada vez maior. É um dever ajudar as pessoas que querem pôr termo à vida? Em caso afirmativo, deveriam ser apenas os pacientes terminais ou incluir aqueles que sofrem de doenças psiquiátricas, como no mediático caso de Aurelia Brouwers, a holandesa de vinte e nove anos que se encontrava tão infeliz que descreveu o seu sofrimento mental como “insuportável” e bebeu veneno fornecido por um médico, e se deitou para morrer, em 26 de Janeiro de 2018. A eutanásia e o suicídio assistido por médico são legais na Holanda, e daí que a sua morte foi sancionada pelo Estado. A paciente não era uma doente em fase terminal, mas foi autorizada a acabar com a vida devido à sua doença psiquiátrica, bebendo legalmente veneno letal. O Parlamento holandês considerou que se devia criar uma lei que permitisse aos médicos ajudar os pacientes a morrer em determinadas circunstâncias. A sua história é exclusivamente holandesa. A eutanásia é contrária à lei na maioria dos países, mas na Holanda é permitida, se um médico concordar, o sofrimento de um paciente for insuportável sem perspectiva de recuperação e se não houver alternativa razoável para a sua situação. Tais critérios podem ser mais simples de aplicar no caso de alguém com um diagnóstico terminal de cancro intratável e que sente muitas dores. A grande maioria das cerca de seis mil e seiscentas mortes por eutanásia na Holanda em 2017 são referentes a casos de pessoas com uma doença física, mas oitenta e três foram ajudadas a morrer por motivos de alto sofrimento psiquiátrico e cujas condições não eram necessariamente terminais. Os médicos de Aurelia não apoiaram os seus pedidos de eutanásia o que a levou a inscrever-se numa “Clínica de Fim de Vida”, em Haia que é o local de último recurso para aqueles cujas candidaturas foram rejeitadas pelo seu psiquiatra ou médico de família. A clínica supervisionou sessenta e cinco das oitenta e três mortes aprovadas na Holanda por motivos psiquiátricos, embora apenas cerca de 10 por cento dos pedidos psiquiátricos são aprovados, e o processo pode levar anos. A “Clínica de Fim de Vida”, só oferece eutanásia ou suicídio assistido a pessoas cujo pedido de morte assistida foi negado pela primeira vez pelo seu médico. A clínica não é um hospital ou um hospício, mas uma fundação com equipas de médicos e enfermeiros que trabalham separadamente e visitam os pacientes em casa. A clínica primeiro analisa o pedido, para determinar se cumpre os estritos critérios da lei holandesa de eutanásia e em caso afirmativo, uma das equipas conversa com o paciente por diversas vezes para investigar por completo o pedido. O historial clínico é pesquisado e os médicos envolvidos na situação são consultados. Se todos os critérios forem observados, o paciente pode morrer em casa, na presença de familiares e amigos. A cínica foi fundada em 2012, com base na lei da eutanásia e o direito holandês de morrer na sociedade. Ainda que qualquer paciente possa pedir à clínica a morte assistida, tem como objectivo principal os pacientes cujos pedidos de morte assistida são mais complexos e muitas vezes negados pelos seus médicos, ou seja, pacientes psiquiátricos, pessoas com demência ou que sofrem com doenças não fatais. A lei holandesa da eutanásia determina que apenas os pacientes que têm um sofrimento insuportável, sem perspectiva de melhoria, podem ser elegíveis para a eutanásia. A lei não contempla a distinção entre sofrimento físico ou psicológico. Os pacientes devem ser persistentes na decisão de solicitar a morte assistida e devem entender as consequências do seu pedido. O médico deve estar convencido de que não existe outra solução razoável para pôr termo ao sofrimento. Mas a lucidez significa que alguém tem a capacidade mental de escolher a morte em detrimento da vida? De acordo com a lei holandesa, um médico deve encontrar-se seguro do pedido de eutanásia do paciente, “voluntário e bem examinado”. Será que um doente psiquiátrico é idóneo para tomar a decisão? O desejo de morte poderá ser um sintoma da sua doença psiquiátrica? O facto de que se pode racionalizar sobre essa situação não significa que não seja um sinal da doença. Os psiquiatras devem tudo fazer para ajudar os pacientes a diminuir os sintomas da sua patologia e em transtornos de personalidade, um desejo de morte não é incomum. Se isso é consistente, e tiveram os seus tratamentos de transtorno de personalidade, significa que o desejo de morte é o mesmo que em um paciente com cancro que diz que não quer ir até à fase terminal? Os psiquiatras nunca devem conspirar com os pacientes que alegam que querem morrer, pois é possível não ser contaminado pela falta de esperança. Os pacientes perdem a esperança, mas os médicos podem ficar do seu lado e dar-lhes esperança. A morte da holandesa tem provocado um enorme debate a nível mundial e particularmente nos Países Baixos, pois ninguém sugeriu que era ilegal, embora os críticos tenham inquirido se era o tipo de caso para o qual a legislação permitia a eutanásia. As opiniões dividem-se sobre se havia uma alternativa aceitável, sendo que alguns argumentam de quando as pessoas solicitam a eutanásia por motivos psiquiátricos, em alguns casos suicidam-se, se não a recebem e que devem ser consideradas com doenças terminais. Alguns médicos afirmam que sabiam que os pacientes iriam cometer suicídio e não os podiam ajudar, pelo que a eutanásia como alternativa os deixava mais tranquilos por que existe uma lei que a permite e os que cometerão suicídio são terminais e não os querem abandonar pelo facto de não poderem continuar a viver nessa situação. Há outros médicos que discordam, pois sempre trabalharam com pacientes suicidas e nenhum foi terminal, que tiveram pacientes que cometeram suicídio, mas na verdade não eram casos para prever tal desfecho. O desconforto em torno da eutanásia para pacientes psiquiátricos tem a ver com a preocupação de que todas as opções podem não ter sido exploradas. Na clínica holandesa mais de metade daqueles que vão à procura da eutanásia por motivos psiquiátricos são rejeitados porque não tentaram todos os tratamentos disponíveis. A eutanásia e o suicídio assistido por médico referem-se a acções deliberadas tomadas com a intenção de terminar uma vida, a fim de aliviar o sofrimento persistente. Na maioria dos países, a eutanásia é contrária à lei e pode ser decretada uma sentença de prisão, sendo que nos Estados Unidos a lei varia entre os Estados. As definições de eutanásia e suicídio assistido variam. A distinção útil é de que a eutanásia é a acção que permite a um médico, por lei, acabar com a vida de uma pessoa por meios indolores, desde que o paciente e a sua família concordem, enquanto o suicídio assistido é a acção pela qual um médico ajuda um paciente a cometer suicídio se solicitar. A eutanásia também pode ser classificada como voluntária ou involuntária. É voluntária quando é conduzida com consentimento. A eutanásia voluntária é actualmente legal na Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Suíça e nos Estados de Oregon e Washington nos Estados Unidos. É não voluntário quando é conduzida em uma pessoa que é incapaz de consentir devido às suas condições de saúde e neste cenário, a decisão é tomada por outra pessoa, em nome do paciente, com base na sua qualidade de vida e sofrimento. É involuntária quando é realizada em uma pessoa que seria capaz de dar consentimento mas não porque deseje a morte ou porque não a solicitou, e é considerado como homicídio, pois muitas das vezes é contra a vontade dos pacientes. A eutanásia tem sido um tema controverso e emotivo. Existem duas classificações processuais de eutanásia, a passiva quando os tratamentos que sustentam a vida são retidos. As definições não são precisas. Se um médico prescreve doses crescentes de medicamentos analgésicos fortes, como opióides, pode eventualmente ser tóxico para o paciente e alguns argumentam que se trata de eutanásia passiva e outros, no entanto, dizem que não é eutanásia, porque não há intenção de tirar a vida. A eutanásia activa é quando alguém usa substâncias ou forças letais para acabar com a vida de um paciente, seja pelo próprio ou por outra pessoa. A eutanásia activa é a mais controversa, e envolve argumentos religiosos, morais, éticos e compassivos. O suicídio assistido tem várias interpretações e definições diferentes sendo um o que é de forma intencional ajudando uma pessoa a cometer suicídio, fornecendo medicamentos para auto-administração, a pedido voluntário e idóneo da pessoa. Algumas definições incluem as palavras “para aliviar o sofrimento intratável (persistente, imparável) ”. A maioria dos hospitais têm unidades de cuidados paliativos e qual o seu papel? A dor é o sinal mais visível de angústia pelo sofrimento persistente, e as pessoas com cancro e outras situações crónicas que ameaçam a vida muitas vezes recebem cuidados paliativos. Os opióides são comummente usados para controlar a dor e outros sintomas. Os efeitos adversos dos opióides incluem sonolência, náusea, vómito e constipação, podendo criar dependência e uma “overdose” pode ser fatal. É de considerar que em muitos países, incluindo os Estados Unidos, um paciente pode recusar o tratamento recomendado por um profissional de saúde, desde que tenha sido devidamente informado e se encontre com capacidade para decidir. O “Juramento de Hipócrates” é um argumento contra a eutanásia ou suicídio assistido por médico que remonta a cerca de dois mil e quinhentos anos. O juramento original incluía, as seguintes palavras: “Eu não darei uma droga mortal a quem pediu, nem farei uma sugestão nesse sentido.” O mundo mudou desde a época de Hipócrates, e muitos acham que o juramento original está desactualizado. A versão actualizada é usada em alguns países, enquanto em outros, por exemplo, no Paquistão, os médicos ainda aderem ao original. À medida que mais tratamentos se tornam disponíveis, a possibilidade de prolongar a vida, seja qual for a sua qualidade, é uma questão cada vez mais complexa. A eutanásia tem sido um tema de debate desde o início do século XIX. A primeira lei anti-eutanásia nos Estados Unidos foi aprovada no Estado de Nova Iorque, em 1828 e com o tempo, outros Estados seguiram o exemplo. O oncologista e bioeticista americano Ezekiel Jonathan Emanuel, no século passado, afirmou que a era moderna da eutanásia foi introduzida pela disponibilidade de anestesia. Em 1938, uma sociedade de eutanásia foi estabelecida nos Estados Unidos para pressionar pela legalização do suicídio assistido. O suicídio assistido por médicos tornou-se legal na Suíça em 1937, desde que o médico que termine com a vida do paciente nada tenha a lucrar. Durante a década de 1960, a defesa da abordagem do direito à morte por eutanásia cresceu. A Holanda descriminalizou o suicídio assistido por médico, reduzindo algumas restrições em 2002 e no mesmo ano o suicídio assistido por médico foi aprovado na Bélgica. É de atender que nos Estados Unidos, os comités formais de ética existem em hospitais, casas de repouso e clínicas, e as directrizes de saúde antecipadas, ou testamentos em vida, são comuns em todo o mundo. Estes tornaram-se legais na Califórnia em 1977, com outros Estados a seguir o exemplo. No testamento vital, a pessoa declara os seus desejos por cuidados médicos, caso se tornem incapazes de tomar a sua própria decisão. Em 1990, o Supremo Tribunal Federal aprovou o uso de eutanásia não activa. Em 1994, os eleitores do Oregon aprovaram a “Lei da Morte com Dignidade”, permitindo que os médicos auxiliassem os pacientes terminais que não esperavam ter mais de seis meses de vida. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos adoptou essas leis em 1997 e o Texas tornou a eutanásia não-activa legal em 1999. O célebre caso de Theresa Schiavo galvanizou a opinião pública na Florida, dado ter sofrido uma paragem cardíaca em 1990, passando quinze anos em estado vegetativo antes que o pedido do seu marido para permitir que terminasse com a vida fosse concedido. O caso envolveu várias decisões, apelações, moções, petições e audiências judiciais durante vários anos, antes da decisão de desligar o suporte vital ocorresse em 18 de Março de 2005. A Legislatura da Florida, o Congresso dos Estados Unidos e o presidente Bush desempenharam um importante papel e em 2008, 58 por cento dos eleitores do Estado de Washington escolheram a “Lei da Morte com Dignidade”, que se tornou lei em 2009. Vários argumentos são comummente citados a favor e contra a eutanásia e o suicídio assistido por médicos. Os argumentos a favor têm como base a liberdade de escolha, em que os defensores argumentam que o paciente deve ser capaz de fazer a sua própria escolha; a qualidade de vida, pois só o paciente sabe realmente como se sente e como é a dor física e emocional da doença e como a morte prolongada afecta a sua qualidade de vida; a dignidade, dado que todo o indivíduo deve poder morrer com dignidade; as testemunhas, pois os que testemunham a morte lenta de outros acreditam que a morte assistida deve ser permitida; os recursos, dado fazer mais sentido canalizar os recursos de pessoal altamente qualificado, equipamentos, leitos hospitalares e medicamentos para tratamentos que salvam vidas e para os que desejam viver, ao invés dos que não desejam; o humano, permitindo que uma pessoa com sofrimento intratável possa escolher acabar com esse padecimento, pois pode ajudar a encurtar o sofrimento dos entes queridos. Tais actos são praticados quando um animal de estimação tem sofrimento intratável, e é visto como um acto de bondade. Porque essa nobreza deve ser negada aos humanos? Os argumentos contra têm por base o papel do médico, pois os profissionais de saúde podem não estar dispostos a comprometerem a sua profissão, especialmente à luz do “Juramento de Hipócrates”; os argumentos morais e religiosos, pois várias religiões vêem a eutanásia como uma forma de homicídio e moralmente inaceitável. O suicídio também é “ilegal” em algumas religiões e moralmente, há o argumento de que a eutanásia enfraquecerá o respeito da sociedade pela santidade da vida; a capacidade do paciente, pois a eutanásia só é voluntária se o paciente for mentalmente capaz, com uma compreensão lúcida das opções e consequências disponíveis e a capacidade de expressar esse entendimento e o seu desejo de terminar com a sua própria vida. Determinar ou definir tal capacidade não é simples É ainda de considerar argumentos contra a culpa, pois os pacientes podem sentir que são um fardo para a sociedade e são psicologicamente pressionados a consentir. Os pacientes podem sentir que o fardo financeiro, emocional e mental para a sua família é demasiado grande e mesmo que os custos do tratamento sejam fornecidos pelo Estado, existe o risco de que o pessoal do hospital possa ter um incentivo económico para encorajar o consentimento à eutanásia; a doença mental, pois uma pessoa com depressão é mais propensa a pedir o suicídio assistido, o que pode complicar a decisão; a escalada escorregadia, pois existe o risco de que o suicídio assistido por um médico comece com os pacientes que estão em estado terminal e desejem morrer por causa do sofrimento intratável, mas depois comecem a incluir outros indivíduos e situações. É de considerar por último como argumentos contra a possível recuperação, pois ocasionalmente, um paciente recupera, contra todas as probabilidades. O diagnóstico pode estar errado; os cuidados paliativos, dado que os bons cuidados paliativos tornam a eutanásia desnecessária; o regulamento, pois a eutanásia não pode ser adequadamente regulada e as estatísticas, dado que as opiniões parecem estar a aumentar a favor da eutanásia e do suicídio assistido. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Harvard publicaram resultados de uma pesquisa na qual inquiriram pessoas de setenta e quatro países acerca do suicídio assistido por médicos, tendo 65 por cento dos entrevistados discordado e onze dos países inquiridos foram a favor. Os mil e oitocentos entrevistados nos Estados Unidos representavam quarenta e nove Estados, tendo 67 por cento votado contra, sendo que em dezoito Estados, a maioria era a favor do suicídio assistido por médico. A pesquisa realizada pela “Gallup” em 2017, revelou que 73 por cento dos inquiridos eram a favor da eutanásia e 67 por cento eram a favor do suicídio assistido por médico nos Estados Unidos. A entrevista descobriu que 55 por cento dos que frequentavam uma igreja semanalmente eram a favor de que um médico pusesse fim à vida de um paciente que está com doença terminal, em comparação com 87 por cento dos que não frequentavam regularmente a igreja. A pesquisa descobriu ainda que se trata de uma questão política também, pois nove entre dez liberais são a favor, em comparação com 79 por cento dos moderados e 60 por cento dos conservadores. Os países onde a eutanásia ou o suicídio assistido são legais, são responsáveis por um total de entre 0,3 e 4,6 por cento das mortes, mais de 70 por cento das quais relacionadas com o cancro.
João Romão VozesEuropa mais verde [dropcap]A[/dropcap] agenda ecológica vai fazendo o seu lento mas aparentemente imparável caminho na discussão política: a cada vez mais visível emergência dos problemas ambientais e a eminência de uma catástrofe global sensibilizam um número evidentemente crescente de pessoas e mobilizam-nas para ações políticas diversas: com muito pouco tempo de diferença, tivemos adolescentes nas ruas de todo o mundo numa sem precedentes reivindicação do seu direito ao futuro e assistimos à duplicação da representatividade dos partidos ecologistas no Parlamento Europeu. Em vários países da Europa, os países ecologistas foram o segundo mais votado. Portugal também contribuiu para este crescimento com a estreia de um deputado eleito pelo PAN – contrariando, de resto, a generalidade das projeções publicadas na imprensa – mas foi da Alemanha (mais 8), França (mais 6) e Reino Unido (mais 5 deputados) que chegaram os maiores contributos. Já em relação à participação eleitoral, foi modesto o contributo nacional e a abstenção manteve-se muito próxima dos níveis habituais neste tipo de sufrágio, ao contrário do que aconteceu na generalidade do território europeu – na realidade um sinal de que as questões transnacionais da governação da União Europeia se vão tornando mais interessantes e mobilizadoras para a população do continente. Talvez essa preocupação chegue também a Portugal, um destes dias. Por enquanto pareceu percorrer grande parte do continente e contribuir – aparentemente de forma decisiva, como no caso da Holanda – para neutralizar a emergência da extrema-direita xenófoba em vários países. O aumento da participação foi acompanhado por um manifesto aumento da diversidade. A tendência que se vem assinalando em quase todos os países para a perda de hegemonia dos alegados “blocos centrais” – essa mesa onde animadamente repastam as chamadas esquerda e direita “moderadas” – atingiu um patamar sem precedentes no Parlamento Europeu: pela primeira vez desde que se realiza este tipo de eleição, as duas grandes “famílias” políticas não têm, em conjunto, mais de 50% de deputados. “Geringonças” governativas cada vez mais complexas há hoje muitas, por esse mundo fora. Também no Parlamento Europeu novas e criativas aritméticas serão certamente convocadas para definir maiorias num contexto de relativa pulverização do eleitorado e diversificação programática dos seus excelsos representantes. Nesta diversificação não coube o primeiro movimento que reivindica um original caráter europeu, liderado pelo conhecido ex-ministro das finanças da Grécia, no triste período histórico em que o país tentou enfrentar – sem sucesso – as regras da austeridade definidas pelas instituições europeias e pelo FMI. Apesar do mediatismo de algumas intervenções, nenhuma das candidaturas nacionais associadas a esse movimento transeuropeu – o Diem25 – conseguiu eleger representantes. Aliás, também a “esquerda da esquerda” sofreu significativa derrota e perda de representatividade à escala europeia, ainda que o número de representantes portugueses se tenha mantido, com uma significativa troca de posições entre os dois partidos (BE e CDU) aí representados. Pelo contrário, além dos ecologistas, também os liberais (onde se inclui o partido do Presidente francês, mas também uma forte representação – provavelmente temporária – do Reino Unido) conseguiram um crescimento significativo, juntando-se aos mais tradicionais grupos da social democracia, da democracia cristã e dos conservadores enquanto forças hegemónicas no Parlamento Europeu. Uma hegemonia mais partilhada e complexa, em todo o caso. Ao contrário do que foi anunciando na imprensa da especialidade nas semanas anteriores à eleição, nem os movimentos mais assumidamente xenófobos (ou fascistas, numa designação também muito utilizada – até pelos próprios – e eventualmente mais precisa), nem os partidos mais abertamente anti-EU assumiram posições determinantes nos luxuosos hemiciclos de Bruxelas e Estrasburgo. Essa extrema direita liderada pelo movimentos anti-imigração da Itália, França e Alemanha não foi acompanhada por uma significativa emergência de movimentos semelhantes noutros sítios – na realidade, em países como a Holanda, até desapareceram do espectro. Tal como noutros momentos históricos, a emergência da extrema-direita só parece ser possível em momentos de crise económica profunda, o que não parece ser (já? ainda?) o caso. De maneira semelhante, também os movimentos claramente anti-EU acabaram por conseguir limitada representação parlamentar – e que se tornará ainda mais pequena se e quando se concretizar o Brexit e saírem do Parlamento os deputados eleitos pelo Reino Unido. Dessa saída resultarão uma nova reconfiguração de forças e novas geografias e aritméticas parlamentares. São tempos interessantes mas com respostas lentas às urgências fundamentais.
Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente (continuação) [dropcap]E[/dropcap]m Portugal, a referência a pessoas de determinada localidade expressa-se, pelo adjectivo derivado do nome da mesma localidade. Por exemplo: lisboeta é o natural de Lisboa, ou gente de Lisboa. Na China, a forma para designar a naturalidade é semelhante. Por exemplo: Beijing ren, Xangai ren (gente de Pequim, gente de Xangai). No caso de Macau, único em todo o território da China, Ao Men ren (gente de Macau, em mandarim) Ou Mun yan (em cantonense) é uma designação que não inclui toda a população de Macau. Na minuciosa especificação que os chineses fazem da população de Macau, Ao Men ren ou Ou Mun yan não significa toda a população de Macau. Significa, apenas, a população chinesa de Macau. Os macaenses são designados, pelos chineses de Macau, por “t’ou-san” (filhos e filhas da terra, habitantes locais). A população chinesa de Macau distingue os portugueses em: macaenses e reinóis, ou metropolitanos. Aos euro-asiáticos ou macaenses chamam “t’ou-san”, como já se disse. Aos “portugueses de Portugal” chamam “Kuai-lôu” (gíria: diabo, ele ou ela). E especificam ainda o género: “ngau-sôk” (lit.: tio boi) e “ngaû-pó”(lit.: mulher vaca). Por seu lado, os macaenses distinguem-se dos chineses. Tradicionalmente autodenominavam-se “macaístas” ou “maquistas” e designavam os chineses por “chinas”. Os chineses de Macau que recebiam o baptismo e adquiriam um nome cristão/português eram conhecidos por “chong cao” (convertido ao cristianismo, novo cristão). O peso social dos macaenses em Macau outorgou-lhes a distinção social “t’ou-san” que, ao mesmo tempo, impede “Ao Men Ren” ou “Ou Mun yan” de significar “todos os naturais de Macau”, como acontece em todas as localidades do Continente. Isto significa que, do ponto de vista dos chineses de Macau, a sua terra é uma singularíssima excepção na China. É deles. Mas é, também, dos macaenses. O fenómeno da miscegenação não é vulgar no interior da China. Quando existe alguém, meio chinês e meio estrangeiro, a designação é “Hun Xue Er”, literalmente: misturado; mestiço. 8. A Mulher na Família Macaense “1600 – Macau conta na sua população com 600 famílias indo-portuguesas” (B.B. Silva : ob. cit.) “1635 – António Bocarro diz na sua Descrição de Macau: Os cazados que tem esta cidade são oitocentos sincoenta portugueses e seus filhos que são muito mais bem dispostos, e robustos, que nenhum que haja neste oriente, os quaes todos tem huns e outros seis escravos darmas de que os mais e milhores são cafres e outras naçoens(…). Além deste número de cazados Portuguezes tem mais esta cidade outros tantos cazados entre naturais da terra, Chinas Christãos que chamam jurubassas de q’ são os mais, e outras nações xtãos (…). Tem alem disto esta cidade muitos marinheiros pilotos e mestres solteiros Portuguezes os mais delles cazados no Reino, outros solteiros que andão, nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassar, Cochinchina, destes mais de cento e sincoenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de sincoenta mil xerafins que por nenhũ modo querem passar a Goa por não lançarē mão delles ou as justiças de Sua Magde. e assy tambem muitos mercadores solteiros muito ricos em que melitão as mesmas razões”. (idem). Ao longo do século XVII, apenas uma mulher portuguesa (europeia) existiu em Macau (MONTEIRO: 2007). Peter Mundi afirmou também que, em 1632 – quase um século depois do estabelecimento dos portugueses em Macau – não existia na cidade mais do que uma mulher europeia, sendo as outras mestiças, euro-asiáticas. Sobre a participação da mulher chinesa na construção da sociedade macaense, a historiografia divide-se. Bento da França (1897), Álvaro de Melo Machado (1913), Francisco de Carvalho e Rego (1950) e Carlos Estorninho (1952), entre outros, argumentam que a entrada das mulheres chinesas na sociedade de Macau foi tardia: “Por três séculos /…/ os portugueses não casaram com mulheres chinesas “. Posição contrária é tomada por Charles Boxer (1942) e pelo Padre Manuel Teixeira (1965), entre outros, que sustentam a participação da mulher chinesa na sociedade macaense, desde o início: “Os portugueses casaram com mulheres chinesas e, assim, (Macau) gradualmente foi povoada. (D’Avalo: 1638, citado por BOXER: 1942). Eu defendo a participação tardia da mulher chinesa na sociedade macaense pelas seguintes razões: – Os padrões de controlo social, tradicionalmente xenófobos entre os chineses, desqualificavam socialmente as mulheres chinesas que se relacionassem com estrangeiros. Esta situação parece ter começado a sentir algum alívio somente após a proclamação da República na China (1911). – Era costume antigo em Macau, a afixação e circulação de “pasquins” contendo crítica social: ao governador, a pessoas com destaque social e a factos e eventos que pisassem os limites da “normalidade macaense”. Produzidos no séc. XIX, existem “pasquins” ridicularizando, em patuá, casamentos anunciados, de homem macaense ou reinol com mulher chinesa. Isso não aconteceria se tais casamentos fossem uma prática habitual; – Construído em 1860, o Teatro D. Pedro V é propriedade da Associação dos Proprietários do Teatro D. Pedro V cujos Estatutos não permitiam a entrada a chineses. Esta discriminação étnica não aconteceria se fosse comum a mulher chinesa deter o estatuto de cônjuge nas famílias macaenses; – os chineses convertidos à religião católica, nascidos em Macau, recebiam a designação de “tchong cao” (inscrito na religião, novo cristão) mas não o de “tou san” (filho da terra), embora beneficiassem de um estatuto mais próximo do dos macaenses. – O crioulo de Macau (Patuá ou Maquista) é gémeo do crioulo de Malaca [Kristang] e o seu léxico contém escassa influência do cantonês (BATALHA: 1988). Como língua falada predominantemente na relação familiar – linguagem que se aprende no berço -, parece que a influência decisiva na construção da Família Macaense, entre os sécs. XVI e XIX , não terá sido da mulher portuguesa, nem da mulher cantonense. Esse papel terá sido desempenhado principalmente pela mulher euro-asiática não chinesa, (indo-portuguesa, de Malaca e de Timor-Flores, principalmente). À medida em que a influência da mulher euro-asiática não chinesa se foi distanciando, o Patuá foi perdendo terreno para o português padrão, acolhendo escasso número de léxico inglês – e de muito cantonense – que o conduziu ao processo de extinção, a par da entrada da mulher cantonense na sociedade macaense que alcança o seu auge entre 1945 e 1974, e marca o fim do papel da mulher asiática não chinesa na sociedade macaense e a sua substituição pela mulher cantonense. – A sociedade macaense tradicional, marcada pela mulher asiática não chinesa, tinha uma identidade própria que se empenhava na sua diferenciação activa do sul da China. Sempre resistiu à sua diluição no ambiente chinês, em retribuição, aliás, à atitude relutante dos chineses em relação à intrusão dos portugueses em território da China. 9. A ambivalência Cultural Macaense A comunidade macaense euro-asiática de origem chinesa, bem como os precedentes macaenses euro-asiáticos de origem não-chinesa, atribuíam um peso desigual aos elementos constitutivos da sua herança cultural ambivalente. Historicamente, a componente portuguesa era maximizada e a componente asiática secundarizada. Para um observador menos atento, certos comportamentos, com maior visibilidade no relacionamento de netos luso-chineses com avós maternos chineses, poderiam parecer incompreensíveis. Não resultando de conflito inter-geracional, a sua origem situava-se em “zona de diferença étnica”, aprofundada por eventual incompatibilidade cultural (escarro ou arroto ruidoso, uso dos pausinhos que vão à boca para retirar comida da travessa, etc.). A primeira geração de um casamento luso-chinês (homem português com mulher chinesa é o “casamento regra” entre 1945/74) é detentora de uma herança biológica mestiça paritária (50% chinesa-han/50% portuguesa-europeia). Mas este equilíbrio genético – que se mantém pela vida fora – não é observado no desenvolvimento comportamental dos indivíduos. Segundo Albert Bandura, psicólogo contemporâneo que elaborou a teoria da aprendizagem social, uma das mais importantes fontes de influência na aprendizagem humana é o comportamento dos outros. Diariamente somos expostos a uma enorme multiplicidade de modelos que, em diferentes contextos, exibem, desde os comportamentos mais simples, aos mais complexos. A observação desses comportamentos e das suas consequências será, em grande parte, determinante na aprendizagem. Mas a aprendizagem humana é selectiva. Os indivíduos tendem a imitar as figuras que lhe são significativas. Em regra, na primeira etapa da vida, o horizonte de observação e aprendizagem do indivíduo é o seu ambiente familiar, nomeadamente a estrutura interna da família. Quer na China, quer em Portugal, a autoridade parental, o papel de liderança da família, é atribuído ao marido / pai. Daí decorre a assumpção da herança cultural paterna como património familiar principal, mesmo quando ele opta pela educação dos seus filhos no exterior ou em escolas estrangeiras. Os casamentos inter-étnicos luso-chineses são principalmente entre homens portugueses e mulheres chinesas. Em tais casamentos, as referências culturais portuguesas são transmitidas de uma geração para a seguinte como as principais referências. 10. A educação dos macaenses Uma das decisões mais importantes nos casamentos luso-chineses diz respeito à educação das crianças. A educação nas escolas portuguesas era a escolha óbvia. Tão óbvia quanto a autoridade do pai dentro da família. A opção pela educação em português era a centrifugação definitiva que separava as duas componentes culturais das crianças macaenses, moldando a sua matriz cultural portuguesa e relegando os elementos da sua herança cultural chinesa para a periferia dessa matriz básica. É, portanto, compreensível que os macaenses falem, leiam e escrevam português, mas, em regra, não podem ler nem escrever chinês, embora falem cantonense. A capacidade de ler e escrever uma língua é a chave para o acesso à respectiva cultura. No caso dos macaenses, o domínio do português falado e escrito tem sido o factor decisivo da sua ligação à cultura portuguesa. Da mesma forma, a incapacidade de ler e escrever chinês tem sido o factor determinante do seu distanciamento da cultura chinesa, de cujas formas mais eruditas são absolutamente estranhos. Depois de concluírem os estudos secundários, alguns jovens macaenses, em regra, iam para as Universidades portuguesas e os restantes permaneciam em Macau. Para estes, a sua entrada na vida profissional, principalmente no Funcionalismo Público, coroavam os esforços iniciados com a decisão tomada pelo pai quando eram crianças e recompensava-os com o prestígio social de fazer parte da máquina administrativa que regulava a vida de Macau. Era impossível e impensável que um jovem macaense completasse o ensino secundário e fosse continuar os estudos numa universidade chinesa, no Continente ou em Taiwan. (continua)
