Carlos Morais José VozesNão queiram apagar a luz [dropcap]A[/dropcap]o que parece, há por aí gente que veio para a China sem saber ao que vinha e para onde vinha. A ignorância é desculpável. Afinal, Portugal fica praticamente do outro lado do mundo e não há muita informação disponível. Por isso, será normal que muito pessoal aqui aterre sem saber onde está a aterrar e fique aterrado com o que encontra (ai, afinal são comunistas!… e outras coisas do género). Não obstante, a malta não recusa o ordenado que, no limite, vem de bolsos chineses, nem as mordomias que esse ordenado lhe permite. Contudo, numa espécie de pacificação da consciência, vai plasmando nas redes sociais o seu ódio ou desprezo ou lá o que é pelo país que — não só lhe paga o pão e a casa — está muito longe de conhecer ou compreender, na medida em que, em geral, ainda não saíram da terrinha. Ou a terrinha não saiu deles. Confessemos que o espectáculo da ignorância e da inveja, é chato. E é duplamente chato quando a ele assistimos protagonizado por um dos nossos. O que não se compreende é como é que se atura tanta repressão, tanta iniquidade, tanta falta de liberdade. E (imaginem!) dói-lhes ver aquilo a que chamam “Macau a tornar-se chinês”. Como se alguma vez tivesse sido outra coisa! A parte que talvez não compreendam é que só pisam este solo porque ele foi regado durante séculos por sangue, lágrimas e suor de uma comunidade minoritária que soube respeitar os legítimos habitantes desta terra e por isso aqui permaneceu, quantas vezes em temíveis equilíbrios, durante quatro séculos e meio. E que pretende continuar aqui por muito mais tempo. Prosseguir o milagre. Que, por acaso, é inusitado e lindo. Macau chama-se em chinês “Porta da Baía”: tanto se entra como se sai. Liberdade total. Não se caia é na tentação de ao sair querer apagar a luz.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDisponível para amar [dropcap]O[/dropcap] amor, numa perspectiva mais madura e complexa, depende de pessoas disponíveis para amar. Há quem esteja mais ou menos disponível para mergulhar nesta confusão. O amor como lugar de encontro de fragilidades – confuso e de difícil gestão. Aprender a vincular desta forma será, certamente, um processo individual, mas as estruturas culturais parecem não ajudar a oferecer uma visão realista da complexidade deste processo. Como em tudo, na verdade. Há a tendência de julgar que o amor simplesmente ‘acontece’ como uma seta de cupido que nos ataca sem aviso; ou que o amor é para sempre e incondicional, independentemente de quem somos, de como estamos e de como interagimos. O amor está cheio de mitos que dificultam a consciência do seu potencial disruptivo. O mito do amor como acontecimento mágico tende a gerar muita desilusão. Isto porque existem confusões conceptuais das quais o amor, a paixão, o sexo e o tesão fazem parte. Não que seja necessário definir cada um destes domínios ao milímetro, mas é importante perceber que as sensações que o corpo e a mente sentem vêm de muitos lugares e estão em constante sobreposição. Perceber o amor como um acto de partilha e de ligação é quase um trabalho a tempo inteiro. Este não aparece (somente) como uma reacção fisiológica às circunstâncias à nossa volta. Necessita de trabalho amoroso – e reflexividade – que nem todos têm disponibilidade para fazê-lo. O mito do amor incondicional é daqueles também bem persistentes. Quando assentamos com um parceiro romântico esperamos que o amor seja uma ligação duradoura e incontestável. Tenta-se usar essa relação como uma rede de segurança caso tenhamos uma queda. Uma queda de qualquer tipo, emocional ou física – porque sabe-se o quanto precisamos dos outros para a nossa sobrevivência. A fantasia é de que as pessoas nos podem amar sem condições ou exigências. Simplesmente. O mais próximo que se está do amor incondicional acontece quando somos bebés ou crianças. Aí por muito (ou pouco) que façamos, os nossos pais amam-nos sem qualquer expectativa. Mesmo que o bebé suje tudo, não interaja muito, não fale ou satisfaça expectativas mais sofisticadas, o bebé simplesmente existe para ser cuidado e amado. Aliás, até mesmo nessas condições, o amor incondicional não é garantido, como se sabe na quantidade de traumas de infância que perseguem muitos até à idade adulta. É desse lugar que depois se procura outro tipo de vinculação. O outro, com os seus medos e desejos, nunca nos pode garantir disponibilidade total às necessidades (e vice-versa). O amor incondicional precisa de ser redefinido para permitir que existam momentos fortes de desencontro que podem não o pôr em causa. Mas para fazê-lo é preciso disponibilidade para lidar com muita confusão, e muita frustração também. É difícil explicar o que a disponibilidade para amar pode querer dizer para além de que é a condição necessária para encontrar amor nos outros e conseguir mantê-lo ao longo do tempo. Mesmo que o amor se transforme em outras formas de expressão. A disponibilidade a que me refiro não se limita a uma decisão instrumental de que ‘agora estou pronta/o para uma relação’. Trata-se da disponibilidade de cuidar e permitir ser cuidado, e poder estar disponível para mexer com o que aflige e satisfaz. O amor é construído no espaço do desencontro entre humanos, através de pontes e formas de comunicação ao longo do tempo. Um trabalho emocional, por vezes, muito intenso. Daí que a disponibilidade seja muito importante, para garantir que não nos perdemos na intensidade de que o amor nem sempre é aquilo que esperamos.
Carlos Morais José VozesPorreiro, pá! [dropcap]P[/dropcap]or ocasião dos 20 anos da RAEM e a visita de Xi Jinping, as forças de segurança têm apertado o cerco e, ao contrário do que por aqui costuma acontecer, aparecem com grande visibilidade, seja a proibir a entrada a jornalistas e activistas de Hong Kong, seja a revistar todos os que pretendem entrar em Macau, vindos da ex-colónia britânica. Todos os dias surgem notícias deste tipo, incluindo a seca que deram a uma equipa da RTP, na fronteira de Macau quando esta regressava depois de uma visita a Hong Kong. Claro que estes factos não contribuem em nada para a boa imagem de Macau nos media internacionais, sobretudo numa altura em que decorre uma intensa campanha anti-China, suportada quer por factos e quer por invenções. Mas, ao que parece, valores mais altos se levantam e nada deve, no entender das autoridades, perturbar a festa e a visita do Presidente. Na tentativa de estragar a dita festa, juntam-se artigos como o do Financial Times sobre os 20 anos da RAEM no qual debitam três portugueses. E, surpresa (?), todos grandes arautos da democracia eleitoral, com acintosas afirmações anti-China, já para não falar do perigo amarelo. Isto, lido em Pequim, dará uma imagem específica de uma comunidade portuguesa descontente, desconfiada, inimiga de quem lhe paga o pão e a cerveja. Os outros que falaram, mas cujas afirmações não interessavam à jornalista do FT, simplesmente não aparecem na reportagem porque não se enquadravam no ataque cerrado a Pequim — a ideologia do artigo. É d’homem! Porreiro, pá!
