Paul Chan Wai Chi VozesO 1º de Maio e a história das duas cidades [dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]urante os últimos anos, em Macau, o 1º de Maio (Dia do Trabalhador) tem sido uma das poucas datas regularmente assinalada com manifestações populares, para além do dia em que se comemora a transferência de soberania. No entanto, quer Hong Kong quer Macau, têm assistido ultimamente a um decréscimo deste tipo de demonstrações no Dia do Trabalhador. Tendo perdido qualquer esperança na realização de um sufrágio universal, no rescaldo do “Movimento dos Chapéus de Chuva”, a sociedade de Hong Kong padece de pessimismo. Embora grupos de jovens tenham expressado a sua insatisfação de formas radicais, acabaram por ser silenciados após os protestos de Mong Kok. A chamada “resistência corajosa” chegou ao fim. O afastamento de dissidentes, por parte do Governo em funções, tem vindo a ser progressivamente intensificado. Mesmo os jovens da organização “Demosistō” acabaram por ser considerados não elegíveis para o Conselho Legislativo. Como Hong Kong tem sido paralisado por um sentimento de impotência, tornou-se difícil mobilizar as pessoas para manifestações e protestos . Em Macau, a política de “distribuição de dinheiros”, implementada ao longo dos últimos dez anos, tem funcionado como um anestésico. À excepção de pequenos grupos com consciência política, em geral, os manifestantes são desorganizados e não apresentam propostas concretas. Além disso, as manifestações não constituem momentos significativos. Mas, ainda mais determinante, é o facto de se registar uma fraca participação nos movimentos sociais, por parte dos jovens que não pertencem ao campo pró-governamental. E isto é válido tanto para as apreciações positivas aos bons desempenhos do Governo da RAEM, como para as críticas aos seus maus desempenhos. Se os desempenhos dos Governos de Hong Kong e de Macau forem reconhecidos pelo Governo Central, as populações das duas cidades desfrutarão de paz e de estabilidade. Mas, na realidade, o que se verifica é uma constante subida dos preços das habitações e a um acentuar das discrepâncias entre os ricos e os pobres, o que causa um declínio da qualidade de vida das populações. O Governo de Hong Kong tem uma actuação excessiva, mas pouco gratificante para os habitantes da cidade, enquanto em Macau temos um Governo com discursos vazios de sentido, mas uma população satisfeita com a vida que tem. Estas duas regiões são assoladas por grandes questões e por pequenos problemas, no entanto, os conflitos de fundo enraízados nestas sociedades constituem uma situação deveras preocupante, especialmente quando verificamos a indiferença da juventude. No 1º de Maio fui a Hong Kong e reparei que não existe tanta animação como em Macau. Causeway Bay não estava tão cheia de gente como a Avenida de Almeida Ribeiro. O Terminal de Sheung Wan, dos Ferrys que fazem a ligação Hong Kong-Macau não tinha muita gente. Apenas alguns grupos de pessoas iam em direcção do Terminal da Taipa, o que evidencia um decréscimo óbvio de turistas do continente. Se compararmos com as longas filas que se formaram para atravessar a fronteira de Gongbei para Macau, no passado dia 30 de Abril, verificamos que, para os turistas continentais, Hong Kong é um destino longínquo. De acordo com os dados da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, a maioria do visitantes de Macau são originários da China continental. Se vier a haver um decréscimo no turismo do continente, Macau ficará tão“calmo” como Hong Kong, ou numa situação tão desastrosa como Taiwan. Por outras palavras, a seiva económica de Macau depende do turismo do continente. Mas será que existem em Macau produtos especiais de que necessitem particularmente os turistas continentais? Será que Macau possui algumas marcas de que se possa orgulhar? Se a China abrisse balcões com produtos farmacêuticos nas lojas duty-free, nos pontos de entrada em Macau, interrogo-me quantas Farmácias de Macau continuariam de portas abertas. As Regiões Administrativas Especiais de Hong Kong e de Macau não registaram nenhum desenvolvimento significativo desde a transferência de soberania para a China. O Centro de Medicina Chinesa e o projecto Cyberport de Hong Kong acabaram por não dar em nada. Depois do regresso de Macau à soberania chinesa, verificou-se um fiasco na reestruturação da indústria. Se a China não tivesse implementado o Programa de Visitas Individuais, que permitiu a tantos dos seus habitantes trabalhar em Macau, o sector imobiliário da cidade não teria florescido e, apesar da liberalização da indústria do jogo, os casinos não estariam cheios. Os homens de negócios de Hong Kong e de Macau desejam fazer fortunas, mas carecem de visão para um desenvolvimento a longo prazo. Os funcionários dos Governos de Hong Kong e de Macau limitam-se a depender do Continente e perderam a vontade de trabalhar com empenho. Com a implementação da Área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, muitas cidades da China já prepararam as suas infra-estruturas visando a participação neste projecto. No entanto, em Macau, a rede do Metro ligeiro nem sequer se vislumbra no horizonte. A existência de uma cidade depende da existência de traços e de valores que a distingam. Mas os traços e os valores distintos de Hong Kong e de Macau estão a extinguir-se.
Leocardo VozesImaculadas concepções I [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma declaração que me deixou a pensar esta semana foi a da deputada e presidente da Associação Geral das Mulheres de Macau (AGM), que citada por um jornal da concorrência, terá dito qualquer coisa como: “Se uma mulher vai ter um bebé ela deveria saber se o consegue sustentar. Existem outros hospitais em Macau e estas mulheres [não residentes] podem sempre voltar para os seus países onde podem gozar benefícios. Além disso, uma grávida não está sozinha, ela tem um parceiro com que pode partilhar os custos”. Pode ser que tenha ficado qualquer coisa perdida na tradução, uma vez que estas declarações foram proferidas na língua chinesa, mas o essencial está lá. Isto veio a propósito do recente aumento do custo dos partos para as mulheres não-residentes, e apesar de eu não concordar com a ideia, consigo entender a estratégia e o contexto. O que aqui me causa arrepios é a forma. Em primeiro lugar, é mentira que em Macau existem “outros hospitais” – existem dois, que eu saiba, que realizam partos. E quanto à parte de mandar as pessoas para a terra delas dar à luz, prefiro não tecer comentários. Depois fico a pensar que a noção que a AGM tem dos mecanismos de reprodução humana são um tanto ou quanto bizarros. Desde quando é que um esperma sabe se o seu “boss” tem dinheiro ou não, ou um óvulo sabe se a sua proprietária é casada? Só posso depreender que uma mulher grávida que recorra à AGM leve com um seco “peça ajuda ao seu companheiro”. Nisso elas têm razão: os bebés não se fazem sozinhos. Alguma coisa sabem, pelo menos. É muito triste. II Falando agora de coisas agridoces. Realizou-se no último fim-de-semana em Lisboa o Festival da Eurovisão, que para mim é, como sabem, é uma grande coisa – já houve quem me tivesse chamado de “pimbalhão festivaleiro”, ao que só posso agradecer o elogio. Sinceramente não entendo como é que alguém pode ser averso a um evento que se realiza uma vez por ano, e não chateia ninguém, mas adiante. A imagem de Portugal saiu reforçada, graças a uma excelente organização e à forma sempre calorosa com que as gentes de Lisboa recebem os seus visitantes. Foi um investimento que valeu a pena, e para os fãs portugueses da Eurovisão, como eu, foi uma espécie de peregrinação a Meca. Mas não há bela sem senão, pois o vencedor foi a canção de Israel, no mesmo fim-de-semana em que o estado judaico comemorava os 70 anos da sua independência e a embaixada dos Estados Unidos se mudava para Jerusalém. Para piorar as coisas, deram-se confrontos entre o exército israelita e um grupo de manifestantes palestinianos que resultou em baixas significativas para estes últimos. Sem se saber bem como, todos estes ingredientes foram cozinhados numa indigesta omelete – e nada kosher, também. A canção de Israel ganhou porque era a favorita, e tinha tudo para ganhar. Apesar da lufada de ar fresco que foi Salvador Sobral no ano passado, e este ano termos uma senhora da Estónia a cantar ópera, o festival não é propriamente conhecido pela sua erudição. Só que teorias da conspiração não faltaram, desde que o resultado foi fabricado, até ao ponto de se sugerir que a realização do festival no próximo ano em Jerusalém é “uma provocação”. Israel já organizou duas vezes o festival, e foi sempre em Jerusalém. Haja dó. Quem fica mesmo a perder com isto é a artista, a Netta Barzilai, com quem dá para simpatizar e tudo. Coitada da Netta.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPedofilia (aqui tão perto?) [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e há por aí alguém que tenha acompanhado as minhas perspectivas do sexo nesta secção temática de escrita, saberá que pedofilia foi um tema sobre o qual nunca proferi nem uma palavra. E isso aconteceu por alguma razão. Primeiro, porque é um tema extremamente difícil de se tratar e de compreender, e segundo, porque é todo um universo que me dá raiva, mal-estar e indignação – tudo. Não é fácil aceitar a suspeita de que poderão ter existido abusos sexuais no Jardim de Infância D. José da Costa Nunes. Estamos todos em choque. Eu andei no Costa Nunes – informação que não interessa para nada, tanto até porque foi há uns 25 anos, mas o sentido de familiaridade permanece. É com misto de surpresa e rancor que me pergunto como é que a pedofilia poderá estar tão perto. A dificuldade de lidar com estes casos acontece nas várias frentes, e isso tem sido bastante claro para quem tenha acompanhado os acontecimentos dos últimos dias. Como se pode identificar? Como se pode prevenir? Como se pode sancionar? Como se pode resolver? Não tenho respostas claras e o universo institucional de Macau parece estar também no embroglio do não saber bem o que fazer, nem como fazer. Que até poderia dar um desconto – mas não quando estão crianças de três anos expostas a realidades que não deviam ser as delas. Não tendo eu respostas concretas, que não será novidade, porque este não é o meu tema de especialidade, certamente existirão académicos, profissionais, burocratas a quem pedir algum parecer e algum insight acerca das medidas a tomar. Macau (e vão perdoar-me a generalização) continua a provar que em tempos de crise (sejam eles de que tipo forem) não sabe reagir. No Jardim de Infância poderá ter acontecido o que não queremos que aconteça, e a complexidade do que aconteceu não é só a do que leva ao comportamento pedófilo. Há estruturas burocráticas e institucionais, perspectivas de sexo e expectativas de género, que revelam certas ‘tendências’ ideológicas da sociedade e que moldam a forma como percebemos estes problemas. O que quero dizer com isto – o problema começa logo com a dificuldade em identificar, e em constituir prova e suspeita, o abuso sexual. Que não é, pura e simplesmente, penetração genital, mas que pode tomar todas e muitas formas de sexualidade e sensualidade. Quando, há 6 meses atrás, houve uma primeira desconfiança de que algo de errado se passava, pergunto-me o que poderá ter acontecido para não ter sido logo averiguada. Seriam falta de provas? Distracção? Incompreensão do que pode ou não pode constituir um abuso? O facto do alegado abusador não ter sido (logo) constituído arguido também me parece ser sintomático da dificuldade de identificação do abuso e do crime. Na nossa tentativa de dar sentido a uma coisa destas, é normal também começarem a traçar ‘perfis’ de como identificar um abusador. Será que o problema (e culpa) foi da permissividade do infantário ao deixar um homem-empregado mudar as fraldas de crianças meninas? Aí já terei que pedir muita reflexão por parte ‘dos públicos’, porque infelizmente, os pedófilos não são só homens, nem tomam a direcção que se julga ‘heterossexual’. Parece-me ingénuo que se tome uma medida destas para travar todo e qualquer risco de abuso sexual a menores em instituições. Se calhar mudar fraldas não era da competência de um empregado de limpeza, concordo, mas certamente muitos de nós, em contexto de trabalho, já teve que desenvolver tarefas que não era da nossa competência. O problema não é mudar fraldas, o problema é que a pedofilia é um distúrbio mental identificado na DSM-5 do qual não existem exames psicológicos para encontrá-lo (só critérios de diagnóstico, que depende da honestidade do sujeito). Também – é um distúrbio que posto em prática é julgado com pena de prisão, que na minha opinião é curta (8 anos?!) quando o risco é o de afectar a vida e desenvolvimento de crianças indefesas. São precisas medidas, são precisas acções, são necessárias cabeças para reflectir acerca das nossas estruturas e mecanismos. Continuará a ser um tema difícil, de resoluções difíceis – a única coisa fácil é de que é urgente e imperativo proteger as crianças.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesAs cidades sustentáveis e a eficiência de recursos “Problems Of Poverty Are, On Most Occasions, Inextricably Linked With Those Of Water – Its Availability, Its Proximity, Its Quantity, And Its Quality.” United Nations’ World Water Report, 2015 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]té 2050, o número de pessoas que vivem nas cidades terá quase duplicado, de três mil e seiscentos milhões de pessoas para mais de seis mil milhões de pessoas. No entanto, as áreas urbanas do mundo estão superlotadas e, particularmente nos países em desenvolvimento, sofrem com a escassez de água limpa, electricidade e outros recursos essenciais para o apoio das suas explosivas populações e economias frágeis. Os problemas criados pela urbanização desenfreada estão entre os desafios mais importantes do nosso tempo, mas também representam uma das maiores oportunidades e responsabilidades para o sector privado. Os negócios estão posicionados de maneira única para moldar as cidades sustentáveis e economicamente competitivas do futuro. Muitas empresas e investidores assumem que a fixação de cidades é da competência dos governos que devem agir em conformidade. Os governos ao redor do mundo estão presos, financeira e politicamente. Não é possível acreditar e esperar que resolvam sós os problemas da urbanização ou concebam soluções, como a electrificação eficiente e o transporte público confiável, que impulsionarão o crescimento económico. A implementação dessas soluções requer grandes quantidades de capital, habilidade em termos de gestão excepcional, alinhamento significativo de interesses, e frequentemente todos são escassos nos governos municipais, mas abundam no sector privado. É possível concluir de estudos recentes que consultadorias com governos municipais, urbanistas, empresas e empreendedores nos Estados Unidos, Europa, América do Sul e Ásia, pela existência de muitas estratégias empresariais diferentes para enfrentar os desafios impostos pela rápida urbanização e recursos escassos. Muitas vezes, concentram-se na expansão do provimento, fornecendo mais água, electricidade, estradas e veículos. As empresas estão a descobrir, cada vez mais, como criar e reivindicar valor, melhorando a eficiência de recursos, por meio da contratação de desempenho energético, por exemplo, e outras estratégias que superam as barreiras comerciais, reduzem o desperdício e ampliam os recursos. Para tal é necessário criar uma estrutura para identificar e perseguir tais oportunidades. A estrutura deve basear-se em três pilares como novos modelos de negócios que geram lucros optimizando o uso de recursos; engenharia financeira que incentiva investimentos em eficiência e selecção cuidadosa de mercados. Ainda que qualquer abordagem de determinada empresa dependa das suas capacidades e objectivos e do mercado em que está a penetrar, as estratégias gerais a fornecer devem ser relevantes tanto para os participantes, como para as empresas de infra-estruturas e fornecedores de turbinas, comboios e outros equipamentos, e empresas de maior dimensão, como as dos sectores da tecnologia de informação, serviços financeiros e produtos de construção. Seja qual for a indústria, os investimentos estratégicos em eficiência de recursos à medida que as cidades estão a ser construídas ou reconstruídas, podem gerar valor para as empresas a longo prazo, ao mesmo tempo que aumentam a competitividade das cidades. Uma empresa ou um investidor pode ter como alvo uma série de iniciativas de gestão de recursos devendo os projectos de água, electricidade e trânsito merecer a maior atenção. As empresas que têm água para processar alimentos e materiais, em que as luzes e computadores são alimentados de forma confiável, cujos produtos podem chegar ao mercado e que os funcionários podem trabalhar com rapidez e eficiência, estão claramente em vantagem. Os cidadãos com acesso fácil a água potável, cujos filhos têm luz para ler e estudar, e que podem viajar com eficiência e economia têm uma base sobre a qual prosperarem. Todos os outros serviços oferecidos por uma cidade competitiva, como moradia funcional, escolas, hospitais, lojas, instituições de polícia e bombeiros, aquecimento, arrefecimento, gestão de resíduos dependem de uma infra-estrutura confiável de água, electricidade e trânsito. Para entender esta oportunidade, deve considerar-se como as iniciativas de eficiência de recursos se comparam à sofisticação tecnológica e financeira. Os produtos e serviços que as novas cidades precisarão, e que proporcionam o retorno necessário aos investidores e empreendedores, optimizam ambos. As ofertas de uma empresa podem ser posicionadas de acordo com essas características em uma matriz de eficiência. Se imaginarmos quatro quadrantes, a sofisticação tecnológica aumenta da esquerda para a direita, enquanto a sofisticação financeira aumenta de baixo para cima. As mercadorias de baixa tecnologia, como a compra de isolamento em uma transacção simples entre o comprador e o vendedor, ocupariam o canto inferior esquerdo e programas sofisticados, como a optimização da procura resposta na electricidade, ocupariam o canto superior direito. O termo engenharia financeira na ciência matemática, descreve o uso de algoritmos para criar estratégias de negociação, mas neste contexto, refere-se a um conjunto geral de estratégias de financiamento e estrutura de capital