Tânia dos Santos Sexanálise VozesEstados de Úteros Saudáveis [dropcap]N[/dropcap]em todas as mulheres têm útero. Há homens que têm útero. O órgão responsável pela menstruação existe para além do género, já sabemos. Há quem não o queira porque não se identifica com ele, mas há quem não o queira também porque, às vezes, dá mais problemas do que prazeres. O estado de saúde do útero deve ser discutido – não é por acaso que no Reino Unido a co-fundadora de uma organização dedicada ao cancro do colo do útero tenha feito uma citologia ao vivo num talk show televisivo. O famoso Papanikolaou (o apelido do cientista que desenvolveu este exame) traz mais desconforto que outra coisa, mas é daqueles males que somos obrigados a engolir se queremos controlar a saúde do útero. O colo do útero é uma entrada para o útero pela vagina que se vai alterando durante o ciclo hormonal – abre-se e fecha-se de acordo com o desejo de contacto com o exterior. Durante a ovulação, como devem calcular, está muito mais receptivo. Podia estender-me aqui de como o útero é um órgão fabuloso que produz ovócitos e que consegue desenvolver a composição de células do ser vivo por parir. Este órgão é o palco e o protagonista de uma dança hormonal que faz com que a menstruação, já nossa muito conhecida, a ovulação, mais obscura, e a gestação aconteçam. A dança vai acontecendo com esperança que a fecundação se concretize – que nem sempre é uma possibilidade porque não ovulamos todos os meses. Estas formas dinâmicas e cíclicas do trabalho deste órgão podem não ser pacíficas – como para quem sofre de endometriose. A forma desastrada e dolorosa do endométrio e da menstruação se comportarem resulta no que já vi descreverem – sensação de facadas na barriga. Calcula-se 10% das mulheres no mundo sofrem de endometriose, mas o seu diagnóstico é raro. Isto vem da ‘normalidade’ com que as dores menstruais são encaradas. A endometriose é uma condição em que o endométrio (o forro do útero que permite a nidação) cresça em outros locais menos propícios, como nos ovários, nas trompas de falópio e pode chegar a outros órgãos adjacentes. Também não é de fácil diagnóstico porque é preciso realizar uma ecografia na altura certa do mês para poder ver a invasão do endométrio no seu esplendor. Ninguém sabe ao certo como é que esta condição se desenvolve. Existem formas de tratamento, mas ninguém sabe da cura. O desconforto desta condição é tal que há pessoas que preferem tirar o útero para resolver o problema. São uns dias por mês em que as sofredoras de endometriose se sentem assoberbadas de dores ao ponto de não saírem da cama. Estrelas televisivas já dão a cara por esta condição incapacitante, como a Lena Dunham, e assim contribuem para a consciencialização do que pode ser um útero doente. Assim espera-se que as 10% de mulheres por este mundo fora comecem a perceber o que há de errado com elas. A saúde do útero parece necessitar de um equilíbrio delicado para um funcionamento pleno, mas a investigação ainda não percebeu que equilíbrio é esse. O útero não participa no sexo da mesma forma que a vulva e a vagina. Não tem o factor prazer escarrapachado nas suas paredes, mas tem um papel importante na produção e regulação hormonal. A saúde da vagina é uma coisa, a saúde do útero é outra. Apesar de intimamente ligados, ficamos frequentemente presos na imaginação vulvar e vaginal e tornamos misteriosa a actividade do útero. Pensamos nele na menstruação – quando nos dá aquelas facadinhas – e pouco mais. Para estados de úteros saudáveis talvez tenhamos que trazer mais conversas: sobre o colo, sobre os dramas e os medos, sobre as vacinas que se podem tomar para prevenir doenças graves e sobre as menstruações dolorosas que as vezes os médicos têm dificuldade em identificar. Úteros de plena consciência do que são e podem ser.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPortas do Cerco em estado de sítio [dropcap]N[/dropcap]os últimos dias, devido às obras de manutenção e reparação das escadas rolantes, as pessoas que viajavam de Zhuhai e Macau acumularam-se no corredor das partidas das Portas do Cerco. Dia 22 deste mês, a Polícia de Segurança Pública, o Gabinete das Forças de Segurança e o Gabinete de Transportes deram uma conferência de imprensa conjunta para apresentarem o plano de emergência para lidar com a situação. As medidas incluem a abertura de 13 guichets do controlo alfandegário, para que sejam evacuadas 12.000 pessoas num espaço de quatro horas. Na medida em que a entrada do edifício de controlo de fronteiras é estreita e as escadas rolantes estão em manutenção, o risco de acidentes aumenta com a enorme concentração de pessoas. É portanto urgente fazer sair esta multidão. Após a implementação das medidas, as pessoas só esperam cerca de 10 minutos até entrarem no edíficio da alfândega. Espera-se que abram mais dois guichets durante o fim de semana, passando assim de 13 para 15. O Gabinete de Transportes pediu às companhias transportadoras que os autocarros mudassem de rota, para que os passageiros pudessem sair junto aos portões de embarque. Os autocarros que fazem a volta dos hotéis foram reduzidos para um terço e os passageiros são encorajados a entrar e sair de Macau pela Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau. A substituição das escadas rolantes do edifício da alfândega das Portas do Cerco causou a concentração de uma multidão, e demonstrou a capacidade de infraestrutura pública de Macau para dar resposta a incidentes. O projecto de manutenção das escadas rolantes surgiu no princípio de 2018, mas o público só foi informado no dia anterior ao início das obras. Muitos dos residentes e turistas só se aperceberam da situação quando chegaram às Portas do Cerco. Esta situação sugere que as autoridades deverão fazer um esforço para publicitar este tipo de ocorrências com maior antecedência e que haja um controlo mais apertado das entradas e saídas em Macau. Fora isso, seria possível que o Governo providenciasse no sentido de serem utilizados outros postos de controlo alfândegário, para libertar a pressão das instalações das Portas do Cerco? Como o tempo de espera para entrar e sair de Macau está a aumentar, é possível que venha a ser necessário criar condições especiais para idosos, crianças, grávidas e pessoas com incapacidades, para evitar qualquer mal estar causado pelas altas temperaturas que se fazem sentir no Verão. Mas, pior do que isso, é a possibilidade de transmissão viral, frequente em locais super-lotados. Se uma pessoa estiver doente, facilmente muitas outras serão contagiadas e todos sabemos que se há vírus inofensivos, há infelizmente outros muito perigosos. Também é necessário alertar a população para o uso de máscaras. A presença de médicos no local e o controlo sanitário poderão ser ainda questões a considerar. As obras de manutenção e reparação das escadas rolantes do átrio das Partidas do edifício alfandegário das Portas do Cerco irão demorar cerca de 60 dias. O público irá sentir os seus transtornos por igual período. As escadas estão montadas paralelamente, em grupos de três. Devido às restrições de espaço, é possível que passem para grupos de duas, diminuindo grandemente a capacidade de transporte. Há uns tempos atrás estas escadas causaram muitos acidentes. Alguns turistas do continente forçavam manualmente a paragem das escadas e as pessoas que iam mais abaixo, como não conseguiam aguentar o impacto, perdiam o equilíbrio e caíam, fazendo cair também os que estavam atrás deles. Este foi um dos motivos que levou a separar as escadas em várias secções, de forma a diminuir os danos dos possíveis acidentes. Este aspecto deve de ser considerado na actual remodelação. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Jorge Menezes VozesAL: portas fechadas e deputados calados [dropcap]N[/dropcap]ão foi preciso a casa ter sido ‘roubada’ para a Assembleia Legislativa (AL) pôr trancas nas portas. O Regimento da AL determina que as reuniões das comissões “decorrem à porta fechada”, salvo deliberação em contrário. E assim tem sido: as portas têm estado trancadas e não há notícia de deliberações em contrário. Por este motivo, o deputado Sou Ka Hou (de quem fui advogado) foi acusado, quer por deputados, quer pelo presidente da direcção da Associação dos Advogados, de ter infringido a lei ao partilhar o que ali se discutira. Violara o que este último apelidou de “regras do jogo”: “defraudou e traiu a confiança que as pessoas podiam depositar nele”, quando “tinha de estar calado” (JTM, 05/12/2017). Porém, nem ‘jogo’ parece uma boa metáfora, nem o deputado violou a lei. E não tinha de estar calado. Os acusadores confundem ‘porta fechada’ com sigilo ou confidencia-lidade. Politicamente, é criticável que as reuniões decorram nos bastidores da vida política. A AL representa os cidadãos, que deveriam poder assistir, através da comunicação social, ao que os seus representantes defendem sobre a vida da comunidade, o modo como o fazem, os conhecimentos e ignorâncias que revelam, os preconceitos que exibem e por aí fora. Nem é possível representação autêntica sem transparência política. Porta fechada deveria ser a excepção, não a regra, numa terra já caracterizada por uma obscura cultura de governação. E assim é noutras paragens. Em Portugal, as reuniões das comissões “são públicas”, podendo, “excepcionalmente, reunir à porta fechada, quando o carácter reservado das matérias a tratar o justifique”. Em Hong Kong a lei é mais detalhada, mas similar. Juridicamente, se é certo que podem decorrer à porta fechada, é falso que seja proibido divulgar as posições assumidas por deputados em reunião de comissão. Nem há qualquer sanção para quem o faça. ‘Porta fechada’ significa que não se pode assistir. ‘Sigilo’, que não se pode revelar o que se lá passou. São conceitos distintos, de uso comum, na lei e no discurso político, que não escapariam a um legislador desatento (e que, veremos adiante, não escaparam). Ao determinar que as reuniões “decorrem” à porta fechada, proibiu-se a assistência da comunicação social ou do público. Nada mais. É como aulas de universidade, conferências ou assembleias gerais: não pode assistir quem quer, mas não é vedado debater cá fora o que foi ensinado ou discutido lá dentro. Só é confidencial o que a lei, expressamente, diz sê-lo. A Lei Básica prescreve que os direitos fundamentais só podem ser restringidos nos casos previstos na lei. E só o pode fazer dentro dos limites fixados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Constar expressamente de lei é condição necessária, mas não suficiente. O PIDCP determina que a liberdade de expressão e de expandir informações só pode ser submetida a restrições que, para além de “expressamente fixadas na lei”, sejam necessárias ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem, ou à salvaguarda da segurança nacional, ordem pública, saúde e moralidade públicas. O mesmo princípio consta da lei de imprensa. A confidencialidade das reuniões teria, pois, de ter sido expressamente fixada no Regimento. Mas não foi. Pelo contrário, deve ser feita acta das reuniões, a qual não é secreta. Só é imposto sigilo quando são convocados terceiros para prestar depoimentos ou apresentar provas, o que confirma que o legislador não andava distraído. Não tendo sido ordenado sigilo em nenhuma outra situação, o teor