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesFrança em greve [dropcap]A[/dropcap]s greves voltaram a França, como protesto contra a reforma do sistema de pensões que prevê o aumento da idade da reforma e a redução do montante das aposentações. Na nova proposta, apresentada quarta-feira, o Governo francês simplificou o antigo sistema que previa 42 planos de aposentação distintos, substituindo-o por um método quantitativo que irá determinar o valor da pensão a que cada cidadão tem direito. Embora o Governo afirme que este sistema é mais equitativo, as pessoas com direito a reformas mais elevadas, ou com direito a reformas antecipadas, consideram-se prejudicadas com as novas disposições. Afirmam que irão receber menos e que terão de trabalhar até mais tarde. A greve deixou apenas 20 por cento dos comboios a funcionar e mais de 25 por cento dos voos domésticos não se estão a efectuar. Na cidade de Lille, no Norte de França, estudantes do secundário atiraram pedras à Polícia, que se viu obrigada a usar gás lacrimogéneo para os dispersar. Os sindicatos continuam a convocar greves noutros sectores, afirmando que continuarão a lutar até que o Governo retire a proposta de reforma do sistema de pensões. Através dos noticiários, podemos constatar a dimensão desta greve. Houve algumas acções incendiárias, manifestações e os apelos à greve continuam. O Governo convocou a polícia para dispersar as multidões. No entanto, os manifestantes não lançaram cocktails molotov contra os agentes, nem danificaram instalações públicas. No geral, estas acções podem ser encaradas como manifestações pacíficas. Mas a suspensão dos serviços ferroviários e a redução dos voos domésticos está a afectar seriamente o dia a dia dos cidadãos. Apesar de tudo, as pessoas não se estão a queixar dos inconvenientes sofridos, mesmo que tenham de andar uma hora a pé ou de usar o carro por distâncias muito maiores que o habitual. Em geral mostraram-se compreensivas e solidárias com os grevistas. Esta reacção da população demonstra que os franceses são um povo com maturidade política, com ideias formadas sobre o valor da greve, dos interesses privados e da segurança e interesses públicos. Embora através dos noticiários não tivéssemos ficado a conhecer o antigo e o novo plano de reforma em detalhe, é de supor que a maior parte das pessoas não terá acesso a reformas avultadas ou a reformas antecipadas. Aumentar a idade da reforma e reduzir o valor das pensões, deixou os franceses insatisfeitos. As pensões são uma das vertentes do sistema de segurança social, que permitem aos cidadãos continuarem a auferir de um rendimento de sobrevivência depois de deixarem de trabalhar. Este conceito de reforma é o que se pode chamar de sistema de pensões básico. Mas algumas pessoas têm acesso a mais do que isso, usufruem dinheiro suficiente para viverem confortavelmente. Digamos que têm acesso a um sistema de pensões mais complexo. A quantia que garante uma boa qualidade de vida também pode ser variável de pessoa para pessoa. Desde há muito que os sistemas de pensões na Europa e nos Estados Unidos proporcionam reformas muito diferentes, consoante os casos. Em muitas situações permitem que as pessoas usufruam de um rendimento que ultrapassa o necessário para cobrir as necessidades básicas. No Ocidente, os trabalhadores e as entidades patronais descontam um valor entre 35 por cento a 45 por cento dos salários, que posteriormente garante o pagamento das pensões de reforma. Tendo em vista a reforma e a cobertura das despesas de saúde, o que pagam hoje transformar-se-á no que virão a receber amanhã. O Governo francês pretende aumentar a idade da reforma para obter mais receitas e pretende diminuir algumas pensões para reduzir custos. Não há dúvida que este é o seu objectivo. Pode também ser entendido como uma forma de reduzir as discrepâncias entre as pensões mais baixas e as mais elevadas. Do ponto de vista da administração pública, a proposta do Governo visa estabilizar as contas e garantir a continuação de um sistema de pensões que garanta aos reformados o rendimento para cobrir as despesas básicas. Se as pessoas quiserem obter mais rendimentos durante o período da reforma, terão de pensar noutro tipo de investimentos. É evidente, que se os impostos que pagam enquanto estão no activo forem muito elevados, não sobrará nada para investir no futuro. Assim, mesmo que o novo sistema de pensões francês consiga garantir os rendimentos básicos, não deixará de ser um “plano falhado” . Os franceses opõem-se à reforma do sistema de pensões. Estão a lutar para garantir a manutenção das suas reformas. Os protestos não vão abrandar para já; o Governo precisa de negociar com os sindicatos e procurar um consenso para resolver os conflitos sociais. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Carlos Morais José VozesO ministro tem razão [dropcap]H[/dropcap]á alguns juristas e jornalistas que se esquecem (ou pretendem esquecer, no caso de estarem a cumprir, consciente ou inconscientemente, uma agenda) de um facto incontornável: o segundo sistema é manter inalterado por 50 anos o regime de direitos civis, políticos e económicos existente antes da transferência de soberania. Sem tirar nem pôr. Qual é a parte do “pôr” que não compreendem? Onde é que foi dito que seriam estendidos direitos eleitorais aos cidadãos de Macau para escolherem o seu Governo? Era essa a prática durante a administração portuguesa? Obviamente que não. Por isso o ministro Santos Silva tem razão quando afirma que pregar democracia eleitoral a Macau seria uma hipocrisia na medida em que os portugueses, no seu tempo de controlo do território, simplesmente não o fizeram. Contudo, foram estendidos a esta cidade a maior parte dos direitos conquistados com o 25 de Abril. E alargou-se significativamente a representatividade da população, com a criação do hemiciclo a que chama Assembleia Legislativa. Será que, durante estes 20 anos, esses direitos incluídos no segundo sistema e regulamentados na Lei Básica foram grosseiramente violados? Será que, como li na imprensa de Portugal, os direitos humanos correm riscos na RAEM e a comunidade portuguesa está preocupada com isso? Obviamente que não. Em 20 anos, os maus exemplos são escassos e conjunturais. Ao Governo de Macau podem ser assacadas muitas críticas: administração deficiente, falta de previsão de problemas emergentes como a habitação, desprezo pela saúde pública, a oligarquia dos negócios, etc. Mas não seria justo acusar nenhum dos Executivos de terem violado direitos fundamentais. Porque tal, simplesmente, não aconteceu. Às vezes, parece que as pessoas que vieram até esta parte do mundo não sabiam para onde vinham. De facto, isto não é o paraíso. É Macau. E, bem vistas as coisas, é como sempre foi.
João Luz VozesManta de retalhos [dropcap]A[/dropcap] crónica de hoje vai seguir moldes semelhantes à escolha sortida de iguarias num restaurante chinês. Variedade e espírito de partilha. Começo por um quase factoide, que muita gente já se habituou a encarar como normal: a amnésia que sentem os responsáveis pelos mais altos cargos da RAEM assim que passam a fronteira. Em declarações ao China Daily, o presidente do Tribunal de Última Instância (TUI) de Macau, Sam Hou Fai, referiu o papel dos tribunais em Macau para a estabilidade política regional. O juiz, considerado por muitos como um exemplo de independência, assassina a separação de poderes a cada frase ao China Daily com fervor partidário. Outra machadada na justiça local foi desferida quando o magistrado disse que os tribunais de Macau dão particular importância à gestão de casos que põem em perigo a segurança nacional. O homem que preside ao mais elevado tribunal na hierarquia judicial local, desde a fundação da RAEM, atravessa a fronteira e esquece a defesa da legalidade para ser colocar ao serviço da política. Num Estado de Direito, estas declarações dariam lugar reforma antecipada e a uma severa auto-análise devido à gravidade do que foi defendido. Porém, por cá, é a rã que aumenta o lume que está por baixo da panela onde alegremente ferve. Outro aspecto extraordinário nesta história é a projecção, a ideia de que se alguém gritar muito alto que não cometeu nenhum crime, ninguém vai reparar no grande saco com a impressão cartoonesca de um cifrão que carrega às costas. Por cá, o chavão “de acordo com a lei” é dito quase tão frequentemente como a interjecção em cantonês “ai yah”. Exemplo disso é a tomada de posse de Wang Sai Man como deputado, marcada para hoje à tarde, depois de clamorosamente violar a lei eleitoral numa não-eleição, como se nada fosse. Não dá jeito ser ilegal, portanto, não é. O maior problema de se viver num Estado de Direito é que, por vezes, esta coisa de respeitar leis intromete-se na forma de fazer as coisas à lambão. Um comum cidadão sabe bem isso. Se a sua matrícula cair do automóvel, o residente médio sabe que não pode simplesmente escrevinhar numa placa qualquer a antiga inscrição da matrícula e afixá-la no lugar vago pela matrícula. A vida em sociedade exige formas, procedimentos, condições que se precisa cumprir para haver segurança nas relações diárias no contexto de sociedade evoluída, onde as leis são a cola para as brechas abertas pela falta de ética social. Pessoalmente, sou um defensor da total anarquia mental, sou adepto do pensamento dinamite, da loucura e da insubmissão. Mas compreendo que depois na vida vivida as regras são necessárias para não regressarmos à selvajaria. Já uma pessoa que ocupe uma posição mais elevada na sociedade tem uma visão diferente da lei e das obrigações dos comuns mortais. As regras são mais flexíveis, desde que o poder ainda precise dessa pessoa ou não precise sacrificar alguém como exemplo. Mudando de canal, a semana passada foi marcada pela histórica inauguração do Metro Ligeiro, um meio de transporte cuja utilidade passa ao lado do quotidiano de quem por cá vive. Apesar da visível boa-vontade e dedicação do secretário da tutela, e do facto de nenhuma rede de transportes nascer completa, o problema que parece mais preocupante prende-se a capacidade de lotação das carruagens. Questão que levou a algum embaraço logo no dia da inauguração, quando o transporte parou depois de soar um alarme para o excesso de peso na composição. Ora bem, em todo o lado no mundo, o metro é uma espécie de lata onde se tenta enfiar todas as sardinhas no maior e concentrado cardume possível. Esta é a minha experiência. Espaço pessoal violado, sujeição a odores corporais indesejados, pisadelas e a minha psique como terreno fértil para a semente do niilismo que me grita todos os dias “somos demasiados”. Parece que o Metro Ligeiro será mesmo ligeiro, em oposição a pesado. Mas como se vai controlar o peso da carga de forma a contornar questões de segurança? Como se impede essa força da natureza que é uma multidão de chineses prestes a entrar para um sítio onde existem cadeiras e toda uma paleta de qualidade de lugares para parquear o corpo durante uma viagem? Questões ligeiras que exigem respostas de peso.
Carlos Morais José VozesSolidão [dropcap]Q[/dropcap]uando andamos pela cidade onde habitamos, quando nos deixamos dominar pelo nosso quotidiano, pela companhia de conhecidos e amigos, pouco tempo reservamos para ouvir o nosso próprio pensamento e temos mesmo a tendência para o exprimir em voz alta, para os outros, ao sabor dos interesses ou do desejo de partilha. Já o caso muda completamente de figura quando circulamos entre um povo estranho, estrangeiro, cuja linguagem é para nós um rumorejar distante e sem consequências. Tudo começa por ser uma espécie de aventura, que a experiência desvaloriza em optimismo, ao qual a mesma experiência acaba por dar razão. Os pequenos acontecimentos mais não são que isso mesmo: pequenos eventos sem consequência para o desenrolar agradável dos dias e o descanso absoluto das noites. Ou talvez não. É que a nossa presença em nós mesmos acaba por se tornar no único diálogo possível (e como somos tão viciados no diálogo!, e como recusamos o silêncio interior!), uma espécie de orquestra interminável que nos assombra com os seus diversos tons, nos quais começamos a reconhecer cada um dos nossos mais temíveis e familiares fantasmas. Até que, finalmente, advém a consciência progressivamente lúcida da solidão, ao contemplar qualquer paisagem desagregadora do que nos é quotidiano e constante.