para empresas e projectos. Em um projecto rodoviário de baixa engenharia financeira, por exemplo, um governo arrecadaria impostos para pagar a construção de uma só vez. A alta engenharia financeira para uma rodovia privada pode incluir dívida de curto prazo; obrigações de longo prazo; “swaps” de taxa de juros; contribuições de terrenos em troca de títulos, instrumentos de dívida ou acções; financiamento de fornecedores para apreciações futuras; e equidade no promotor, operador e na empresa de engenharia. Tal abordagem é projectada para atrair mais capital para o projecto, oferecendo diferentes níveis de risco e retorno, prioridades de fluxo de caixa e oportunidades para investidores de curto e longo prazo. Quando os governos estão amarrados e não podem fornecer infra-estruturas básicas, sendo essas técnicas tão particularmente úteis, caso contrário, pode ser difícil igualar o custo do investimento inicial em eficiência de recursos, com os benefícios extensivos e amplamente distribuídos que são realizados a longo prazo. Os produtos e serviços de eficiência de recursos de uma empresa podem ser combinados de acordo com a sua sofisticação financeira e tecnológica. À medida que a sofisticação aumenta, as ofertas aproximam-se da fronteira de eficiência no perímetro da matriz. A matriz é útil para determinar a actual posição estratégica dos produtos, serviços e investimentos de uma empresa, mas é mais valiosa para prever onde a empresa poderia ter melhores lucros. O novo valor pode ser criado e capturado movendo-se horizontalmente ou verticalmente dentro de qualquer parte do quadrante. No entanto, as empresas que mudam os seus modelos de negócios e ofertas para a parte superior direita do quadrante podem ganhar mais, e também terão maior impacto sobre as necessidades de recursos das cidades em expansão do mundo. Frequentemente significa desempenhar o papel de coordenador ou descobrir como financiar um serviço, algo que os jogadores individuais não podem fazer sós É nessa parte do quadrante que as ofertas de uma empresa são mais diferenciadas, favorecem soluções multipartidárias e são mais propensas a criar valor para todos os participantes. Antes de considerar as principais empresas que estão a fazer essa mudança, é necessário analisar cada quadrante. O primeiro quadrante mostra que a maioria das empresas que vendem produtos e serviços com eficiência de recursos competem com ofertas de mercadorias relativamente simples, como equipamentos que economizam água e iluminação eficiente em termos energéticos. Os mercados neste quadrante são grandes e as empresas sabem operar dentro deles. No entanto, as ofertas mostram pouca distinção e, embora o volume de vendas possa ser alto, as margens são baixas. Os produtos vendidos tendem a ter um impacto bastante pequeno sobre a sustentabilidade e a competitividade a longo prazo nas cidades. O segundo quadrante, mostra que as empresas que participam de projectos básicos de infra-estruturas e serviços públicos, como a construção de estradas e redes eléctricas e transporte colectivo, geralmente operam nesta área. Os projectos neste quadrante podem implicar financiamentos sofisticados que dividem os riscos e recompensas de investimento entre as partes e podem atrair mais capital do que os governos normalmente conseguem. O terceiro quadrante mostra que as empresas industriais de produtos e tecnologia geralmente operam nessa área com ofertas como ar condicionado, bombas e roteadores de rede que competem em desempenho aperfeiçoado. As tecnologias aperfeiçoadas podem ajudar a alargar recursos, mas geralmente são fornecidas em vendas únicas a utilizadores individuais. O quarto quadrante, mostra que as empresas que aí operam, combinam tecnologias sofisticadas com novos modelos financeiros para dimensionar ofertas de eficiência de recursos e gerar economias ou lucros substanciais, geralmente para várias partes e frequentemente actuam como agregadores de informações que lhes permitem coordenar a entrega eficiente e o uso de recursos entre muitos fornecedores e consumidores. A fronteira da eficiência é conceitual e separa os produtos e serviços de eficiência de recursos convencionais dos novos e sofisticados, que oferecem eficiência e retornos exponencialmente superiores. Produtos de mercadorias de baixa tecnologia ficam bem aquém dessa fronteira. Assim como uma empresa de alta tecnologia, com uma nova central de dessalinização de água, pode ultrapassar a fronteira. A melhor eficiência de recursos é difícil para as empresas conseguirem agindo sós; arranjos multipartidários, muitas vezes envolvendo serviços terciarizados, ajudam a mudar as inovações para a fronteira. As soluções de eficiência de recursos não são realmente soluções, a menos que sejam também empresas lucrativas. As soluções mais convincentes avançam em direcção à fronteira da eficiência de três formas, são multipartidárias ou multiempresas; alavancam tecnologias de informação e comunicação em exclusivo; e atraem capital oferecendo aos participantes vários níveis de risco e recompensa ao longo de vários períodos. Existem assim, algumas soluções nas três áreas mais merecedoras de atenção. A água limpa está em escassez cada vez maior em todo o mundo. Quase metade da população mundial vive em áreas onde a água é escassa ou as infra-estrutura necessárias para colectá-la, purificá-la e distribuí-la é parca. Se as tendências actuais de consumo continuarem, até 2030 a procura excederá a oferta actual acessível e confiável em 40 por cento. A Índia, vive uma dramática situação, com cento e cinquenta milhões de pessoas a viverem aquém do alcance das infra-estruturas de água potável existente. A “Piramal Sarvajal” é uma empresa social, criada pela “Fundação Piramal”, em 2008, localizada em Gujarat, orientada por missões que projecta e implementa soluções inovadoras para a criação do acesso económico a água potável em áreas carentes e está na vanguarda do desenvolvimento de tecnologias e práticas de negócios no sector de água potável segura, projectadas para tornar um modelo puramente baseado no mercado, sustentável tanto em condições de implantação rurais quanto urbanas, A“Piramal Sarvajal” combina tecnologias antigas e novas e engenharia financeira para fornecer água limpa com eficiência. As unidades de purificação de água osmose reversa com lâmpada UV estão no centro do sistema da empresa que associa essas tecnologias convencionais a monitoramento remoto, baseado em nuvem que fornece dados de desempenho do sistema em tempo real, e máquinas de venda automática que fornecem água com o cartão pré-pago. As pessoas podem comprar água nas caixas electrónicas de água, e a empresa também abastece hospitais e outras instituições em assentamentos urbanos por meio de micro-redes aquáticas. A empresa depende de um modelo de franquia, trabalhando com empreendedores aos quais fornece formação, equipamentos de filtragem e outros recursos. Essa forma de engenharia financeira traz substancialmente mais capital para a P&D e para operações do que qualquer um dos empreendedores poderia ter adquirido. Actualmente, cerca de cento e cinquenta franqueados venderam mais de duzentos milhões de litros de água potável em seis Estados indianos. A “Piramal Sarvajal” aplica uma solução eficiente de distribuição de recursos para atender a uma necessidade não satisfeita, economizando dinheiro de governos e pessoas (a compra de caixas electrónicas de água é menos dispendiosa do que a purificação de água em casa) e a eliminação do desperdício resultante de filtração individual ou distribuição em larga escala. A empresa mudou de uma abordagem do status quo d primeiro quadrante para uma solução do quarto quadrante de alta tecnologia e financeiramente projectada para o fornecimento de água rural e urbana fora da rede. A uma escala muito maior, a “General Electric” também fornece soluções do quarto quadrante. Além de equipamentos como bombas e filtros, a “GE Intelligent Platforms” vende serviços que colectam e analisam dados de componentes de infra-estrutura hídrica. No passado, os operadores de equipamentos tinham pouca informação sobre como os componentes de um sistema interagiam. A falta de visibilidade dos padrões de procura, “stocks” em reservatórios ou tanques e questões de desempenho como a eficiência e vazamentos da bomba significaram que a extracção, o tratamento e a entrega de água eram ineficientes. A alta procura por soluções de água limpa, electricidade e trânsito é certa em qualquer cidade em crescimento nos mercados emergentes. Muitos dos critérios naturais para a segmentação de mercados que se aplicam a economias desenvolvidas e cidades existentes também se aplicam a novas cidades, com características como tamanho e crescimento da população, rendimento per capita, maturidade da restante da cadeia de fornecimento e presença de concorrentes. Mas, obviamente, as circunstâncias nessas cidades são imensamente variadas e particulares às situações políticas e económicas e por vezes caóticas. Uma nova tecnologia de água ou modelo de negócio que é bem-sucedido em um mercado pode falhar em outro por razões que têm pouco a ver com a procura e muito com as características do mercado, recursos e capacidades do participante.
João Luz VozesInimputável [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]evar é um fenómeno raro em Macau, ainda assim, não faltam flocos de neve no território. Frágeis, quebradiços e suspensos no ar. Sou um desses fenómenos que extravasa da meteorologia para o campo emotivo. Sou sensível como uma pluma, leve como o hélio, sou a soma de todas as sensibilidades num povo que se quer forte, implacável e talentoso. O meu núcleo é feito de delicadezas e nervos que concentram todas as susceptibilidades de uma personalidade que sofre de raquitismo. A última coisa que quero é sentir-me responsável pelo quer que seja, muito menos pelas minhas próprias acções ou palavras. Nunca ninguém me disse que a idade adulta implicaria este grau de responsabilização e que teria de dar a cara pelas minhas convicções, nunca me explicaram que a minha voz tinha como efeito secundário a exposição do meu corpo nu perante os olhares reprovadores da aldeia. Em privado, mostro-me interventivo, corajoso, ostento uma estoica frustração de quem não consegue fazer mais pelo bem-comum. Quando tenho oportunidade para fazer algo, fico com as orelhas quentes, sobe-me um rubor à cara e lembro-me das palavras proféticas da minha santa mãe: “filho, tu vê lá no que é que te metes”. A tacanhez tímida que me impede de participar na iluminação de um assunto é acompanhada por uma vociferante crítica de quem procura escalpelizar os problemas do quotidiano. Nas redes sociais sou um justiceiro, disparo teorias de conspiração e calúnias aberrantes aos quatro cibernéticos ventos. Nesse momento, atrás do aparente anonimato do verbo escrito, sem ouvir a minha própria voz, atiro ao ar todas as conjurações que me ocorrem. Depois disso, falo em surdina, de cabeça baixa, porque nunca se sabe quem pode ouvir e denunciar-me na paróquia. Tenho tanta inveja das facilidades que o Governo tem em esquivar-se a questões. Basta-lhes atirar um rol de clichés e está feito, nunca ninguém irá perguntar mais nada ou, se o fizer, reitera-se o vazio até à náusea. Quem ocupa a cadeira do poder, mesmo que esteja perante algo visivelmente ilegal, profere a ave-maria jurídica “no rigoroso respeito da lei” e segue para o bingo da absolvição. Mas eles funcionam noutro nível, os seus flocos de neve derretem de outra forma. Também camuflam debilidades com força bruta, mas têm as costas bem mais quentes que eu. A eles falta-lhes a rijeza da representatividade popular, o que lhes dá um temor de morte da população que governam. A mim, falta-me a representatividade pessoal, não sou o embaixador de mim, sou um ser perdido sem ligação a nada, a não ser os meus mais profundos receios. Se baixo a guarda e falo honestamente durante um curto período de tempo volto atrás, nego o que disse ou tento voltar atrás na minha exposição e rastejar de regresso ao lugar escuro onde se sinto seguro. Outra das minhas preocupações são as minhas pequenas coutadas. Acho sempre que tudo está mal nesta terra, ou na minha originária, ou na Lua. Mas com os meus interesses está sempre tudo bem e que ninguém ouse sequer iluminar o que se passa nos recantos das minhas predilecções, ou escrutinar as minhas coutadas. Tenho responsabilidades na minha associação, mas não me responsabilizo por nada. Tenho assento numa entidade de interesse público, mas o que se passa lá não é do interesse do público. A minha forma de resolver os problemas é fingir que eles não existem, é mantê-los fechados a marinar no mofo. Se algo acontecer, negarei a realidade com todas as forças até ela me rebentar na cara. Aí escondo-me atrás do “sem comentários”, da “altura inapropriada”, “do respeito pelos envolvidos”. Estes são os meus álibis argumentativos, tão vazios como os lugares-comuns dos que me governam. E agora é que estou a reparar que esta confissão está repleta de palavras comprometedoras, sinto-me exposto, a torrar ao sol como um condenado a trabalhos forçados. Retiro tudo o que disse, estas não são as minhas palavras, sinto-me profundamente agastado com a ignomínia do abuso das minhas posições depois de as ter proferido. Nunca disse nada, reservo-me ao direito de estar em silêncio, no meu canto, à espera do colo reparador da mamã. Não assumo responsabilidade por mim, mas tudo o que me rodeia é uma pouca vergonha e um escândalo de todo o tamanho. Olhem para ali, txiiii que vergonha. Fui.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesDe quem depende a segurança do Estado? [dropcap style=’circle’] O [/dropcap] Chefe do Executivo deslocou-se à Assembleia Legislativa para responder a algumas questões dos deputados. A maioria dos 33 representantes, à excepção de Ho Iat Seng (Presidente da Assembleia), de Cheung Lup Kwan e do deputado suspenso Sulu Sou, colocaram questões de circunstância. Foram muitos poucos os que levantaram questões significativas, pelo que daqui não saiu nada que valha a pena ser discutido. Parece-me mais interessante dedicarmos algum tempo a analisar o Artigo 23 da Lei Básica. Os meus leitores provavelmente saberão que o Governo de Macau aprovou legislação para implementar o Artigo 23 da Lei Básica, em 2009, e que a “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” foi então promulgada. Embora, ao longo dos 19 anos que decorreram desde o regresso à soberania chinesa não tenha havido em Macau nada que pusesse em risco a segurança do Estado, 9 anos após esta data foi introduzida legislação, que, de certa forma, pretendia concluir a missão da recuperação do território para a China. No entanto, obediência absoluta não quer dizer lealdade absoluta. O Governo de Macau vai introduzir uma série de leis e de regulamentos associados à “Lei relativa à Defesa da Segurança do Estado” e irá criar os respectivos departamentos estatais. Macau confia na indústria do jogo para obter enormes dividendos e a prosperidade da sua economia está dependente dos turistas da China continental. A voz dos dissidentes locais mal é ouvida. O Governo de Macau dá todos os anos dinheiro aos seus residentes, o que provoca que se habituem a viver um estilo de vida “patriótico e apaixonado por Macau”. Os novos imigrantes veem Macau como um paraíso, e mais de 100.000 trabalhadores estrangeiros chegam aqui em busca de riqueza e não de “revoluções”. Acredita-se que esta cidade é um dos lugares mais seguros de toda a China. Aprovar legislação relacionada com o Artigo 23 da Lei Básica é uma necessidade política. Mas qual é o objectivo de introduzir leis e regulamentos paralelos? Será para mostrar à população de Hong Kong que, futuramente, o seu sistema virá a ser igual ao de Macau, em termos de segurança do Estado? Se for este o caso, temo que a visita de Qiao Xiaoyang a Hong Kong para explicar e promover a Lei Básica, e os seus esforços para abrir o caminho para a aprovação de legislação de acordo com o Artigo 23, tenham sido feitos em vão. E tudo isto porque Macau é absolutamente obediente e é uma cidade sem crises. Hong Kong e Taiwan não têm qualquer inveja de Macau no que respeita ao papel que desempenha nesta matéria. Uma boa governação é o melhor garante da segurança do Estado, muito mais do que leis e regulamentos restritivos. Na História da China houve diversas dinastias muito fortes. Uma delas foi a Dinastia Qin, a quarta em termos de poderio militar, apenas precedida pelas Dinastias Yuan, Tang e Han. Contava com uma população de 25 milhões de almas, e os seus exércitos tinham um milhão e meio de soldados, cerca de 6 por cento da população, a maior percentagem de todas as dinastias. Então porque terá a Dinastia Qin durado apenas 15 anos, apesar de todo o poderio militar? Para solidificar a sua estadia no poder, os Qin não promulgaram leis para garantir a segurança do Estado, em vez disso implementaram legislação do foro criminal muito restritiva, para eliminar os factores que potencialmente pusessem em risco essa segurança. Por exemplo, promoveram a queima de livros e o sepultamento de intelectuais para eliminar as dissidências e demoliram as muralhas das cidades para vigiarem melhor os seus moradores. Além disso, todos os que tivessem conhecimento de uma infracção cometida por outrém e não o denunciassem, eram considerados tão culpados como o infractor. As armas pessoais foram apreendidas em todo o País e transformadas em 12 esculturas metálicas. Resumindo, o primeiro Imperador da Dinastia Qin fez tudo o que pôde para passar a coroa de geração em geração. Infelizmente, para ele, o resultado não foi o esperado. Pouco tempo depois da sua morte, o novo Imperador Qin foi destronado. Várias décadas após do fim da Dinastia Qin, um intelectual da Dinastia Han passou pelas ruínas da Dinastia Qin e escreveu um artigo onde analisava a queda desta linhagem. Esta família real não se extinguiu por não ter promulgado leis de segurança do Estado e leis e regulamentos paralelos a elas associados, caiu sim, por não ter governado com “benevolência e com justiça”. Se o intelectual Han tivesse nascido décadas antes e o primeiro Imperador Qin tivesse tido hipótese de o ouvir, poderia ser que tivesse ordenado aos seus descendentes que governassem o País com benevolência e com justiça. Nesse caso, a governação da China dos nossos dias poderia ser a continuação da administração da Dinastia Qin. No entanto, não existem “ses” na História, apenas relações ocasionais.