das reuniões de comissão pode ser partilhado e discutido. E o Regimento só poderia impor sigilo, sem violar a Lei Básica, se tal fosse necessário às finalidades referidas no PIDCP, o que nunca poderia suceder indiscriminada-mente quanto a todas as reuniões de todas as comissões. Afirmar o contrário seria caricato. Ou seja, nem a lei impõe, nem poderia impor, a apregoada confidencialidade (com a qual erradamente confundem o conceito de ‘porta fechada’). Imagine-se, aliás, o contra-senso que seria se o órgão de propensão democrática e representativa fosse gizado para actuar sob confidencialidade. Seria porta fechada e luz apagada. A própria AL revela-nos que os acusadores estão errados, pois é comum no final das reuniões um deputado narrar à comunicação social uma parte, por si cuidadosamente seleccionada, do que lá se passou. Costuma ser o presidente da comissão. Se divulgar fosse infracção, estava encontrado o infractor. Será diferente por presidir à comissão? Não. Em parecer recente, a Comissão de Regimentos e Mandatos revelou a máxima em que deve assentar a aplicação do Regimento: “onde o legislador não distingue, não deve o intérprete distinguir”, o que é correcto quando está em causa, como aqui, a restrição de um direito fundamental. O Regimento não distingue deputados-presidentes de deputados-não-presidentes quanto ao que podem ou não podem dizer. Nem nada diz sobre fechos de portas ou relatos de eventos. Logo, ou nenhum pode nada, ou todos podem o mesmo. Foi a Comissão quem nos ensinou. Aliás, o Estatuto dos Deputados determina que “todos” os deputados “têm o mesmo estatuto e são iguais em direitos, poderes e deveres”. A ideia de um eventual ‘uso parlamentar’ seria outro nado-morto. Para justificar que uns possam falar não é preciso invocar um uso: a prática de alguns falarem no final das reuniões não existe por virtude de um uso, mas por permissão da lei (extensível a todos os deputados). Nem ninguém contesta que os presidentes de comissão o possam fazer. Acresce que a prática de uns falarem não constitui um uso de outros serem proibidos de falar. Não falar, tal como não agir, não constitui existência, mas antes ausência de um uso. Não há contradição, mas concordância, entre o hábito de uns falarem e o direito de outros também falarem. Nem o silêncio constitui uso, nem existe uma prática ‘ancestral’ reiterada proibindo os deputados de falar. Aliás, nunca nenhum deputado foi proibido de o fazer. Mas se existisse tal uso, seria ilegal. É de lei que os usos só “são juridicamente atendíveis quando a lei o determine”, e o Regimento não o determina. E não são admissíveis usos que restrinjam direitos fundamentais. Nem que infrinjam a igualdade dos deputados, tornando uns ‘mais iguais’ do que outros. Uma prática ilegal não se tornaria legal por ser muitas vezes repetida. Não nos esqueçamos, aplicada aqui, da máxima que a Comissão nos ensinou: onde a lei não distingue, não devem os usos distinguir. Como todos os deputados são iguais e não há proibições ou obrigação de sigilo, qualquer deputado pode partilhar com os cidadãos o que os seus representantes pensam, em comissão ou fora dela. É o reflexo da velha sentença em que se traduz o princípio da liberdade: o que não é proibido, é permitido. Quem os acusar por divulgarem debates políticos, está a acusar duas mãos cheias de deputados de violar reiteradamente a lei. Todos erradamente acusados. Como aprendemos em criança, o que não é segredo, pode ser contado. Em política, deve ser contado. O que não é devido é querer mandar calar deputados.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesOs dois barcos da Grande Baía [dropcap]N[/dropcap]esta vida, as coisas não acontecem à medida dos nossos desejos. Quando algumas pessoas tentam manipular os acontecimentos à luz dos dos seus interesses, sem consideração pelas reacções e pelos sentimentos dos outros, os conflitos acontecem. Se a lei não for respeitada, as normas e o civismo forem ignorados e só os poderosos tiverem capacidade de decisão, gera-se uma sociedade opressora e os confrontos tornam-se inevitáveis. Infelizmente, Hong Kong enfrenta outra grande dissensão interna. Nas “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau”, Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau são considerados os quatro “motores principais”, para impulsionar a construção e o desenvolvimento da Grande Baía. Segundo os últimos dados, o poder económico e as potencialidades de Guangzhou e de Shenzhen já ultrapassaram os de Hong Kong e Macau. As duas regiões administrativas especiais deveriam assumir o papel de indutores de reformas no desenvolvimento da Grande Baía e de criadores de oportunidades para o futuro da China. Mas infelizmente o barco Hong Kong está à beira do desmantelamento, ao passo que o barco Macau ainda não levantou âncora. No planeamento para o desenvolvimento da Grande Baía, prevê-se que Hong Kong venha a ser um centro de inovação na área das altas tecnologias, um núcleo financeiro, que se assuma como centro para a resolução de conflitos legais internacionais, dentro da região Ásia-Pacífico, e que se torne uma metrópole internacional altamente competitiva. No entanto, se a revisão da lei “de extradição de condenados em fuga” se vier a impôr, todos estes objectivos cairão por terra. O Dr. Derek Mi-chang Yuen, um prestigiado docente do Departamento de Administração Pública da Universidade de Hong, publicou recentenmente um artigo intitulado “Os sinos tocam em King’s Landing, anunciando a rendição da cidade”: a escalada da controvérsia em torno da revisão da lei e a tensão sino-americana”. Yuen usa metaforicamente o cenário da série “Game of Thrones” para alertar Hong Kong para a possiblidade de se vir a tornar uma “cidade queimada”. E tudo isto porque o Governo de Hong Kong decidiu ignorar os procedimentos legislativos (debate no Comité Legislativo) para forçar a aprovação da lei de extradição dos condenados em fuga, enviando directamente a proposta para, a 12 de Junho, ser feita uma segunda apresentação no plenário. Se isto se vier a confirmar, abre-se um perigoso precedente que vai reduzir a pó o pouco que sobra dos valores fundamentais de Hong Kong. Baseado no conhecimento profissional e nos seus antecedentes especiais, o artigo de Yuen põe o dedo na ferida e reclama a atenção de todos os que estão envolvidos nesta controvérsia. O Movimento dos Chapéus de Chuva desgastou Hong Kong em larga escala e, se o Conselho Legislativo for despojado das suas funções legislativas e da sua capacidade de monitorizar a acção do Governo, vai ser impossível preservar os alicerces morais e ideológicos da cidade. Os slogans “Um País, Dois Sistemas”, “Hong Kong governado pelas suas gentes” e “um elevado grau de autonomia” não irão passar de cortinas de fumo. Quanto à revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga”, o campo Pan-democracia propôs que se aprovasse em primeiro lugar a extradição de Chan Tong-kai, o suspeito de ter assassinado a namorada em Taiwan, e que posteriormente se realizasse uma sessão de consulta pública para reunir as opiniões dos diversos sectores sobre esta matéria. Esta abordagem teria a vantagem de evitar conflitos e daria margem para a negociação entre as partes. Mas é uma pena que aqueles que estão no topo das muralhas não se queiram dar ao trabalho de escutar as sugestões do povo que por elas está cercado. Quando as muralhas caírem, o povo não tem por onde fugir. Mas depois da queda, quem é que vai lidar com a situação? Desde a transferência de soberania, Hong Kong fez duas más escolhas para Chefe do Executivo. Uma delas foi Leung Chun-ying, um homem de espírito aguerrido, a outra Carrie Lam Cheng Yuet-ngor, que não lhe fica atrás. Numa sociedade diversificada, a harmonia é preferível ao conflito. Se Henry Tang Ying-yen tivessse sido eleito em vez de Leung Chun-ying e John Tsang Chun-wah ocupasse o lugar de Carrie Lam, os assuntos teriam sido tratados de outra forma. E em Macau, o que se está a passar? Macau é um local em que nada muda e o poder governativo é muitíssimo estável. A eleição do Chefe do Executivo é basicamente um “one-man show” e as receitas provenientes das taxas do jogo e do turismo chegam para sustentar toda a população do território. Segundo as estatísticas, um total de 84.000 pessoas estão dependentes da indústria do jogo que emprega o maior número de pessoas, distribuídas por diversas profissões. Mas, à semelhança da construção do metro ligeiro, o progresso da diversificação industrial de Macau anda a passo de caracol. Macau, enquanto barco da Grande Baía, é um casino flutuante que não tem nada de construtivo para oferecer, para além de jogo, entretenimento, consumismo e lazer. A plataforma para a cooperação sino-portuguesa não passa de um simulacro da idea de criação de uma base de intercâmbio e cooperação em Macau tendo como foco principal a cultura chinesa e a coexistência da multiculturalidade. O próximo Chefe do Executivo de Macau tem a responsabilidade de tornar a cidade competitiva durante o seu mandato, caso contrário o barco “Macau” ficará encalhado nas águas estagnadas do prazer e acabará por afundar no mar da corrupção. Pôr de parte as disputas e suspender a revisão da lei “de extradição dos condenados em fuga” será a única forma de evitar que Hong Kong se despedace contra os rochedos. Quanto ao fututo de Macau, tudo vai depender da capacidade das pessoas procurarem avançar, sem deixarem de desfrutar do seu conforto.