João Romão VozesA miúda que veio dos céus [dropcap]M[/dropcap]aphiyata echiyatan hin win” – ou “A mulher que veio dos céus” – foi o generoso nome que os índios Lakota atribuíram a Greta Thunberg, quando a jovem sueca visitou recentemente os grupos indígenas da Dakota do Norte e do Sul, nos Estados Unidos da América, cujos territórios estão ameaçados pela anacrónica construção de um oleoduto: mais petróleo em movimento, mais emissões de carbono, menos qualidade ambiental, mais lucros para as grandes empresas petrolíferas, menos direitos para as comunidades indígenas. Agradecidas, pois. Também eu. E muitos e muitas mais por esse mundo fora. Vamos a isso, então. Estamos nas vésperas de mais uma Cimeira do Clima promovida pelas Nações Unidas. Já no ano passado, por esta altura, António Guterres usava da sua palavra de secretário-geral para apelar à “economia verde em vez do cinzento da economia carbonizada”. As alterações climáticas “avançam mais rápido do que nós”, afiançava. Debalde, evidentemente. Ainda se podem ler nos arquivos digitais da imprensa daquelas datas as notícias e reportagens que mostram com evidência como os impactos da mudança climática são maiores e de mais drásticas consequências do que se pensava. De então para cá, as coisas só pioraram: mais evidências científicas, mais catastróficas inundações, mais pobreza: as alterações climáticas tornaram-se a maior causa de desalojamento populacional no planeta, os problemas tendem a aumentar e não se vislumbram ações convincentes para os contrariar. Nem grande vontade política, diga-se. Sobram então as pequenas vontades, o que já não é tão pouco. “Não subestimem a força dos miúdos zangados”, avisou a petiz à sua chegada a Lisboa, depois de longa e atribulada travessia do Atlântico. Cansada e tímida, a adolescente foi recebida com o entusiasmo solidário de quem se revê na causa e na urgência da resposta ao problema e com a hostilidade mediática de uma parte significativa dos protagonistas do espectáculo da política quotidiana – estejam eles nos estúdios das televisões, nas cadeiras do Parlamento ou nos sofás do Palácio de Belém. Foi particularmente graciosa a intervenção do Presidente da República, como é seu apanágio, aliás, rejeitando inoportuno encontro com a ativista sueca para evitar inapropriado “aproveitamento político”. Foi pelos mesmos dias em que anunciava condecoração próxima a destacado treinador de futebol ou em que se juntava a campanhas de caridade natalícia numa conhecida cadeia de supermercados – sem aproveitamento político, portanto. E foi também por esses dias que elogiou o “brilhantismo” de José Hermano Saraiva, sinistro ministro da educação salazarista, como bem se lembrarão os estudantes de Coimbra dos tardios anos de 1960. Nessas escolas não se queria espaço para políticas, sabemos. Talvez por isso se louve esse alegado brilhantismo: em alguns quadrantes políticos, o que brilha é o obscurantismo. E o aproveitamento político, metódico e sistemático. Talvez não fosse então má ocasião para repensar o desajustado modelo escolar que continuamos a impor a crianças e adolescentes, num acelerado processo de produção de altíssimas qualificações para fornecimento massivo de mercados de trabalho precários, cada vez mais mal pagos e de exigências duvidosas. Como se tem visto, faz pouco pelo ambiente o “estudo do meio”, tal como fazem pouco pela participação cívica e política, cada vez mais esvaziada, as várias formas de alegada promoção da “cidadania” que o nosso modelo escolar vai impondo. Em compensação produzem-se Mestres com 21 anos e Doutores com 25, com remotas hipóteses de serem apropriadamente integrados no universo laboral e com ainda mais escassa vontade de intervir nas instituições políticas existentes – incluindo o exercício do elementar direito ao voto. Qual é a pressa, então, desta formação que promove habilitações em ritmo acelerado enquanto esvazia os laços comunitários? Talvez o exemplo de Greta Thunberg – que interrompeu os estudos por um ano – mostre que há mais a aprender fora das salas de aulas do que dentro e que não se perde tempo por adiar a conclusão da escolaridade – na realidade, até se ganha. A questão importante é, portanto, a contrária da que tem sido levantada pelo cinismo de ocasião com que se quer à força manter os adolescentes enclausurados numa sala fechada ao contágio da sociedade e da política: como se pode proporcionar aos restantes adolescentes a oportunidade de – tal como Greta – aprender com a experiência própria da vida comunitária os valores da participação e do envolvimento político na construção de um futuro comum? Na realidade, a greve à escola também traduz uma valorização do discurso científico que os próprios cientistas estiveram longe de alcançar. São estes estudantes – com as suas faltas às aulas para se manifestarem nas ruas – que procuram impor na discussão política o conhecimento produzido pela ciência. E com isso se tem construído o maior movimento de jovens a que tivemos oportunidade de assistir na história da Humanidade. Há muito que aprender com o que estão a fazer e não é tempo de lhes dar lições. Muito menos de moral, que temos pouca. Em tempos de abstencionismo cada vez mais generalizado e escassa participação em movimentos cívicos e associativos, a greve climática que Greta começou sozinha, sentando-se à porta da sua escola na Suécia, mostra como, afinal, a juventude está interessada, disponível e mobilizada para intervir na sociedade e na política. E que procura novos espaços de intervenção. E que sabe o que quer. E é por saberem o que querem que ameaçam os poderes instituídos: não é Greta, evidentemente: são os milhões que despertaram para uma nova realidade, é a urgência dos problemas que estão por resolver, são as causas que estas pessoas estão a abraçar e que sucessivas lideranças políticas abandonaram, quer por interesses económicos e geo-políticos, quer por ignorância. Talvez a política deixe rapidamente de ser o que era. Ou que o planeta não se aguente por muito mais tempo ao necessariamente medíocre conservadorismo autoritário dominante. *artigo escrito a 5 de Dezembro
Carlos Morais José VozesO ódio à Greta [dropcap]F[/dropcap]reud explica que determinadas imagens têm mais facilidade do que outras em invocar os traumas recalcados. É o caso da imagem da Medusa, por exemplo, que nem sequer é uma greta, mas que o pai da psicanálise dá a entender querer fazer-se passar por ela. Pelos vistos, é também o que se passa com a rapariga que a revista Time elegeu como personalidade do ano, Greta Thunberg, para alguns a Medusa dos tempos modernos. O que é mais espantoso no fenómeno é a violência da rejeição por certos quadrantes e pessoas. A intensidade da coisa indica que ultrapassámos o nível meramente ideológico e que penetrámos em camadas mais interiores das mentes contemporâneas. O que não deixa de ser interessante na sua liquidez. E se é líquido, eu bebo, parafraseando um célebre presidente brasileiro. E bebo porque se trata de um meio, de uma porta, para tomar o pulso ao doente. Greta, enquanto sintoma, é bem mais interessante do que como activista. Ou seja, a reacção é mais interessante que a acção. O que Thunberg diz já tinha sido dito e repetido por pessoas com mais credibilidade, por relatórios científicos, pelo senso comum que respira o ar miserável das nossas cidades e se banha no plástico dos mares. Mas o que aqui existe de inusual é ser uma adolescente, sem papas na língua, usando mesmo de alguma brusquidão, a enfrentar os poderes do mundo. Isto é, o valor do topos discursivo, do lugar que origina o discurso e que Foucault incensou, perdeu grande parte da sua importância. Parece que não mas isto incomoda. E incomoda, sobretudo, de forma inconsciente. A reacção de Bolsonaro é a mais sintomática: chamou-lhe “pirralha”, ou seja, uma miúda que se põe em bicos dos pés, que opina sobre o que não tem idade nem estatuto para isso, o que não teria lugar num mundo “normal”. Contudo, com presidentes como Bolsonaro ou Trump, primeiros-ministros como Boris Johnson, quem pode dizer que vivemos num mundo “normal”? Greta Thunberg é o inverso destes novos monstros e por isso ela é, de algum modo, monstruosa. Eles não têm mais verve que ela, não raciocinam melhor que ela, não a conseguiriam bater num debate. Por isso, ela desmascara o nível a que nos rebaixaram. Para enfrentar idiotas, negacionistas, estúpidos, nada melhor que uma criança, alguém que argumenta com a mesma violência e simplicidade, já que o discurso racional se tem revelado impotente. Greta nivela as coisas, apoiada na certeza de ser quase ainda uma criança. Os outros, os que mandam, os que sujam e poluem, enquanto metem dinheiro em vários bolsos, sentem-se descalços perante esta investida. E muitos outros neste mundo fora pressentiram com horror que a actividade de Greta nos faz ver, antes de mais, que os nossos reis vão nus e nós somos marionetas impotentes. E, de facto, é nessa constatação de impotência que se deve procurar as razões do ódio à Greta.