Leocardo VozesO meu jardim [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão vou falar da entrada de Portugal no Festival da Eurovisão este ano, “O Jardim”. Se bem que podia muito bem, e já agora vamos apoiar a nossa canção, cum camano, nem que seja abstendo-se de dizer mal. Adiante. Do que queria falar era do “jardim” onde moro, o meu edifício. Ao contrário do que acontece com a generalidade dos prédios de habitação em Portugal, que têm um número de polícia numa qualquer rua, avenida, praceta ou pátio, em Macau estes têm além do número um nome, e é pelo nome que são mais conhecidos. O meu chama-se “Jardim Real”, e com toda a certeza que muitos dos leitores vivem também num “jardim” qualquer, apesar de às vezes não se ver no raio do prédio uma única flor. Ás vezes há uma planta no rés-do-chão, junto ao condomínio. Isto explica-se facilmente pelo facto da designação para “edifício” e “jardim” serem a mesma: “fa yuen” (花園) . Isto tem ainda outra história, mas fica para outra altura. O meu “jardim” (portanto…) tem vinte andares, e vivo num dos mais altos. Não vou aqui dizer qual, porque parece mal, e ainda pensam que estou a convidar para uma visita domiciliária, mas todos os meus vizinhos sabem. Ser o único português a viver num destes “jardins” é o mesmo que ser um elefante cor-de-rosa. Toda a gente sabe onde moro, a composição de todo o meu agregado familiar, e chego mesmo a ter quem no elevador carregue no botão do meu andar, sem que eu lhe peça nada. A mais engraçada é a senhora do condomínio, que por vezes quando chego diz-me “a tua mulher já está em casa”. Um dia destes o meu filho chegou perto da hora da almoço, e a senhora informou-o prontamente que “o teu pai saiu há cinco minutos”. E garanto que não pago extra de condomínio por este serviço de secretariado! Adorável é também quando ela nos vê a sair carregados de malas e pergunta “ah, vão viajar?”. Que perspicácia! Repito: é uma querida. Do que é me que estou a queixar, se tenho tratamento VIP? Deveria eu pavonear-me deste estatuto de ave rara, ou de último moicano? E será que sinto…tchan tchan tchan…”racismo”?!?! Não, nada disso, pode-se dizer que é um “choque cultural”, pronto. E é mesmo, apesar de também se poder dissertar muito sobre este assunto. Fica igualmente para outra altura. Escusado será dizer é que não me resta senão ser discreto. Sim, tenho a certeza que se acontecer alguma coisa cá em casa, toda a gente fica a saber que foi na jaula do elefante rosa. Foi por esse motivo também que não exagerei nos festejos do título do FC Porto no último fim-de-semana, que marcou o regresso à normalidade e repôs alguma justiça no atribulado futebol português. Muitos tentam, mas só um é penta. Pois, mas então a conclusão. Ah sim, é uma maravilha viver aqui neste jardim sem flores, junto da gruta de Ali-Babá.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesQuando o sexo gosta dele próprio [dropcap style=’circle’] N [/dropcap] o início dos anos 80, num enorme rancho no estado de Oregon (EUA), instalou-se ao que na altura se desconfiava ser uma ‘seita’ religiosa liderada por Bhagwan Shree Rajneesh. Esta é a premissa inicial de uma série-documentário lançada há pouco tempo ‘Wild Wild Country’ – que recomendo vivamente. Esta narrativa foca-se, particularmente, no desenvolvimento das tensões e hostilidades entre os moradores locais e a recém-criada cidade de devotos ao Bhagwan. As ideias deste guru eram… diferentes, sendo que das suas propostas filosóficas e espirituais mais marcantes eram as do sexo livre, e do amor livre – e isso, não caiu nada bem aos residentes da América rural, nem ao Hinduismo Ortodoxo do seu país de origem. Parece que nos seus tempos na Índia, Bhagwan era descrito nos média como o ‘guru do sexo’. Quando o sexo gosta dele próprio, quando é tido como livre, descomprometido, aceitante das condições humanas. Quando simplesmente não é censurado pela nossa tendência (neste caso, ocidental) do legado judaico-cristão, parece que é natural haver uma espécie de representação maléfica acerca dele. Neste documentário era muito clara esta representação de que ‘a comunidade de tarados – que estão a fazê-lo a toda a hora’ era tida como demoníaca. E claro, estamos a pensar nos anos 80, uma altura particular em que a SIDA ainda era uma ameaça misteriosa de que se sabia pouco, quando a revolução sexual dos anos 60 já tinha poucos seguidores e quando o sexo ainda tinha uns passos de emancipação por caminhar. O Bhagwan, consciente da repressão sexual, bem tentava explicar que o sexo estava no estado em que estava porque tradições religiosas assim o trabalharam. O guru, que teve uma vida e influência discutíveis, considerava-se um ‘playboy espiritual’ que pregava a diversão do sexo, sem medos nem tabus – até dava umas dicas, se fosse preciso. E entre 99 Rolls Royce’s, declarar-se o líder espiritual dos ricos, e não dos pobres, detentor de relógios repletos de diamantes, ele até disse umas coisas acertadas, no que tocava ao sexo, pelo menos. Mas o sexo não gosta de si próprio ainda hoje, e isso não é novidade. A procura espiritual contemporânea continua a ser relevante, dentro ou fora das estruturas e instituições religiosas. Mas como é que as reflexões do espírito e da mente transformam o sexo? Enquanto se julgar o sexo como uma necessidade ‘instintiva’, ‘básica’ ou simplesmente ‘biológica’, as micro-agressões ao sexo continuarão a ser diárias. Aquilo que não é dito, mas que é sentido nas expressões subtis de desaprovação informam-nos do estado da arte sexual – que digo-vos, não é fácil de avaliar. O sexo é constantemente manipulado na esfera pública para comercializar produtos, materiais ou imateriais. Por isso, parece que vendemos uma sociedade contemporânea com imenso sexo, mas que ainda se choca ao dar de caras com um guru que desapareceu desta vida terrena há quase 30 anos. O sexo para começar a gostar dele próprio teria que assistir a uma revolução. Não é a revolução do sexo – não – essa seria simples de mais e pouco sustentável. Também não seria somente espiritual, o espírito vive demasiado em isolamento e pouco ou nada partilha com as vidas globais, ou com os movimentos globais. A revolução é de estruturas, de políticas, de economias, de espíritos e mentes. A revolução tem que ser a todos os níveis. A forma como nós chegámos a um sexo que produz desdém é algo que ainda me surpreende – eu entendo bem como é que aconteceu, só não percebo porque é que aconteceu – por isso não há nada como tentativas (nem que sejam somente teóricas) para retroceder este processo. A pergunta que merece 1 milhão de patacas é: como é que tiramos este peso terrível, do sexo como pecado, das nossas costas?
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesAeroporto ou hotel? [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á pouco tempo atrás, o jornal de Hong Kong “Oriental Daily” publicou um artigo que alertava para o facto de o aeroporto da cidade estar a ser usado por turistas e pessoas sem abrigo para pernoitar. A notícia centrava-se inicialmente em dois turistas. O primeiro, vindo da Holanda, era um homem de negócios. Este homem afirmava que o aeroporto é um local seguro e com diversas vantagens. É possível ter acesso rápido à internet e passa-se a noite sossegado. Além disso é uma forma grátis de ficar alojado. É o local ideal para ficar. O holandês disse ao jornalista que, desta vez, planeava ficar em Hong Kong por um mês. Já tem vindo várias vezes e, na maior parte delas, fica alojado no aeroporto. Como agora vem em negócios, só conta ficar no aeroporto por três dias. O nosso amigo já criou aqui uma rotina. De manhã, ao pequeno-almoço, come pão com marmelada e, à tarde, delicia-se com uma cervejinha. Já é intímo do pessoal do aeroporto e as senhoras da limpeza cumprimentam-no sempre. O outro turista, que se chama John, é um inglês com mais de 80 anos. Quando foi entrevistado empurrava um carrinho com sete malas, enaquanto deambuleava pelas instalações. Afirmou ter sido professor de química durante vinte cinco anos. Há cinco anos atrás reformou-se e também se divorciou. Adora viajar pelo mundo fora. Contou que já tinha vindo a Hong mais de vinte vezes. Costuma ficar no aeroporto quase sempre. Desta vez já lá está “acampado” há vários meses. Espera regressar a Inglaterra em Agosto. John revelou que, noutras ocasiões, já ficou instalado no Aeroporto de Heathrow, Londres, e também no Aeroporto de Sydney. No entanto, neste ultimo todas as noites a polícia fazia a verificação dos bilhetes. Não era permitido passar a noite nas instalações. O Aeroporto de Hong Kong permite muita liberdade. Não existem restrições. Chega a encontrar-se aqui com os amigos. De vez em quando, empurrava o carrinho com as malas até às cabines telefónicas par ver se alguém se esqueceu de uma moeda na ranhura, embora afirme que tem dinheiro que chegue. Para além dos turistas, existem cerca de vinte sem-abrigo a dormir no aeroporto. Têm todos um entendimento tácito. Cada um deles ocupa um banco, que lhe servirá de cama. Alguns deles estão aqui como em casa. Trazem chinelos, escova de dentes e toalhas. Os sem-abrigo concentram-se no Terminal 2 do aeroporto. Todas as noites uma fila de bancos vira camarata. Às 6.00h da manhã, levantam-se e vão para a casa de banho tratar da higiene. Os sem-abrigo são cada vez mais jovens. Um homem de cerca de 30 transporta os chinelos, o pijama, a louça, uma couve e noodles instantâneos num carrinho de bagagens. De dia, vai até ao 7-11 cozinhar os noodles e carregar o telemóvel. Deita-se às 10.00 da noite. O aeroporto tornou-se um paraíso para quem não tem casa. Os seguranças já estão habituados à situação. De manhã, as patrulhas diurnas cumprimentam-nos um a um, de forma amigável. Entretanto, o jornalista dirige-se a um homem de meia idade. Depois de acordar, este homem vai até à casa de banho lavar os dentes e a cara. A seguir, após mudar de roupa, dirige-se ao restaurante. Depois do pequeno-almoço, sai apressadamente e vai trabalhar. Alguns sem-abrigo trabalham. Dormem no aeroporto por ser seguro, limpo e climatizado. É muito melhor do que quartos pequenos, sufocantes e caros. Não é difícil compreender os motivos desta escolha. Devido aos elevados preços das casas e à falta de segurança das áreas urbanas, esta parece ser uma boa opção. Eles não se importam de pagar transportes caros para ir e vir do aeroporto, é melhor do que arrendarem uma câmara mortuária. No entanto, com o afluxo cada vez maior de pessoas sem tecto ao aeroporto, vão necessariamente surgir problemas de ordem pública e de higiene. Podem criar-se conflitos potenciais entre eles o pessoal do aeroporto e alguns viajantes mais impressionáveis. Os sem-abrigo também vão afectar a imagem do aeroporto internacional de Hong Kong. O Governo deveria pensar numa estratégia para solucionar este problema. O porta-voz do aeroporto declarou que os seguranças e a polícia patrulham frequentemente os terminais. Quando se deparam com estas situações são normalmente compreensivos. Costumam notificar a segurança social para que seja feito o acompanhamentos destes casos, ou, se necessário, é pedida a intervenção dos agentes. Antigamente, a Autoridade do Aeroporto recebia queixas sobre a estadia nas instalações de pessoas nestas condições. Também costumava ter reuniões com a polícia para discutir e seguir estes casos. De acordo com a secção 17 (1) do Decreto-Lei para a Autoridade do Aeroporto, Cap. 483A, “ninguém poderá ter comportamentos que perturbem de alguma forma as outras pessoas, na área sob esta legislação”. Processar os sem-abrigo não terá qualquer efeito prático e não vai resolver o problema. Em última análise, este pessoas escolhem o aeroporto para pernoitar porque as rendas são demasiado caras. Se este problema não se resolver, cada vez mais gente sem casa vai escolher o aeroporto para se abrigar.
Olavo Rasquinho VozesUm dia o lobo virá… (Texto a propósito do tufão Hato, do Dr. Fong Soi Kun e da sanção sobre ele decidida) [vc_row][vc_column][vc_column_text] [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo subdirector e director dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau (SMG), no período 1996-1998, ainda com Macau sob administração portuguesa, tive a oportunidade de conhecer o Dr. Fong Soi Kun, que nessa altura desempenhava as funções de diretor adjunto dos SMG. Mais tarde, de Fevereiro de 2007 a Abril de 2015, durante as minhas funções como Secretário do ESCAP/WMO Typhoon Committee, Fong foi designado o elo de ligação entre o Secretariado do Comité e o governo da RAEM. Tive então a oportunidade de testemunhar a contribuição que Fong teve para o prestígio de Macau na área da Meteorologia junto dos países membros do Comité, tendo sido durante 2007 presidente desta organização intergovernamental. Devido a este prestígio, Macau foi local de importantes eventos internacionais nas áreas da Meteorologia, Hidrologia e Redução de Riscos de Desastres, as três componentes do Comité. Também se deveu a Fong Soi Kun, coadjuvado pelo então subdirector, António Viseu, a transferência do Secretariado do Comité de Manila para Macau, na sequência de decisão tomada por escrutínio secreto entre os membros desta organização intergovernamental, tendo Macau sido seleccionado pelas condições vantajosas oferecidas pelo Governo da RAEM, com o apoio da China. No que se refere às acusações de que Fong é alvo devido às consequências do tufão Hato, é de frisar que as previsões meteorológicas, embora baseadas nas ciências Física e Matemática, estão sempre imbuídas de um certo grau de incerteza, o que motiva decisões que posteriormente poderão ser consideradas erradas. A incerteza é tanto maior quanto mais um determinado fenómeno se comporta de maneira anormal. O não levantamento mais cedo dos sinais 8, 9 e 10, no caso do tufão Hato, poderá ser justificados por essa incerteza. Entre as várias acções em que Fong Soi Kun colaborou como Diretor dos SMG, destaco um evento promovido em 8 de Junho de 2010 pelo Dr. Jorge Morbey, professor da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, que consistiu num painel sobre “Riscos e Proteção contra Catástrofes Naturais em Macau: o tufão de 22/23 de Setembro de 1874”, que decorreu em Macau no Clube C & C, nos escritórios do Dr. Rui Cunha. Os organizadores convidaram todas as entidades de Macau relacionadas com questões respeitantes a desastres naturais: Capitania dos Portos; Comité de Tufões; Corpo de Bombeiros; Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro; Direcção dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos; Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes; Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental, Gabinete para o Desenvolvimento de Infraestruturas; Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais; Laboratório de Engenharia Civil de Macau; Protecção Civil. Destas entidades, apenas três estiveram disponíveis para participar na discussão: os SMG (representados por Fong e a meteorologista Chrystal Chang), o Comité dos Tufões (representado por mim) e o Laboratório de Engenharia Civil de Macau (representado pelo saudoso Eng. Henrique Novais Ferreira e Eng. Tiago Pereira). Uma palestra muito bem concebida sobre o tufão de Setembro de 1874, que recriava a sua formação, aproximação e consequências, foi apresentada pelos SMG. Durante a discussão foram lançadas dúvidas se a RAEM estaria preparada para enfrentar as consequências de um tufão semelhante. A resposta foi dada em 2017 com a passagem do tufão Hato, de menor intensidade. Alguns dirigentes que foram convidados e não compareceram a esse evento ocupam, actualmente, altos cargos na administração da RAEM. Apesar de não ser raro, os responsáveis dos Serviços Meteorológicos serem chamados pelos respectivos governos ou assembleias legislativas a aprestarem esclarecimentos sobre previsões relacionadas com eventos meteorológicos gravosos, numa tentativa de dar resposta às pressões pública e mediática, foi com grande surpresa que tomei conhecimento da pesada sanção decidida pelo governo de Macau em relação ao ex-diretor dos SMG, baseada em relatórios elaborados a quente por elementos alheios à meteorologia. É estranho não ter sido tomado em consideração o relatório de uma equipa de especialistas que incluía meteorologistas, nomeada por entidades governamentais da China (Comissão para a Redução de Desastres, Ministério para os Assuntos Civis e o Gabinete para Assuntos de Hong Kong e Macau), no qual está expresso que o tufão Hato constituiu um fenómeno com evolução difícil de prever, tendo sido caracterizado por extrema anormalidade. A expressão “extrema anormalidade”, usada nesse relatório, reflecte bem a dificuldade da sua previsão. Não se pode prever eficientemente algo de anormal. Do conhecimento que tenho do Dr. Fong, trata-se de uma pessoa muito discreta mas muito racional, que desempenhou as suas funções com competência e representou condignamente a RAEM em diversos eventos de Meteorologia e de Geofísica, contribuindo para o prestígio de Macau nestas áreas. Teve um grande azar: no fim da sua carreira foi alvo de graves acusações devido a um fenómeno que se comportou de maneira anormal, na medida em que, contrariamente ao que é estatisticamente comprovado, o Hato intensificou ao aproximar-se de terra. Também o mínimo da pressão atmosférica coincidiu com a maré alta, o que implicou a subida do nível do mar junto à costa. A pesada sanção, que mais parece um assassinato de carácter, constitui uma atitude muito grave de quem decidiu, na medida em cria um clima de medo sobre os que futuramente vão decidir sobre içar ou não um determinado sinal de tufão ou de storm surge. No futuro, em situações de dúvida, é altamente provável que sejam emitidos avisos com maior frequência, o que vai implicar situações de “aí vem o lobo…” tantas vezes repetidas que criarão no público o descrédito na informação meteorológica. O pior é que, um dia, o lobo certamente virá…[/vc_column_text][vc_cta h2=”Post Scriptum” h2_font_container=”font_size:28px|color:%23e83535″ h2_google_fonts=”font_family:Oswald%3A300%2Cregular%2C700|font_style:300%20light%20regular%3A300%3Anormal” shape=”square” style=”flat” use_custom_fonts_h2=”true”] Depois de ter escrito o texto acima, tomei conhecimento de um artigo científico de especialistas do Tokyo Institute of Technology (Hiroshi Takagi, Yi Xiong e Fumitaka Furukawa) intitulado “Track analysis and storm surge investigation of 2017 Typhoon Hato: were the warning signals issued in Macau and Hong Kong timed appropriately?” em que se menciona “A nossa análise do padrão da tempestade sugere que as decisões das duas regiões relativas à emissão de sinais podem ser consideradas razoáveis ou, pelo menos, não podem ser simplesmente responsabilizadas, dada o rápido movimento e intensificação do Hato e os riscos económicos associados em jogo.” (Our analysis of the storm’s pattern suggests that both regions’ decisions regarding signal issuance could be considered reasonable or at least cannot be simply blamed, given the rapid motion and intensification of Hato and the associated economic risks at stake). [/vc_cta][/vc_column][/vc_row]
Tiago Bonucci Pereira VozesDa Política “Going Out” à Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” (OBOR ou BRI) pode em certa medida ser encarada como a evolução natural da política “Going Out” promovida por Jiang Zemin em 1999, política essa centrada na internacionalização da economia chinesa, traduzida pela transição da República Popular da China (RPC) de país receptor para país promotor de investimento directo estrangeiro (IDE). A estratégia foi progressivamente consolidada em 2001 com a admissão da China na Organização Mundial do Comércio e o anúncio, em 2004, pela Comissão Nacional para Reformas e Desenvolvimento da RPC (NDRC) e pelo China Eximbank de medidas de apoio ao investimento em 4 sectores específicos: (i) recursos naturais e bens primários relativamente aos quais a China é deficitária; (ii) investimento em sectores exportadores ou que envolvam novas tecnologias e equipamentos; (iii) colaborações com entidades estrangeiras em projectos de investigação e desenvolvimento (I&D) e novas tecnologias, gestão e formação de quadros; (iv) fusões e aquisições com vista ao aumento progressivo da competitividade internacional de firmas nacionais e à expansão dos mercados de produção e vendas. O plano conjuga, portanto, a transformação progressiva do tecido económico e industrial Chinês para sectores de valor acrescentado com a internacionalização de empresas e sectores cujo mercado interno caminha para a saturação. Com efeito, a China apresenta actualmente excesso de capacidade em sectores críticos, como a construção e indústrias associadas, bem como no sector energético. Como tal, a sustentabilidade dessas empresas exige uma política expansionista em busca de mercados em território estrangeiro. Os dois sectores acima referidos são porventura os que têm maior visibilidade. A produção de energia a carvão constitui um exemplo de conjugação de várias políticas: Pequim, a partir de 2014, reintroduziu taxas sobre a importação de diversas qualidades de carvão e proibiu a compra de carvão de baixa qualidade. Medidas estas que surgem na sequência da implementação de políticas de combate à poluição, bem como de protecção dos produtores chineses. Por outro lado, e já antes do anúncio da iniciativa BRI, têm-se multiplicado a construção de centrais térmicas a carvão por empresas chinesas no estrangeiro. No que respeita ao IDE, foi feita uma descrição, num artigo anterior, do crescente investimento chinês em África, num padrão onde se constata a progressiva transferência de indústria transformadora para regiões com menores custos laborais, funcionando em simultâneo como uma forma de criação de emprego e de desenvolvimento económico e social. Padrão similar observa-se nos países do Sul da Ásia. Mas o cenário muda radicalmente quando olhamos para o continente europeu. A Europa é a principal destinatária do IDE chinês (29 por cento do total), estando a aposta centrada nos sectores de energia, finança, tecnologia e infraestruturas. O sector imobiliário perdeu importância nos últimos anos em virtude de um maior controlo administrativo chinês sobre certos tipos de transacções, como forma de travar a fuga de capital. No entanto, o incentivo à diversificação para firmas chinesas é inegável. As restrições sobre o investimento em imobiliário, de resto, resultaram num redireccionamento do investimento chinês para outros sectores, também em face da desaceleração do mercado doméstico. Conhecemos bem os exemplos portugueses, como o investimento da China Three Gorges na EDP e a aquisição pela Fosun da Caixa Seguros. Todavia, Portugal, com um total de investimentos entre 2000 e 2017 de 6 mil milhões de euros, é o sétimo destinatário europeu do IDE chinês. O pódio pertence ao Reino Unido (42 mil milhões de euros), Alemanha (20.6 mil milhões de euros) e Itália (13.7 mil milhões de euros). Exemplos recentes de investimentos são a aquisição pela Midea da empresa alemã de robótica KUKA e a compra por um consórcio chinês de 49 por cento da operadora de centro de dados do Reino Unido Global Switch. A aposta chinesa em sectores de valor acrescentado poderá ser associada ao plano “Made in China 2025”, um masterplan anunciado em 2015 e que tem em vista a transformação da China nas próximas décadas numa superpotência industrial com base em tecnologias inovadoras. Contudo, esta aposta era já visível a partir de 2004. Os números assim o demonstram: investimento chinês no estrangeiro disparou a partir sensivelmente de 2005, tendo o IDE na década seguinte tido uma média anual de crescimento de 30 por cento. O investimento chinês em Investigação & Desenvolvimento aumentou exponencialmente a partir da mesma data, correspondendo actualmente a 20 por cento do investimento mundial nesta área. Circunstâncias mais recentes (desaceleração económica; desenvolvimento económico e social; saturação de certos sectores) poderão ter ditado uma aceleração mais acentuada. Mas é nítido que esta aposta estava já na mente dos governantes chineses. Constata-se agora um crescente nervosismo na classe política europeia com as aquisições chinesas em sectores chave da sua economia, argumentando falta de reciprocidade na medida em que muitos investimentos são em sectores nos quais as empresas estrangeiras continuam a encontrar barreiras no acesso ao mercado chinês. Acresce que problemas políticos no seio da União Europeia, como os diferendos com os países do leste, são encarados como sendo agravados por acções como a iniciativa “16+1” entre a China e países da Europa Central de Leste, iniciativa esta que tem em vista a realização de projectos no âmbito do BRI. Que a liderança europeia esteja preocupada com o crescimento chinês e o impacto económico e político na Europa é normal. Estranha-se, no entanto, é que esta preocupação surja de forma tardia. Por outro lado, as preocupações têm mais a haver com problemas europeus do que propriamente com a China. A reciprocidade é possível através de negociações. E as deficiências institucionais europeias são um problema exclusivamente europeu. Percebe-se que existe uma sequência lógica na evolução do investimento externo chinês, num processo contínuo de aprendizagem e delineado com rigor e pragmatismo. Perante isto, como podemos interpretar a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”? Será tentador encará-la de forma cínica como nada mais do que um processo de etiquetagem e exercício de retórica sobre um projecto já em marcha, mas essa interpretação não corresponderia à verdade. Este tópico, porém, merece um artigo em separado.