Jorge Morbey VozesDa identidade dos Macaenses e de outros portugueses do Oriente [dropcap]R[/dropcap]eflectindo quanto baste, parece poder concluir-se que: Não rendem votos aos partidos políticos portugueses, nem remessas de divisas, como as provenientes dos lucrativos emigrantes portugueses na Europa, no Continente Americano, na Austrália e na Nova Zelândia. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante àquele que os sucessivos governos nunca se esquecem de ter: uma Secretaria de Estado para a Emigração ou dos Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas, conforme a semântica política mais ao gosto de cada maioria parlamentar. Nem cabem aí. Não proporcionam negócios, nem representam quota de mercado nas exportações portuguesas. Em consequência: não há espaço num departamento governamental semelhante aos que se dedicam à cooperação com a África ou a Europa. Nem cabem aí. Não proporcionam receitas ao Fisco e à Segurança Social portuguesa, nem a sua força de trabalho está à disposição de empresários portugueses. Em consequência: não há espaço em estruturas do tipo Alto Comissariado para as Minorias Étnicas e Imigração. Nem cabem aí. Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço nem atenção para as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente. Porque elas não são lucrativas para os cofres do Estado. Porque o Estado se habituou à vida fácil de, por lei ou por medidas administrativas, sobrecarregar os contribuintes com impostos e taxas que sucessivos (des)governos vão dissipando, em alegre paralisia ante a eurodestruição da economia portuguesa. Por outro lado, ex-ricas instituições privadas de utilidade pública, criadas à custa de muito dinheiro levado de Macau para Portugal, em condições que não dignificaram o País e que, em princípio, deveriam prestar atenção às Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente – saber onde estão, quantos são, que carências têm e as potencialidades que nelas existem – encaram as poucas de cuja existência vagamente sabem, como criaturas interessantes a que, de vez em quando, se dão uns “amendoins” com o afecto próprio do visitante de uma aldeia de macacos num qualquer jardim zoológico. A Universidade de S. José, em Macau, herdeira do património espiritual do glorioso Padroado Português do Oriente, ingloriamente desaparecido, que gerou espiritualmente as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, terá uma palavra a dizer, um tempo para sobre elas reflectir e um espaço institucional para elas? Fiz esta pergunta na comunicação que apresentei, em Fevereiro de 2011, na Conferência “A Lusofonia entre Encruzilhadas Culturais”, organizada, precisamente, pela Universidade de S. José… Parece não ser assunto que interesse. O seu objectivo mais importante, parece, é ser reconhecida como universidade chinesa… As Missões Portuguesas nos Estreitos, Malaca e Singapura, deixaram de existir em 1 de Julho de 1981, na sequência dos acordos celebrados entre o Bispo de Macau, D. Arquimínio da Costa, e os Bispos James Soorn Ceong, de Malaka-Johor, e Gregory Yong Soon Nghean, Arcebispo de Singapura, em 26 de Julho de 1977 e ratificados por decreto da Santa Sé, de 27 de Maio de 1981. A Missão Portuguesa de Malaca, desde a concordata de 23 de Junho de 1886, estava sujeita à dupla jurisdição exercida pelo Bispo de Macau e pelo Bispo de Malaca e incluía as igrejas de S. Pedro e de N. Senhora da Assunção e outras capelas. A Igreja de S. Pedro manteve as suas funções de Igreja paroquial e os seus padres continuaram a servi-las sob a autoridade do Bispo de Malaca, enquanto o Bispo de Macau o permitisse. Morreram os Padres Augusto Sendirn e Manuel Pintado, últimos missionários portugueses em Malaca. A Missão Portuguesa de Singapura compreendia a Igreja Paroquial de S. José que dependia do Bispo de Macau. Enquanto paróquia deixou de existir passando às funções de simples igreja de devoção e os seus padres continuaram a servi-la – padres Francisco António Bata e João Guterres. O sustento e as despesas destes padres continuaram sob a responsabilidade do Bispo de Macau. Os bens – imóveis e móveis – da Igreja de S. José continuaram a pertencer-lhe, sendo administrados pelo respectivo Reitor e sob controlo do Arcebispo de Singapura, enquanto o Bispo de Macau continuasse a enviar missionários. Quando isto deixasse de se verificar, seria realizado um acordo sobre a transferência civil desses bens. As outras propriedades pertencentes à Missão Portuguesa (Comission for the Administraüon of the States of Portuguese Mission in China) não entraram neste Acordo. A Diocese de Macau foi, portanto, o último reduto do Padroado Português do Oriente. Não esteve, o Senhor Bispo D. José Lai, na disposição de convidar os bispos das dioceses onde vivem as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente para uma conferência em que se desse início ao trabalho de unir as pontas desta teia cuja destruição teve início com o corte das relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal português em 1833 e a extinção das ordens religiosas, por decreto de 31 de Maio de 1834. Agora é tarde. Macau tem um Bispo estranho à Igreja de Macau. Provavelmente, para preparar a sua transformação em paróquia de Hong Kong ou de Cantão. Estabelecida como Diocese em 1576, uma das maiores dioceses do Mundo em área territorial, dela nasceram as dioceses de Funai-Nagasaki (1588), Nanjing (1658), Hanoi (1659), Hong Kong (1841), Guangdong-Guangxi (1848), Dili (1940), Malaca-Johor (1981). As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são comunidades de portugueses excluídos, apesar do seu forte sentimento de pertença a Portugal, da sua fidelidade secular à Religião Católica e do seu património linguístico – o crioulo – a que chamam “Portugis”. Ainda assim – ou talvez por isso mesmo – estão excluídas da Lusofonia. Mas o desconsolo maior, excluídos da Lusofonia somos todos nós. Porque apesar do denominador comum que é a Língua Portuguesa, padrão ou crioula, enquanto estivermos privados da liberdade básica de todas as outras que é o direito de estar e de ir de um lado para o outro, “jus manendi, ambulandi eunde ultro citroque”, a CPLP pode ser tudo o que quiserem. Não é de certeza uma Comunidade inclusiva de povos livres de circularem no espaço que se diz pertencer-lhes. 5. O fenómeno colonial e as “fonias” O fenómeno colonial, na sua formulação pura e dura, consistiu na validação entre as potências coloniais dos seus interesses de exploração em África. Formalmente assumida no Acto Geral da Conferência de Berlim, em 1885. Aí, muito antes de Shengen, Portugal viu-se forçado a aderir ao discurso europeu. A ocupação efectiva dos territórios africanos vinha ao arrepio da sua própria tradição e muito para além da sua capacidade económica, social e militar. O anticolonialismo do Século XX e a descolonização foi um facto sem precedentes na História da Expansão Europeia. Centrou-se no objectivo impreterível de reconquista da Soberania pelos povos colonizados. O Século XIX assistira à secessão das colónias americanas dos respectivos países ibéricos. O Século XVIII assistira à independência das colónias inglesas da América do Norte. À excepção do Canadá. Para aí se deslocaram os colonos que preferiram manter-se leais à Coroa Britânica. Ficaram conhecidos por United Empire Loyalists. A independência das colónias americanas foi um fenómeno “sui generis”. Os respectivos territórios não foram restituídos aos seus povos originários. Foram entregues aos europeus e seus descendentes que aí se tinham estabelecido. A descolonização dos Séculos XVIII e XIX constituiu, portanto, o resultado da secessão de interesses em conflito. Que opunham europeus geograficamente separados pelo Atlântico. Mas unidos pela mesma cultura e pela mesma língua. O Século XVII tinha sido a época de consolidação de uma nova ordem europeia no domínio do Mundo. O seu exclusivo, ditado em Tordesilhas, deixou de pertencer aos países ibéricos. Foi derrubado e substituído por holandeses, ingleses e franceses, em várias partes. A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, resultou da acção da Reforma iniciada com Martim Lutero. Reforma que levou ao esvaziamento do poder central europeu pela autoridade pontifícia romana que vigorava desde a queda do Império Romano. A Lusofonia como, aliás, a Francofonia, a Hispanofonia e a Anglofonia, são espaços que radicam no fenómeno colonial. Assentam no uso da língua do ex-colonizador como cimento aglutinador. No interior das antigas colónias; nas relações entre elas; e com as metrópoles do passado. Em tais espaços, procura-se decantar a História de episódios de força e opressão; transformar em amigos, anteriores inimigos; substituir a violência pretérita pelo diálogo; suprir a antiga exploração pela moderna cooperação. Ao contrário das teses que sustentam que tais espaços existem para manter o espírito colonial, parece que no seu estádio actual eles serão pouco mais do que áreas de catarse ou expiação. E não parece que possam ir mais além, pelos fortes compromissos existentes entre os ex-países colonizadores, no seio da União Europeia. Compromissos que inviabilizam irremediavelmente a sua participação plena em qualquer outra “Comunidade de Povos”. O Acordo de Shengen inviabiliza qualquer expectativa de livre circulação de cidadãos das antigas colónias no território das antigas metrópoles. Apesar de pertencerem à mesma comunidade linguística – anglófona, francófona hispanófona ou lusófona. 6. Portugueses em Macau A historiografia de Macau não é unânime quanto à data do estabelecimento dos portugueses neste minúsculo porto do sul da China. Existe uma variação entre os anos de 1549 e 1557. Os portugueses que se estabeleceram em Macau, no início e ao longo dos séculos, não foram apenas os nascidos no território europeu de Portugal, mas também portugueses euro-asiáticos, asiáticos convertidos à religião católica, euro-africanos e africanos. Estes, na documentação primária, são denominados “cafres”, frequentemente. Essa teia de portugueses que se identificam como “portugis” ou “cristang” localizam-se: na Índia: Diu, Damão, Dadrá, Nagar-Aveli, Goa, Korlai, Mangalore, Cananor, Mahé, Cochim, Bombaim, Negappattinam; no Sri Lanka: Batticaloa, Trincomalee e Puttalam; na Indonésia: Bali, Java, [Tugu e Brestagi], perto de Djacarta, Ilha de Flores [Larantuka e Sikka], Ilhas de Ternate e Tidore; na Malásia: Alor Star, Penang, Perak, Kuala Lumpur, Seremban e Johor Baru]; em Singapura; na Tailândia [Bangkok]; no Bangladesh: Chittagong e Daca; em Mianmar [Sirião]. O destino dos macaenses foi diferente do dos portugueses da Indonésia, da Malásia e do Sri Lanka, por terem defendido a sua terra, pela força das armas, contra várias tentativas de invasão e ocupação pelos holandeses, desde 1603, nomeadamente, pela “Retumbante vitória definitiva alcançada por Macau sobre os holandeses comandados por Kornelis Reyerszoom que, com 14 navios e 800 homens, pretendeu tomar a cidade. O inimigo foi completamente desbaratado ante o indómito esforço dos macaenses, capitaneados pelo denodado herói Lopo Sarmento de Carvalho. Colaboração do Pe. Rho S.J. (de passagem em Macau) a partir da Fortaleza do Monte, e protecção do Santo do Dia, S. João Baptista, em 24 de Junho de 1622 (Cfr. Beatriz Basto da Silva : Cronologia da História de Macau). Os Macaenses Os descendentes dos portugueses, nascidos em Macau e, posteriormente, na diáspora macaense, são os macaenses. Macaense é o euro-asiático de ascendência portuguesa nascido em Macau. O conceito de Macaense contém três elementos: – Origem étnica mista: europeia e asiática; – Ascendência portuguesa; – Macau e a diáspora Macaense como local de nascimento: Hong Kong, Xangai, Tianjin, Bangkok e, mais recentemente, Austrália, Canadá, Brasil, E. U. América e Portugal. A independência dos territórios ultramarinos de Portugal, a perda da nacionalidade portuguesa comum dos seus naturais (DL 308-A/75, de 25 de Junho) e a emergência de novas nacionalidades em cada um deles, parece tornar obsoleto o elemento “ascendência portuguesa”, no conceito de macaense. A substituição de “ascendência portuguesa” por “ascendência lusófona” é inviável por não preencher relações de parentesco e por excluir boa parte das populações dos países de língua oficial portuguesa que não falam português. Por outro lado, durante várias décadas, ao longo do séc. XX, os contingentes de tropa africana em Macau, provenientes de Angola, Moçambique e Guiné, deixaram descendência, exclusiva ou principalmente, com mulheres chinesas, de que julgo não existirem registos. De tais descendentes, de homem africano com mulher chinesa, não há notícia de terem beneficiado do estatuto de macaense. Conheci de vista uma mulher, filha de mãe chinesa e pai africano (Landim, de Moçambique), que era “criada de servir”. Desses sino-africanos ou afro-chineses, cujo número se desconhece, não há notícia de nenhum ter recebido o estatuto social de macaense. (continua)