João Luz VozesTeoria do significado [dropcap]D[/dropcap]esde quarta-feira que ando a pensar na teoria do significado, no valor de conceitos e definições e no ministro da Propaganda chinês e a sua teoria de subjectividade conceptual. Este senhor veio desculpar as acusações que incidem sobre a China no capítulo dos direitos humanos, teorizando que cabe a cada nação definir o que são direitos humanos. Olha que bela ideia. Porque não? Em primeiro lugar, começo por referir que este senhor ocupa o cargo para o qual nasceu. Brilhante. Porque não uma noção para cada pessoa? Esta arbitrariedade que lava mãos, mas não consciências, só é possível porque não existe um ordenamento jurídico universal, porque o direito internacional não passa de um aglomerado de boas intenções sem coercibilidade. A Coreia do Norte também deve ter uma noção nacional de direitos humanos, estou em crer. Também Jeffrey Dahmer tinha um conceito pessoal de vida e de refeição, já agora. Esta negação de significado é puro niilismo político. O oposto do significado, do propósito existencial de Kierkegaard usado para a impunidade e a desresponsabilização. Estamos a viver a anulação do Homem pela via das verdades pessoais, dos conceitos individuais, cada um tem um conceito do que é o planeta (para mim tem a forma de um donut). Uma coisa é a relativização conceptual e simbólica no plano teórico, enquanto se discutem ideias, outra é a fuga à responsabilidade através de malabarismos linguísticos. O mundo não aguentaria a instabilidade, a realidade entraria em colapso face a tamanha incerteza, instituições entrariam em ruína se tudo perder o seu significado.
Andreia Sofia Silva VozesBois, pandas e afins [dropcap]S[/dropcap]e dúvidas houvesse sobre o facto de Macau ser um sítio sui generis, estas dúvidas voltaram a desfazer-se com as recentes notícias de que um boi fugiu do matadouro de Macau e andou a deambular pela Ilha Verde. Foi talvez a única réstia de natureza existente por aquelas bandas, cheias de cimento, carros e pessoas. O Instituto para os Assuntos Municipais interveio, e bem, salvando o animal e decidindo colocá-lo no Parque de Seac Pai Van onde, juntamente com os bem-amados pandas e outros animais teremos um boi como atracção turística para miúdos e graúdos. Mas será que faz sentido manter um animal deste tipo ao lado de pandas? Não será demasiada a mistura animal? Será que as condições são iguais para manter todos? Dizem-me que é melhor do que matar o pobre boi, que foi anestesiado em doses elevadas e que, por isso, a sua carne não pode ser consumida pelos humanos. Acredito, mas será que vamos depositar no Parque de Seac Pai Van todo o tipo de espécies sem um critério aparentemente definido? No que diz respeito ao matadouro, veremos até quanto tempo se mantém, dada ser uma nova luta da ANIMA.
Pedro Arede VozesO Filme do filme [dropcap]A[/dropcap]o longo da quarta edição do Festival Internacional de Cinema e Entrega de Prémios de Macau (IFFAM) foram muitas as referências ao calvário que é o longo e rigoroso processo de censura a que são sujeitas as obras cinematográficas produzidas na China. “A City Called Macau”, filme realizado pela chinesa Li Shaolong, galardoada internacionalmente por diversas ocasiões (inclusivamente com um Urso de Ouro em Berlim), é um desses exemplos de filme, que nunca chegou a ser o que era suposto à partida. Por causa “do juízo rigoroso em não mostrar nenhum aspecto que pudesse promover a indústria do jogo”, “A City Called Macau”, um filme que aborda precisamente a indústria do jogo em Macau, chegou às salas de cinema desmembrado, com cenas cortadas e num momento que não permitiu a sua participação nos grandes festivais de cinema do ano passado. Mas também Juliette Binoche falou do assunto e deu talvez uma opinião importante sobre o tema. Quando questionada se estaria disposta a enfrentar a censura chinesa caso venha a trabalhar no país, a actriz fancesa que esteve de passagem por Macau, disse que “há muitas formas de ser livre” e que, estando “solidária com os artistas que não se podem exprimir livremente”, é preciso encontrar, apesar dos limites, um caminho (interior, pelo menos) que permita a cada um levar “a arte o mais longe possível”. Talvez o ideal não exista, mas talvez o ideal seja uma boa pista para querer fazer mais e não permitir quaisquer constrangimentos de partida. Allez!
João Santos Filipe VozesTrabalho heróico [dropcap]F[/dropcap]ui ao Consulado de Portugal renovar documentos e como sou um cidadão normal segui os procedimentos normais, sem “vias verdes”. Nunca é uma tarefa fácil, como todos sabemos. Fiz a marcação em Julho e, como não era urgente, só havia vaga em Dezembro. Fiquei chocado. Em seis meses a situação não está diferente e que quiser marcar agora uma vaga para renovar documentos só é chamado em Junho. No dia em que me desloquei ao consulado percebi bem a razão de estar tudo tão “entupido”. Cheguei 25 minutos antes da hora prevista e já tinha 10 pessoas à minha frente. A porta ainda nem se tinha aberto. Quando abriu e foram distribuídas as senhas de marcação já estavam 30 pessoas à espera. Se não contei mal, estas pessoas estavam todas com vez marcadas para os horários entre as 9h e as 9h30 da manhã. Na meia hora que estive à espera nunca pararam de chegar mais pessoas. A certo ponto todas as cadeiras da sala de espera estavam ocupadas e continuavam a chegar mais pessoas. O fluxo de atendidos é verdadeiramente incrível e, se não contei mal, eram cinco as pessoas que estavam a tratar das renovações de documentos, entre passaportes e cartões de cidadão. Por isso, e uma vez que estamos numa época natalícia, aproveito aqui para agradecer e deixar um voto de boas festas aos funcionários do consulado, que com poucos meios fazem um trabalho heróico.
Carlos Morais José VozesO balanço [dropcap]20[/dropcap] anos é tempo de balanço e isso é uma chatice. E, na verdade, é uma chatice porque os balanços são chatos. E são chatos porque repetem aquilo que já sabemos, em geral de cor e refogado. Por isso, durante este mês de Dezembro vamos ter de levar com dezenas, centenas, uma miríade de balanços. Da economia, da política, da cultura, do direito, do torto e do coxinho. Enfim, uma seca. Mas o que fazer senão balançar? Afinal, a vida por aqui parece muitas vezes vivida na corda bamba, registo de equilibrismo quase sobrenatural. E sem rede. Ainda assim balancemos. Deixemos pois balançar as ideias, os gostos e os desejos. E do balancete fazer futuro porque a História só interessa quando nos indica o caminho ou nos diz para não ir por ali. Neste caso concreto da RAEM são-nos vendidos relatórios que roçam o maravilhoso, sobretudo reclinados na superabundância de maravedis. Ora casa onde há pão, quem manda é quem tem razão. Portanto, não há crítica que se valha, nem piada que se incruste. Tudo embate e se desfaz num altíssimo muro de patacas, agora que da árvore se passou para a produção industrial. Claro que o crescimento tem problemas. Quando é desordenado, provoca dores. Tomaram, no entanto, todos os povos sofrerem destas constipações, destes resfriados, vá lá, desta ciática. Balance-se lá para onde for, enquanto forem aproveitadas as extraordinárias potencialidades de Macau não há mal que pr’áqui venha, nem peste que nos atinja. Por isso, balancemos sem temor. Isto apesar de, 20 anos depois, tu ainda não me teres mostrado a tua colecção.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA questão do desenvolvimento sustentável “It’s widely recognized that there is no peace without development and no development without peace; it is also true that there is no peace and sustainable development without respect for human rights.” António Guterres [dropcap]A[/dropcap] “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” e os dezassete “Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)” são ambiciosos e definem prioridades e aspirações globais para 2030. Os ODS procuram “acabar com a pobreza extrema em todas as suas formas e criar os alicerces de uma prosperidade sustentável para todos. O seu sucesso depende fortemente da acção e colaboração de todos os actores, incluindo governos a nível nacional e sub-nacional, além da sociedade civil e do sector privado. O caminho para alcançar a Agenda 2030 é obstruído por desafios assustadores e obstáculos, incluindo mudanças climáticas, fragilidade e conflitos, pandemias e muitos outros. O espírito ambicioso dos ODS requer uma mobilização sem precedentes de recursos financeiros, conhecimento e parcerias nos níveis global, nacional e sub-nacional. A mobilização dos recursos financeiros necessários é uma componente essencial para alcançar os ODS, e há muitos desenvolvimentos inovadores que contribuirão para os esforços globais. Em Julho de 2015, o “Financiamento para o Desenvolvimento” entrou em uma nova era, quando a comunidade global concordou com a “Agenda de Acção de Adis Abeba”. A comunidade de desenvolvimento global está empenhada em procurar novas abordagens para movimentar a discussão de milhares de milhões de dólares em “Ajuda Oficial ao Desenvolvimento” para triliões em recursos financeiros de todos os tipos como públicos e privados, nacionais e globais. O mundo precisa de financiamento inteligente para o desenvolvimento que vá muito além do preenchimento de lacunas de financiamento e que possa ser usado estrategicamente para desbloquear, alavancar e catalisar fluxos privados e recursos domésticos. Não obstante o papel fundamental que o financiamento desempenha no apoio aos países na implementação da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, é necessário complementar esses esforços com novas abordagens e ferramentas, para criar uma dinâmica e acelerar o progresso. É preciso apoiar os países no aproveitamento da tecnologia que está a perturbar os mercados económicos tradicionais. É possível atingir esse fim abraçando o poder da tecnologia em áreas como a “FinTech” (refere-se à integração de tecnologia em ofertas de empresas de serviços financeiros, a fim de melhorar o seu uso e entrega aos consumidores. Funciona principalmente ao separar as ofertas dessas empresas e criar novos mercados para as mesmas), para melhorar o acesso ao financiamento, bem como aproveitar melhor o poder dos grandes volumes de dados para apoiar as decisões políticas ligadas aos ODS. O “Relatório de Desenvolvimento Mundial do Grupo do Banco Mundial”, intitulado “Dividendos Digitais”, documenta muitos exemplos em que as tecnologias digitais promoveram a inclusão, eficiência e a inovação. Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos podem deixar milhões de pessoas excluídas. As informações mostram que a adopção digital por empresas em países em desenvolvimento tem sido lenta. A automatização está a perturbar os mercados de trabalho e irá deslocar um número significativo de postos de trabalho nas próximas décadas e não se deve esquecer que três mil milhões e seiscentos milhões de pessoas ainda não têm acesso à internet. É de entender que alavancar a tecnologia para o bem público requer cooperação e parcerias globais para ampliar os seus benefícios, identificar os riscos e mitigá-los. Aprendemos dez anos após a crise financeira, que prevenir e lidar com os riscos numa fase precoce é menos dispendioso em termos financeiros e humanos do que abordar essas questões demasiado tarde. A tecnologia oferece novas oportunidades, mas também introduz novos riscos, incluindo o aumento da desigualdade dentro e entre países. São necessárias medidas urgentes para maximizar os potenciais benefícios e atenuar os riscos pelo que é necessário ajudar os países a investir mais, e de forma mais eficaz através dos seus cidadãos para se prepararem para o que será certamente um futuro mais exigente em termos digitais. É chegado o momento de criar parcerias fortes para construir economias sustentáveis e orientadas para a tecnologia e para expandir a capacidade das pessoas e das instituições para prosperar nesse ambiente em rápida evolução. A Agenda 2030 e os ODS são ousados e transformadores na sua procura por um mundo inclusivo e sustentável. Alcançá-los exige aceitar e agir com base nos princípios em que se baseiam, fazer grandes investimentos e implantar inovações e tecnologias a preços acessíveis para os países mais pobres. Além disso, um estado de paz é vital para o desenvolvimento sustentado, mas infelizmente, os cidadãos de países mergulhados em conflitos, incluindo refugiados e deslocados internos, ficam afastados enquanto o conflito continua. Até à data, o nível de compromisso necessário para que os ODS sejam alcançados não se concretizou e muito mudou geopoliticamente desde que os “Objectivos” foram acordados em 2015. O clima político para avançar tanto os ODS como o relacionado “Acordo de Paris” sobre as alterações climáticas é menos propício a dar prioridade a estas agendas globais do que era antes. A principal mensagem do “Índice dos ODS” de 2018 e do “SDG Index and Dashboards Report 2018”, que foi realizado com o apoio da “Rede das Soluções para o Desenvolvimento Sustentável” e da “Fundação Bertelsmann Stiftung” foi que nenhum país está no caminho certo para atingir todos os ODS até 2030. Tal é sóbrio e surge a questão de quais são as principais barreiras ao progresso? A sabedoria convencional apontaria para a persistência de níveis significativos de desigualdade, degradação ambiental incluindo as alterações climáticas, conflitos em curso e falta de financiamento como barreiras. Mas o mesmo acontece com a vontade política e o apoio público muitas vezes insuficientes nos países ricos e pobres para tomar as medidas necessárias para promover o desenvolvimento sustentável. Um princípio fundamental da “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” e dos ODS é não excluir ninguém. No entanto, muitos estão a ser excluídos, na medida em que há pouca esperança na actual taxa de progresso ou falta dela de erradicar a pobreza extrema ou a fome até 2030, como os ODS aspiram fazer. Assim, de acordo com as tendências actuais, aqueles que vivem em extrema pobreza com menos de 1,90 dólares por dia ainda serão cerca de 6 por cento da população mundial em 2030, ou seja, cerca de quatrocentos a quatrocentos e setenta e cinco milhões de pessoas. A fome no mundo tem aumentando nos últimos três anos, afectando oitocentos e vinte e um milhões de pessoas em 2017, ou seja, uma em cada nove pessoas no mundo. O mundo não está perto de cumprir a ambição do “Acordo de Paris” de limitar o aumento da temperatura global a menos de dois graus Célsius, e de preferência não mais de 1,5 graus que é a maior questão da “Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 25)” que se realiza em Madrid de 2 a 13 de Dezembro de 2019 sob a Presidência do Governo do Chile e realizada com o apoio logístico do Governo da Espanha. A maior concentração de desafios ao desenvolvimento sustentável está nos contextos frágeis do mundo e de acordo com a definição da OCDE, as pessoas que vivem nesses contextos representam quase um quarto da população mundial ou seja mil milhões e oitocentos milhões de pessoas. Prevê-se que esse número aumente para dois mil milhões e trezentos milhões de pessoas até 2030. Será que este panorama algo sombrio pode ser invertido? É tempo da ONU e instituições financeiras internacionais e regionais explicitarem claramente a escala do défice em curso até à data, e de intensificarem a defesa de um maior empenho e acção em toda a agenda dos ODS. Seria inconcebível que a comunidade internacional fosse à deriva, sabendo que em 2030, a apenas onze anos de distância, centenas de milhões de pessoas ainda estarão profundamente empobrecidas, famintas, sem acesso a serviços básicos e expostas a um mundo em direcção a um aumento de temperatura de mais de 3 graus se não forem feitos esforços muito maiores. Há actualmente um mérito considerável tanto em aumentar a cooperação internacional para o desenvolvimento como em concentrá-la naqueles que estão a ser afastados. É este o sentido da mensagem do relatório “Fragilidade, crise e não deixar ninguém excluído” emitido pelo “Overseas Development Institute (ODI)” do Reino Unido e pelo “Comité Internacional de Resgate (IRC na sigla inglesa)” em 2018. Defendem, nomeadamente, que se dê prioridade às políticas, acções e financiamento das pessoas em contextos frágeis, bem como ao preenchimento de lacunas de dados e aqueles que são apanhados em crises, incluindo refugiados e deslocados internos, ou aqueles que são marginalizados de outra forma e excluídos da recolha de dados, disfarçando assim o nível de necessidades que têm. O ODI e o IRC têm sido contundentes ao afirmar que não agir agora significa que os ODS não serão atingidos, comprometendo a credibilidade da comunidade internacional e deixando milhões de pessoas a morrer desnecessariamente. No grande esforço necessário para fazer avançar os ODS, todos têm um papel a desempenhar. A cooperação para o desenvolvimento Norte-Sul continuará a ser importante, em especial para os países mais pobres pois com efeito, será essencial para retirar os últimos quatrocentos a quatrocentos e setenta e cinco milhões de pessoas da pobreza extrema, uma vez que o crescimento global previsto, por si só, não o fará. O apoio deve ser canalizado directamente para a saúde, educação e protecção social em um número estimado de quarenta e oito países caracterizados por baixos rendimentos, em desenvolvimento e frágeis. O “empoderamento” e a plena inclusão das mulheres serão também vitais para a promoção do desenvolvimento humano em geral. No que diz respeito à adaptação às alterações climáticas, os países mais vulneráveis necessitam de apoio urgente. O “Fundo Verde para o Clima” está fortemente subcapitalizado e o “Fundo Mundial para o Ambiente” são parceiros de confiança dos países em desenvolvimento e podem fazer o bem com recursos adequados. Quanto à mitigação, é necessário dar prioridade a duas áreas principais de acção, pois o mundo tem de ultrapassar a sua dependência do carvão e de outros combustíveis fósseis. A produção e o consumo globais de carvão aumentaram em 2017, após dois anos de declínio. Novas centrais de energia movidas a carvão continuam a ser construídas e financiadas por alguns parceiros de desenvolvimento. Tal contraria as advertências do “Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC na sigla inglesa)” de que só restam onze anos para agir no sentido de evitar a catástrofe climática e que o carvão deve ser totalmente eliminado até 2050. Essa transição tem de começar imediatamente. É necessário parar a desflorestação tropical, que contribui actualmente com 15 por cento de todas as emissões globais de gases com efeito de estufa e que é equivalente às emissões de todos os automóveis, camiões e comboios. A mudança para os biocombustíveis nos Estados Unidos terá impulsionado o desmatamento para a produção de óleo de palma na Indonésia. O ano de 2018 foi o pior de uma década para a perda de florestas na Amazónia pese os tresloucados ataques do presidente do Brasil às ONGs e a Leonardo DiCaprio. A cooperação entre governos, sector privado, comunidades e consumidores será necessária para deter o desmatamento e a degradação florestal. O sector privado tem um papel muito importante a desempenhar. A lacuna no financiamento para os ODS em sectores-chave nos países em desenvolvimento foi estimada em 2,5 triliões de dólares por ano. A lacuna não pode ser preenchida pelas finanças públicas internacionais. A “Assistência Oficial ao Desenvolvimento (ODA na sigla inglesa)” dos países da OCDE em 2017 foi de apenas de cento e quarenta e seis mil milhões e seiscentos