Leocardo VozesA casa de papel de jornal [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stive um dia destes a seguir com atenção um pequeno debate nas redes sociais sobre o papel da imprensa em geral, e dos jornalistas em particular nos dias de hoje, na era da internet. Já sei que estou entrar por terrenos que não são os meus, e já agora aproveitava para deixar claro que não sou jornalista, nunca fui nem nunca tive a intenção de ser. Isto ainda parece fazer confusão a alguma boa gente, que assume (erradamente) que há quem queira ser uma “alternativa” ao jornalismo convencional. Essa alternativa não existe, e era exactamente esse o tópico mais quente da referida discussão: o ponto da situação actual do jornalismo. Falava-se ali de um conceito muito lato e um tanto abstracto: a emergência dos “social media”; os blogues, o Facebook, o Twitter, etc. como uma alternativa à imprensa tradicional. Qualquer pessoa que frequenta as redes sociais sabe que nem toda a informação ali divulgada é para ser levada a sério. Das copiosas quantidades de imagem e texto que nos passa à frente dos olhos no ecrã do desktop (cada vez menos) ou do telemóvel (cada vez mais) há de tudo, desde informação credível, normalmente a mais básica, até às famosas “fake news”, passando por publicidade encapotada de notícia. Encontrar algum trigo no meio de tanto joio torna-se por vezes um caso sério. A imprensa tradicional sofreu com o evento da internet da mesma forma que a correspondência postal sofreu com o aparecimento da e-mail. As pessoas deixaram simplesmente de comprar jornais – não deixaram, é verdade, mas a queda foi acentuada, e os jornais passaram a precisar de ir buscar outras formas de sobrevivência. Cada vez mais, e mais diversas. E começou a ser aqui que a opinião pública se começou a dividir, sobre o que é verdade e não é. Sobre quase toda a imprensa, quer a escrita, quer a audiovisual, recai um manto de suspeita; a que grupo pertence aquele determinado geral, quem são os accionistas de determinado canal de televisão, em suma, quem é quem e como pensa cada um, e se nos interessa o que eles nos têm para dizer. E é aqui que surgem os tais “social media”, a servirem malgas de desinformação quentinha, ao gosto de alguns, e repudiado por outros. Digamos que são a sopa de cação dos “mass media”. Há quem aprecie, e há quem não goste de vinagre. A situação piorou especialmente depois da crise dos refugiados da Guerra da Síria, que serve muito bem de exemplo para ilustrar um mal que vai muito para além disso. A referida crise foi acompanhada de imagens horrendas do conflito na Síria, ao mesmo tempo que amiúde saíam vídeos horríveis da autoria do ISIS, onde se viam decapitações e outros actos de barbárie. Por um lado houve quem se preocupasse com a possibilidade das atrocidades poderem vir a ter lugar no Ocidente, que ia recebendo os refugiados vindos do palco do conflito. Por outro lado alguns “gigantes adormecidos”, ora a extrema-direita, ora o racismo clássico recalcado, viram aqui uma oportunidade para usar o medo como forma de chegar a mais público, e tentar convencer o maior número de gente possível de que ocorrem mirabolantes conspirações contra o lado bom (?) da humanidade. O motivo dos primeiros é perfeitamente atendível, e os dos segundos é atroz, mas no meio de tanta contra-informação, “fake news” e tudo mais, a retórica confunde-se. É mesmo preciso ter cuidado naquilo que se acredita, ou fazer um exame de consciência, sobre o que é realmente humano, e o que é – e foi – comprovadamente abjecto. E onde entram os jornalistas propriamente ditos nesta história? Não entram, nem precisam de entrar. O papel deles é hoje mais importante que nunca. É ainda graças a eles, ora através das agências ou de alguma imprensa regional que ainda vamos sabendo a verdade. Alguma verdade, pelo menos. Os tais “social media” não existem, e se um dia vierem a existir, estão a ir pelo caminho errado. Eu não me acho invulnerável à falsa informação, e às vezes também deixo baixar a guarda e falha-me a atenção. Mas nunca é demais lembrar que também temos responsabilidades, e é conforme o que pensamos que é o melhor para nós e para os nossos que tomamos decisões. Convinha que de vez em quando também parássemos para pensar o que é melhor para todos.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA China e a inovação (II) “China’s innovative ability languished after the fourteenth century. Today, however, China is determined not only to catch up with the West, but to re-establish itself at the forefront of technological innovation. Two forces are driving the surge of Chinese innovation. One is based on need-China’s pressing need to solve the myriad domestic problems that rapid economic development has created. The other is based on a new strategic direction for Chinese corporations: to enter high-value, high-margin sectors that are internationally competitive and where they will be matching global corporations, innovation for innovation. Much of this recent drive is through mergers with and acquisitions of successful Western firms that were made to gain brands, technology, and markets” “China’s Next Strategic Advantage: From Imitation to Innovation” – George S. Yip and Bruce McKern [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sucesso do sítio de leilões, “Taobao”, acabou por forçar o “eBay” a sair da China. Se analisarmos o “Baidu”, líder de mecanismos de busca chinês, que cresceu maciçamente no mercado doméstico com uma oferta que não fractura nenhum campo tecnológico e não desafia a ortodoxia política e adaptou o seu produto, organização e processos às necessidades da manta de retalhos chinesa dos mercados regionais. O “Baidu” tem uma procura de 80 por cento, tendo-se tornado no maior motor de busca do mundo. Assim como o Japão alcançou os Estados Unidos tecnologicamente em muitas indústrias durante as três décadas após a II Guerra Mundial, a China está a fazer o mesmo através de inovações. Adaptar a tecnologia tornou-se uma prática padrão e altamente lucrativa. Obter essa tecnologia por meio de aquisições, no entanto, é uma nova tendência importante. A escrita tem sido volumosa sobre a actual onda de investimentos directos estrangeiros no exterior, a maioria dos quais se concentrou em recursos de matérias-primas, particularmente na África e na América Latina. A mudança para os Estados Unidos e Europa pela tecnologia, no entanto, não é menos significativa. As empresas chinesas cansadas de pagar taxas de licenciamento, marcas e patentes, têm cada vez mais, e com o incentivo do governo, tentado comprar, em vez de alugar, capacidades revolucionárias de inovação por meio da aquisição de tecnologia e talento. Se observarmos o caso da “Huawei” que é retratada como a maior empresa da qual nunca se ouviu falar, que engloba centros de P&D em todo o mundo, e as controvérsias geradas sobre as suas tentativas de aquisição nos Estados Unidos. A “Haier” é uma das principais fabricantes chinesas de electrodomésticos e electroelectrónicos, possui uma rede similarmente ampla de centros globais de projecto e P&D nos Estados Unidos, Japão, Coreia, Itália, Holanda e Alemanha. Para os fabricantes de automóveis chineses, Turim é o lugar para se localizar, com os centros de P&D operacionais em Zhuhai, Changchun e Changan. As correntes culturais anti-ocidentais podem ser fortes domésticamente, mas empresas chinesas privadas que operam no exterior adoptaram talentos seniores locais. A “Huawei” tem contratado os melhores executivos estrangeiros americanos e ingleses para liderar os esforços de P&D nos Estados Unidos e supervisionar todo o orçamento e operações. Todos estão subordinados ao fundador e presidente da “Huawei”, um ex-oficial militar chinês. A fabricante de turbinas “Goldwind”, de igual forma contratou executivos de créditos firmados no campo de energia limpa, para representar a empresa nas suas operações nos Estados Unidos. A fabricante de máquinas “Sany”, cujos principais concorrentes internacionais incluem a “Caterpillar” e a “Komatsu”, tentou inicialmente ter sucesso nos mercados europeu e americano, contando com talentos e tecnologia locais. Mas alguns passos errados encorajaram a empresa a estabelecer centros de P&D intimamente ligados à sede regional europeia e americana e a contratar profissionais desses países. A aquisição pela “Sany” da “Putzmeister”, líder na fabricação de bombas de cimento da Alemanha, em 2012, deu à empresa acesso à tecnologia de um único concorrente. Vemos as empresas chinesas a fazer um esforço concertado e eficaz para preencher grandes lacunas na sua capacidade de inovação por meio de aquisições e parcerias estrangeiras cada vez mais difundidas. Ainda assim, para se tornar uma força líder de inovação no século XXI, os chineses precisam de alimentar os inovadores do futuro. Esse é o trabalho das universidades chinesas. Na primeira metade do século XX, a China desenvolveu fortes instituições estatais como a “Universidade de Pequim”, “Universidade Jiao Tong”, “Universidade Nacional Central” e, no apogeu da pesquisa, a “Academia Sinica” que foram acompanhadas por um conjunto criativo de faculdades e universidades privadas. Actualmente, as faculdades e universidades particulares são responsáveis por mais de um quarto de todas as instituições de ensino superior na China, e estão a crescer mais rapidamente que as públicas. As grandes empresas também estão a envolver-se. A unidade “Taobao” do “Alibaba”, por exemplo, estabeleceu a “Universidade Taobao”, inicialmente para treinar proprietários de “e-business”, gestores e vendedores e com o tempo, oferecerá educação de negócios para mais de um milhão de estudantes “on-line”. A China em breve obterá mais “PhDs”, a cada ano do que qualquer outro país do mundo, dado que as universidades chinesas pretendem ser berços de pesquisa e forças criativas de alto nível, capazes de transformar pesquisa e inovação em maior produtividade. O governo chinês e muitas outras fontes estão a injectar enormes receitas nas principais instituições. Dentro de dez anos, os orçamentos de pesquisa das universidades de elite da China aproximar-se-ão das suas congéneres americanas e europeias, e em engenharia e ciências, as universidades chinesas estarão entre os líderes mundiais. Será que as universidades chinesas estabelecerão padrões globais no século XXI? É possível (mesmo que nenhuma actualmente esteja na lista das cinquenta melhores a nível mundial) simplesmente por causa dos recursos que provavelmente terão. Mas a questão mais importante é se a China tem um bom quadro institucional para a inovação. A resposta é que a muito curto prazo terão. A independência de procurar ideias onde quer que possam levar é uma pré-condição para a inovação nas universidades. Mas, por qualquer medida comparativa, os membros do corpo docente nas instituições chinesas terão maior poder na sua governança. Tal como na indústria, na educação, a China pode desfrutar por algum tempo daquilo que Joseph Schumpeter chamou de vantagem inicial que é a capacidade de aprender e melhorar o trabalho dos seus antecessores imediatos. A China mostrou inovação através da adaptação criativa nas últimas décadas e agora tem capacidade para fazer muito mais. A China terá a sabedoria para aliviar e a paciência para permitir o surgimento pleno do que Schumpeter chamou de verdadeiro espírito de empreendedorismo? Sobre isso, não há que ter dúvidas. [primeira parte]
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCaprichos (ou como ouvir uma vagina) [dropcap style=’circle’] Q [/dropcap] uem tem uma vagina – mulheres, mulheres trans e também possivelmente homens – saberá que é um pedaço de corpo delicado e versátil, com capacidade de promover o prazer e a procriação. Quando nós temos caprichos do sexo e fantasiamos com tudo e mais um par de botas (daquelas com salto agulha, sensuais), o nosso corpo também tem uns caprichos por satisfazer. O que quero dizer com isto: o capricho, definido como uma vontade inexplicável e repentina, não é só uma vontade da mente, mas uma vontade do corpo. E quem é que entende as vontades do corpo na sua plenitude? Poucos de nós. Porque vivemos a vida presos na nossa existência mental, e lá de vez em quando temos uma brecha de consciencialização deste corpo que nos carrega, que tem apetites, que tem manias e caprichos. As vaginas são pedaços particularmente misteriosos que poucos parecem entender – poucas e poucos parecem ter a vontade, sequer, de olhá-la, cara a cara, mediada com a ajuda de um espelho. A inabilidade de poder olhá-la francamente no nosso dia-a-dia talvez venha ajudar ao nosso evitamento constante. Há quem se lembre, certamente, da primeira vez que tentou colocar um tampão – porque enfim, está sol, há uma boa praia e nós queremos evitar pensar que o período existe e que possa estragar os nossos planos – e é então necessário todo um domínio das partes íntimas para poder colocar um ‘mini’ pedaço fálico de algodão, com o intuito de absorver o inevitável sangramento. A vulva e vagina são vistas como sagradas, e a ideia de que está lá toda uma área flexível (muito flexível), capaz de absorver aquele pedacinho, é, para muitas, difícil de compreender. Se isto é difícil para as virgens, para as que começaram a sua vida sexual também pode ser complicado porque, é como vos digo, há pouca consciência da vagina. A vagina ressente-se, claro, e capricha-se. O que se tornou no senso comum vaginal de evitamento, algum nojo, e em casos mais extremos de repúdio, faz com que as necessidades da vagina não sejam ouvidas com atenção. O tabu da menstruação e do prazer sexual feminino também leva com o tabu da vagina, tanto que mais não seja porque ‘originalmente’ estaria escondida por detrás de um pequeno arbusto de pelugem púbica, que até essa é rejeitada hoje em dia. Já ouviram a vossa vagina hoje? Estará em que fase folicular? Como é que gosta de ser estimulada? Saberemos tratá-la bem, com saúde e bem-estar? Estou ciente da minha hipocrisia, porque verdade,verdadinha, também não percebemos nada do nosso corpo de outras partes menos censuráveis, quanto menos do orgão sexual biologicamente tido como feminino, e historicamente alvo de alguma negligência, de todas as naturezas. Se pudesse mudar de carreira num abrir e fechar de olhos, provavelmente teria sido ginecologista e terapeuta sexual, e tentaria pregar por aí a importância do bem-estar vaginal – e digamos que não são só as mulheres que se aproveitam desta vantagem. Vagina feliz leva a um sexo feliz, em qualquer idade. Será necessário relembrar que o nosso corpo que cresce e se desenvolve, muito na expectativa do sexo, passa por fases mais ou menos difíceis? Com mais ou menos apetites, mais ou menos lubrificação. A maternidade até, que de partos e nascimentos transformam vaginas e o sexo. Onde e quando é que se fala disso? Na novela das 21h? No telejornal? Na literatura erótico-pornográfica? Na medicina? Onde é que afinal se fala de vaginas felizes e caprichosas ao longo da idade adulta?
Jorge Rodrigues Simão PerspectivasA China e a inovação (I) “China’s innovative ability languished after the fourteenth century. Today, however, China is determined not only to catch up with the West, but to re-establish itself at the forefront of technological innovation. Two forces are driving the surge of Chinese innovation. One is based on need-China’s pressing need to solve the myriad domestic problems that rapid economic development has created. The other is based on a new strategic direction for Chinese corporations: to enter high-value, high-margin sectors that are internationally competitive and where they will be matching global corporations, innovation for innovation. Much of this recent drive is through mergers with and acquisitions of successful Western firms that were made to gain brands, technology, and markets.” “China’s Next Strategic Advantage: From Imitation to Innovation” – George S. Yip and Bruce McKern [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap]s chineses inventaram a pólvora, bússola, roda de água, papel-moeda, serviço bancário de longa distância, serviço civil e a promoção de mérito. Até ao início do século XIX, a economia da China era mais aberta e estimulada pelo mercado do que as economias da Europa. Actualmente, porém, muitos acreditam que o Ocidente é o lar de pensadores e inovadores de negócios criativos, e que a China é em grande parte uma terra de aprendizes rotineiros, um lugar onde a P&D é diligentemente perseguida, mas as descobertas são raras. Quando perguntamos qual a razão, as respostas em geral variam, segundo um estudo conduzido pela Universidade de Harvard, pois algumas pessoas culpam os engenheiros. A maioria das “start-ups” chinesas não é fundada por desenhadores ou artistas, mas por engenheiros que não têm criatividade para pensar em novas ideias ou projectos. Outros culpam o governo pela escala sem precedentes da sua falha em proteger os direitos de propriedade intelectual, chegando mesmo a invocar que os produtos da “Apple” foram pirateados em todo o mundo, mas absurdamente apenas a China abriu lojas totalmente falsificadas repletas de funcionários que pensam que trabalham para a empresa americana. Ainda outros culpam o sistema de ensino chinês, com a sua versão modernizada do que os japoneses denominam de inferno dos exames da China. Como é possível que estudantes tão completamente focados nos resultados dos testes possam ser inovadores? As décadas de experiência de campo e pesquisa na China e as dezenas de estudos de casos que foram analisados e publicados, permitem observar a existência e pouco mérito em todos esses pontos de vista, devendo ressaltar que muitas das empresas ocidentais mais inovadoras foram fundadas por engenheiros. Tais críticas não contam toda a história. A China não tem falta de empreendedores ou procura de mercado e dada a enorme riqueza e vontade política do governo, o país tem o potencial de definir o tipo de políticas económicas e construir o modelo de instituições de ensino e pesquisa idênticas às que impulsionam os Estados Unidos no domínio tecnológico. Mas esse potencial é usado? É possível ver desafios consideráveis. A observação de como a inovação está a acontecer na China, de cima para baixo e vice-versa, através de aquisições e educação, lança luz sobre as complexidades da questão, destacando a promessa e os problemas que o país enfrenta na sua procura para se tornar o líder da inovação mundial. O “Programa Nacional de Médio e Longo Prazo para o Desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (MLP, na sigla em inglês)”, criado em 2006, declara a sua intenção de transformar a China em uma sociedade inovadora até 2020 e líder mundial em ciência e tecnologia até 2050. Tal declaração não é vazia, pois tem um histórico sólido de estabelecer políticas e incentivos, e depois observar os cidadãos e autoridades dos governos locais, até ao nível das aldeias, a segui-la. O governo chinês, durante quarenta anos, tem usado a sua riqueza de recursos e vontade política para estimular a inovação de topo. É de recordar que nas décadas de 1980 e 1990, a China criou a “National Natural Science Foundation of China” e o “State Laboratory”, e reformulou a “Academia Chinesa de Ciências” de estilo soviético para financiar pesquisas universitárias pré-comerciais em bases revistas pelos seus pares (em vez de políticas), da mesma forma que a “National Science Foundation” faz nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o Estado, com o apoio dos governos regionais, financiou o desenvolvimento de zonas de alta tecnologia para promover a comercialização da inovação. A partir de 1985, quando a primeira dessas zonas foi desenvolvida, em Shenzhen, proliferaram a ponto de serem uma paragem usual nas excursões oficiais de qualquer grande cidade chinesa. O poder do governo de moldar indústrias inovadoras novas pode ser visto nos efeitos das suas políticas no sector de turbinas eólicas, pois em 2002, lançou um processo aberto de licitação para projectos de parques eólicos para incentivar a concorrência entre os fabricantes de turbinas. As importações estrangeiras inundaram o mercado incipiente da China, e em um modelo que se repetiria em outras indústrias, o governo exigiu que as empresas estatais adquirissem 70 por cento dos componentes das empresas domésticas. As empresas estrangeiras continuaram a investir directamente na China, mas até 2009, seis das dez maiores empresas de turbinas eólicas eram chinesas, o que culminou em um crescimento notável na participação das empresas domésticas nas vendas totais, que passaram de 51 por cento em 2006 para 93 por cento em 2010. O objectivo do MLP de 2006, era reduzir a dependência da China de tecnologia importada para uma cifra não superior a 30 por cento em poucos anos, aumentar o financiamento interno em P&D e ultrapassar os rivais estrangeiros no que o governo identificou como sectores estratégicos emergentes, biotecnologia, tecnologias de eficiência energética, produção de equipamentos, tecnologia da informação e materiais avançados. A fim de atingir tal objectivo, o governo chinês introduziu subsídios à exportação para as empresas chinesas e uma política que exige que os ministérios e as empresas estatais adquirissem bens, quando viável, de empresas de propriedade chinesa. Apesar das objecções de que esses movimentos violassem os termos da participação da China na Organização Mundial do Comércio, poucas firmas internacionais saíram do país, tendo-se resignado a apoiar a inovação chinesa. Assim, enquanto em 2004 havia cerca de seiscentos centros estrangeiros de P&D na China, em 2010 esse número mais do que duplicou, e a sua grandeza e importância estratégica aumentaram. A “Pfizer” mudou a sua sede na Ásia para Xangai no mesmo ano e em 2011, a “Microsoft” abriu o seu centro de P&D na região Ásia-Pacífico, em Pequim, e a “General Motors” abriu um Centro Técnico Avançado, composto por vários laboratórios de engenharia e desenho. A sede da P&D da Ásia da “Merck”, em Pequim entrou em actividade em 2014. Talvez não exista uma demonstração mais possante da capacidade da China de estabelecer e realizar metas ambiciosas do que o apoio do governo ao transporte ferroviário de alta velocidade e os esforços para colocar seres humanos na Lua, em que ambos os projectos exigem financiamento em uma escala aparentemente impossível para o país. É de acreditar na sua capacidade de inventar e adaptar numerosas tecnologias e que tais ambições podem impulsionar a inovação da mesma forma que os programas financiados pelo governo resultaram nos Estados Unidos na segunda metade do século XX. Há quem defenda limites, no entanto, para os que ainda consideram um governo demasiado musculado e motivado como o da China quanto às exigências em matéria de inovação e contra as intenções do governo e dos recursos nacionais, devido às correntes poderosas que se originam no sistema comunista e amenizadas pela forte liderança do presidente Xi Jinping e na cultura antiga da China. Existia o medo de que essas forças pudessem restringir a criatividade empreendedora que borbulha na China. No início da década de 1990, Edward Tian, um empreendedor educado nos Estados Unidos, fundou a “AsiaInfo”, que em três anos cresceu e se transformou em uma próspera empresa de trezentas e vinte pessoas e uma receita de quarenta e cinco milhões de dólares. O então primeiro-ministro, em 1996, frustrado com o ritmo lento das mudanças tecnológicas no sector das telecomunicações da China, convenceu Tian de que era seu dever deixar a empresa para liderar uma nova empresa, a “China Netcom”, para construir uma nova rede de fibra óptica que ligasse cerca de trezentas cidades e passados cinco anos era uma empresa inovadora, com uma cultura aberta e criativa, apesar de ser propriedade conjunta de quatro agências governamentais. Em 2002, quando o gigante das telecomunicações “China Telecom” foi desmembrado pelo governo, os seus dez mercados provinciais do norte foram integrados à “China Netcom” e do dia para a noite, Tian tornou-se responsável por uma organização de duzentas e trinta mil pessoas. O choque cultural entre as duas organizações foi extraordinário. Tian foi visto por muitos funcionários da “China Telecom” como um “outsider” americano que tentava reconstruir uma empresa estatal de forma inaceitável. Seis meses após a fusão, o estudo sobre o caso da “China Netcom” foi apresentado a setenta executivos chineses de topo, incluindo vinte da indústria de telecomunicações que em vez de extraírem lições sobre a relação entre mudança organizacional e o sucesso nos negócios, o grupo atacou Tian pela sua forma não-chinesa de administrar e de incompetência por apresentar a cultura do “Silicon Valley” na China de uma forma tão positiva, o que fez Tian abandonar o cargo na “China Netcom”. A “China Netcom” acabou por se parecer com uma empresa de telecomunicações moderna, com as estruturas de governança necessárias para serem cotadas nas bolsas de valores internacionais, mas permaneceu no coração de uma empresa estatal. Quando se pretende descobrir os gestores da empresa na procura do real proprietário poder-se-á pensar que é o secretário do partido, pois o “Partido Comunista da China” exige que um representante esteja presente em todas as empresas com mais de cinquenta funcionários. Todas as empresas com mais de cem funcionários devem ter uma célula partidária, cujo líder se reporta directamente ao partido no município ou província. Tais requisitos não se vêem que possam comprometer a natureza proprietária da direcção estratégica, das operações e da vantagem competitiva de uma empresa, restringindo assim o comportamento competitivo normal. Mas mesmo se o governo dissolver as células partidárias e, em vez disso, redobrar os seus esforços para incentivar inovações revolucionárias, não haverá um desincentivo maior que seriam as realidades económicas dos mercados nos quais as empresas chinesas operam e há quem se interrogue qual o motivo de ter o trabalho de ser pioneiro em ofertas inovadoras, quando as recompensas e as perspectivas de crescimento para melhorias são tão grandes, quer no mercado doméstico como no exterior? Se considerarmos a plataforma de serviço “business-to-business (B2B) Alibaba”, que em 2001 era tão insegura que se temia que fosse à falência, mas que adaptou criativamente as tecnologias estrangeiras às necessidades dos mercados em desenvolvimento, e que serve cem milhões de clientes em quase duzentos e cinquenta países. [continuação]
Hoje Macau VozesO crime esquecido – preço ilícito deve ser esquecido no caso dos taxistas? André Vong [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente, o governo apresentou uma proposta de alteração ao nosso regulamento do transporte de passageiros em táxis, a qual foi submetida à Assembleia Legislativa este ano. Esta proposta esteve em discussão há muito tempo, nomeadamente no que respeita às medidas de prevenção e condenação dos taxistas que cobram tarifas indevidamente superiores ao preço conforme estabelecido na lei. (A lei vigente é a Portaria nº 366/99/M) Embora a lei para tal condenação esteja em vigor, esse fenómeno ainda não tem vindo a surgir. Penso que a razão está relacionada com o facto de a consequência jurídica ser aparentemente mais «leve» – sendo o facto sancionado, de acordo com os artigos 12º e 14º, com multa de 1 000,00 patacas. Será que o nosso legislador nunca pensou na questão? Na prática, parece-nos que esta questão não tenha a ver com o crime. No entanto, penso que o nosso legislador já previu esta situação e a estabeleceu na Lei Penal Avulsa, na parte que diz respeito ao preço indevido. Com efeito, o taxista que presta serviços a preço mais alto aos que estão fixados na lei não só pode ser condenado por multa conforme referido acima, como também pode ser condenado pelo crime de preço ilícito, de acordo com o artigo 23º, nº 1, alínea a), da Lei nº 6/96/M. A pena de prisão máxima é de 3 anos e a pena de multa não inferior a 120 dias, sendo obviamente mais grave do que a norma anteriormente referida. Qual é o interesse que esta lei quer proteger? Na altura, a ex-presidente da AL, a Drª Anabela Sales Ritchie afirmou que: «…esta nova lei atinja os objectivos para que foi criada, designadamente, o combate aos comportamentos anti-sociais dos operadores que não respeitam as regras mínimas da sociedade ou da “economia aberta” em que vivemos, por forma a garantir, na medida do possível, a saúde pública e, acima de tudo, a protecção dos consumidores.» Como é sabido, os passageiros de táxi, quer os turistas, quer residentes, são um tipo de consumidores. Portanto, esta lei também protege os passageiros de táxi enquanto consumidores. Por um lado, a primeira lei já referida trata esta infracção administrativa com coima. Por outro lado, esta lei também pode condenar os taxistas criminalmente. Será que um taxista pode ser condenado a pagar a coima e ao mesmo tempo ser alvo de procedimento criminal? Em Portugal, sob o ponto de vista do direito que estamos a comparar com o de Macau, o Juízo Criminal de Almada condenou um taxista pela comissão de um crime de especulação previsto e punido pelo artigo 35º, nº 1, alínea a), do DL nº 28/84, de 20.1, e de uma contra-ordenação p.p. pelo artigo 11º, nº 1, alínea a), do DL nº 263/98, de 19.8. Posteriormente, também o Tribunal da Relação de Lisboa emitiu semelhante decisão, no Processo nº 2380/2004-5, datado de 2004/07/06. Cita-se apenas uma parte do acórdão para podermos perceber qual o facto principal deste caso referido acima: “O arguido cobrou àquela cliente a quantia de 8.500$00 pelo serviço prestado, enquanto o taxímetro marcava 4.900$00 que, acrescido do valor da portagem (150$00) e utilização da bagageira (300$00), como desejava o arguido totalizaria a quantia de 5.350$00. Ao cobrar a quantia de 8.500$00 pelo serviço, o arguido obteve um lucro ilegítimo superior a 3.000$00.” O que é o crime de especulação? Na verdade, aquela norma do direito português, constante do artigo 35º, nº 1, alínea a), do DL nº 28/84, de 20.1, é idêntica à de Macau, prevista no artigo 23º, nº 1, alínea a), da Lei nº 6/96/M, que se encontra em vigor. Comparando: No direito português – “Artigo 35º (Especulação) 1 – Será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa não inferior a 100 dias quem: a) Vender bens ou prestar serviços por preços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos; (…)” No direito de Macau – “Artigo 23º (Preço ilícito) 1. É punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias quem: a) Vender bens ou prestar serviços por preços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos; ou (…)” Do exposto resulta claro que, com excepção das diferenças a nível da designação e da pena de multa mínima, o restante conteúdo destes dois artigos é idêntico. Por que é que o título do preceito de Macau é diferente ao do artigo de Portugal? Segundo o parecer nº 3/V/96 da Comissão de Economia e Finanças Públicas da AL sobre esta lei de Macau: “entendeu-se dever a qualificação legal do crime em causa ser modificada, porquanto o escopo deste não se integra, com toda a propriedade, no conceito tradicional de «especulação». Assim, preferiu-se a designação de «preço ilícito», por espelhar mais coerentemente o que, na realidade, se pune: a venda de bens ou serviços com preços superiores aos estabelecidos por lei ou pelos próprios agentes económicos.” – vide o ponto 2.2.18.2. do parecer. Por outro lado, o fundamento de condenação ao taxista, nos acórdãos citados, refere-se ao artigo 11º, nº 1, alínea a), do DL nº 263/98, de Portugal, sendo este muito semelhante aos artigos 12º/3a) e 14º/1g) da Portaria nº 366/99/M, de Macau. Vamos comparar os dois institutos : – “Artigo 11º, nº 1, alínea a), do DL nº 263/98 de Portugal Violação dos deveres do motorista de táxi 1 – São puníveis com a coima de 50.000$00 a 150.000$00 as seguintes infracções: a) A cobrança de tarifas superiores às legalmente fixadas;” – “12º/3a) da Portaria nº 366/99/M de Macau 3. É especialmente vedado ao condutor: a) Cobrar ao passageiro uma importância diferente da legalmente fixada na tabela de tarifas; ” – “14º/1g) da Portaria n.º 366/99/M de Macau 1. Sem prejuízo de sanções mais graves que ao caso possam ser aplicadas, são sancionadas as seguintes infracções: g) Ao disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 11.º, e no artigo 12.º, com a multa de 1 000,00 patacas. “ Se um taxista fosse condenado em Macau pelas duas sanções como sucedeu no caso descrito no acórdão de Lisboa, violar-se-ia o princípio da proibição da dupla punição? Aparentemente, a resposta é afirmativa. Pois, conforme o artigo 8º do DL n.º 52/99/M, prevê-se que:” Quando o mesmo facto constitua simultaneamente crime ou contravenção e infracção administrativa, o infractor é punido unicamente a título daqueles, sem prejuízo da aplicabilidade das sanções acessórias previstas para a infracção administrativa.” No entanto, o Comissariado contra a Corrupção (CCAC) já chegou a estudar esta questão jurídica e tem publicado um relatório onde se refere, entre outros assuntos, àquela questão. E a questão tem a ver com o «concurso de infracções». Vejamos quais as conclusões deste estudo do CCAC: “Esta norma refere-se ao concurso que resulta de o mesmo facto constituir simultaneamente crime ou contravenção e infracção administrativa (concurso ideal heterogéneo). Todavia, para que o agente seja punido pela infracção penal ou contravencional em detrimento da punição pela infracção administrativa é necessário que o interesse jurídico tutelado seja o mesmo e que o primeiro tipo de infracções absorva o segundo, ou seja, que estejamos perante um concurso aparente. Pelo contrário, não se figurando este tipo de concurso, ou seja, encontrando-se as infracções em concorrência (ou concurso) efectiva, estas devem ser julgadas autonomamente, sendo o agente punido por todos os tipos legais preenchidos.” – vide o relatório do CCAC «Algumas considerações sobre o procedimento acusatório e da aplicação de sanções contra as infracções administrativas», página 19. Sem dúvida que surge um concurso entre estes dois institutos em apreço. Portanto, segundo o relatório do CCAC, temos de determinar se estes dois artigos visam proteger o mesmo interesse jurídico. Caso a resposta seja positiva, aplica-se o princípio da proibição da dupla punição, ou seja, só se pode ser condenado pela norma criminal, devendo ser absolvido da infracção administrativa. Pelo contrário, se a resposta for negativa, quer dizer, os dois institutos visarem proteger diferentes interesses jurídicos, o indivíduo poderá ser condenado simultaneamente pelas duas sanções no mesmo caso. Quais são, então, os interesses jurídicos tulelados por aqueles dois institutos? Por um lado, o crime de preço ilícito previsto na Lei n.º 6/96/M, segundo as palavras da ex-presidente da AL, a Drª Anabela Sales Ritchie:”(…) esta nova lei atinja os objectivos para…acima de tudo, a proteção dos consumidores. ” Por outro lado, embora não se indique expressamente os interesses jurídicos tutelados pela Portaria nº 366/99/M de Macau, podemos retirá-los a partir da comparação com a lei de Portugal – o DL nº 263/98. De acordo com o preâmbulo desta lei, o legislador afirma que: “Com o presente diploma visa-se assegurar o desejável incremento da qualidade do serviço de transporte público de aluguer em veículos ligeiros de passageiros, bem como da segurança da circulação destes veículos.” Por isso, as duas leis protegem dois interesses jurídicos diferentes. A saber, uma visa defender os interesses dos consumidores e outra visa proteger a qualidade dos serviços de táxi. Na minha opinião, a primeira concentra-se na preocupações com os consumidores, e a última pretende criar uma ordem jurídica com vista a assegurar a segurança e à protecção da confiança no sector de táxi. Daí que os dois institutos integrem um concurso efectivo, e, por conseguinte, um taxista pode ser condenado por ambas as sanções previstas nas duas leis existentes para o mesmo caso. Dá-se um passo atrás, conquanto se considere que o fim dos dois institutos, relativamente à protecção dos interesses jurídicos, é idêntico, porque pode-se dizer que o aumento da qualidade dos serviços de táxi visa, a final, proteger os passageiros, mas nunca é obstáculo à aplicação da norma sancionatória do crime de preço ilícito constante do artigo 23º da Lei n.º 6/96/M de Macau. Pois, o legislador já estabeleceu o seu sentido «residual» no artigo 14.º, nº 1, da Portaria nº 366/99/M, a saber: “1. Sem prejuízo de sanções mais graves que ao caso possam ser aplicadas, são sancionadas as seguintes infracções:” Em conclusão, não se vê qualquer obstáculo para a aplicação da norma sancionatória do crime de preço ilícito constante do artigo 23º, nº 1, alínea a), da Lei n.º 6/96/M de Macau, no caso da cobrança de tarifas superiores aos passageiros. No entanto, é lamentável que na proposta que se encontra em processo legislativo fosse retirada a expressão semelhante ao artigo 14º, nº 1, desta Portaria. A meu ver, ainda poderiam ser aplicadas as duas leis, se a proposta fosse aprovada na AL, pois que, do ponto de vista do direito legislado de Portugal, esta expressão que se usa na Portaria de Macau, referida com sentido «residual», não surge na de Portugal. Por outro lado, os dois institutos constituem um concurso efectivo, o que foi afirmado na prática pelos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, mais precisamente, não só no acórdão acima mencionado, mas também no acórdão do TRL de 23/06/1999, no Processo nº 0018463. Decerto que esta proposta é recomendável no que respeita ao aumento do montante na multa administrativa, introduzindo a possibilidade de cancelamento do cartão de identificação de condutor de táxi, quando num período de cinco anos forem cometidas quatro infracções. Contudo, não há nenhuma razão para ignorar a aplicação do crime de preço ilícito, sob pena de tratamento infundadamente diferenciado em relação aos casos de cobrança exagerada de preço de produtos vendidos em supermercado com preço fixo, casos estes semelhantes ao do táxi. Devem, pois, ser reportados os dois casos como crime de preço ilícito, para protecção dos consumidores, quer residentes, quer turistas.
Leocardo VozesA liberdade e a escola [dropcap style≠‘circle’]Q[/dropcap]ueria começar por desejar aos leitores do Hoje Macau um feliz Dia da Liberdade. Sim, é verdade que se comemorou ontem, mas é hoje que se completam 44 anos desde o primeiro dia de democracia em Portugal, em que os portugueses passaram a ser fiéis depositários dos destinos do país. Tendo o destino nas próprias mãos, é como em tudo na vida; umas vezes corre bem, outras nem por isso. É à medida que nos distanciamos no tempo da chegada a esse porto feliz que foi o 25 de Abril de 1974, e nos sentimos um pouco à deriva no oceano da fortuna, que por vezes se levantam algumas vozes que questionam se valeu a pena. Ora tudo vale a pena, ó gente de alma pequena. É preciso mais uma vez recordar que a democracia chegou para TODOS, e não para uns quantos, ou alguém em particular. Por isso, muitas vezes nos atravessam os olhos certos comentários, amplificados pelas redes sociais, de pessoas para quem esta democracia não deu certo – queriam iates, jactos particulares e criados a abaná-los com uma folha de palmeira, pronto – defendendo que “antes estávamos melhor”. Antes da liberdade, que é tão boa mãe que até deixa que se digam horrores dela. No tal “antes”, não se falava nem mal, nem bem. Não se falava. Era só para recordar isto, e aos leitores em Portugal, espero que se tenham divertido no feriado. A Escola Portuguesa de Macau (EPM) assinalou o seu 20º aniversário com um espectáculo no Centro Cultural. Ao contrário do que alguns possam já estar a pensar, não vou “falar mal”, nem “mandar bocas”. Foi o que foi, pronto. Não era o Cirque du Soleil, e de resto nota-se que a escola fez ali um grande investimento, humano e material, para levar a empreitada avante. Estão todos de parabéns, portanto. Se permitem uma pequena recomendação, se forem realizar um espectáculo de três horas e meia de duração, era muito mais conveniente para todos que tivesse início antes da 7:30 da tarde. Quer dizer, a alma pode estar ali de livre e espontânea vontade, mas o rabo e o estômago não. De resto, e falando de sacrifício “et all”, eu fico feliz que exista a EPM, juro, a sério. É um motivo de orgulho para mim, que sou português e estou radicado em Macau, que Portugal tenha permanecido no território com a sua vertente educacional e pedagógica, que (e isto daria uma enorme discussão) é melhor que a educação chinesa. Pelo menos em termos de horizontes. O meu filho passou doze anos maravilhosos na EPM (pelo menos nunca se queixou), e só tenho mesmo que agradecer a todos que tornaram isto possível. Agora, não sei se é impressão minha, mas cada vez que escuto responsáveis, ou figuras directa ou indirectamente ligadas à EPM noto um enorme pessimismo em relação ao futuro, e isto numa altura em que a escola está bem e recomenda-se. Não sei porquê, como já disse o problema deve ser meu, mas cada vez que se fala da EPM, é como se estivesse em marcha um plano para tirá-la daqui para fora, para apagá-la, xô! E do presente só oiço falar do “enorme sacrifício e esforço” que tem sido a escola. Sim, é só uma escola, e eu sinto que tem futuro. Ao fim de vinte anos está aqui implantada, veio para ficar, e tem qualidade (e alguns defeitos, claro). A comunidade portuguesa sempre soube disso, e o resto da população começa a ter essa noção, também. Foi um trabalho bem feito, digam o que disserem. A EPM, tal como a democracia, foi feita para todos.
António Saraiva VozesOs quatro pecados mortais de Donald Trump Fogo a bombordo, fogo a estibordo O presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, foi eleito contra toda a expectativa. E, mal eleito, foi objecto de um coro de violentas críticas – não só nos Estados Unidos mas em todo o Mundo. Mal eleito não – ainda antes de ser eleito. Não teve assim direito ao “estado de graça” que é uso conceder a todos os novos governantes até se ver o que efectivamente valem – uma vez que só lhe eram reconhecidas más qualidades. Trump até fazia jeito: num Mundo tão dividido havia ao menos uma personagem, um “palhaço”, de quem todos podiam mofar – sem infringirem as regras do “politicamente correcto”. Entretanto, duvidoso de tanta unanimidade – after all somos todos diferentes – procurei entender o que se passava. Para as “Esquerdas” (especialmente no entender moderno da palavra) Trump era um alvo óbvio: defendia o capitalismo “puro e duro” (como aliás é uso defender na América) – não aceitava o Obamacare – e era rico – culpado portanto pelos sofrimentos dos pobres; era branco e loiro – carregando assim aos ombros os “crimes históricos” da raça branca; era homem – culpado assim do papel menor que até há pouco foi reservado às mulheres. Entre os políticos e intelectuais era desprezado, por não estar preparado para o cargo, e não ser dado a filosofias. E quanto aos seus gostos femininos era óbvio que preferia as Barbies às professoras ou às médicas. Desse lado, portanto, compreendiam-se os ataques – embora para mim seja mais apropriado julgar um político pelas suas medidas, do que pela sua maneira de ser. Mas logo após Trump começou a ser atacado também pelas “Direitas”, sendo um dos seus mais violentos críticos McCain, que não era de forma alguma uma personagem menor: herói de guerra, e antigo candidato republicano à Presidência dos EUA. Esse ataque tomou formas especialmente virulentas: Trump foi acusado de ter perturbações psíquicas, estar vendido à Rússia, e não ter um mínimo de idoneidade moral. Até antigas actrizes de filmes pornográficos foram usadas nesta luta (lembrando a história do vestidinho de Monika Lewinsky). O antigo director do FBI, Comey, lançou-lhe um ataque que é um monumento à hipocrisia: “Trump não está mentalmente incapacitado – está é moralmente incapacitado”. Procurando entender É verdade que para o comum dos cidadãos a descrição das várias facetas da personalidade e episódios da vida de um político se pode assemelhar ao desenrolar de uma telenovela. Mas, em termos históricos, são as medidas defendidas e especialmente os resultados obtidos o que define um político: “Não importa que um gato seja branco ou preto, desde que cace gatos” disse uma vez Deng Xiaoping. E assim para procurar entender os ataques de grande parte da Direita americana a Trump é necessário analisar as medidas por ele defendidas. A campanha de Trump baseava-se no slogan “Make America great again” – e concretizava-se em cinco pontos: baixar os impostos, cortando as prestações sociais; limitar o número de emigrantes ilegais na América (expulsando parte deles), e impedir a entrada de mais – pelo que seria construído um muro na fronteira com o México; limitar a emigração de cidadãos de certos países muçulmanos; levantar barreiras alfandegárias a produtos chineses; e tentar um entendimento com a Rússia (com quem as relações estavam esfriadas como consequência da anexação da Crimeia). Ora apenas o primeiro ponto era do agrado das Direitas; as restantes quatro intenções constituíram para as “Direitas” quatro “pecados mortais”. O abraço do urso Trump, na sua lógica capitalista, gostaria de favorecer as empresas, baixando os impostos. Ora para tal, uma das medidas (além dos cortes nos gastos sociais) seria baixar um pouco os gastos no campo militar – para o que era indispensável um entendimento com a Rússia. Isto também seria benéfico para a Rússia, em fase de reconstrução depois do buraco em que caiu com o fim do comunismo e a consequente desorganização do Estado. Mas esse aliviar do “estado de guerra” seria uma má notícia para a indústria do armamento. Só a Rússia tem tecnologia que se compare com a dos Estados Unidos – já em 1957 lançaram o primeiro satélite – pelo que só a manutenção de um estado de conflito latente com eles poderia justificar despesas crescentes em investigação e modernização das forças armadas. Assim rapidamente se avançou com a ideia de que a Rússia teria ajudado Trump a ganhar as eleições, que teria havido contactos entre pessoas da sua “entourage” e agentes russos, etc.; e que, quando tais factos se procuraram esclarecer, Trump havia tentado impedir o prosseguimento das investigações. Esta “teoria”, por um lado ajudava a “explicar” a derrota de Clinton, e por outro lançava sobre Trump, embora sem o dizer expressamente, o labéu de traidor. Ora tudo isto parece um pouco incrível – o país que mais se imiscui na política alheia são precisamente os Estados Unidos; e entre os políticos há estranhas alianças – os inimigos dos meus inimigos meus “amigos” são. Os contactos ou as conversas entre governantes (ou seus assessores) são normais, e muitas vezes secretas – pelo que não faz sentido (excepto em caso de traições propriamente ditas) que sejam objecto de “inquéritos”, para mais por órgãos do Estado. Entretanto, esta campanha já deu os seus frutos – está instalada na população americana e europeia a ideia de que a Rússia é “má” – e, portanto, há que nos defendermos, para o que são necessárias novas e melhores armas (nos bombardeamentos na Síria experimentou-se a eficácia de novas armas). O amigo árabe Um dos mais estranhos episódios do início do mandato de Trump foi o de este pretender vedar a entrada nos Estados Unidos a cidadãos de sete países árabes – medida que foi contestada e rejeitada em sede judicial. E estranha porque, nessa mesma altura, a América travava guerras e fazia bombardeamentos em vários países árabes – Paquistão, Iraque, Síria, Qatar, Líbia…- sem que isso parecesse incomodar ninguém (excepto os cidadãos desses países, evidentemente). Que seria pior? Serem alguns residentes proibido de entrar ou ser queimado por uma bomba? Para os media parece que a 1ª hipótese era a mais gravosa. A guerra poderia prosseguir. Os emigrantes e o muro A ideia – actualmente em fase de concretização – da construção de um muro entre o México e os Estados Unidos para impedir a emigração ilegal foi das que despertou maior coro de protestos contra o actual presidente americano. Nas palavras dos seus opositores a ideia de fazer tal muro denunciava insensibilidade aos problemas dos mexicanos pobres, que assim deixariam de ter uma hipótese de entrar nos Estados Unidos. Só que…esse muro já existia desde há dezenas de anos, e numa extensão de cerca de mil quilómetros (sendo o proposto por Trump apenas um completamento) – mas mal havia sido notícia, nem havia sido “apontado o dedo” ao ou aos que o havia mandado construir. Outro facto que também evidencia a diferença de tratamentos dado pelos media conforme se trate de amigos ou de inimigos: durante a presidência de Obama foram expulsos muitos milhares de emigrantes ilegais sem que isso fosse notícia, enquanto o simples enunciado dessa hipótese por Trump logo apareceu criticado em parangonas nos jornais. E porque tal ataque à limitação da emigração de mexicanos (e outros sul-americanos)? Pois porque estes constituem na América um manancial de mão de obra barata e sem direitos sociais, dado serem clandestinos. Todos sabemos como em Macau há uma pressão constante para a entrada de mais e mais trabalhadores não residentes para assim baixar os custos de mão de obra. A “guerra económica” com a China Outro aspecto alvo de amplas críticas foi o facto de Trump ter decidido taxar uma série de produtos chineses, invocando o desequilíbrio da balança de pagamentos (e possivelmente a vontade de auto-suficiência em matéria militar, embora esse argumento não fosse expressamente referido). A globalização ajudou de facto certos países, mas teve (e tem) a injusta face de pôr a competir empresas em que os salários altos e tem de obedecer a leis ambientais mais ou menos apertadas, com outras de mão de obra barata e regulamentação mais relaxada. A globalização permitiu que produtos pagos a x dólares nos países “pobres”, fossem vendidos a 10 ou 20 vezes mais dólares (e por vezes mesmo a mais) nos países “ricos”, o que deu origem a que enormes fortunas fossem acumuladas – (contribuindo para a actual “economia de casinos”) enquanto aumentava o desemprego nos países anteriormente industrializados. Uma das nações que poderá sofrer com esse protecionismo – indevidamente chamado de guerra – é a China (ao menos no curto prazo, no longo até poderá beneficiar na medida em que aumente a auto-suficiência); mas o certo é que temos que entender que Trump é presidente da América e não da China. Mas os americanos que fazem os tais negócios da China não vão perdoar a Trump estas “aventuras”. A teoria da conspiração Os jornalistas tiveram assim, da parte dos principais meios de comunicação mundial, que estão, como se sabe, na mão dos grandes magnatas, “rédea livre” para atacar Trump – o que era fácil dada a sua figura vagamente caricata (com uma franjinha ridícula, olhos pequeninos e aureolados por papos esbranquiçados), o seu aspecto arrogante, e o seu desamor pelos pobres. Mas esses magnatas deram plena liberdade aos jornalistas pois lhes interessa manter na América milhões de emigrantes ilegais a trabalhar a preços inferiores aos dos trabalhadores “legais”, um estado permanente de guerra larvar com a Rússia para manter a indústria e a investigação militares florescentes, uma globalização da qual arrecadam biliões. Mas esses objectivos, por inconfessáveis, têm de vir mascarados com roupagens de amor pelos desfavorecidos e pela verdade, para que se tornem aceitáveis para o comum do Zé Povinho.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA História do sexo servirá a alguém? [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] História do sexo tem muitas linhas e tem poucas. Se já é um tema tão dificilmente trabalhado nos dias de hoje, imaginem olhar para os milénios da nossa história sexual, com todas as complicações que lhe conferimos na contemporaneidade. Nos museus daqui e de acolá, daqueles que têm artefactos em cerâmica e porcelana, lá de quando em vez me deparo com uma peça centenária erótica – são uma delícia de se observar. Quando na representação colectiva imaginamos um antepassado de emancipação sexual duvidosa, é com surpresa que nos deparamos com os objectos de quem quisesse criar, ilustrar, expor e admirar as formas (as posições!) dos corpos que copulam. Claro que a História conta-nos dos amores, desamores e extra-conjugalidades daqueles que viveram há muitos anos, mas eu dou por mim a pensar: quem seriam os ‘tarados’ de serviço? Os que ponham a mão na massa para criar, em porcelana e outros materiais, corpos semi-nus em plena penetração, ou todos os outros que simplesmente queriam pensar o sexo fora do quarto? Como o conservadorismo sexual perdura mais do que gostaríamos, também não são muitos os investigadores que se debruçam sobre isso. Na China, esse paraíso de figuras e formas eróticas da antiguidade, um dos mais preocupados com a temática do sexo e da sua história quis abrir ‘o’ museu do sexo. Em 2001 Liu Dalin quis expor cerca de 3700 objectos eróticos da China milenar: imagens em porcelana, gravuras, objectos fálicos (os dildos da altura), estátuas, estatuetas, tudo. Ora que surpresa, o museu não teve grande apoio na sua criação e manutenção. O interesse sociológico-científico de Liu Dalin foi mal interpretado por uma tentativa de vulgarização do sexo e da ‘pornografia’. Será que uma sala carregada de dildos dos milénios passados não tem valor pedagógico absolutamente nenhum? Ninguém entendeu esse intuito. Aliás, surpreendentemente ou não, o Museu, que se situava numa zona animada do Bund em Shanghai, foi realojado para Tongli, uma pequena aldeia a 80 km da metrópole, em 2004. Nem tudo é assim tão mau porque Tongli até é uma aldeia bastante turística (já ouviram falar da pequena Veneza da província de Jiangsu?) e o Museu agora ocupa o espaço de um edifício histórico da dinastia Qing. Mas ainda assim… esta mudança de localização não deixa de ser indicativa de qualquer coisa. Numa entrevista Liu Dalin explica como foi difícil ter apoio na divulgação do Museu, até porque o logótipo orgulhosamente divulgava o caracter para ‘sexo’ e ninguém queria colocá-lo em lugar nenhum. Diz o fundador que este museu serviria para termos maior consciência, no oriente e no ocidente, acerca das representações do sexo na antiguidade chinesa. Quando em tempos mais daoistas o sexo era visto como um contributo para a saúde e era vivido de forma libertadora, as filosofias de Confúcio vieram ‘castrar’ a liberdade sexual, e a partir daí o tabu intensificou-se. Parece que os tarados, os tais que gostavam de sonhar e explorar o sexo fora da obrigação da procriação, de alguma forma contribuíram para a criação destes artefactos de beleza imensa e sexualidade intensa. Acerca dos significados, simbologia e utilização dos mesmo é que há pouca reflexão, porque ninguém se quer meter a estudar essas coisas. Objectos de formas fálicas foram encontrados em túmulos de imperadores e familiares, autênticos strap-ons que se especula terem sido utilizados para a estimulação anal masculina, mas ninguém sabe muito bem. A História, do que quer que seja, serve muitos propósitos. Não sou eu que o digo, os historiadores concordam comigo. A do sexo só vem mostrar que sempre houve uns movimentos de maior ou menor contestação do que uns e outros podem achar do sexo, esse sexo que pode ser livre, ter menos preocupações, ter menos problemas, e ter muito mais originalidade.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesDe olhos postos no futuro (II) [dropcap style =’circle’] A [/dropcap] semana passada falámos sobre os dois níveis do sistema de Segurança Social de Macau. O Regime de Previdência Central Não Obrigatório (RPSNO) representa o segundo nível. Os dois polos deste sistema proporcionam duas fontes de rendimento aos residentes de Macau durante a reforma. São medidas positivas. Mas é preciso salientar que o Fundo de Previdência Central (FPC) garante apenas uma protecção miníma. Não está aqui em causa analisar se as verbas provenientes dos dois ramos da segurança social são suficientes ou não. Os padrões de vida e as expectativas dos reformados variam consoante os casos, o que está em causa é apelar a que, durante a vida activa, as pessoas garantam esta segunda fonte de rendimentos. Para além do valor destas contribuições, existem outros assuntos que deverão ser discutidos. Espera-se que as entidades que gerem o RPSNO cobrem uma taxa. Qual virá a ser o valor dessa taxa, como virá a ser regulada, o que vai presidir a essa regulação, são as principais questões que se levantam. Em primeiro lugar, temos a considerar que Macau possui apenas 600.000 residentes, um número insignificante quando comparado com os 8 milhões que habitam Hong Kong. O Fundo de Previdência Obrigatório (FPO) de Hong Kong obriga assalariados e empregadores a contribuir, mas, em Macau, os descontos para o RPSNO são voluntários. É esperado que, inicialmente, não haja uma grande adesão. É um facto aceite. Nestas circunstâncias, se as futuras entidades gestoras do Fundo forem obrigadas a cobrar uma taxa baixa, provavelmente não se sentirão tentadas a aceitar a função. Se estas entidades forem afastadas da gestão do Fundo, a população de Macau vai sofrer as consequências. A experiência de Hong Kong mostra-nos que as entidades gestoras devem melhorar a sua acção. Se não se regular a este respeito, até um certo ponto, parte das contribuições passarão a ser propriedade das entidades gestoras. O valor a receber após a reforma será naturalmente afectado. Todos sabemos que o investimento não gera necessariamente dinheiro, mas o lucro destas entidades gestoras está garantido porque as verbas provêm do RPSNO. A taxa será, consequentemente, resultado do equilíbrio entre o lucro das entidades gestoras e a protecção oferecida aos residentes de Macau. Em segundo lugar, estas entidades gestoras podem auto-regular as taxas. Podem especificar a percentagem que vai ser cobrada ao investidor, no contrato que celebram. A auto-regulação cria mais confiança porque é clara para todos. Para já, existe apenas uma entidade reguladora que já anunciou a taxa que vai cobrar. É bom que outras entidades lhe sigam o exemplo. A transparência de procedimentos torna o público mais confiante. Para além da questão das taxas, a lei criou a figura “Propriedade Paritária”. É uma forma de assegurar que os empregados têm direito às contribuições feitas pela entidade patronal, mesmo após o termo do contrato de trabalho. Para que esta situação funcione, o contrato de trabalho terá de ter uma duração mínima de três anos. Nestas circunstâncias, o empregado tem direito a 30% das contribuições do empregador. Ou seja, a Propriedade Paritária dos empregados, após três anos de serviço, é de 30% do total das contribuições da entidade patronal. A Propriedade Paritária aumenta 10% a cada ano de serviço. Ao fim de 10 anos, o empregado tem direito a 100% das contribuições do empregador. Os Artigos 53 e 54 de 7/2017 estipulam que, durante os primeiros três anos de aplicação da lei 7/2017, os assalariados ficam isentos de taxas. Ou seja, as contribuições dos empregados são consideradas como despesas da empresa. Ao calcular a taxa atribuída ao patronato, essa quantia, digamos 20.000 patacas, será processada pelo dobro, ou seja 40.000 patacas. A tabela que se segue mostra a percentagem da Propriedade Paritária. Período de contribuições por percentagem da Propriedade Paritária Menos de 3 anos 0% De 3 a 4 anos 30% De 4 a 5 anos 40% De 5 a 6 anos 50% De 6 a 7 anos 60% De 7 a 8 anos 70% E 8 a 9 anos 80% De 9 a 10 anos 90% 10 e mais anos 100% É necessário chamar a atenção para o artigo 34 (2) de 7/2017. Estipula que, se o empregado não tiver direito a contribuições da entidade patronal, pode candidatar-se a receber essas contribuições através da Autoridade para o Fundo da Segurança Social. Imagine-se alguém que começa a trabalhar numa empresa, sendo que os patrões contribuem com 5% do seu salário para o IANMCPF. Mas, no final do segundo ano é despedido. De acordo com esta tabela, o empregado não tem direito a receber o montante das contribuições da entidade patronal. Se a lei permitir que este montante seja devolvido aos patrões, o trabalhador não fica protegido. Seja como for o Regime de Previdência Social Não Obrigatório pode proporcionar um rendimento adicional para os anos de aposentação dos residentes de Macau. E isso são boas notícias.
Sérgio de Almeida Correia Manchete VozesIncompreensões [dropcap style≠‘circle’]1.[/dropcap] No exacto momento que o Secretário para a Segurança do Governo da RAEM se afadiga a justificar a necessidade de regulamentação complementar do artigo 23.º da Lei Básica, referindo a necessidade da criação de uma entidade autónoma com vista à aplicação da lei relativa à segurança do Estado, o Governo da Província de Hainão anuncia o levantamento de restrições à entrada de estrangeiros a partir de 1 de Maio, permitindo que os nacionais de 59 países passem a entrar na ilha sem necessidade de visto, deixando igualmente de ser necessário que o façam obrigatoriamente integrados em grupos. Quererá isto dizer que os dirigentes do Partido Comunista Chinês, em Hainão, estão menos preocupados com a segurança interna do país do que em Macau? Os de Hainão não têm “responsabilidades nos esforços de defesa da segurança nacional”? Ou os governantes de Macau ao quererem reforçar os mecanismos de segurança são mais patriotas do que os de Hainão? O Chefe do Executivo esteve há dias na Assembleia Legislativa a ler as respostas às perguntas que conhecia de antemão, num exercício que deve ter tanto de doloroso para ele como para quem faz as perguntas e depois tem de ficar à espera que as respostas sejam lidas. Das perguntas colocadas houve uma que fugiu ao pacote e dizia respeito ao reconhecimento das cartas de condução do interior da China em Macau. A resposta foi ambígua, meteu tropeção, e a associação cívica do deputado Sulu Sou já veio pedir uma consulta pública sobre o assunto. Por mim, dispenso a consulta. Entra pelos olhos de quem conduz na RAEM, de acordo com o Código da Estrada, como se conduz mal. Dos polícias que mudam de direcção sem usar o pisca-pisca, dos que conduzem pelo lado mais à direita da via em vez de se encostarem à esquerda, sem esquecer os motoristas de táxi e de carrinhas de empresas ligadas aos promotores de jogo, que fazem inversão de marcha em qualquer lado, mudam de direcção como quem boceja, param onde lhes dá jeito – esquinas, passadeiras, linhas amarelas –, e não avisam antes quem segue atrás, sem esquecer os condutores dos autocarros e pesados, profissionais e amadores, e que são peritos em provocar acidentes, não abrandar nos cruzamentos e rotundas, circulando invariavelmente pela via central nos arruamentos do Cotai e não encostando os veículos à berma e nas reentrâncias dos passeios existentes para o efeito quando necessitam de tomar e largar passageiros, podemos ter a certeza de que vai fazer pouca diferença ter mais uns milhares a conduzir em Macau sem saberem fazê-lo. O caos está aí para quem queira vê-lo. A minha dúvida é apenas a de se esclarecer se estará em causa aperfeiçoá-lo. Todos queremos ver a RAEM com mais razões para entrar no Guiness Book of Records. Por falar em caos. O Chefe do Executivo esclareceu-me, via TDM Rádio, que a nova ponte HK/Zhuhai/Macau vai trazer mais turistas. Não sei onde a senhora Directora dos Serviços de Turismo irá enfiá-los, nem quantos serão. De qualquer modo, como para minha casa não irão, e o esclarecimento ficou incompleto, gostaria de saber se foi feito algum “estudo científico”– não é só o socialismo que é científico – que nos elucide sobre se há uma previsão de quanto mais “turistas” serão recebidos por cima destes que já cá temos sentados e de cócoras nos corredores do Venetian, com as malas e os sacos ao lado, à espera das mulheres que se empurram nas perfumarias? Se as casas dos membros do Governo de Macau estivessem inscritas no AirBnb a RAEM sempre ganharia alguma coisa. Como não estão, e se não for perguntar demais, gostaria também de saber se os quartos e jardins do palacete de Santa Sancha poderão ser graciosamente disponibilizados pelo Senhor Chefe do Executivo para permitir que pelos menos uma pequena parte desses turistas aí possa pernoitar ou acampar (o campismo selvagem ainda não é permitido em Coloane, mas tenhamos esperança)? Em 27/10/2015, a edição do Macau Daily Times referia que a qualidade do ar em Macau habitualmente ficava aquém dos objectivos definidos pelo Governo da RAEM. Em 18/04/2017 a TDM informava que a qualidade do ar piorara em 2016, tendo havido “menos 25 dias de ar “bom” na Rua do Campo, uma das avenidas mais poluídas da cidade, e mais dias (19) de ar “insalubre” na zona norte“. Esta semana ficámos também a saber que a situação voltou a agravar-se e em que as coisas em 2017 pioraram face a 2016: “estações de monitorização de Macau registaram, ao longo do ano passado, aumentos do número de dias com qualidade do ar considerada “insalubre”, face a 2016. A Taipa foi a mais atingida: registando 28 dias “insalubres”, a somar a um “muito insalubre”, ocorrido no mês de Setembro, revelam dados divulgados ontem pela Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC)“(fonte: HojeMacau, Diana do Mar, 19/04/2018). Se não for demasiado incómodo, haverá alguma alma caridosa que me possa explicar sobre o que se fez para atalhar a esta situação nos últimos 3 anos? Por fim, para não cansar os leitores, mais duas incompreensões: a) A primeira é atinente Terminal Marítimo da Taipa. Gostaria de perceber (i) por que motivo uma série de lugares, por sinal os mais convenientes no acesso ao terminal, passaram a estar vedados ao público, embora estejam às moscas e reservados para entidades que, daquilo que percebi, nem sequer pagam estacionamento?; (ii) há alguma razão para as máquinas de pagamento automático dos bilhetes estarem em regra indisponíveis; (iii) por que razão há falta de lâmpadas nas escadas de acesso; e (iv) por que continua a haver longas filas nos táxis?; b) A segunda é também respeitante aos táxis, mas desta vez no Aeroporto Internacional. No dia 8 de Abril pp., entre as 19h e as 20h, quando regressei à RAEM, havia umas 40 pessoas na fila dos táxis. Esta situação é compatível com o estatuto de cidade internacional e de turismo que o Governo da RAEM publicita?
Tiago Bonucci Pereira VozesInvestimento Chinês em África [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]este texto traça-se um panorama geral das relações comerciais entre a China e África, bem como da natureza dos investimentos chineses. O assunto é complexo, mas pretende-se aqui identificar as principais variáveis, aspectos problemáticos, “mitos” propagados, bem como perspectivas futuras. As exportações chinesas para África têm se mantido relativamente estáveis nos últimos anos. No entanto, entre 2014 e 2015, as exportações de África para a China caíram 66 por cento em valor, fundamentalmente devido à queda do preço do petróleo, a principal importação chinesa. Recursos naturais constituem o grande bolo das importações chinesas, pelo que as flutuações do mercado encontram correspondência imediata nos valores de exportação para a China que, de 2014 para 2015, regrediram para valores de 2007, tendo-se mantido estáveis de 2015 para 2016. Em termos de investimento directo estrangeiro (IDE), entre 2003 e 2016 regista-se um aumento contínuo de fluxo agregado de IDE da China em África, de 500 milhões de dólares americanos (USD) em 2003, para 39.9 mil milhões de USD em 2016. Neste capítulo, embora os Estados Unidos da América (EUA) continue a liderar as estatísticas, os anteriores valores representam, em termos relativos, respectivamente 2 por cento e 70 por cento do stock de IDE dos EUA em África, o que reflecte também a estagnação de investimento americano no continente no período pós crise económico-financeira do final da década passada. A queda de valor de bens primários nos últimos anos resultou num novo padrão no direccionamento do IDE chinês em África. Países ricos em recursos naturais como Angola e a Nigéria viram acentuadas quedas no IDE chinês, enquanto que países como o Quénia, Etiópia e Tanzânia sairam beneficiados. O IDE chinês incide principalmente nos sectores mineiro, construção e indústria transformadora, sector este que ganhou proeminência nos últimos anos com a tranferência de operações de empresas chinesas para África, fruto do aumento dos custos laborais na China. No que concerne empréstimos da China a governos e empresas estatais de países africanos, é de referir que valores por vezes divulgados na imprensa são manifestamente exagerados. A publicação The Economist Corporate Network, por exemplo, reportava em 2015 que os bancos estatais chineses (China Eximbank, China Development Bank, CDB) tinham-se comprometido com financiamentos num total de cerca de 1 bilião de USD durante a década seguinte, valor exagerado em pelo menos uma ordem de grandeza. Um olhar crítico sobre reportagens como a citada permite desvendar a origem destes exageros. Para que empresas chinesas, e governos africanos, possam requisitar financiamento a bancos chineses, precisam de ter à partida um contrato assinado. Por vezes são anunciados projectos na sequência da assinatura de memorandos de entendimento, que raramente têm resultados prácticos. O padrão identificado anteriormente para o comércio e investimento directo estrangeiro é observado também na análise de financiamento chinês para África: crescimento acentuado até 2013, seguido de ligeiro decréscimo. Entre 2000 e 2015 a China providenciou um total de 95 mil milhões de USD em empréstimos e linhas de crédito para governos e empresas estatais africanas. O maior beneficiário destes empréstimos foi Angola (20 por cento), seguido da Etiópia (14 por cento) e o Quénia e o Sudão (7 por cento). Os empréstimos são dirigidos maioritáriamente (63 por cento) para os sectores de transportes (construção e manutenção de estradas; caminhos-de-ferro), energia (projectos hidroeléctricos; linhas de transmissão de energia; gasodutos; centrais eléctricas a carvão e gás) e telecomunicações. O sector mineiro absorve 10 por cento dos empréstimos, sendo que estes consistem maioritariamente (mais de 80 por cento) em linhas de crédito para a empresa estatal angolana Sonangol. Apenas um terço dos empréstimos são garantidos com bens primários, prática usual para investimentos em países considerados de alto risco, mas que possuem bens que investidores consideram que ajudam a cobrir os riscos associados a investimentos nesses países, nomeadamente o risco de incumprimento. Trata-se de resto de uma prática da qual a própria China usufruiu no início do seu processo de reforma e abertura. Estima-se que linhas de crédito (garantidas com petróleo) providenciadas pelo China Eximbank ao governo angolano tenham financiado a construção de 127 obras públicas. É esta, portanto, a principal razão para a utilização deste modelo de financiamento, e não tanto a tentativa de garantir acesso a recursos naturais. O exemplo de Angola é ilustrativo: a China importa cerca de metade do petróleo produzido por Angola, mas companhias petrolíferas chinesas apenas possuem cerca de 10 por cento da produção de petróleo angolano, mercado que é dominado por empresas ocidentais como a ExxonMobil e a Total. Os termos contratuais associados aos empréstimos dos bancos estatais chineses impõem sempre a preferência pela utilização de bens e serviços da China. A controvérsia associada a esta relação entre financiamento chinês e fornecedores chineses tem origem sobretudo na ideia errada que financiamento chinês em países em vias de desenvolvimento corresponde a ajuda ao desenvolvimento, quando a função de todos os bancos exportação-importação, como o China Eximbank ou o US Eximbank, é precisamente o de providenciar acesso ao crédito para compradores de bens do país. Ou seja, muito do que é dito sobre a abordagem chinesa em matéria de investimentos em África não corresponde à verdade. A abordagem é fundada em princípios comerciais, e busca a expansão comercial chinesa, estando integrada no Going Out Policy. Recursos naturais constituem um aspecto fundamental nesta relação entre a China e África (tal como na relação entre África e os EUA e a União Europeia), constituindo a larga maioria das importações chinesas. Todavia, é importante lembrar que a própria China foi até 1993 um exportador líquido de petróleo, e que na fase inicial do seu processo de reforma celebrou vários acordos de compensação comercial em termos semelhantes aos que propõe a países africanos. A volatilidade do mercado de bens primários pôs a nu fragilidades associadas à dependência excessiva de alguns países em recursos naturais, incluindo dificuldades ao nível de pagamento de dívidas. A situação actual deve, portanto, funcionar como um incentivo para diversificar a economia e promover a boa governança (países como o Quénia e a Etiópia têm feito progressos significativos neste capítulo). No fim de contas, é a melhor forma de conquistar a confiança de investidores. A China é, hoje em dia, um player incontornável em África. Mas existem aqui também desafios importantes para o lado chinês. Como referia em 2007 o antigo Presidente Moçambicano Joaquim Chissano numa conferência em Oxford dedicada ao tema de perspectivas futuras para ajudas ao desenvolvimento “devemos procurar formas de aliar ajuda à atracção de recursos para o sector privado, por forma a apoiar a emergência de uma classe empresarial robusta com uma participação forte nas economias nacionais”. Ajuda externa representa uma fracção minoritária do financiamento chinês, mas a lógica é aplicável ao discurso de “benefício mútuo”. O sucesso em África serviria como exemplo noutras faixas e noutras rotas.
Leocardo VozesAqui ao lado, mas tão longe [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] ssisti no serão do último Sábado na TDM ao programa “Portugueses no estrangeiro”, que desta vez foi dedicado à comunidade portuguesa residente em Hong Kong. Veio mesmo a calhar, uma vez que nesse mesmo dia eu próprio tinha voltado do território vizinho, e fiquei com curioso em saber o que pensavam os meus compatriotas ali residentes daquela cidade tão fantástica, cosmopolita e multicultural. Não posso dizer que fiquei desiludido; a palavra adequada seria “perplexo”. Aqueles portugueses em Hong Kong são muito diferentes de nós daqui, deste lado do Rio das Pérolas. Não quero generalizar, uma vez que o programa incidiu apenas sobre o dia a dia de meia dúzia de entrevistados, mas que em comum tinham todos assim uma espécie de desprendimento ao local para onde foram residir. Pode-se mesmo dizer que estão em Hong Kong, sim, mas não com os dois pés. Não ao sei ao certo quantos portugueses vivem em Hong Kong, mas os últimos dados a que tive acesso davam conta de “cerca de cinco mil” – mais do que em Macau, mas é preciso ter em conta que Hong Kong tem 7 milhões de habitantes. Estes portugueses são sobretudo pessoas que trabalham para empresas multinacionais, e foram colocados a trabalhar no sul da China, e é possível que existam outros que foram para ali à aventura, mas devem ser poucos, pois na apreciação que estes camaradas lusitanos fazem de Hong Kong, nota-se que é um lugar “longe demais” para o seu gosto. Dois deles foram bem claros nesse aspecto. Uma senhora diz que “gosta de Hong Kong”, mas “gostaria de ser colocada em Portugal, ou pelo menos na Europa, perto de Portugal”, terminando contudo por recordar “está bem em Hong Kong”. E melhor estaria, não fosse a enorme vontade que tem de desopilar dali para fora. Em relação à questão da adaptação à cidade, à cultura e tudo mais, houve um testemunho em particular que me deixou siderado. Uma senhora que trabalha para uma empresa de estampagens (coisa que segundo ela tem imensa saída, pois os jovens de Hong Kong “são muito infantis”) descreve os honconguenses de uma forma que não estando de todo errada, é certamente bastante redutora. Em termos de aparência, “preferem o branco”, e as mulheres “colocam pó branco no rosto, nas sobrancelhas, e há um cosmético que serve para prender as pestanas e fazer os olhos parecem maiores”. Quanto ao vestuário “muito diversificado”, e em Hong Kong “podem andar na rua de pijama, se quiserem, que as pessoas aqui não olham uma para as outras”. E é isto. Repito, nada do que está ali é mentira, mas já li relatórios da Pide onde detectei mais calor humano. Não se pedia que fosse demonstrado entusiasmo, ou deslumbramento (e por um lado ainda bem que assim foi), mas um pouco mais de sensibilidade, quiçá? Tentar entender melhor as pessoas e o meio que as rodeia? Digo eu, e se calhar estou completamente equivocado. Finalmente, aprendi ainda que há portugueses em Hong Kong que “recebem amigos de Macau” ao fim-de-semana, e num dos casos descritos, recebem-nos “semana sim, semana sim”. Sem dúvida, e aqui não há nada a apontar. Pudesse eu fazer o mesmo, e me desse vontade, também passava todos os fins-de-semana e feriados aqui ao lado. Em Hong Kong há aquele bichinho das grandes cidades que atrai as pessoas que, como eu, são apreciadores desse estilo de vida. Macau foi assim um bocadinho, em tempos, com as devidas distâncias, lógico. Cheguei a ficar com a sensação que podia ter continuado a ser, durante um instante, pouco depois da transferência de soberania. Entretanto fez-se uma limpeza, chegaram os casineiros do oeste, e passamos a ter uma cidade onde o entretenimento é pasteurizado, empacotado e esterilizado. Não trocaria Macau por Hong Kong para viver, nada disso, mas é bom saber que existe aqui este gigante ao lado. Para as pequenas grandes coisas.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO progresso da China [dropcap style=’circle’]O[/dropcap] colossal progresso da China nas últimas décadas apanhou muitos analistas ocidentais de surpresa. Os que previam um futuro pessimista para o país acabaram por estar errados. A China é a maior economia do mundo em termos de “Paridade de Poder de Compra (PPC) ” (método para se calcular o poder de compra de dois países), com a maior classe média do mundo, reservas cambiais, classe proprietária e número de turistas que passeiam pelo exterior. A China também é o líder mundial em energia renovável em termos de investimento e produção, e do multilateralismo e globalização. A China tem a sua parcela de problemas, alguns dos quais são sérios e exigem soluções cuidadosas, mas o sucesso geral do país ao longo destes anos é incontestável. A que se deve este sucesso? Alguns estudiosos afirmam que é devido ao “Investimento Estrangeiro Directo (IDE)”. O “Relatório dos Investimentos Mundiais de 2017”, publicado pela “Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), classifica a China como sendo o segundo maior recebedor de IDE do mundo, ultrapassado apenas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. A recepção de IDE é parte da política de abertura da China ao mundo, e em 2016 foi de cento e trinta e três mil milhões de dólares, enquanto os fluxos de IDE da China para o exterior foram de cento e oitenta e três mil milhões de dólares. É de realçar que a Europa Oriental recebeu muito mais IDE em termos per capita; outros analistas afirmam que é devido a uma abundância de mão-de-obra barata, mas a Índia e a África fornecem ofertas menos dispendiosas; alguns afirmam que é devido a um estilo de governo autoritário, mas governos denominados de autoritários abundam na Ásia, na África, na América Latina e no mundo árabe sem o mesmo nível de sucesso que a China. Se essas explicações por si só se revelarem insuficientes para explicar como a China alcançou o seu êxito, deve-se procurar em outros lugares as respostas. Em essência, tem a ver com a natureza fundamental da China como Estado e o seu modelo de desenvolvimento. A China não é uma Alemanha Oriental alargada, nem é qualquer outro estado socialista comum. É um Estado civilizatório, indubitavelmente talvez o mais singular, uma vez que é o único país do mundo com uma história de Estado unificado por mais de dois mil anos. É também a única civilização do mundo a durar continuamente por mais de cinco mil anos, reunida em uma grande nação moderna. Qualquer país deste tipo é obrigado a ser exclusivo. A China é uma amálgama de quatro factores, ou seja, uma população enorme, um território super dimensionado, tradições longas e uma cultura extremamente rica. A China possui uma população maior que as populações totais da União Europeia, Estados Unidos, Rússia e Japão. O “Festival da Primavera da China” que se realiza anualmente, tem uma média de mais de três mil milhões de viagens nas vastas redes de transporte do país, o que equivale a mover as populações das Américas, Europa, Rússia, Japão e África de um lugar para outro em menos de um mês, o que serve de alguma forma para descrever a grandeza do país, bem como os desafios e oportunidades que se esperam. Os mais importantes líderes da China moldaram em grande parte o progresso do país, bem como o seu modelo único de desenvolvimento, do qual alguns remédios podem ser inspiradores. A filosofia orientadora do país é a de procurar a verdade a partir dos factos. Esse antigo conceito chinês foi revivido por Deng Xiaoping, o arquitecto do programa de reforma da China, após a revolução cultural de 1966 a 1976. Deng acreditava que os factos, emanados do Oriente ou do Ocidente, deveriam servir como critério último para estabelecer a verdade. Ao examinar os factos contemporâneos, a China concluiu que nem o modelo soviético de comunismo, nem o sistema ocidental de democracia liberal poderiam realmente habilitar um país em desenvolvimento a alcançar a modernização. A China decidiu explorar o seu caminho de desenvolvimento e, em 1978, adoptou uma abordagem pragmática de tentativa e erro para o seu programa maciço de desenvolvimento. Tal decisão constitui o fundamento filosófico do modelo da China que é o de colocar os meios de subsistência das pessoas em primeiro lugar, como conceito tradicional na governança política chinesa. Deng deu prioridade à erradicação da pobreza como principal objectivo nacional e prosseguiu uma estratégia realista. A reforma da China começou no campo, dado que a maioria dos chineses eram habitantes rurais. O sucesso dessas reformas iniciais colocou a economia chinesa em movimento e provocou uma reacção em cadeia, levando ao surgimento de milhões de pequenas e médias empresas, que imediatamente representaram mais de metade da produção industrial da China, preparando o caminho para a rápida expansão de indústrias manufactureiras e comércio exterior. A atenção da China para colocar os meios de subsistência das pessoas em primeiro lugar pode ter implicações positivas a longo prazo de forma a ampliar e melhorar os direitos económicos, sociais e culturais do povo. A natureza gradual da reforma é outro aspecto crucial do desenvolvimento do país, pois dado o seu tamanho e complexidade, Deng estabeleceu uma estratégia prudente descrita como “Atravessar o rio sentindo as pedras”, o que significa que mesmo que a China estivesse a avançar em novas direcções, precisava de permanecer com os pés assentes no chão, melhorar, sentir o caminho a seguir, mesmo no meio da incerteza e dessa forma incentivar a experiência em todas as grandes iniciativas de reforma, uma abordagem exemplificada pelas zonas económicas especiais da China, nas quais as novas ideias, como a venda de terrenos, empreendimentos conjuntos de alta tecnologia e uma economia orientada para a exportação foram testadas. Apenas quando as novas iniciativas estão provadas como aptas a funcionar, devem ser alargadas a todo o país. A China rejeitou a terapia de choque e trabalhou através das suas instituições, imperfeitas, gradualmente reformando-as para melhor servir o desenvolvimento e a modernização do país. A China tentou combinar a força da mão invisível do mercado com a mão visível da intervenção estatal para corrigir as falhas do mercado no que se tornou conhecido como a economia de mercado socialista. À medida que as forças do mercado foram libertadas pela mudança económica tremenda da China, o estado chinês garantiu a macro estabilidade política e económica, afastando o país das catástrofes financeiras em 1997 e 2008. O governo, actualmente, está a procurar uma estratégia para promover as energias renováveis e abraçar a nova revolução industrial e científica. O modelo de economia mista não é perfeito, mas desde a sua criação em 1992, a China é a única grande economia mundial que não sofreu crises financeiras ou económicas, enquanto o padrão de vida das pessoas está a aumentar de forma mais rápida que em qualquer outro lugar do mundo e a sua contribuição para o crescimento da economia mundial é maior que a dos Estados Unidos, Europa e Japão, em conjunto. O modelo não é perfeito, mas está a melhorar mais que outros modelos, quiçá inclusive que o do Ocidente. A transformação da China foi liderada por um Estado visionário e orientado para o desenvolvimento. O Estado chinês é capaz de moldar o consenso nacional sobre a necessidade de reformas e modernização e garantir a estabilidade política e macroeconómica global, bem como procurar objectivos estratégicos difíceis, como a aplicação da reforma das empresas estatais e do sector financeiro e estimular a economia contra a desaceleração global e que tem origem em uma tradição confuciana de um Estado forte e benevolente apoiado pela meritocracia a todos os níveis. É de considerar que apesar das suas fraquezas, ao longo das últimas quatro décadas, o Estado chinês presidiu ao crescimento económico mais rápido e à melhoria dos padrões de vida na história humana, e os principais inquéritos independentes, incluindo os da “Pew Research Center (PEW)”, que é uma organização não partidária que informa o público sobre as questões, atitudes e tendências que moldam o mundo, realizando pesquisas de opinião pública, demográfica, análise de conteúdo e outras no âmbito das ciências sociais orientadas a dados e que não tomam posições políticas e da “Ipsos”, que é uma organização que realiza estudos sobre pessoas, mercados, marcas e sociedade, fornecendo informações e análises que tornam o mundo complexo mais fácil e rápido para navegar e inspira os destinatários a tomar decisões mais inteligentes assim revelam. Ambas as organizações mostraram um padrão consistente no qual as autoridades chinesas tiveram um alto grau de respeito e apoio no país. A pesquisa da “Ipsos”, em 2016, mostra que 90 por cento dos chineses ficaram satisfeitos com o rumo que o país estava a levar, enquanto apenas 37 por cento dos americanos e 11 por cento dos franceses disseram o mesmo para os seus respectivos países. Segundo a pesquisa as pegadas dos turistas chineses foram encontradas em todos os cantos do mundo entre 2014 e 2016. As cidades asiáticas ainda eram os destinos mais escolhidos pelos turistas chineses (77,67 por cento), seguidos das cidades europeias (32,07 por cento) e das cidades americanas (20,29 por cento). A Coreia do Sul e o Japão eram os destinos mais populares na Ásia, seguidos por cidades no sudeste da Ásia. Na Europa, a França, Grã-Bretanha e Itália foram os mais visitados e, na América, os Estados Unidos. As cidades com voos directos foram mais visitadas pelos turistas chineses. A reputação dos voos também teve um impacto directo em excursões para esses destinos. A Ásia é a escolha preferida dos turistas chineses, mas à medida que o seu rendimento aumentava, tendiam a escolher viagens de média e longa distância, primeiro para a Europa, depois para a América, Oceânia e África. A pesquisa mostrou que, embora o número absoluto de turistas chineses para a África fosse pequeno, o crescimento era proeminente. As dez cidades que os turistas chineses escolheram para viagens de curta distância, em 2016, foram Seul, Bangkok, Tóquio, Osaka, Nagoya, Ilha de Jeju, Singapura, Incheon, Kobe e Nara e as dez cidades que os turistas chineses escolheram para viagens de longa distância foram Paris, Londres, Sydney, Los Angeles, Roma, Nova Iorque, Washington, São Francisco, Melbourne e Veneza. Descrever a política da China como falta de legitimidade ou mesmo à beira do colapso, como por vezes aparece nos meios de comunicação social, é estar fora de contacto com a realidade da China. A experiência chinesa, desde 1978, mostra que o teste final de um bom sistema é até que ponto pode garantir a boa governança julgada pelas pessoas. A dicotomia sagrada da democracia versus a autocracia é por vezes vazia no mundo complexo que vivemos, dado o grande número de democracias mal governadas em todo o mundo. A experiência da China pode, eventualmente, criar uma mudança paradigmática no discurso político internacional longe dessa dicotomia antiga para uma nova, de boa versus má governança, na qual a boa governança pode parecer um sistema político ocidental ou um não -ocidental. De igual forma, a má governança pode assumir a forma do sistema político ocidental ou não. Em resposta ao politólogo americano, Francis Fukuyama, autor do livro “The End of History e Last Man”, actualmente não se vive o fim da história, mas o fim do fim da história, não sendo apenas bom para a China, mas beneficiando o Ocidente e o mundo, dado que se pode explorar conjuntamente novas formas e melhor governança e desenvolvimento no interesse da humanidade.