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo Bipolar [dropcap]O[/dropcap] que dizer da semana em que o estado do Alabama passou a proposta lei do aborto mais restritiva e Taiwan tornou o casamento homossexual uma possibilidade legal? Choramos e celebramos recuos e avanços na mesma semana – para nos sentirmos profundamente confusos. Avanços e recuos num movimento perpétuo. O estado bipolar sexual em que vivemos provém da confusão que são os nossos sistemas sócio-políticos. Temos testemunhado movimentos que começaram a deixar para trás o pensamento progressista que julgávamos carregar. Têm-se construído barreiras discursivas e simbólicas para deslegitimar o que são lutas e visibilidades absolutamente necessárias. A 17 de Maio celebrou-se o dia internacional da luta contra as fobias de género e de orientação sexual – e é com insatisfação que me apercebo que o dia terá que continuar a existir por muito tempo. Quando os partidos em Portugal para as eleições europeias fazem uso do termo ‘ideologias de género’ para deslegitimar a naturalidade do nosso ser, devíamos preocuparmo-nos. Mas depois temos Taiwan, o orgulho dos nossos olhos neste grande continente Asiático. Há esperança – se calhar há. No Alabama – e sobre o aborto que é agora punido com 99 anos de prisão – a contestação é criativa e eficaz para desmascarar os supostos valores pela vida. Valores que carregam mais raivas silenciosas contra os corpos detentores de útero do que outra coisa. Um país que se recusa a regular as armas para regular os úteros – torna ainda mais visível a bipolaridade patriarcal em que vivemos. O valor da vida de um embrião é exageradamente tido como o de um bebé. Só que por alguma razão o valor da vida da mulher que é violada (no cenário mais negro) é discutível. A pena é mais alta para quem faz um aborto do que para quem viola uma mulher. Esta lógica não chegou às pobres cabeças que provavelmente nunca tiveram educação sexual, mas que tomam decisões sexuais. Não sabendo dos corpos e dos processos apelam-se a valores universais da vida em contraste com a morte (o assassinato!) e controlam-se os corpos dos outros por consequência. Houve quem sugerisse greve sexual para reforçar que os úteros, as vaginas e as vulvas são de quem as têm. Mas nem sei se isso irá funcionar porque o problema está na ausência de respeito centenária por quem os têm. Depois temos Taiwan que muito nos emocionou nesta semana. Foi tão bom apreciar as fotografias das gentes que na rua manifestaram a felicidade de um amor que agora pode ser legalmente reconhecido. Outros direitos virão. Outras lutas por esta Ásia fora serão travadas – certamente. Em Taiwan mostrou-se que a liberdade para sermos quem somos pode coexistir com o sentido de compreensão social. Ainda que os direitos não sejam plenos, como os da adopção, já é um começo. Vivemos em sociedades que usam e abusam do quão bipolar somos – entre responsabilidade individual e social, usam-se estratégias ideológicas a nosso bel-prazer. O corpo é de quem? Nosso ou de todos? Como é que se equilibra os valores liberais com solidariedade e respeito mútuo? A síndrome bipolar sexual vive desta indecisão. A forma como escolhemos justificar este dilema pode legitimar ou deslegitimar os outros. Em Taiwan, a prioridade foi a liberdade de identidade e de expressão sexual e no Alabama a lógica da vida por nascer é romanceada em contraste com as vidas que, de pele e osso, se sujeitaram ao pecado mortal. Nem quando essa vida é fruto de um incesto a liberdade prevalece. Quando queremos um mundo justo, vemo-nos confrontados com a dispersão de dificuldades e posições sociais. Talvez possa ser feliz em Taiwan e talvez nunca precise de ir ao Alabama. Mas e a nossa responsabilidade em criar um mundo menos bipolar e mais preocupado com os direitos humanos?
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA segurança do paciente e os erros médicos “All men make mistakes, but a good man yields when he knows his course is wrong, and repairs the evil. The only crime is pride.” Sophocles, Antigone” [dropcap]É[/dropcap] impossível contabilizar os milhares de pessoas que são mortas a cada ano por erros médicos, mas para ter apenas uma ideia são de centenas de milhares nos Estados Unidos e dezenas de milhares no Reino Unido, sendo conjuntamente com as doenças cardíacas e cancro, uma das principais causas de morte. Muito mais pessoas sofrem danos de forma não fatal por erros, e o custo dos pagamentos por negligência clínica nos países onde existe alguma estatística, é de muitos milhares de milhões de euros. É necessário entender que reduzir o custo humano e financeiro dos erros médicos é uma prioridade ética. O mediático caso de Bawa-Garba, que se refere a Jack Adcock , uma criança de seis anos, que foi internada na “Leicester Royal Infirmary (LRI)”, unidade pertencente ao “Serviço Nacional de Saúde (NHS)” britânico, em 18 de Fevereiro de 2011 e que morreu no mesmo dia, em parte devido a erros no seu tratamento. A Dra. Hadiza Bawa-Garba, indiana, médica que o tratou e a enfermeira portuguesa, Isabel Amaro, foram posteriormente declaradas culpadas de homicídio culposo por negligência grave no qual a médica contribuiu para a morte por septicemia, tendo sido destacado durante o julgamento a necessidade de abordar questões individuais e sistémicas para reduzir os erros. A Dra. Bawa-Garba, foi condenada a dois anos de prisão a 4 de Novembro de 2015, e a enfermeira Isabel Amaro foi condenada a três anos de prisão a 2 de Novembro de 2015. Os médicos têm a obrigação ética de ser transparentes sobre os seus erros médicos, mas como será possível encorajá-los a fazer quando as consequências pessoais e profissionais da honestidade podem ser devastadoras? A realidade é que alguns erros médicos nunca são revelados aos pacientes, que são então privados de indemnização, e pouco é aprendido com os mesmos. A Universidade Johns Hopkins publicou um relatório a 3 de Maio de 2016, em que afirma que as taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de colecta de estatísticas nacionais, e analisando os dados médicos de mortalidade ao longo de um período de oito anos, os especialistas em segurança do paciente calcularam que mais de duzentas e cinquenta mil mortes por ano são devidas a erros médicos nos Estados Unidos, sendo a principal causa de morte dos “Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC na sigla inglesa)”, que pertence ao “Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos”, e que por comparativamente as doenças respiratórias, matam cerca de cento e cinquenta mil pessoas por ano. A forma do CDC colectar estatísticas nacionais de saúde não classifica os erros médicos separadamente no atestado de óbito. Os pesquisadores defendem critérios actualizados para classificar os óbitos nos atestados de óbito. As taxas de incidência de óbitos directamente atribuíveis à assistência médica não foram reconhecidas em nenhum método padronizado de recolha de estatísticas nacionais. O sistema de codificação médica foi projectado para maximizar os serviços médicos, não para recolher estatísticas nacionais de saúde, como está ser usado actualmente. Os Estados Unidos, desde 1949, adoptaram uma forma internacional que usava os códigos da “Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID na sigla inglesa) que é publicada pela “Organização Mundial de Saúde (OMS)” e que visa padronizar a codificação de doenças e outros problemas relacionados à saúde. A CID fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças para calcular as causas de morte. A partir dessa época foi sub-reconhecido que os erros de diagnóstico, erros médicos e a ausência de redes de segurança poderiam resultar na morte de alguém e, daí que os erros médicos foram involuntariamente excluídos das estatísticas nacionais de saúde. Os pesquisadores alertam que a maioria dos erros médicos não se deve à prática de actos médicos intrinsecamente nefastos, e que mais que denunciar esses erros e serem resolvidos por punição ou acção legal, afirmam que a maioria dos erros representa problemas sistémicos, incluindo cuidados mal coordenados, redes de seguro fragmentadas, ausência ou subutilização de redes de segurança e outros protocolos, além da mudança injustificada nos padrões de prática médica que carecem de responsabilidade. O “Jornal de Segurança do Paciente” dos Estados Unidos, alegam que o número de mortes por erro médico chegou a quatrocentas e quarenta mil por ano. A razão para a discrepância é de que os médicos, donos de funerárias, juristas e médicos legistas raramente notam nos atestados de óbito os erros humanos e falhas do sistema envolvidos. As certidões de óbito são o que os CDC se baseiam para colocar estatísticas de mortes em todo o país. A epidemia de danos ao paciente em hospitais deve ser levada mais a sério se quiserem que reduza. Envolver totalmente os pacientes e seus defensores durante o atendimento hospitalar, procurando sistematicamente ouvir os pacientes na identificação de danos, a transparência na responsabilização por danos e a correcção intencional das causas do dano são necessárias para atingir esse objectivo. O sistema é culpado pois é entendido como erro médico a morte causada por pessoal inadequadamente qualificado, erro no julgamento ou cuidados, um defeito do sistema ou um efeito adverso evitável, incluindo falhas do computador, misturas com as doses ou tipos de medicamentos administrados aos pacientes e complicações cirúrgicas que não são diagnosticadas. É de realçar todavia que os profissionais de saúde são em geral pessoas dedicadas e atenciosas, mas são humanos e que como seres humanos cometem erros, não sendo todavia causa de exclusão da ilicitude. Existem muitos técnicos de farmácia, em vez de farmacêuticos bem treinados e instruídos, que estão a compor quase todos os medicamentos para os pacientes e muitos têm requisitos ou comprovação de competência para esses exercer essa actividade. O uso da tecnologia da informação em saúde através do uso de registos electrónicos de saúde de pacientes hospitalizados e ambulatórios é essencial. Muitos hospitais, por sua vez, procuram acompanhar o ritmo da tecnologia cada vez mais disponível para melhorar a segurança do paciente. A maioria dos consultórios médicos dos Estados Unidos mantém registos electrónicos, bem como regista conversas entre médicos, enfermeiros e os seus pacientes, a fim de garantir que haja clareza e que não ocorram erros. As complicações comuns podem ocorrer, especialmente, no atendimento médico desnecessário, e cerca de 20 por cento de todos os procedimentos médicos podem ser desnecessários. Existe também, culpa na prescrição excessiva de medicação após a cirurgia, particularmente os opiáceos. É de considerar que os médicos são encorajados pelas empresas farmacêuticas, às