milhões de dólares, e dezoito dos vinte e nove países membros do “Comité de Ajuda ao Desenvolvimento” da OCDE realmente reduziram sua ODA naquele ano. Assim, um sector privado global que seja inclusivo e sustentável, e que esteja preparado para investir em países com défices de infra-estruturas e meios de subsistência, poderia ter um impacto muito positivo. Se, por exemplo, todas as empresas se comprometessem com o desmatamento zero nas suas cadeias de fornecimento de matérias-primas como o óleo de palma, soja e carne bovina, faria uma enorme diferença para a mitigação da mudança climática e para a protecção de espécies e habitats ameaçados. O envolvimento da sociedade civil também é extremamente importante na concepção dos ODS. A Agenda 2030 abriu novos caminhos no ODS 16 ao advogar por sociedades pacíficas e inclusivas que proporcionem acesso à justiça para todos e que tenham capacidade de resposta, inclusão, participação e tomada de decisão representativa a todos os níveis. Os cidadãos devem ser capazes de contribuir para as decisões que afectam as suas vidas, e as suas organizações devem ser capazes de defendê-los e responsabilizar os governos. Todos os governos devem estar comprometidos com os ODS. A sociedade civil pode ajudar a garantir que os governos actuem para além das palavras com vista à implementação. Ainda que o progresso geral sobre os ODS esteja longe de ser adequado, há algumas áreas que estão a ganhar força como por exemplo, o “momentum” está a crescer para a cobertura universal da saúde como um direito básico para todos e uma meta chave no ODS 3 sobre a saúde. Deve, no entanto, incorporar uma forte acção sobre as determinantes sociais e comerciais da saúde, ou os enormes desafios da saúde actuais nas doenças não transmissíveis. O impulso para o ODS 5 sobre igualdade de género, pois o mundo precisa urgentemente de mais mulheres na tomada de decisões, em cargos eleitos, na administração pública e nas organizações multilaterais. O apoio à iniciativa “Global Health 50/50”, que defende a paridade de género nas organizações globais de saúde é de extrema importância. Muitas vezes, uma foto dos líderes dessas organizações revela que apenas uma mulher está incluída e escusado será dizer que, se as mulheres são excluídas, os ODS também não podem ser alcançados. Há potencial para uma transformação energética que relegue os combustíveis fósseis para o proverbial caixote do lixo da história. Se os países se comprometerem com esse fim rapidamente, estar-se-á no bom caminho para alcançar tanto o ODS 7 sobre energia, como as metas do “Acordo Climático de Paris”. Todavia existe preocupação, com o estado de fragilidade que afecta uma parte significativa dos povos do mundo que é motivo de reflexão para todos os responsáveis como por exemplo, aqueles que são partes em conflitos e os que os armam. É de pensar nas imagens horríveis de crianças famintas no Iémen que se vê diariamente nos ecrãs dos meios de comunicação social. As crianças que são excluídas até à morte em um dos países mais pobres do mundo. Assim, não é possível alcançar os ODS se forem alcançados apenas em zonas de paz e prosperidade e o fracasso em estender o desenvolvimento inclusivo e sustentável a todos continuará a ter repercussões sobre a paz, o bem-estar e a segurança de todos. Por todas essas razões, é tempo de agir sobre os ODS como se as nossas vidas dependessem deles, porque fazem se quisermos um futuro inclusivo e sustentável para todos.
Carlos Morais José VozesNão sejas parvo, desiste [dropcap]O[/dropcap] mundo, como se sabe, é horrível. A vida não passa de um fenómeno de uma fragilidade patética que, para se alimentar, precisa de o fazer à conta de outra vida. Na espécie humana, a existência decorre em multidão. Somos inevitavelmente gregários. O indivíduo é uma ficção. E esta é uma constatação asquerosa. Lutar? Para quê? Para se desiludir no caso de vencer. Desistir? Logo. Só vale a pena termos o que nos é dado e nunca o que conquistamos. O amor nunca salvou ninguém. Pelo contrário, é o tema das mais terríveis tragédias, dos mais absurdos dramas ou das mais ridículas comédias. Qualquer assomo de beleza é sempre contrariado por um pensamento que o emporcalha de vulgaridade. Qualquer estímulo, quaisquer acções, revelar-se-ão um desperdício de energia. Qualquer alegria será assombrada pela dúvida, pelo chiste ou por uma insuportável ressaca. Há um buraco no meio de ti, um abismo insondável no fundo de qual nada encontrarás. Nunca serás o que almejas ser, se almejares ser alguma coisa. A tristeza, o desespero, a dúctil feiura, uma vida vergada pelo remorso de existir e a angústia de ser — isto sim, vale a pena! Não sejas parvo, desiste — é que a alma… não existe.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesGuia dos sexos [dropcap]N[/dropcap]inguém escapa ao sexo. Pensamos e agimos com a consciência que o sexo está por aí, pronto para gozar ou por ser gozado – tantos sexos. Essas fontes inesgotáveis de ideias, apetites e desejos. Não será surpresa que há lugares mais criativos do que outros. Nas grandes metrópoles por esse mundo fora, onde a diversidade fervilha por todas as direcções, o sexo floresce com esplendor. Uma cidade como Londres, por exemplo, tem a oferta mais impressionante de experiências sexuais. Até porque o sexo fora de casa não existe só em bordeis, são centenas de espaços de expressão criativa sexual. Mas antes de explorar o mundo do sexo lá fora, primeiro temos que responder à pergunta do que é que realmente gostamos. Uma pergunta que muitos de nós não tem a paciência de se perguntar. As fantasias sexuais ou os apetites particulares não nos aparecem só como impulsos inexplicáveis. A disponibilidade para fantasiar e a masturbação produzem as condições necessárias para apanhar o barco da exploração sexual também. Essa exploração, que a maior parte das vezes acontece individualmente, pode ser acompanhada por imensos brinquedos sexuais. Dildos de vários tamanhos, para quem gosta de penetração, varinhas ‘mágicas’ para quem gosta de estimulação do clítoris ou uma tampinha anal para os iniciados e já praticantes na exploração anal. Depois desta exploração se tornar hábito – a masturbação não produz epifanias sexuais instantâneas, é mais uma prática de auto-cuidado que deve ser estimulada ao longo da vida, com ou sem parceiro sexual (porque não são experiências mutuamente exclusivas) – é que a nossa cabeça começa a explodir de ideias. Ideias que podem exigir mais ou menos recursos porque, infelizmente, as experiências e acessórios sexuais não são para todas as carteiras. Abrimos assim a possibilidade de estarmos atentos para novas formas de sexo. Fetiches são um bom começo, por exemplo. Ao reconhecermo-los torna-se mais fácil encontrar outras mentes que partilhem dos mesmos prazeres, e a internet é uma óptima forma de os juntar. Depois, claro, de certeza que existirão eventos que estimulam a concretização de fantasias. O BDSM aglomera um conjunto de práticas e fetiches que torna mais fácil identificar uma comunidade de gentes que partilham o mesmo fascínio por jogos de submissão e dominação. Pelo que tenho visto, muitas actividades sexuais urbanas são desta natureza. Há festas e speed-dating para amantes do BDSM, há a possibilidade de contratar uma dominatrix na vossa cidade de residência para satisfazer os fetiches mais variados: chuvas douradas, para os que gostam de praticar desportos aquáticos (é mesmo esse o termo) até chuvas castanhas, que não é preciso especificar do que se trata. Depois também há outras actividades que se cruzam com desejos de BDSM ou não. Por exemplo, um clube de sexo de pessoas anonimizadas com máscaras é, na verdade, uma possibilidade para o mundo real, e não é tão inatingível quanto isso. Aliás, foi com alguma satisfação que me apercebi que existem grupos de mulheres – e.g. Killing Kittens – que organizam festas mistas onde só as mulheres é que podem dar o primeiro passo. Escusado será dizer que este tipo de eventos e serviços vivem da exigência de que todo o sexo é consensual. O grande lema para o sexo verdadeiramente prazeroso. Ao olhar para esta variedade de sexos não nos é possível cair no erro de que há o sexo normal e o anormal. A decisão é muito mais individual: há sexo que nos interessa e sexo que não nos interessa. Os guias dos sexos criam-se assim, pelos aborrecidos e pelos curiosos, explorando o sexo de forma criativa.
Carlos Morais José VozesLobos [dropcap]D[/dropcap]ois membros da Câmara de Comércio dos EUA em Hong Kong foram proibidos de entrar em Macau. O facto levantou um coro de críticas nas redes sociais, sobretudo ao Governo local. De facto, é prática já habitual do nosso Executivo proibir a entrada de certos indivíduos, geralmente de Hong Kong, aparentemente conotados com o movimento pró-democracia, alegando que poderiam perturbar a ordem pública ou não alegando nada. Especificidades de Macau… normalmente criticadas porque não se entende como não existe liberdade total de circulação entre as duas RAEs que, afinal, fazem parte do mesmo país. Contudo, desta vez, o Governo local não tem nada a ver com isto. Para os menos atentos, a China indignada, em resposta aos Acts americanos sobre HK e o Xinjiang, resolveu dificultar os movimentos de diplomatas e membros de ONGs americanas no seu território. Portanto, tudo indica que a proibição de entrada em Macau dos membros da Câmara de Comércio se insere nesta medida. O que, obviamente, iliba desta vez o Governo de Macau. Este é um dos problemas: por tudo e por nada se grita lobo, exagerando a presença da alcateia. Depois, o problema não é toda a gente ignorar os gritos quando o lobo realmente vier, como no caso do menino Pedrinho, mas o facto de o lobo se sentir convidado a vir porque, segundo os críticos, já cá está e morde a torto e a direito.
Carlos Morais José VozesDez mil gerações [dropcap]E[/dropcap]nriquecer é glorioso”, terá dito Deng Xiao Ping e muitos atribuem a esta frase o despontar do capitalismo na China contemporânea. Mas, ao que parece, enriquecer aqui significa enriquecer em conjunto, colectivamente e não o enriquecimento individual de acordo com o modelo das sociedades ocidentais. Se for esse o significado pretendido por Deng, mais não faz que repetir Confúcio que afirmou que para se crescer é preciso que ao lado os outros também cresçam. Para caçar o rato, ou seja enriquecer, não importa a cor do gato, disse também o Grande Arquitecto. Por isso a China enveredou pela existência de empresas privadas capazes satisfazer o mercado interno e mesmo de rivalizar com as suas congéneres mundiais. E este gato preto foi ganhando cada vez mais poder, mais espaço, mais influência, enquanto o gato branco definhava sem, no entanto, perder o controlo da nação. Entretanto, gatos cinzentos surgiram um pouco por toda a parte e a China enriqueceu. Segundo Xi Jinping, não o fez de forma harmoniosa pois abriu-se um fosso entre os pobres e os muito ricos, alimentando a corrupção, que urgia eliminar. Assim se fez. E é uma China mais harmoniosa que prepara a sua entrada numa Nova Era em que o sonho chinês se irá realizar. Algures, neste reino maravilhoso, Deng Xiao Ping joga go com Confúcio e, ao terceiro copo de vinho de arroz, confessa-lhe a sua admiração: “Mestre, estou preocupado com a persistência da sua sabedoria. Devíamos limitar a sua influência a Dez Mil Gerações.”
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesViolação e outros atentados [dropcap]H[/dropcap]á poucos dias a polícia indiana matou a tiro quatro suspeitos da morte e violação de uma jovem veterinária. O crime tinha ocorrido a semana passada em Hyderabad, Telangana, no sul da Indía. O cadáver da jovem foi atirado para uma passagem subterrânea. Embora todos os suspeitos tenham morrido, este trágico incidente desencadeou grandes manifestações a nível nacional, exigindo que o Governo imponha penas mais pesadas aos violadores. A morte dos suspeitos ocorreu na cena do crime. Os quatro homens tinham sido levados pela polícia ao local, para que fosse feita uma reconstituição dos acontecimentos. Alegadamente, na altura, os suspeitos atacaram os agentes com pedras e roubaram algumas armas com as quais dispararam. Os polícias conseguiram ripostar e os suspeitos foram mortos. Estas mortes provocaram diferentes reacções. A família da jovem assassinada expressou a sua gratidão e sentiu-se justiçada. Muitos cidadãos celebraram o acontecimento nas ruas, lançaram fogo de artifício, distribuíram doces pelos polícias, elogiando a sua acção. Pediam ainda que o seu exemplo fosse seguido por todo o país. No geral as pessoas sentiam que tinha sido feita justiça. No entanto, algumas organizações de direitos humanos acreditam que os suspeitos foram mortos para aplacar a indignação popular. A execução de suspeitos sem julgamento é ilegal e é um atentado ao estado de direito. Se os quatro homens fossem julgados e, se se tivesse confirmado a sua culpa, teriam sido punidos pela lei. Mas toda esta situação tem alguns aspectos que merecem ser analisados. Em primeiro lugar, a reconstituição do crime é uma acção que requer muito mais do que um ou dois agentes no local, serão necessários à volta de dez. Em segundo lugar, os suspeitos estariam algemados e presos pela cintura com uma corrente de ferro. As algemas impediam-nos de atacar a polícia. As correntes de ferro deixavam que se movimentassem, mas sob controle. Teria sido muito difícil, senão impossível, os suspeitos libertarem-se das algemas e das correntes. Como é que puderam agredir os agentes com pedras e roubar-lhes as armas? Se não houver resposta a estas perguntas, é fácil depreender que a polícia lhes montou uma armadilha, cuja finalidade terá sido a sua execução. Esta é a explicação que adiantam as organizações de direitos humanos: os quatro homens foram condenados sem julgamento, por meios ilegais. Se for verdade, constitui uma séria violação do estado de direito. Se a polícia puder executar os suspeitos, os tribunais deixam de fazer sentido. A lei é indispensável em qualquer lugar porque impõe um padrão de comportamento, pilar de todas as sociedades civilizadas. Sem tribunais deixa de haver critérios para distinguir o certo do errado. Se colocarmos nas mãos da polícia esse tipo de decisão, abrimos as portas à arbitrariedade. Sem um padrão legal, cada um fará o que muito bem entender. Num cenário desta natureza, deixa de haver responsabilização e de ser necessário reflectir sobre a justiça e a equidade. O que espera a Indía se os seus cidadãos decidirem trilhar este caminho? Para já, a prioridade é a polícia explicar de forma plausível as circunstâncias em que ocorreram as mortes dos suspeitos. Como é que foi possível que se tenham libertado, atacado os agentes com pedras, desarmado alguns deles e disparado, de forma a não deixarem outra alternativa aos restantes senão abatê-los. A família da jovem assassinada congratulou-se com este desfecho. É um sentimento natural devido à perda que sofreram e às suas circunstâncias. Como não foram directamente responsáveis pela morte dos suspeitos, não estamos perante um cenário de “ajuste de contas”. Se tivesse sido o caso, as famílias dos suspeitos poderiam eventualmente vir a procurar vingança, dando origem a um ciclo de violência infindável. A população distribuiu doces e elogiou a actuação da polícia, o que prova que reconheceu e aprovou o que foi feito. É um indicador do ódio que os indianos sentem pelos violadores e da sua vontade de os eliminar. No entanto, não nos podemos esquecer das críticas feitas à polícia pelas organizações de direitos humanos. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk Pedro Arede VozesCaras conhecidas [dropcap]O[/dropcap] artigo publicado há dias no The Guardian a propósito do sistema de videovigilância implementado na cidade chinesa de Chongqing, pode dar pistas importantes acerca das reais preocupações em termos de privacidade, numa altura em que nos encontramos a menos de dois meses do início de um ensaio com câmaras de videovigilância equipadas com tecnologia de reconhecimento facial em Macau. Com mais de 15 milhões de habitantes, Chongqing é actualmente, com cerca de 2600 e câmaras instaladas, a cidade mais vigiada em toda a China, onde existem 168 equipamentos por cada 10000 habitantes, deixando para trás cidades como Shenzhen (159 por cada 1000), Shangai (113 por cada 1000) ou Londres (68 por cada mil). Segundo o mesmo artigo, permitindo que o sistema de videovigilância analise e compare em tempo real frames das imagens que estão a ser captadas, com as bases de dados da polícia, o sistema emite um alerta a partir do momento em que for detectada uma correspondência superior a 60 por cento, entre os rostos em análise. No entanto, e tal como questionou esta semana a Associação Novo Macau, a base legal do sistema pode ser posto em causa por continuar a ser parco “em leis de regulamentação e mecanismos de supervisão” e por não estar sujeito às opiniões do Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais. Isto faz essencialmente com que o sistema de recolha e utilização de dados biométricos possa ser alargado, com moldes desconhecidos, a toda e qualquer pessoa, mesmo que não tenha qualquer histórico criminal. Isto faz com que o sistema a aplicar em Macau, tal como em Chongqing, não siga as normas internacionais em termos de privacidade e isso pode ser perigoso, não só para o sistema em si que está prestes a ser testado dentro de portas, mas também por poder abrir precedentes acerca de outras matérias igualmente sensíveis no futuro, ainda para mais, numa altura em que se fala tanto em “Cidades Inteligentes”. Vamos estar atentos a quem está atento a todos e a toda a hora. João Santos Filipe VozesSociedade civil [dropcap]N[/dropcap]os últimos tempos, um dinossauro da administração portuguesa veio a público considerar que Macau tem uma sociedade civil fraca. Face ao ambiente actual essa leitura não me parece errada, mas desvaloriza todo o trabalho que foi feito depois da transferência e que foi extremamente positivo. É verdade que entrámos numa nova fase recentemente e os impactos dessa mudança ainda não são conhecidos. Mas, a maior parte dos residentes tem duas comparações de referência para avaliar a situação de Macau: os tempos a administração portuguesa e o Interior. Nos dois casos, e até recentemente, a situação da RAEM tem sido muito melhor tanto a nível económico como das liberdades individuais. O aspecto económico não é para todos e quem só fala português entre as línguas oficiais tem cada vez mais vida difícil. Contudo, para a maioria da população as coisas mudaram para melhor devido ao trabalho do Governo e é por isso que há tolerância para abdicar de algumas liberdades. Sem fazer juízos de valor, a verdade é que desde que o dinheiro continue a chegar ao bolso e haja distribuição da riqueza e dinheiro para férias, tanto em Macau como na maior parte do mundo, as pessoas não se preocupam com ambiente, corrupção ou liberdades. E o Governo de Macau tem sabido responder a essas expectativas. É claro que a habitação se tornou num problema, mas mesmo nessa perspectiva Ho Iat Seng tem uma missão muito clara e vai contar com os aterros que vão permitir colocar no mercado 32 mil habitações. Portanto, a sociedade civil é fraca? Talvez. Mas cortem o dinheiro às pessoas e vejam a reacção… Carlos Morais José VozesA noite infinita [dropcap]E[/dropcap]ra de noite, diziam-me. A noite caíra como se sempre lá tivesse estado. Era de noite para sempre. Talvez porque tu não estavas. Partiras com o sol no teu olhar. E o mundo tornara-se noite e a noite tornara-se mundo e as coisas perdiam agora a sua definição própria, as cores e as formas mudavam em informes sombras, ouvia-se o riso silente dos mortos. Grasnava o corvo, emudecia o rouxinol. “Só os pássaros nocturnos me encantam”, dizias-me ou ter-me-ás dito nessa noite. Não importa porque à noite a realidade é superior à fantasia e é à noite que começa a fazer sentido a palavra “imaginação”. Isto porque é na noite interior que as imagens se sintetizam para formar a Imagem, a nossa imagem, aquela imagem, feixe de múltiplos sentidos, de riquezas imaginárias, sensíveis sem contudo passarem pelos sentidos. Tal como tu que sempre te esquivas à luz, aos olhos, e só de noite te ergues e me surges, cinzelada de medo. Era de noite, diziam-me. Mas da noite nunca ninguém extraiu certezas. A noite infinita como a dúvida. João Luz VozesBoi na Ilha Verde [dropcap]M[/dropcap]acau é um depósito infinito de insólitos. No meio da panóplia de assuntos da semana, apesar do anúncio do novo Governo, primeiro na Xinhua e depois no GCS, o boi evadido do matadouro foi a notícia que maior regozijo me trouxe. A fuga para a liberdade e a garantia absoluta de que vai viver e não cair no destino de morte certa foram o raio de sol numa semana nublada. Um símbolo de consolo, das regras quebradas na busca da sobrevivência, um Richard Kimble quadrupede, o Papillon e a evasão de Andy Drufresne pela frincha da imagem de Racquel Welch em direcção a uma praia solarenga perto da Acapulco. Sim, vamos ficar sem Alexis Tam, Lionel Leong e Sónia Chan e o meu destaque semanal é bovino e, na minha opinião, muito mais importante. Além disso, foi salvo por substâncias anestésicas, o que tornou a sua carne imprópria para consumo. Atrevo-me a dizer que estamos na presença de uma reencarnação invertida do Urso Bobo, o animal que foi encontrado à beira do prato para ser enjaulado. Esperemos para ver o que o IAM tem em mente para o Boi Kimble. Uma jaula, ou um espaço mais alargado numa terra onde o metro quadrado é um tesouro. Sim, Chui Sai On vai passar a repetir os mesmos chavões de sempre noutro lugar e o senhor que se segue apresentou a equipa de secretários a escassos 20 dias da tomada de posse, mas, por outro lado, o absurdo sorri-nos e diz-nos para pegarmos os dias pelos cornos e não temermos a lâmina do carrasco. «1...53545556575859...113»
Pedro Arede VozesCaras conhecidas [dropcap]O[/dropcap] artigo publicado há dias no The Guardian a propósito do sistema de videovigilância implementado na cidade chinesa de Chongqing, pode dar pistas importantes acerca das reais preocupações em termos de privacidade, numa altura em que nos encontramos a menos de dois meses do início de um ensaio com câmaras de videovigilância equipadas com tecnologia de reconhecimento facial em Macau. Com mais de 15 milhões de habitantes, Chongqing é actualmente, com cerca de 2600 e câmaras instaladas, a cidade mais vigiada em toda a China, onde existem 168 equipamentos por cada 10000 habitantes, deixando para trás cidades como Shenzhen (159 por cada 1000), Shangai (113 por cada 1000) ou Londres (68 por cada mil). Segundo o mesmo artigo, permitindo que o sistema de videovigilância analise e compare em tempo real frames das imagens que estão a ser captadas, com as bases de dados da polícia, o sistema emite um alerta a partir do momento em que for detectada uma correspondência superior a 60 por cento, entre os rostos em análise. No entanto, e tal como questionou esta semana a Associação Novo Macau, a base legal do sistema pode ser posto em causa por continuar a ser parco “em leis de regulamentação e mecanismos de supervisão” e por não estar sujeito às opiniões do Gabinete para a Protecção de Dados Pessoais. Isto faz essencialmente com que o sistema de recolha e utilização de dados biométricos possa ser alargado, com moldes desconhecidos, a toda e qualquer pessoa, mesmo que não tenha qualquer histórico criminal. Isto faz com que o sistema a aplicar em Macau, tal como em Chongqing, não siga as normas internacionais em termos de privacidade e isso pode ser perigoso, não só para o sistema em si que está prestes a ser testado dentro de portas, mas também por poder abrir precedentes acerca de outras matérias igualmente sensíveis no futuro, ainda para mais, numa altura em que se fala tanto em “Cidades Inteligentes”. Vamos estar atentos a quem está atento a todos e a toda a hora.
João Santos Filipe VozesSociedade civil [dropcap]N[/dropcap]os últimos tempos, um dinossauro da administração portuguesa veio a público considerar que Macau tem uma sociedade civil fraca. Face ao ambiente actual essa leitura não me parece errada, mas desvaloriza todo o trabalho que foi feito depois da transferência e que foi extremamente positivo. É verdade que entrámos numa nova fase recentemente e os impactos dessa mudança ainda não são conhecidos. Mas, a maior parte dos residentes tem duas comparações de referência para avaliar a situação de Macau: os tempos a administração portuguesa e o Interior. Nos dois casos, e até recentemente, a situação da RAEM tem sido muito melhor tanto a nível económico como das liberdades individuais. O aspecto económico não é para todos e quem só fala português entre as línguas oficiais tem cada vez mais vida difícil. Contudo, para a maioria da população as coisas mudaram para melhor devido ao trabalho do Governo e é por isso que há tolerância para abdicar de algumas liberdades. Sem fazer juízos de valor, a verdade é que desde que o dinheiro continue a chegar ao bolso e haja distribuição da riqueza e dinheiro para férias, tanto em Macau como na maior parte do mundo, as pessoas não se preocupam com ambiente, corrupção ou liberdades. E o Governo de Macau tem sabido responder a essas expectativas. É claro que a habitação se tornou num problema, mas mesmo nessa perspectiva Ho Iat Seng tem uma missão muito clara e vai contar com os aterros que vão permitir colocar no mercado 32 mil habitações. Portanto, a sociedade civil é fraca? Talvez. Mas cortem o dinheiro às pessoas e vejam a reacção…
Carlos Morais José VozesA noite infinita [dropcap]E[/dropcap]ra de noite, diziam-me. A noite caíra como se sempre lá tivesse estado. Era de noite para sempre. Talvez porque tu não estavas. Partiras com o sol no teu olhar. E o mundo tornara-se noite e a noite tornara-se mundo e as coisas perdiam agora a sua definição própria, as cores e as formas mudavam em informes sombras, ouvia-se o riso silente dos mortos. Grasnava o corvo, emudecia o rouxinol. “Só os pássaros nocturnos me encantam”, dizias-me ou ter-me-ás dito nessa noite. Não importa porque à noite a realidade é superior à fantasia e é à noite que começa a fazer sentido a palavra “imaginação”. Isto porque é na noite interior que as imagens se sintetizam para formar a Imagem, a nossa imagem, aquela imagem, feixe de múltiplos sentidos, de riquezas imaginárias, sensíveis sem contudo passarem pelos sentidos. Tal como tu que sempre te esquivas à luz, aos olhos, e só de noite te ergues e me surges, cinzelada de medo. Era de noite, diziam-me. Mas da noite nunca ninguém extraiu certezas. A noite infinita como a dúvida.
João Luz VozesBoi na Ilha Verde [dropcap]M[/dropcap]acau é um depósito infinito de insólitos. No meio da panóplia de assuntos da semana, apesar do anúncio do novo Governo, primeiro na Xinhua e depois no GCS, o boi evadido do matadouro foi a notícia que maior regozijo me trouxe. A fuga para a liberdade e a garantia absoluta de que vai viver e não cair no destino de morte certa foram o raio de sol numa semana nublada. Um símbolo de consolo, das regras quebradas na busca da sobrevivência, um Richard Kimble quadrupede, o Papillon e a evasão de Andy Drufresne pela frincha da imagem de Racquel Welch em direcção a uma praia solarenga perto da Acapulco. Sim, vamos ficar sem Alexis Tam, Lionel Leong e Sónia Chan e o meu destaque semanal é bovino e, na minha opinião, muito mais importante. Além disso, foi salvo por substâncias anestésicas, o que tornou a sua carne imprópria para consumo. Atrevo-me a dizer que estamos na presença de uma reencarnação invertida do Urso Bobo, o animal que foi encontrado à beira do prato para ser enjaulado. Esperemos para ver o que o IAM tem em mente para o Boi Kimble. Uma jaula, ou um espaço mais alargado numa terra onde o metro quadrado é um tesouro. Sim, Chui Sai On vai passar a repetir os mesmos chavões de sempre noutro lugar e o senhor que se segue apresentou a equipa de secretários a escassos 20 dias da tomada de posse, mas, por outro lado, o absurdo sorri-nos e diz-nos para pegarmos os dias pelos cornos e não temermos a lâmina do carrasco.