vezes por meio de pagamentos em dinheiro, a “promover” os seus produtos. Tendo em consideração os “Direitos do Paciente em um Sistema de Saúde Perigoso e Orientado a Lucros”, os pacientes precisam de assumir o controlo, pois deve existir um equilíbrio entre a comunidade prestadora e os pacientes. A “Carta Nacional de Direitos do Paciente Hospitalizado” nos Estados Unidos, foi criada em 2014 em que os preconiza que quanto aos “registos médicos”, os pacientes hospitalizados devem receber diariamente o seu prontuário e ser ensinado como fazer anotações nos seus registos e corrigir qualquer desinformação. Os registos médicos devem ser electrónicos e mantidos por um período longo. O “cuidado” baseado em evidências quer que o diagnóstico e o tratamento devam estar de acordo com as directrizes federais e/ou nacionais de saúde ou de acordo com as directrizes revistas por especialistas publicadas por organizações especializadas para a condição médica do paciente. Se o médico determinar que é necessário desviar-se das directrizes, deve informar o paciente que o seu cuidado se deve desviar das directrizes e fornecer uma explicação para o desvio. Os “medicamentos terapêuticos”, preconiza que nenhum paciente deve receber uma medicação para fins “off label” sem ser informado de que o medicamento prescrito não foi aprovado pela “Food and Drug Administration (FDA)” para a condição médica do paciente. A justificativa para a prescrição do medicamento “off label” e o risco associado devem ser revelados ao paciente e documentados. O paciente deve ser informado sobre como relatar os efeitos adversos de qualquer medicamento sob prescrição médica ao FDA. A “competência do médico”, quer que os pacientes tenham o direito a serem informados sobre o “status” de competência do seu médico antes de serem tratados. Este “status” deve incluir a conclusão da “Central de Material Esterilizado (CME)” estadual, o “status” de certificação do conselho, a manutenção da certificação do conselho, a reabilitação do abuso de drogas e quaisquer outros factores que afectam a competência do médico. Os “custos” requerem que os pacientes devem conhecer os custos normais do diagnóstico e tratamento que receberão antes de concordarem com um plano de diagnóstico ou plano de tratamento. O tratamento encontrado contra directrizes sem o consentimento do paciente não precisa de ser pago. Os “eventos” adversos estipula que se acaso ocorrer um evento adverso imprevisto durante o diagnóstico ou tratamento, o paciente tem direito a uma explicação completa do que aconteceu e como o hospital pretende prevenir eventos adversos semelhantes no futuro. Se o evento adverso foi causado por um erro médico, o paciente tem direito a uma compensação justa. A falsificação de registos médicos após um evento adverso constitui adulteração de evidências. O “dever” de advertir, exigindo que os pacientes devem saber a taxa de infecção do hospital e a morbidade e mortalidade associadas a procedimentos invasivos planeados. O paciente deve ser avisado de qualquer actividade de estilo de vida que ameace a sua saúde e devem receber orientação sobre a gestão dessa actividade. O “consentimento informado” exige que o paciente deve dar o seu consentimento informado para procedimentos invasivos de acordo com as directrizes publicadas pela “American Medical Association” de 1998. O medo nunca deve ser usado para obter consentimento para procedimentos invasivos. O “feedback” sobre o cuidado quer que o paciente tenha o direito, mesmo um dever, de fornecer “feedback” a uma agência independente sobre a qualidade do atendimento recebido durante a hospitalização. Este “feedback” deve ser sistematicamente tomado e disponibilizado ao público. O “direito” a um advogado mostrou que, enquanto o hospital é o local principal para integrar o atendimento de um paciente é o advogado que deve defender os interesses do paciente. Todos os pacientes do hospital devem ter o direito a um advogado. O “Patient Safety America” lista os três níveis em que os pacientes podem proteger-se. Estes incluem ser um consumidor sábio dos cuidados de saúde, exigindo cuidados de qualidade e custo-benefício para si e para aqueles que ama; participando da liderança em segurança do paciente por meio de conselhos, painéis e comissões que implementam políticas e leis; e pressionando por leis que favoreçam cuidados, transparência e prestação de contas mais seguras. É necessário obter sempre o máximo de informações que puder do seu médico, inquirindo sobre os benefícios, efeitos colaterais e desvantagens de um medicamento ou procedimento recomendado, e usando as médias sociais para saber mais sobre a própria condição do paciente, bem como sobre os medicamentos e procedimentos para os quais foram prescritos. O paciente deve sempre procurar uma segunda opinião. Se a situação o justificar ou se existirem incertezas, deve obter uma segunda opinião de outro médico, pois um bom médico aceitará a confirmação do seu diagnóstico e resistirá a qualquer tentativa de desencorajar o paciente de aprender mais ou de “tentativas de amordaçar o paciente”. Muitas vezes o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema. Porquê muitos médicos são relutantes em especular, mas alguns admitem que as respostas vão do simples ego até à perda de um paciente para outro médico em quem confiam mais. Às vezes é difícil processar todas as informações por si mesmo, pelo que se deve trazer um membro da família ou um amigo para a sua consulta, alguém que possa entender as informações e sugestões dadas e fazer perguntas. Ao ter as informações médicas literalmente na palma da mão, pode trabalhar em equipa com o médico para reduzir o risco de erros médicos. Os aplicativos de saúde podem ser simples ou complexos e, dependendo da idade e condição, pode gerir o seu bem-estar, medicamentos e muito mais. O que têm de bom o sistema de saúde americano, inglês e outros em trabalho comparativo e cooperativo deve ser estudado e aplicado com adaptações e o que acontece nos Estados Unidos e no Reino Unido é o mesmo que acontece em outros países quanto aos maus procedimentos e devem ser instituídos todos os mecanismos em defesa da segurança do paciente, pois muitas vezes, o sistema de saúde silencia as pessoas em torno de um problema, para esconder as falhas do sistema e o erro médico. O acesso do paciente a bons cuidados de saúde e de forma gratuita é um direito fundamental e universal.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDireitos dos Animais (II) [dropcap]A[/dropcap] semana passada falámos sobre duas das alterações à lei de protecção dos animais em Hong Kong. A primeira, reflecte-se na seccção 56 da Lei do Tráfego Rodoviário e prevê que, quem atropele um animal tem de parar, prestar auxílio e notificar a polícia num espaço de 24 horas. A segunda, estipula que os donos são responsáveis pelos seus animais, sendo sua obrigação cuidar e atender às suas necessidades. Esta obrigação constitui o “dever de cuidar”. Na sequência desta alteração, os tribunais podem privar uma pessoa do direito de possuir um animal para sempre, se este dever for seriamente violado A Lei de protecção dos animais de Macau não estipula esta condição, mas o parágrafo 1 do artigo 28 enuncia: Artigo 28.º Penas acessórias 1. A quem for condenado pela prática dos crimes previstos nos artigos 25.º e 26.º podem ser aplicadas as seguintes penas acessórias: 1) Declaração de perda a favor do IACM do animal do infractor; 2) Proibição de aquisição e criação de animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; 3) Proibição do exercício de actividades que impliquem o contacto efectivo com animais de todas ou algumas espécies, por um período de 1 a 3 anos; Como vemos, este artigo estipula que quem violar a lei será privado do seu animal, o qual será entregue ao cuidado do IACM. Isto implica que os animais sujeitos a maus tratos serão imediatamente resgatados. Embora aqui se preveja que quem infligir maus tratos a animais seja proibido de os ter por um período de um a três anos, não é uma interdição para toda a vida, conforme enuncia a emenda à legislação de Hong Kong. As leis da Região Administrativa Especial de Macau foram buscar o modelo da legislação portuguesa. Segundo o Código Penal português, a pena máxima é de 25 anos. Não existe prisão perpétua. Transpondo este princípio para a lei de protecção dos direitos dos animais, faz sentido que não se proíba ninguém de ter um animal para o resto da vida. Uma das antigas propostas de alteração a esta lei previa a criação de um corpo policial dedicado em exclusivo à protecção animal. Mas a polícia opôs-se argumentando a falta de efectivos. Sem intervenção policial, existirão inevitavelmente bloqueios à implementação da lei, especialmente quando os donos se recusam a colaborar, ou resistem violentamente, os responsáveis ficam incapacitados de agir. Outra crítica às emendas da lei de Hong Kong prende-se com a falta de uniformização, o que deu origem a dificuldades na compreensão e confusões. Também dificulta o trabalho dos departamentos responsáveis ao tentarem aplicar a lei correctamente. Conforme já foi referido, a legislação de protecção animal em Hong Kong, inicialmente, apenas se destinava a preservar a segurança e a sáude públicas. Actualmente foi alargada aos conceitos de direitos e bem-estar animal. Direitos e bem-estar animal e saúde e segurança públicas são dois binários conceptuais distintos. Misturar conceitos gera confusão, daí que as críticas pareçam ser compreensíveis. Em oposição, a legislação de protecção animal de Macau é basicamente um conjunto de quatro regulamentos, a Lei No. 4/2016, o Despacho do Chefe do Executivo n.º 335/2016 que – Determina a proibição da aquisição, criação, reprodução ou importação das raças de cães e animais, o Regulamento Administrativo n.º 28/2004 que – Aprova o Regulamento Geral dos Espaços Públicos e o Despacho do Chefe do Executivo n.º 106/2005 que – Aprova o Catálogo das Infracções a que se refere o artigo 37.º, n.º 1, alínea 2, do Regulamento Geral dos Espaços Públicos. Como Macau tem basicamente nesta matéria este conjunto de leis e Despachos, e a legislação sobre protecção animal remonta a 2016, pode afirmar-se que é uma lei recente. Além disso podemos classificar a legislação de Macau como “simples e clara” . No Génesis, é dito que Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança. E Deus ordenou ” Ao homem é dado domínio sobre todas as coisas e ele recebe mandamento de se multiplicar e de encher a Terra.” Embora nem todos acreditem na Bíblia, o princípio sagrado de usar a lei para proteger os direitos dos animais e a promoção do seu bem estar, faz parte de uma sociedade saudável e evoluída. O primeiro passo para que este objectivo seja cumprido é compreender que os animais não são brinquedos, nem podem servir para descarregar frustrações; se assim não for, o agressor despe-se do sentido de moralidade que todo o ser humano deve possuir e será altamente provável que a lei de protecção animal venha a ser violada. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk