Tânia dos Santos Sexanálise VozesDo Prato para o Sexo [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] comida com ou sem sexo poderia ser uma questão útil, mas raramente o é. Estou a ver muitas ligações entre uma coisa e outra, os dois são necessários (talvez um mais do que o outro) e dão prazer. Se pudermos juntar os dois prazeres numa experiência conjunta teremos prazer ao quadrado, diriam os matemáticos. Mas como é que se quantifica o prazer gustativo e o prazer sensual, e de que forma se equacionam estas propriedades do prazer na recriação da experiência humana? Já todos ouviram falar do chocolate, certamente. O chocolate produz químicos nos nossos cérebros que são os mesmos do prazer sexual. Mas comer chocolate não é a mesma coisa que a penetração de corpos. Podia ser a mesma coisa, mas certamente que não é. Um ‘foodgasm’ não é um orgasmo, nem a pornografia tem muito que ver com a tão recentemente popularizada ‘food porn’. O sexo é particular a uma intimidade das gentes e do tesão. A comida é prazerosa de uma forma não sexual, ou não sensual, ou será que é? As ostras parecem vulvas descobertas, as bananas e os pepinos são (escandalosamente) fálicos. O abacate e a papaia desenham vaginas, as tartes de maçã… não se parecem com nada, mas já iniciaram a sexualidade de certos jovens de uma certa realidade cinematográfica. O estímulo visual pode provocar a imaginação, mas o melhor são as propriedades ditas afrodisíacas de certos alimentos. São precisos nutrientes que mantêm a erecção e lubrificação. Dizem os especialistas que os espargos, por exemplo, fálicos e cheios de vitamina E e potássio são óptimos para manter a irrigação sanguínea nas partes que interessam. Os abacates e as ostras ajudam na produção de testosterona, os morangos, um clássico do romance, estão cheios de coisas boas para a produção de hormonas. Enfim, já perceberam a ideia, não quero ser uma enciclopédia nutricional. Mas por favor, deixem-me constatar o óbvio que falta ser reforçado: comidinha saudável, corpo são e o sexo acompanha os benefícios. Para ninguém se convencer que comer abacates em quantidades industriais tem o mesmo efeito instantâneo que o Popeye e os espinafres. Falta a comida no sexo – a comida que acompanha a penetração que referi há pouco. Talvez um clássico de morangos com chantilly, ou uma prática para dias especiais, para quando se precisa de um ‘picante’ na relação sexual. Picante esse, acautelem-se, para ser consumido e não ser esfregado em lugar nenhum. Os mais cautelosos ainda sugerem que comida nenhuma poderá ser inserida nas partes íntimas, mas que pode (e deve) ser abusada na pele. Para os interessados na logística, esta não é uma actividade para quem gosta das coisas limpas. Porque corpos nus, esfregadelas e uns amassos com comida à mistura, vai certamente deixar muita desarrumação e sujidade. Lençóis, o chão, ou qualquer outra superfície manchados de chocolate líquido e outros que tais… Mas para quem não tem problemas com isso, regozigem-se com a exploração oral de corpos e sabores. Aliás, parece que os japoneses têm tradições gustativas ainda mais requintadas. O nyotaimori que até já chegou ao ocidente (apesar de ter sido recebido com muitos protestos) é a prática de usar mulheres nuas como pratos de sushi. Ou outra – e esta não percebi se era verdade ou não – de usar o pequeno recipiente que as pernas fechadas de uma mulher criam, e lá verter licor para ser cuidadosamente consumido em infusão com a penugem típica da região. Isto é só puxar pela imaginação e aproveitar as propriedades nutricionais e quiçá afrodisíacas para uma sexualidade e alimentação feliz. A equação que leva o prato ao sexo não é complexa, é simples, é só juntar os ingredientes e ter a vontade certa. Prazer ao quadrado, será?
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesO autocarro da tragédia [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ntes do mais, Feliz Ano Novo a todos os meus leitores. Desejo-vos tudo de bom no Ano do Cão. Esperava-se que nesta época todos os chineses estivessem felizes, a celebrar na companhia das suas famílias. No entanto, isso não foi verdade para todos, porque no dia 10 de Fevereiro houve um terrível acidente com um autocarro que provocou 19 vítimas mortais e 67 feridos. Por volta das 6:15h da manhã, um autocarro da KMB, da carreira 872, vinha de Sha Tin com destino a Tai Po. Alegadamente o condutor perdeu o controlo do veículo numa curva perto de Tai Po Mei, o autocarro despistou-se e capotou sobre um dos lados. Os passageiros afirmaram que o condutor vinha a descer a rua a toda a velocidade. Aparentemente o motorista tinha sido informado que estava a circular com atraso. “Você está 10 minutos atrasado” terá dito um passageiro ao condutor. “Ele estava irritado porque algumas pessoas reclamaram do atraso e nessa altura começou a conduzir como se fosse a pilotar um avião.” Outro passageiro afirmou: “Ele estava a conduzir muito depressa, demasiado depressa para quem vem numa descida.” O motorista foi detido por condução perigosa, causadora da morte de vários passageiros e de ferimentos graves em muitos outros e aguarda o desenrolar das investigações. Após a ocorrência deste acidente, o mais mortal dos últimos 15 anos envolvendo um autocarro, a Chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam Cheng Yuet-ngor, cancelou a agenda que tinha programada para o segundo dia do Novo Ano Lunar. O gerente da KMB, Godwin So Wai-kei, declarou que o motorista, de 30 anos de idade, tinha ingressado na companhia em 2014. Em Setembro passou a trabalhar a tempo parcial. O condutor conhecia bem esta carreira, que só se efectua em dias feriados, e tinha realizado este percurso há três semanas atrás. O condutor tinha efectuado turnos de sete horas nos últimos quatro dias e, no Sábado, tinha um turno de quatro horas. O administrador da KMB, Roger Lee Chak-cheong, declarou que 560 dos 8300 motoristas ao serviço da companhia trabalham a tempo parcial. Destes, 80 por cento têm mais de 60 anos e foram readmitidos após a reforma. “Os motoristas a tempo parcial, desempenham um papel importante nas companhias rodoviárias, especialmente durante as horas de ponta, porque ajudam a colmatar as necessidades extra.” “[Mas] aos olhos da opinião pública … os motoristas a tempo parcial podem causar alguma desconfiança. Nesta altura, esperamos poder proporcionar aos passageiros condições que os façam sentir-se mais confiantes.” Estas declarações levantam outra questão. Nos dias que se seguiram ao acidente, vários representantes do sindicato dos motoristas criticaram a KMB por não monitorizar mais de perto o trabalho dos funcionários temporários. Estas declarações dão resposta às causas do acidente, às preocupações dos funcionários e do público? Ninguém sabe ao certo, mas a KMB suspendeu temporariamente as escalas de 209 motoristas temporários, bem como a contratação de novos condutores a tempo parcial, para atenuar as inquietações do público. No entanto, este caso não termina aqui. Neste momento, existe um movimento que reclama melhores salários e melhores condições para os motoristas. As negociações com a administração da KMB não deram bom resultado e ficou marcada uma greve para os dias 24 e 25 deste mês. Mas será que existe uma relação directa entre a greve e o acidente? Por enquanto, ninguém sabe. Seja como for, as declarações dos motoristas efectivos sobre a necessidade de monitorizar mais de perto o trabalho dos seus colegas temporários, indicam que se deverá dar mais atenção a este aspecto. Existem vantagens óbvias no recrutamento de pessoal a tempo parcial em Hong Kong. A Lei do Trabalho estabelece claramente que os trabalhadores a tempo parcial usufruirão apenas dos benefícios definidos no contrato. Ou seja, os benefícios estatutários estabelecidos na lei não se aplicam a estes trabalhadores. Desde que o empregador pague o salário mínimo e faça as contribuições para o fundo social não se levantam mais questões. A empresa não terá de garantir férias, nem licenças de maternidade, nem outros benefícios, ao contrário do que é obrigada a fazer com os trabalhadores efectivos. Os custos operacionais com os trabalhadores efectivos são muito superiores àqueles que a empresa suporta com os trabalhadores temporários. Mas, se por um lado os trabalhadores a tempo parcial ajudam a empresa a reduzir custos, por outro lado levantam alguns problemas. A falta de compromisso da empresa para com o trabalhador gera necessariamente falta de empenho, não existe incentivo para uma dedicação ao trabalho. No final acabam sempre no desemprego. Além disso, é natural que os trabalhadores temporários tenham prioridade na escolha dos horários. Se não houver horários disponíveis os temporários não trabalham. Mas como a empresa não quer que isso aconteça, a maior parte das vezes é dada aos temporários a prioridade na escolha das escalas de serviço. Numa empresa em que o trabalho tem de ser escalonado, os efectivos devem dar prioridade aos temporários na escolha dos horários. Mas será que a escala preferencial é a melhor escala? A resposta fica em aberto. Ao contrário de Macau, em Hong Kong os horários nocturnos não são mais bem remunerados. Quem trabalha à noite recebe o mesmo do que quem trabalha de dia. Agora imagine que é um trabalhador efectivo. Nestas condições, permitia que o trabalhador temporário trabalhasse de dia e deixasse a noite para si? Estes problemas existem em todas as empresas com trabalho escalonado e trabalhadores efectivos e temporários. Não são exclusivos da KMB. De qualquer forma vale a pena discutir estas questões, até porque, recentemente, o Governo de Macau anunciou que pretende criar uma nova legislação para regular as relações entre empregadores e trabalhadores a tempo parcial. Segue-se a transcrição do parágrafo 2.2 da proposta: “2.2. Breve apresentação do regime de trabalho a tempo parcial Assim como foi referido atrás, quando foi elaborada a Lei n.º 7/2008 (Lei das relações de trabalho), a 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, após discussão, concordou que, dada a natureza das relações de trabalho a tempo parcial e a modalidade da sua prestação de trabalho, seria necessário regulamentar esse tipo de relações de trabalho segundo um regime diferente, por isso a “Lei das relações de trabalho” estipula que o trabalho a tempo parcial é regulado por legislação especial. Nessa altura, a 3ª Comissão expressou que o trabalho a tempo parcial só era diferente em termos da duração de trabalho, e que essa diferença deveria ser contemplada por lei, através do princípio da proporcionalidade e da equiparação de conteúdos funcionais.” Este parágrafo demonstra claramente que o trabalho a tempo parcial só se deverá diferenciar pela duração e que todos os benefícios deverão ser proporcionais a quem trabalha a tempo inteiro. A ideia é boa. Mas será que pode vir a resolver todos os problemas levantados pelo trabalho tempo parcial, necessariamente mais precário? Além disso se os trabalhadores efectivos fizerem horas extraordinárias, como é que serão reguladas? As “horas extraordinárias” equivalerão a trabalho “a tempo parcial”? Esperemos que a nova legislação venha dar resposta a estas dúvidas.
Carlos Morais José Manchete VozesAnálise / Xi Jinping | O grande passo atrás [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] proposta de alteração da constituição chinesa, nomeadamente a remoção do limite de dois mandatos para presidente e vice-presidente, feita pelo Partido Comunista Chinês e ainda não aprovada, constitui um passo atrás na História, um golpe profundo nas aspirações “científicas” do regime e um abrir de uma caixa de Pandora de onde poderão sair malefícios dispostos a afectar o mundo. Não foi por acaso que Deng Xiaoping introduziu esta norma, até aí e ainda hoje inexistente no dito “mundo socialista”. A China acordava do pesadelo da Revolução Cultural, na certeza de que seguir a vontade de um só homem podia conduzir o país ao descalabro. Sabiamente, Deng compreendera que a libertação das forças produtivas implicava também uma mudança significativa na estrutura do poder, de modo a que não se criassem as condições para uma repetição da História que, sabemos desde Marx, acontece primeiro como tragédia e depois como farsa. Ora se a Revolução Cultural representa uma trágica repetição da História, nomeadamente da violenta ascensão da dinastia Qin e da destruição cultural subsequente, o regresso da China a um tenaz comando centralista e providencialista provavelmente desenrolar-se-á como farsa, sob a luz dos holofotes mediáticos, numa teatralidade já obsoleta, que não seduzirá gente esclarecida. Isto porque confiar na existência de homens providenciais é tique de um mundo antigo, enraizado na superstição e no alívio da submissão, distante da pretensão de cientificidade que o PCC gosta de utilizar no seu discurso e na definição dos seus objectivos. Na verdade, trata-se de uma desgraça, velha como o mundo, áspera como balas e de consequências funestas. Existe aqui algo de religioso neste pensamento que, no século XXI, deveria estar totalmente afastado, erradicado, sanitizado, dos meandros do poder. Até porque o culto da personalidade, por muito que agrade às informes massas, deve ser mantido nos limiares das revistas de famosos, na medida em que roça o ridículo numa mente esclarecida, contemporânea e, sobretudo, escaldada pelo “carisma” de alguns personagens do século XX. Trata-se, no limite, de algo exorcizado por Deng Xiaoping, cuja sabedoria proporcionou à China o lugar que hoje ocupa no plano internacional e impulsionou o crescimento interno que espanta o mundo. Infelizmente, agora prevê-se o regresso de um certo infantilismo de cariz popular, insuportável a olhos lúcidos e a ouvidos educados, na medida em que desvenda o aspecto teatral do relacionamento do poder com as massas populares. Xi Jinping, que se apressou a classificar de “nihilismo histórico” o pensamento filosófico finissecular europeu (pós-moderno), não deveria precisar de importar os valores escatológicos do Ocidente (judaico-cristãos) para justificar um Mandato do Céu. A China implementava o discurso do “governo científico”, mais assente na máquina do Partido do que na benevolência e sapiência de um só homem. E com esta postura distinguia-se de outros países ditos comunistas ou pós-comunistas. Inaugurava, para gáudio de alguma esquerda, um novo sistema de transferência de poder em ambiente autoritário, que garantia alguma alternância, luta política, portanto, satisfação. Sem perder mão das rédeas, nem deixar de picar o cavalo na direcção pretendida e apresentando tremendos resultados económico-sociais. Tudo isto sem recorrer ao abstruso culto da personalidade ou mesmo evitando-o como Maomé evitava o toicinho, pois lembrava-se ainda na pele dos efeitos maléficos de tal sorte. Resta equacionar, sobretudo pelos actuais líderes chineses, se esse extraordinário desenvolvimento económico-social não foi precisamente consequência do novo ordenamento político e motivado pela constitucional e inevitável sucessão: do mesmo modo que as forças produtivas se libertavam no mercado e na sociedade, também as forças políticas prosperavam no interior do PCC e o horizonte certo de mudança não só motivava a criatividade como pacificava a mecânica dos desejos. Ao impor a alternância, a constituição pacificava as facções excluídas dos lugares cimeiros, porque instituía a possibilidade de ascensão. Neste sentido, a alteração constitucional parece um passo pouco inteligente, pelo qual o PCC se extirpa dessa dinâmica que o manteve a flutuar à tona da sociedade chinesa, sem contestações de maior, durante os anos rebeldes da transformação. Xi Jinping, seguindo um famoso texto de 1937 de Mao Zedong (“Sobre a contradição”, no qual o fundador da RPC recusa a síntese hegeliana e funda o materialismo histórico sínico), identificou a actual contradição do socialismo com características chinesas: o fosso aberto entre ricos e pobres, alimentado pela crescente corrupção. E, de forma brilhante, entendendo que aí residia a salvação do Partido face ao crescente descontentamento popular, iniciou uma gigantesca campanha anti-corrupção, ganhando num golpe a aprovação das massas e a capacidade de eliminar indesejáveis. Por outro lado, implementou uma internacionalização estruturada da China, através da iniciativa Uma Faixa, Uma Rota (que representa a primeira medida de carácter planetário até hoje concebida e implementada) e da modernização radical do Exército de Libertação Popular, que manteve sob o controlo estrito do Partido, agora capaz de defender as aspirações chinesas no Mar do Sul. Assim, a China surgiu no planeta como a única superpotência com capacidade e vontade para desenvolver uma cooperação mundial de benefício comum, preocupada com o meio ambiente (apesar de ser o segundo maior poluidor) e criadora de conceitos globais, como a “comunidade de futuro comum”, algo que os americanos não se preocuparam em fazer e do qual se distanciam, num exercício de arrogância que deixa descalço o ocidente perante a investida oriental, armada de dinheiro e de valores globais. Mas, ao entrar no que o PCC define como “nova era”, com esta alteração constitucional, a China arrisca-se a dar um passo atrás, ainda que simbólico, ao deificar um governante. Deng previra este perigo e exorcizara-o constitucionalmente. Deste modo, a China arrisca-se a reproduzir, pelo menos para o mundo, uma nova dinastia semelhante à que governa a Coreia do Norte, hoje alvo da chacota de muitos chineses, que a classificam de “monarquia absoluta”. Tal não abonará a favor da sua imagem global como constituirá um rude golpe nos que viam nas alterações introduzidas no PCC um eventual modelo de para outros regimes de partido único. Pensamos, por exemplo, nalgumas ditaduras africanas e na influência benéfica que a comparação com a China poderia, eventualmente, produzir. Contudo, tudo indica que o passo está dado e a constituição será alterada, abrindo caminho à eternização de Xi e dos seus aliados na cadeira do comando. O futuro dirá se não se trata de um tiro no pé, mais motivado pela uma arrogância infantil de quem sente um extremo poder antes sonegado, porque, sejamos francos, só uma mentalidade de criança aceita a existência de homens providenciais. Ao negar a extensão do poder além de dois mandatos, a constituição chinesa sabiamente evitava o infantilismo político, cujas trágicas consequências estão bem documentadas pela História. Um grande político deve ter a consciência da necessidade de se retirar da cena pública, sob pena de se transformar (a si e, sobretudo, aos que gravitam à sua volta) naquilo que procurava combater. Já sem falar das maleitas sociais provocados pela inércia que decorre de tal situação, entre as quais a corrupção desempenhará papel preponderante. De facto, podemos imaginar que, à imagem do presidente, outros postos do PCC nas províncias ganharão um estatuto idêntico, eternizando os mesmos no poder, com as consequências conhecidas. Esperemos que, em 2023, independentemente das mudanças constitucionais, Xi Jinping mostre que é um grande líder e tenha a sabedoria de escolher reformar-se, dando a outros o seu lugar. Para bem da China e do mundo.
João Luz VozesTurista em massa [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]imito-me ao pacote feito pela agência, tenho os bolsos recheados de coupons e vouchers e o meu nome está inscrito na lista. Um shuttle aguarda-me para me levar à porta do meu destino, sou transportado de berço em berço depois de longas horas empacotado num terminal de aeroporto desenhado para trazer à tona toda a violência animal camuflada por normas sociais de conduta. A minha identidade tem pequeno-almoço incluído e tours organizadas pela providência encarneirada que dará descanso ao meu poder de decisão, almoço com desconto de 30 por cento, sabedoria adormecida numa anónima chaise longue. As calorosas boas-vindas sorriem-me enquanto me prendam com a bebida grátis a que tenho direito. Saí de Macau durante o Ano Novo Chinês em busca de santuário, pus em acção um plano de fuga às enchentes de turistas que entopem as artérias da cidade e a ironia acabou por me conduzir a um destino onde eu próprio sou o turista massificado, perpetuando a permuta de multidões por esse mundo fora. Sou a unidade mercantil na Era da industrialização do lazer que destrói almas e ecossistemas, sigo o trilho percorrido por milhares em direcção a paraísos perdidos como Boracay, Pattaya ou Phuket. Acrescento massa à infinita hemorragia de pessoas, à superabundância de produtos globais, sem raiz, que envenenam a autenticidade dos lugares. Nada fica intacto depois da minha passagem. Águas são contaminadas de desperdício e fluídos humanos, plástico é plantado com generosidade nos canteiros indefesos do jardim da mãe natureza, cimento e tijolo avançam contra o vigor do verde e o lixo agiganta-se em montanhas de morte que ameaçam cair para cima de todos nós. Por todo o lado celebra-se a destruição, a moleza de um conforto pouco sadio, a partida para longe de casa mas para um lugar onde se encena a familiaridade das coisas que ficaram para trás. Uma vez chegado ao paraíso, sem ter trabalho para despachar, depressa me embrenho numa série de actividades que preciso cumprir para sentir que estou a desempenhar bem o papel de turista. No mar há uma série de tarefas para executar. Caiaque, paddle board, mergulho, parasailing, kitesurf, pesca de sereias e todo o rol de trabalhos a fazer devidamente documentados nas redes sociais. Tenho de conseguir coisas, não posso ficar parado e deixar que o tempo deixe de o ser, eliminando os dias entre rum escuro e um livro de palavras boas. Não! Preciso cumprir, afinal estou de férias e tenho de reportar àqueles que não estão o que fiz, como tal, há que empreender especialmente quando nada há para fazer. Realizo-me em roteiros, itinerários e toda a pantomima de concretização de desejos feitos para mim e todos os outros milhões que me seguirão e seguiram. Sou só mais um numa infinita fila de seguidores. A vida nestes aviários de lúbricos prazeres é construída à minha volta, feita à minha medida. Venho para violar a terra e o mar, para esfregar a minha pança comodista nas costas de uma menina de tez escura, venho para destruir tudo o que há de puro e belo nos paraísos destituídos de cifrão. A minha vantagem é o Visa, o UnionPay e a sorte de ter nascido no sítio certo, na altura apropriada. Quando regressar à minha pacata rotina caseira passo a antecipar uma nova escapadela para outro país pobre, onde a pataca é a minha fortaleza, não levarei nada comigo, além de colesterol, fígado gordo e vagas recordações sem lugar. Assim que aterrar na terra onde os Maseratis se multiplicam como colehos, vou esquecer a falta de saneamento básico, as barracas de madeira que desafiam tempestades tropicais e os meninos que sorriem indiferentes à falta de futuro. Depois de me esquivar a mais uma chapada de humildade, vou voltar à minha condição de pequeno monarca, que olha com arrogante superioridade para o destino daqueles que fugiram dos paraísos arruinados e vieram para Macau à procura de uma oportunidade de futuro. Vou continuar a encarar estas pessoas como inferiores, como alguém para me servir, esteja de férias ou em casa.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesAs leis da globalização (I) “Since about 2010, double-digit economic growth rates have been observed across Africa. This growth is partly due to rising international commodity prices, and partly due to internal economic structural changes. Over the last decade, six of the world’s 10 fastest-growing countries were African. In eight of the last 10 years, Africa’s lion states have grown faster than the Asian tigers.” “Middle Classes in Africa: Changing Lives and Conceptual Challenges” [dropcap]L[/dropcap]ena Kroeker, David O’Kane and Tabea Scharrer. Os empresários esforçam-se para se adaptar a um mundo imaginado apenas há apenas um ano. O mito de um mundo sem fronteiras desapareceu. Os pilares tradicionais dos mercados abertos, como os Estados Unidos e o Reino Unido estão a cambalear, e a China está-se a posicionar como o mais firme defensor da globalização. O voto no “Brexit”, em 23 Junho de 2016, surpreendeu a União Europeia, e as ideias sobre a globalização tornaram-se cada vez mais negativas nos Estados Unidos, à medida que a campanha eleitoral presidencial progredia. Após a eleição de Donald Trump, com medo de uma guerra comercial, começou a ser defendida a tese de que a maior pensamento comercial das últimas três décadas está a passar por sérios problemas, e que as vantagens da economia de escala desapareceram. O pilar dinâmico da empresa e da sua localização abanavam. A grande questão que se coloca é de saber se a retirada massiva do exército empresarial de um país é a abordagem correcta para as empresas nestes tempos incertos, ou, apesar de embalar e voltar a casa, devem concentrar-se na localização, ou seja, produzir e até inovar onde vendem, como opção estratégica? É de recordar que, há apenas uma década, os empresários acreditavam que o mundo estava a tornar-se plano para as empresas globais, sem restrições, através das fronteiras dos países, e que rapidamente dominariam a economia mundial. Tais afirmações exageradas foram provadas como erradas. Os clamores actuais por um enorme retrocesso da globalização, diante de novas pressões proteccionistas, também são uma reacção exagerada, em outra direcção. Ainda que, uma certa euforia sobre a globalização se tenha deslocado para a sombra, especialmente nos Estados Unidos, a globalização ainda não sofreu uma séria reversão. A retirada em grande escala ou um excesso de localização prejudicaria a capacidade das empresas de criar valor através das fronteiras e à distância usava-se a rica variedade de estratégias da globalização que ainda são eficazes e continuarão a funcionar bem no futuro. A turbulência actual exige uma reformulação mais subtil das estratégias das multinacionais, das estruturas organizacionais e das abordagens do ajuste social. As falsas percepções comuns sobre o que é, e o que está a mudar sobre a globalização, oferecem directrizes para ajudar os empresários a decidir onde e como competir e a examinar o papel das multinacionais em um mundo complexo. As dúvidas sobre o futuro da globalização começaram a surgir durante a crise financeira de 2008-2009, mas à medida que as condições macroeconómicas melhoraram, a escuridão deu lugar a uma mistura obscura de perspectivas. Por exemplo, em apenas três semanas, em 2015, foram defendidas ideias como as da globalização a uma velocidade extremamente alta ou o fim da globalização. Face a tanta ambiguidade, é essencial analisar os dados fornecidos pelo “Global Connectedness Index (GCI)”, que é uma análise detalhada do estado da globalização em todo o mundo, rastreando os fluxos internacionais de comércio, capital, informações e pessoas. Os dois componentes do índice de maior interesse comercial que são o comércio de mercadorias e investimento estrangeiro directo, foram atingidos duramente durante a crise financeira, mas nenhum deles sofreu um declínio similar desde então. O comércio sofreu uma grande queda em 2015, mas foi quase inteiramente um efeito preço, impulsionado pela queda dos preços das mercadorias e pela revalorização do dólar. Os dados actualizados sugerem que, em 2016, o investimento estrangeiro directo diminuiu, em parte, devido à repressão dos Estados Unidos sobre inversões fiscais. Os dados completos para 2017, ainda não estão disponíveis, mas o estímulo comercial em pessoas e fluxos de informações provavelmente reforçará a ideia de que a globalização permaneceu igual ou aumentou. O que mergulhou de nariz foi o tom do discurso público nos Estados Unidos e em outras economias avançadas. A análise das referências dos meios de comunicação social para o termo globalização nos mais proeminentes jornais e revistas mundiais revela uma acentuada sensação de sensibilidade, com decréscimo das quedas em 2016. O contraste entre os dados que vão do misto ao positivo sobre os fluxos internacionais reais e o balanço negativo no discurso sobre a globalização podem ser fixados, ironicamente, na tendência de até mesmo os executivos experientes, exageradamente preverem a intensidade dos fluxos de negócios internacionais em relação à actividade doméstica, ou seja, acreditam que o mundo é muito mais globalizado do que realmente é. As percepções exageradas sobre a profundidade da globalização, quanto à actividade, são internacionais versus doméstica e têm um custo. As sondagens revelam que os entrevistados que exageraram acerca das previsões acerca da intensidade da globalização, foram mais propensos a acreditar em declarações erróneas sobre estratégias de negócios internacionais e políticas públicas. Quando os empresários pensam que o mundo é mais globalizado do que realmente é, tendem a subestimar a necessidade de entender e responder às diferenças entre os países, quando operam no exterior e na esfera das políticas públicas, e os líderes políticos tendem a subestimar os ganhos potenciais da globalização e a super-estimarem as consequências nocivas para a sociedade. As pesquisas sugerem que as pessoas também subestimam a amplitude da globalização, ou seja, até que ponto a actividade internacional é distribuída globalmente e não focada de forma restrita. Um inquérito realizado aos leitores do “Washington Post”, revelou que 62 por cento dos inquiridos concordaram que o livro mais lido de Thomas Friedman era “The World Is Flat: A Brief History of the Twenty-first Century”, que menciona que as empresas actuam em um campo de jogo global, habilitado para a rede mundial de computadores, que permite colaboração em pesquisa e trabalho em tempo real, sem importar a geografia, distância ou, no futuro próximo, até mesmo a linguagem. Todavia, os dados mostram que a actividade internacional real continua a ser amortecida fortemente por todos esses factores, e para contrariar as ideias contraditórias sobre as questões globais, devem ser consideradas duas leis que regem, respectivamente, a profundidade e amplitude da globalização que são a lei da semi-globalização, que é a actividade comercial internacional, que embora significativa, é muito menos intensa do que a actividade doméstica, e a lei da distância que determina que as interacções internacionais são atenuadas pela distância ao longo de dimensões culturais, administrativas, geográficas e, muitas vezes, económicas. Tais princípios podem ser muito úteis para a elaboração de estratégias futuras. É de considerar que dados os fortes sentimentos proteccionistas e possivelmente até uma guerra comercial, continuarão a ser válidos. A melhor forma de os testar será no momento, e apesar do tempo, as políticas da administração Trump e de outros governos ainda não são claras, e estudar o que aconteceu pela última vez que uma grande guerra comercial explodiu, que foi na década de 1930, e o que levou à maior regressão da história da globalização. Existem duas leituras fundamentais, correspondentes às duas leis da globalização. A primeira lição é de que, embora o comércio tenha regredido precipitadamente na década de 1930, não deixou de existir. O colapso que começou em 1929 foi surpreendente, e no início de 1933, os fluxos comerciais caíram dois terços. A queda no valor reflectiu uma queda mais nos preços do que nas quantidades, que diminuíram em menos de 30 por cento. Mesmo na sequência do colapso, os volumes de comércio continuaram a ser muito grandes para ignorar os estrategas de negócios. A segunda lição é de que a distância de vários tipos continuou a atenuar a actividade comercial internacional. A relação entre os fluxos comerciais e a distância geográfica mal se moveu, de 1928 a 1935. Os efeitos benéficos de uma língua comum e os laços coloniais permaneceram poderosos, pois conjuntos de países com esses laços continuaram a negociar cerca de cinco vezes mais entre si, comparados com conjuntos de países sem tais laços. O resultado líquido foi de que os parceiros comerciais com os quais os países (ou grupos de países) fizeram a maior parte dos seus negócios, antes do incidente continuaram posteriormente, em grande parte inalterados. Quanto ao futuro e se o comércio global não estagnou na década de 1930, é razoavelmente seguro afirmar que também não acontecerá na década de 2020. As análises da possibilidade de uma guerra comercial durante a administração Trump, poderia parecer sugerir declínios muito menores no comércio dos que ocorreram na década de 1930. A “Moody’s Analytics” estima que, se os Estados Unidos impusessem tarifas à China e México, e esses dois países retaliassem, esse e outros factores fariam contrair as exportações dos Estados Unidos em oitenta e cinco mil milhões de dólares em 2019, o que representa apenas cerca de 4 por cento do total de exportações dos Estados Unidos em 2015. É claro que uma guerra comercial mais ampla teria um efeito mais significativo, mas é muito improvável que as consequências sejam tão terríveis como na década de 1930. Da mesma forma, se a amplitude do comércio não mudou muito, apesar da drástica queda durante a “Grande Depressão”, provavelmente, não mudaria muito no caso de uma guerra comercial actual. Vale a pena acrescentar que, com muitos outros países independentes, além de cadeias de abastecimento mais fragmentadas verticalmente, os efeitos estimados da distância geográfica no comércio de mercadorias são realmente maiores do que na década de 1930. Quanto à questão de onde competir, é de observar, se é improvável que as interacções transfronteiriças desapareçam, qual o argumento para a retirada das multinacionais? O recuo das empresas globais, que provocou uma discussão significativa, apontou para os problemas de desempenho que experimentaram, mas os declínios nos últimos três a quatro anos ocorreram em um ambiente de preços de mercadorias, diminuição da procura por serviços relacionados à globalização e, para as empresas dos Estados Unidos, mudanças nas taxas de câmbio, factores que cumpriram claramente papéis exagerados. E as quedas a longo prazo na última década coincide com um período em que a globalização realmente diminuiu. Os problemas de desempenho fraco durante este período deveriam forçar à reconsideração da multinacionalização, que seria como argumentar que Singapura, o país mais conectado do mundo, de acordo com o DHL, deve afastar-se da globalização devido aos problemas de crescimento que observou desde a crise financeira. O último relatório oficial acerca do futuro da economia de Singapura rejeita essa noção, dizendo que a globalização através do comércio, capital e fluxos de conhecimento ainda é o futuro no que diz respeito à cidade-estado. E, mesmo em países muito menos dependentes das exportações do que Singapura, um retrocesso maciço da globalização seria contraproducente. Mesmo quando as condições económicas são favoráveis e a globalização está a avançar rapidamente, como aconteceu há várias décadas atrás, as multinacionais podem enfrentar problemas de execução. Os estudos, observaram que, entre 1990 e 2001, as empresas da “Fortune Global 500”, apresentaram consistentemente menores rendimentos médios nas vendas para suas as operações no exterior do que para as suas empresas domésticas. Dadas as dificuldades provocadas pela lei da distância, a multinacionalização sempre foi uma opção, não um imperativo. Algumas empresas e indústrias, claramente sobreviveram, especialmente nos anos anteriores à crise financeira. O que falta em grande parte do debate actual é a noção de contingência, ou seja, uma abordagem caso a caso, em que um movimento relacionado à globalização é avaliado pelos seus próprios méritos, em vez de ser submetido a algum limiar sobre se deve avançar e globalizar ou voltar para casa. Assim, muitas empresas multinacionais precisam de renovar a atenção para onde competem, ou seja, para a selecção do mercado e devem também, resistir à ideia de que uma empresa verdadeiramente global deve competir em todos os principais mercados. É de ponderar que cerca de 64 por cento dos entrevistados de um estudo da Universidade de Harvard, realizado em 2017, concordaram com esta (não) dictum, porém, uma análise dos dados financeiros internos de dezasseis multinacionais, indicou que oito tinham grandes unidades geográficas que destruíram a sua valia, depois dos seus custos de financiamento serem tomados em conta. Tais problemas ainda persistem. A Toyota, por exemplo, parece ser a única concorrente importante no sector automobilístico, altamente globalizada, que conseguiu aumentar a participação de mercado significativa no Japão, América do Norte, Europa e nas principais economias emergentes, ainda que seja altamente rentável. A maioria das grandes fabricantes de automóveis, em contrapartida, seria melhor servida seguindo o exemplo da General Motors (GM), proprietária das marcas Vauxhall e Opel, e da francesa PSA Group, fabricante dos carros Peugeot, Citroen e DS, que tinham uma série de iniciativas estratégicas com o objectivo de aumentar a rentabilidade e a eficiência operacional, incluindo uma potencial aquisição da Opel, cuja operação europeia era deficitária. A PSA Group discutia então a compra das operações europeias da GM, tornando-se a segunda maior da região e permitindo que a GM se concentrasse na América do Norte e na China. Os dados recentes sobre empresas classificadas entre as cem melhores com a maioria dos activos localizados fora dos seus países de origem revelam uma história semelhante. Enquanto essas empresas tendem a operar em dezenas de países, os seus quatro principais mercados, incluindo o mercado doméstico, representam cerca de 60 por cento das suas receitas e provavelmente uma fatia maior de lucros totais, e apenas uma percentagem de um dígito da “Fortune Global 500” que representa as maiores empresas do mundo por receitas, ganham pelo menos 20 por cento das mesmas em cada uma das regiões da tríade da América do Norte, Europa e Ásia-Pacífico. Ao classificar os mercados para se concentrar, é importante notar que a lei da distância se aplica ao investimento directo estrangeiro, bem como ao comércio. Embora o IDE seja menos sensível à distância geográfica do que o comércio é de estimar que o efeito de uma linguagem comum e uma ligação colonizado – colonizador e o IDE, seja mais sensível às diferenças no rendimento per capita. Assim, como as empresas pesam as suas opções, devem procurar oportunidades onde possam encontrar afinidades culturais, administrativas, políticas, geográficas e económicas. Tal ressoa ainda mais fortemente, pois é de recordar que as relações com os países se tornaram ainda mais importantes durante a década de 1930. À medida que o ambiente político muda, os líderes empresariais precisam de manter um olhar cuidadoso sobre como os seus países de origem estão a realinhar os seus laços internacionais e a engajarem-se na sua diplomacia corporativa. É de lembrar também de que operar apenas domesticamente é uma opção. Apenas cerca de 0,1 por cento das empresas mundiais são multinacionais, ainda que a multinacionalização seja altamente distorcida em relação às empresas maiores, isso enfatiza grandemente o seu impacto global. (As suas filiais estrangeiras geram 10 por cento do PIB global, e as multinacionais representam mais de 50 por cento do comércio mundial). Para as empresas com base em grandes economias emergentes, concentrando-se no mercado interno, onde gozam de vantagem doméstica e bem-sucedido crescimento, pode ser uma proposta particularmente atraente. Os líderes empresariais devem resistir à ideia de que uma empresa global deve competir em todos os mercados.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO ano do cão danado [dropcap]O[/dropcap] novo ano chinês, que começou em Fevereiro, está sob a influência do signo do Cão. Sou cristão e, como tal, não me interesso minimamente por previsões astrológicas. Mas, se atentarmos nos diversos incidentes ocorridos recentemente, podemos facilmente adivinhar que este vai ser um ano turbulento. Em primeiro lugar, o mercado bolsista sofreu uma depressão a nível global em Fevereiro, provocando uma queda no Índex Hang Seng de Hong Kong superior a 3000 pontos. Este desaire foi seguido de uma tragédia. Um acidente com um autocarro provocou 19 vítimas mortais. Em Macau, o Comissariado contra a Corrupção emitiu o relatório da investigação sobre o projecto de construção num terreno situado no Alto de Coloane, onde se refere a possibilidade de ter havido administração imprópria ou, mesmo, ilegalidade respeitante à concessão do terreno. O relatório foi entregue ao Ministério Público, enquanto o público aguarda por mais notícias relativas ao desenrolar do processo. Só uma investigação mais aprofundada poderá revelar a verdade e libertar as pessoas da suspeita de conluio entre representantes do Governo e empresários com interesses na concessão do terreno. Acredito em Deus, creio que a verdade não teme o confronto e estou confiante que o mal nunca prevalece sobre o bem. E também acredito em relações profundas. A corrida às acções e a especulação estabeleceram preços recorde dos títulos a nível mundial. Mas os analistas de mercado não contaram às pessoas toda a verdade e limitaram-se a encorajar os pequenos investidores a apostar na bolsa, provocando-lhes enormes prejuízos. Mas voltando ao acidente em Hong Kong, é absolutamente ridículo verificar que algumas pessoas atribuem as culpas ao movimento “Occupy Central”. Se prestarmos atenção às notícias, compreendemos que esta tragédia não pode ser dissociada da exploração dos trabalhadores numa sociedade capitalista. Os motoristas são tratados com muito pouco respeito. Os requisitos para exercer a profissão não apresentam qualquer exigência. A transportadora só se preocupa com o lucro e negligencia as possíveis consequências de um serviço de má qualidade. Era só uma questão de tempo até acontecer uma fatalidade. Quanto ao projecto de construção no Alto de Coloane, cheguei a encarregar-me da inquirição deste caso quando fui deputado na Assembleia de Legislativa. Nessa altura, os representantes do Governo indiciados alegaram que os documentos da concessão do terreno estavam escritos em português e recusaram-se a responder às minhas perguntas. Durante os últimos anos, muitas pessoas tentaram aprofundar este caso. Acredito que se acabará por provar que as dúvidas que sempre alimentei sobre este assunto tinham razão de ser. Não há fumo sem fogo, mas o preço tem de ser pago por quem ateia o incêndio e não pelos inocentes. 2018 poderá ser o ano em que os “vilões” de Hong Kong e de Macau virão a revelar a sua verdadeira natureza. Nos últimos anos, soube-se que funcionários superiores da China continental foram castigados por corrupção. É uma consequência do alastramento deste problema nos tempos que correm. Sob a liderança do Presidente Xi, desenvolveu-se uma luta cerrada à corrupção e os resultados são promissores. Acredito que após a conclusão dos congressos do CNP e da CCPPC, que terão lugar em Março, e que serão marcados por algumas mudanças individuais, o Governo central terá mais disponibilidade para prestar atenção aos assuntos de Hong Kong e de Macau. Enquanto melhor amigo do Homem, a principal tarefa do cão é guardar o dono e os seus bens. Um cão que abana a cauda a qualquer estranho pode ser muito simpático, mas não convém ao seu dono. Macau precisa de mais do que um cão feroz para defender os interesses do seu povo e impedir que seja roubado pelos corruptos. Quer se trate do Comissariado contra a Corrupção, a comunicação social ou o público em geral, todos têm de cumprir o seu papel e guardar Macau das investidas malignas. No ano do cão, espero que trilhemos a senda do combate à corrupção e lutemos pela manutenção da paz. 2018 poderá ser o ano em que os “vilões” de Hong Kong e de Macau virão a revelar a sua verdadeira natureza.
Leocardo VozesCozidos e mal amados [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] chefe de cozinha português José Avillez foi recentemente agraciado com o “Grand Prix de L’Art de La Cuisine”, uma espécie de Oscar da gastronomia mundial, uma distinção que, à distância que estou e atendendo que estamos aqui a falar de cozinha, me deixa contente, por ele. Está de parabéns, portanto. Assim que o chefe ganhou o prémio, começou a circular pelas redes sociais uma imagem da sua interpretação do Cozido à Portuguesa, que é servido no seu restaurante “Belcanto”, em Lisboa, distinguido também ele com duas estrelas Michelin. O Cozido em questão é composto por duas míseras cenourinhas, uma folha de couve, uma lâmina de nabo e cebola, e debaixo destas duas um pedaço de carne que mal dá para encher a cova de um dente. Tudo regado com o caldo do Cozido e servido com uma folha de hortelã. Caíu logo o Carmo e Trindade (que nem por acaso são ali perto), e o tribunal popular “online” determinou que aquilo “é um insulto”; questionou-se a competência do chefe Avillez, chamou-se de “parvos” aos gajos da Michelin, e enfim, choveram comentários do tipo “na tasca tal come-se melhor e mais barato”, ou “a minha Gertrudes faz um Cozido que se apresente”. Muito bem, e tenho a certeza que o meu filho, que nem sabe acender os bicos do fogão cá de casa, confecionaria também ele um prato muito mais substancial, e nem é isso que está em causa. Contudo, e depois de tentar saber a causa das coisas, descobre-se que o tal Cozido do chefe Avillez faz parte de um menu de degustação. Repito, degustação. Quem for procurar o significado da palavra “degustar” no dicionário, vai encontrar a seguinte definição: “Provar ou tomar o gosto de algo; avaliar pelo paladar o sabor de”. Não seria degustação no caso do Cozido vir servido com chouriços e alheiras inteiras, chispes de porco, um arraial de batatona, couves do tamanho de uma bola de futebol, e tudo regado com vinhaça, como o meu povo gosta. Neste caso o tal menu de degustação “Lisboa” (e recomendo sinceramente uma pesquisa na net) inclui um total de 12 pratos, e custa 300 euros. Não está ao alcance de todas as bolsas, é verdade, mas o chefe Avillez não está ali a enganar ninguém. Ah sim, e os 300 “paus” incluem “couverts”, água e café. É no fundo uma experiência gastronómica, e não um almoço de enfarta-brutos, e a julgar pelas (excelentes) avaliações nos Yelpers e Zomatos desta vida, tem muita qualidade. O povo pode escolher ir entupir as coronárias com o cozido da tal tasca da esquina, ou em alternativa usufruir da arte do melhor cozinheiro do mundo. E quando queremos “o melhor do mundo”, é óbvio que temos que pagar por isso. É de estranhar a alergia que os portugueses têm ao sucesso dos seus compatriotas. Não há bolas de ouro que Cristiano Ronaldo possa ganhar que demova os seus “haters”, e até Salvador Sobral, que no ano passado teve o desplante de ganhar o Festival da Eurovisão, foi quase crucificado por ter proferido a palavra “peido” em determinada circunstância. Eu não quero acreditar que os portugueses são um povo invejoso, ou até mal amado, como sugere o título desta peça. Eu diria antes que é “desconfiado”. Sim, é isso, “o outro pensa que é melhor que eu”, ou “tem a mania que é esperto, mas a mim não me engana ele”. Pode ser que um dia passe, quando começar a ser normal termos os melhores do mundo em várias outras funções. Nunca perco a esperança que isto aconteça um dia. Sou mesmo um optimista inveterado. PS: E parabéns ao chefe Avillez, de quem não tenho procuração passada para defender. É uma questão de justiça, apenas.
Tânia dos Santos VozesPós-parto contemporâneo [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] sexo que leva à procriação, que leva à maternidade e à paternidade, passa por um processo de gestação, parto, e a aturar filhos para sempre. Mas há sempre um início. Início esse que não é quando sabemos que estamos ‘grávidos’. O verdadeiro início vem quando é preciso cuidar de um ser vivo pequenino e totalmente dependente de nós. As nossas prioridades mudam, e a nossa forma de ver o mundo também muda. Não falarei de experiência própria, por isso não me vou armar em especialista no assunto. Mas estive a ler umas coisas e a pensar em outras coisas, e parece que, socialmente e ocidental-mente falando, não é dada muita importância ao período depois do parto. Isto porque depois de uma gravidez, que necessita de imensos cuidados, e de um parto que será doloroso e mais ou menos complicado, o pós-parto é visto como o culminar, e não um início. Já num outro momento referi que a parentalidade não é um mar de rosas tão singelo e simples. No mundo ocidental 50% a 85% das novas mães passam por uma melancolia particular, e 25% caiem muitas vezes em depressão pós-parto. Há muito ainda por perceber acerca destes momentos de definição maternal. Há um artigo clássico em antropologia que analisa vários rituais familiares depois do parto, em contextos culturais distintos. Parece que sabedoria popular destas populações – tida como ‘rudimentar’ – activava certos mecanismos sociais que providenciavam algum tipo de apoio à recente mamã. Cada cultura, cada tradição, é bem certo. Mas descreviam-se mulheres de família ou da comunidade que se mobilizam para apoiar nas coisas mais simples, ou na lida da casa, ou num ou outro mimo, ou a providenciar alguma paz e sossego. No ocidente foram-se perdendo os rituais que pudessem existir. As mães têm direito a uma licença, e os pais, com alguma sorte, têm direito a uns dias, mas rapidamente deixam a mãe e o bebé sozinhos em casa. A globalização e os nossos estilos de vida cada vez mais nómadas tem feito com que a família directa também não esteja tão presente. Num mundo de individualismos parece que existe uma natural tendência para que logo após o nascimento do bebé seja uma altura de maior isolamento e solidão. A psicologia evolutiva explica que no pós-parto, a mãe torna-se num exímio radar aos perigos que possam existir. Ao sentir-se numa posição mais vulnerável, o corpo fica mais alerta a tudo: o sono fica mais leve e a ansiedade é maior. Por isso parece-me bastante natural que a nossa tendência biológica para a protecção e preocupação, combinada com algum isolamento, faça o pós-parto dos períodos mais desafiantes para as recentes mamãs. As soluções para contrariar estas formas de parentalidade não são simples. Mexem com políticas sociais, tradições culturais e com condições de trabalho e de vida. Uma amiga minha, especialista nestas questões perinatais, também me alertou para a imagem da parentalidade que os meios de comunicação social nos tenta vender. Mães e pais perfeitos que para além de proporcionarem o melhor do mundo aos seus filhos, têm o cabelo lavado e parecem fabulosos e radiantes com tudo. Não que queira pintar uma imagem negra e desgraçada da parentalidade, longe de mim de tentar influenciar as mentes com o meu pessimismo inevitável. O objectivo é mostrar que é absolutamente natural que a vida pós-parto seja mais desgraçada do que maravilhosa – com toda a maravilha que a parentalidade garante. Quanto ao cabelo lavado… parece que na Guatemala rural, o tratamento de cuidado pós-parto inclui apoio em banhos ritualizados, massagens no abdómen e até lavar o cabelo! Estas actividades por si só protegem-nos da ansiedade até certo ponto, o apoio percebido é que interessa. Uma apropriação cultural a considerar?
Leocardo VozesSorte de cão O último fim-de-semana ficou marcado por um acidente com um autocarro de passageiros em Tai Po, Hong Kong, que causou a morte a 19 pessoas, deixando mais de 40 feridos, alguns deles em estado crítico. A causa, mais uma vez, foi falha humana, e apesar da disparidade entre o número de vítimas mortais, vem à mente um outro acidente ocorrido em finais do mês passado aqui em Macau, que custou a vida a uma idosa. E tudo por culpa de um motorista de autocarro que alegadamente terá carregado no acelerador, em vez do travão. Podia-se dizer que “acontece”, mas não é (felizmente) frequente, e está longe de se poder considerar uma coisa “normal” para quem tem carta de condução, quanto mais para um motorista de veículos pesados. Aparentemente os motoristas das empresas de transportes públicos de ambas as RAE de um e outro lado do Rio das Pérolas sofrem dos mesmos problemas; é o stress, ora porque “não há número suficiente de profissionais”, os poucos que existem “trabalham muitas horas”, e alguns, coitados, “têm mais que um emprego”. Isto é portanto o mesmo que dizer que profissionalismo e exclusividade não são dois predicados exigidos a quem procure esta carreira. Ou pelos vistos estes passageiros “atrapalham”; estão no caminho de uns tipos que nasceram para ser milionários, não fosse pelo tempo que andam aí a perder de um lado para o outro a transportar as pessoas como se fossem gado. É que se fossem só os acidentes, ainda podíamos incluir o elemento do “azar” nesta equação, mas não, alguns motoristas de autocarro são, em bom português, umas tremendas cavalgaduras. Não dignificam a profissão de carroceiro, quanto mais de “chaffeur”. A má disposição do motorista é praticamente um dado adquirido desde o momento que se entra no autocarro. Com alguma sorte (eu diria antes muita sorte) não se vai pelo caminho inteiro aos solavancos, ou sem travagens bruscas daquelas que encostam o esqueleto à pele. Há ainda os episódios do quotidiano a que assistimos, de motoristas que são rudes com velhinhas, crianças e grávidas, que ignoram as paragens ou param muito antes (ou depois) das mesmas, que passam nos sinais vermelhos, ficando atravessados no meio das passadeiras de peões, como depois ainda há aquilo que nos contam – toda a gente tem um episódio medonho para contar em relação aos transportes públicos de Macau. Sinceramente não entendo quem são os motoristas de autocarro e de táxi para tornar o trânsito rodoviário desta cidade ainda mais insuportável. E o que vai acontecer enquanto as suas reivindicações não forem atentidas? Morre mais gente? Estamos reféns desta casta, e não há um buda que nos valha? Era essencial que a população pudesse utilizar os acessos à cidade sem receio de levar com um caixote de lata em cima, ou ter a certeza que a próxima vez que entrasse num transporte público não fosse a último. Fica aqui o apelo a quem de direito. E com este desabafo chegamos assim ao final de mais um ano lunar, e esta noite vai entrar o Ano de Cão. Queria desejar a todos um “Kung Hei Fat Choi”, e que este seja o canino do bem, aquele que fareja a felicidade, em vez de outro menos dotado, que só saiba perseguir a própria cauda. Bom ano e boa sorte.
Jorge Morbey VozesA Judicialização da Política e a Politização da Justiça [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o mais profundo das minhas entranhas cerebrais era – e é! – líquido e transparente, como a água cristalina, que a trave mestra do “segundo sistema”, legado de Deng Xiao Ping que nunca me canso de venerar, é o Estado de Direito. A vida e, particularmente, os muitos amigos juristas que tenho e admiro, têm-me ensinado que, onde há dois juristas, pode haver três opiniões. Pelo menos. O acórdão do Tribunal de Segunda Instância não pôs termo àquilo que, lamentavelmente, a ineptocracia reinante em Macau empolou desnecessária e imprudentemente e ecoa pela cidade com a designação de “caso Sulu Sou”, sem que o jovem deputado em nada tivesse querido contribuir para o estado a que as coisas chegaram. Numa clarificação conceptual preliminar, ineptogracia é um neologismo para “governo/instituição regido por pessoas que são incapazes para a função”. Podem ser óptimos pintores, músicos, bailarinos ou empresários. Mas são um azar a que, nem as democracias mais representativas, conseguem escapar (v.g. Estados Unidos da América, Reino Unido, Brasil, etc.). A segunda clarificação tem a ver com o julgamento de Sulu Sou (e de Scott Chiang) do crime de que estão acusados, de “desobediência qualificada”. A sentença pode ser-lhe favorável e viabilizar a retoma do mandato de deputado de que se encontra suspenso, por iniciativa da ineptocracia e para desgosto desta. Mas, pode ser condenado, de modo a perder o mandato de deputado e a ineptocracia rejublilará. Todavia, o sentido, favorável ou desfavorável, da sentença não produzirá quaisquer efeitos que desbloqueiem o sistema judiciário da RAEM que, em minha opinião, ficou bloqueado pelo acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 1 de Fevereiro de 2018, com fundamento em incompetência daquele Tribunal (e de todo o Sistema Judiciário da RAEM!!!), “visto que no actual panorama jurídico-normativo inexiste competência jurisdicional legalmente reconhecida aos tribunais [da] RAEM para o conhecimento do presente recurso.” É inadmissível que a RAEM que “goza de poder judicial independente, incluindo o de julgamento em última instância”; cujos tribunais “têm jurisdição sobre todas as causas judiciais na Região excepto “sobre actos do Estado, tais como os relativos à defesa nacional e às relações externas (Artigo 19.° da LB); são os órgãos judiciais aos quais compete na RAEM exercer o poder judicial (Artigo 82° da LB); e exercem independentemente a função judicial, sendo livres de qualquer interferência e estando apenas sujeitos à lei (Artigo 83.° da LB), um Tribunal Superior se declare incompetente, bloqueie e ponha em causa o próprio funcionamento do Sistema Judiciário da RAEM e do Estado de Direito! É inadmissível também que tudo isso tenha sido produzido por um Tribunal Superior, sendo certo que no Estado de Direito, e da separação de poderes, são exactamente os Tribunais Superiores os órgãos judiciais que estão na linha da frente na conformação do Sistema Legal com as normas constitucionais, sua interpretação e produção de jurisprudência, nomeadamente para preenchimento de lacunas que o robusteçam e não que o alienem ou paralisem! É inadmissível que se cubram, sob o manto pesado e opaco de “actos praticados no exercício da função política”, (Artigo 19.° – n.° 1 da LBOJ,) ilegalidades, ainda que de natureza processual, praticadas pela ineptogracia de legisladores, que não sabem acatar a lei, nem interpretá-la e, muito menos, produzi-la. Passando em revista a doutrina produzida na generalidade dos sistemas políticos estruturados em Estado de Direito e assentes no princípio da separação de poderes, pode concluir-se que a regra é a de não intromissão do Poder Judicial nos actos políticos do Legislativo e do Executivo. Mas é óbvio que esta regra assenta no pressuposto da legalidade do acto político. Não é suficiente a alegação de que se trata de acto político, do Legislativo ou do Executivo, para tolher o controle judicial, em consequência da regra que veda ao Poder Judicial apreciar o acto político. Em regra, o Judicial não pode controlar tais actos em razão do princípio da separação dos poderes. Esta regra, porém, não é uma regra absoluta. O controle judicial dos actos políticos é possível e desejável no Estado de Direito e, portanto, em Macau, se esses actos políticos ofenderem direitos individuais ou colectivos, ou contiverem vícios de legalidade ou constitucionalidade. Congratulo-me com a decisão anunciada, do jovem Deputado e do seu Advogado, de recorrer para o Tribunal de Última Instância (TUI). Não só para que, finalmente, lhe seja feita Justiça, como também para desbloquear o funcionamento do Sistema Judiciário da RAEM que o referido acórdão do Tribunal de Segunda Instância paralisou e menorizou. No Estado de Direito, trave mestra do segundo sistema, não há uma categoria de actos políticos, como entidade ontológica autónoma na escala dos actos do Estado, nem há órgãos ou Poderes que os pratiquem com privatividade.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCelebrando o Namoro [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]is que o dia dos namorados voltou! Se eu procurar ‘valentine’s day’ nas bases de dados académicas, são as áreas de gestão e consumo que mais andam a publicar acerca deste dia. Porque o pessoal do marketing sabe que ‘celebrações que exigem troca de prendas tem um grande impacto na economia’. Consumir para celebração do amor romântico é, no mínimo, discutível. Que se ande a escrutinar as motivações para o consumo romântico, também me parece pouco… ia dizer ético, mas num mundo neoliberal não se discute a ética do consumo, só o promovemos desenfreadamente. Os resultados destes estudos, que equiparam a importância dos gestos amorosos com a troca de prendas, tentam compreender os significados associados a este dia, tão recentemente globalizado. Parece que as camadas americanas mais jovens (particularmente masculinas) acreditam que caso não presentearem as suas ‘mais que tudo’ no dia 14 de Fevereiro, que as suas relações podem ficar em risco. O pior é que a ideia de que esta é uma celebração que só existe para fazer mexer certas economias não lhes é desconhecida, mas simplesmente é negada em prol de expectativas sociais e relacionais. Vive-se num mundo muito estranho quando gestos de amor estão calendarizados e associados a comportamentos economicistas. Porque não há nada de errado em oferecermos coisas uns aos outros, nem ter um dia disto e daquilo: todos os dias do ano estão muito provavelmente associados a uma causa ou outra. O amor romântico tem todo o direito (e o dever) de ser celebrado, partilhado, reflectido e praticado. Se forem necessárias desculpas externas para ajudar a fazê-lo, ninguém tem nada contra. Aliás, dizem outros investigadores que o dia dos namorados obriga a que os casais pensem no seu amor. Ora tendem a enaltecer os aspectos positivos do relacionamento, para quem tem vindo a construir uma relação forte. Ora tendem a separar-se com mais frequência durante a semana anterior e posterior ao dia dos namorados, para os que têm o relacionamento por um fio. As más línguas acrescentam que uma ruptura antes do 14 serve propósitos de poupança. Acreditem ou não, mas há quem julgue que quanto mais cara a prenda, mais amor se presenteia. A preocupação é real. Há algo de perverso na forma como muitos namorados lidam com o dia São Valentim (de Roma!) – esse mártir que a igreja católica reconhece mal. O São Valentim continua a ser das histórias pior contadas no Martirológio (a palavra nova da semana). A história que se eternizou, mas que não se sabe bem se é real, é que o Valentim era o padre que andava a celebrar casamentos cristãos, a pessoas que não se podiam amar. A celebração do amor romântico a partir destes rumores de um santo no séc. V tiveram notoriedade dentro dos círculos ingleses medievais. Nessa altura começaram-se a escrever cartas uns aos outros finalizando com o que a tradução literal para português seria ‘queres ser o meu Valentim?’, i.e., ‘queres ser um mártir pela causa do amor? Desde o séc. XIV até os dias de hoje muita água já rolou, muito amor já se deu, e agora muitas prendas continuam-se a dar! Esta celebração até altera a nossa percepção das rosas e dos chocolates, e de toda a representação do amor romântico ocidental que tenta ser globalizado. Porque este dia anda agora a moldar as expectativas relacionais com uma preocupação excessiva pelo consumo, quando a reciprocidade romântica precisa de de um trabalho de intimidade e de uma reinvenção do que é romântico, para cada um de nós, e para cada casal.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesExame de mandarim II [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o meu artigo, publicado a 30 de Janeiro, analisei a situação dos estudantes da Universidade Baptista de Hong Kong que, devido à alta taxa de insucesso no exame de mandarim (70% de reprovações) ocuparam parte das instalações da Universidade. Este exame é condição necessária para a obtenção do grau de Bacharel, os estudantes têm de comprovar os seus conhecimentos de mandarim. A prova foi implementada há cerca de 10 anos atrás. Numa votação realizada em Abril de 2016, 90% dos estudantes manifestaram-se contra a realização deste exame como etapa necessária à graduação. Desde essa altura, a Universidade entrou em negociações com os estudantes e, finalmente, em Novembro de 2017 a prova regressou. Durante as várias reuniões que tiveram lugar antes da reactivação do exame, a Universidade garantiu que iria ser uma prova simples, os estudantes precisavam apenas de demonstrar que possuíam as competências para comunicarem em mandarim. Era esperada uma taxa de 90% de sucesso no exame. No entanto, verificou-se o contrário e só passaram 30% dos alunos. A causa do fracasso dos estudantes terá sido a seguinte: “Você fala mandarim fluentemente, mas o tom não corresponde ao que era pedido na pergunta, por isso não pode passar”. Este tipo de razões causou um grande descontentamento nos estudantes e deu origem à ocupação das instalações. O género de linguagem com que o presidente da Associação de Estudantes, Lau Tsz-kei, se dirigiu aos professores provocou muitas críticas, porque revelava falta de respeito pelos docentes. Foram também acusados de ter posto em risco a segurança dos funcionários. A Universidade reagiu de imediato e Lau Tsz-kei, Andrew Chan Lok-hang e outros colegas foram suspensos a 24 de Janeiro último. No dia 30, todos eles apresentaram formalmente desculpa aos professores do Centro de Línguas. A 1 de Fevereiro, na sequência do pedido de desculpas, a Universidade anulou a ordem de suspensão dos estudantes. No entanto, dois destes alunos foram sujeitos a um processo disciplinar, que terá lugar no próximo dia 15. Este incidente deu origem a grandes controvérsias. Em primeiro lugar, poucos dias após a ocupação do Centro de Línguas, apareceu escrito nas paredes “Mandarim, Não”. Os estudantes manifestaram-se para dar a conhecer os motivos do seu descontentamento. Os professores sentiam-se numa posição desconfortável. Mais de 100 docentes escreveram uma carta ao Reitor a testemunhar incómodo devido ao comportamento dos estudantes. Os que estiveram presentes no Centro de Línguas durante a ocupação, afirmaram que a sua segurança esteve em risco. Cheng Chung Tai, membro do Conselho Legislativo, escreveu à Comissão para a Igualdade de Oportunidades no dia 17 de Janeiro, salientando que as políticas adoptadas no exame de graduação poderiam estar em colisão com a lei contra a discriminação, porque os estudantes de Hong Kong são obrigados a estudar mandarim e os estudantes do continente não são obrigados a estudar cantonês. Além disso, os estudantes estrangeiros tanto podem aprender mandarim como cantonês. A partir destes exemplos, podemos verificar que os estudantes lutaram para defender os seus interesses. Também lhes tinha sido dada uma expectativa de 90% de resultados positivos. Como esta percentagem baixou dramaticamente para os 30%, sentiram-se defraudados pela Universidade. A revolta e a frustração estiveram na origem da ocupação do Centro de Línguas. Mas os comportamentos excessivos provocaram criticas por parte da sociedade. Será o mandarim uma língua difícil de aprender? A resposta será “provavelmente, não”, sobretudo, para os estudantes de Hong Kong. Eles já a escrevem, da mesma forma que os estudantes do continente. A questão aqui é saber pronunciá-la. Não parece ser muito difícil. A revolta destes jovens deve ter sido provocada pelo grande número de reprovações. Antes de se fazer o exame, ninguém pode saber ao certo qual vai ser a taxa de sucesso. Apesar disso a Universidade apontou para uma taxa de 90% de êxito. Mas era só uma previsão. Com apenas 30% dos alunos a passarem o exame, é necessário analisar as razões deste fracasso e decidir o que fazer a seguir. O descontentamento dos estudantes é compreensível, mas não justifica a ocupação das instalações. A ocupação perturbou a actividade do Centro e afectou outros estudantes que não estavam envolvidos nesta prova, o que não deixou de ser injusto. Em segundo lugar, estaremos perante um logro? Será que a Universidade quebrou uma promessa? Ou será que os estudantes falam mal mandarim? Até ao momento não existem respostas a estas perguntas. O melhor a fazer é procurar um entendimento entre a Universidade e os alunos. Os alunos terão de encontrar respostas a estas interrogações e decidir as medidas a tomar. Mesmo que os estudantes percebam que houve algum logro, devem tentar compreender os motivos e procurar um entendimento com a Universidade. Todos os problemas que ocorreram ficaram a dever-se à falta de comunicação e de negociação. E porque é que os estudantes não negociaram com a Universidade? Talvez porque hoje em dia os jovens são demasiados auto-centrados. A baixa taxa de natalidade em Hong Kong leva as escolas a tratarem os estudantes com mil cuidados. Desde a escola primária, passando pela secundária e, finalmente, pela Universidade, os estudantes são sempre um trunfo. Usam-nos para receber benefícios. Se alguma coisa lhes desagradar, convencem-se que estão a ser maltratados. É natural que existam comportamentos menos razoáveis quando as pessoas acreditam que estão a ser maltratadas. Mas este caso já assumiu contornos políticos. A carta que Cheng Chung Tai dirigiu à Comissão para a Igualdade de Oportunidades, apontando para uma possível infracção à lei contra a discriminação, pode causar problemas. Uma questão que poderia ter sido resolvida internamente está a complicar-se. Esta queixa não é bem-vinda. O Ano Novo Chinês está a chegar. Desejo a todos os meus leitores o melhor para este Ano do Cão. Feliz Ano Novo.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA China no Ano do Cão “Compared with the congress of two parties (Republican Party and Democratic Party) in the United States, the National Congress of the Communist Party of China takes a longer time for the change of state leadership compared with the President selection of the United States, the democratic form is more completed, the democratic selection procedure is more completed, the democratic contents are more adequate, the democratic essence is more effective and the democratic achievements are more abundant, already exceeding the United States.” “China’s Road and China’s Dream: An Analysis of the Chinese Political Decision-Making Process Through the National Party Congress” – Angang Hu [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Ano Novo Chinês do Cão, que começa oficialmente a 16 de Fevereiro de 2018 e termina em 4 de Fevereiro de 2019, será palco da realização e execução de profundas e sérias alterações na China, no seguimento do decidido pelo Comité Central do Partido Comunista Chinês (PCC), a 19 de Janeiro de 2018, ao propor e escrever o pensamento do presidente Xi Jinping sobre o “Socialismo com Características Chinesas para uma nova era na Constituição da China”, a lei fundamental do país. O presidente Xi Jinping, que também é Secretário-geral do Comité Central do PCC, pronunciou um discurso na Segunda Sessão Plenária do 19.º Comité Central do PCC, realizada em Pequim entre 18 a 19 de Janeiro de 2018. A Segunda Sessão Plenária aprovou uma proposta do Comité Central do PCC sobre a revisão da Constituição. As principais conquistas teóricas, princípios e políticas adoptadas no 19.º Congresso Nacional do PCC devem ser incorporadas em uma revisão da Constituição, de acordo com o conteúdo divulgado após a dita Sessão Plenária. As novas realizações, experiências e requisitos do desenvolvimento do Partido e do país devem ser incorporados na Constituição revista, em que se deve manter o compasso dos tempos e melhorar a Constituição, mantendo a sua consistência, estabilidade e autoridade. O Comité Central do PCC convidou o Partido a unir-se, com o presidente Xi Jinping, no seu centro, e aderir ao Estado de direito socialista com características chinesas. A sessão foi presidida pelo Politburo Político do Comité Central do PCC. O presidente Xi fez um discurso na dita sessão, tendo contado com a participação de duzentos e três membros e cento e setenta e dois membros suplentes do Comité Central do PCC, membros do Comité Permanente da Comissão Central de Inspecção Disciplinar do PCC, responsáveis principais em assuntos proeminentes, alguns deputados ao 19.º Congresso Nacional do PCC, eleitos de base de organizações e especialistas. Na sessão, os líderes adoptaram uma proposta de alteração de algumas partes da Constituição. O presidente da Comissão Permanente do Congresso Nacional do Povo apresentou o projecto de proposta na referida sessão, pelo que se tornava necessário alterar a Constituição da China, nesta nova era. A República Popular da China (RPC) promulgou a sua primeira Constituição em 1954. O Quinto Congresso Nacional do Povo, em 1982, aprovou a presente Constituição, que sofreu quatro alterações, em 1988, 1993, 1999 e 2004, respectivamente. A Constituição tem desempenhado um papel importante no progresso do país, pois foi alterada em conformidade com a realidade e desenvolvimento do Partido e do país, e desde a última alteração em 2004, o Partido e o país passaram por importantes mudanças. O 19.º Congresso Nacional do PCC fez importantes implementações estratégicas no socialismo com características chinesas para a nova era, pelo que é essencial alterar a Constituição para incorporar realizações teóricas, práticas e institucionais feitas pelo Partido e pelo povo. O processo de modificação deve levar o marxismo-leninismo, o “Pensamento de Mao Tse Tung”, a “Teoria de Deng Xiaoping”, a “Teoria dos Três Representantes” que têm como pilares os interesses da maioria do povo, a cultura e as forças produtivas avançadas, a “Perspectiva Científica do Desenvolvimento”, e o “Pensamento do presidente Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas” para uma nova era, como guia. O pensamento do presidente Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas para uma nova era é uma orientação que o Partido e o país defenderão a longo prazo. É de enfatizar que o pensamento do presidente Xi Jinping é a última conquista na adaptação do marxismo ao contexto chinês e é o tipo de marxismo para a China contemporânea e para o século XXI. O pensamento deve ser uma ideologia orientadora a ser mantida a longo prazo pelo PCC e pelo país, pelo que a liderança do Partido, deve ser fortalecida e confirmada em todas as áreas de actuação. A adesão à liderança do PCC é justificada como um princípio na revisão da Constituição e a liderança do PCC é o atributo essencial do socialismo com características chinesas e a maior força do sistema. O plano integrado de cinco alcances, que é de promover de forma coordenada o avanço económico, político, cultural, social e ecológico, e a nova visão do desenvolvimento inovador, verde, aberto e universal, são vitais para o rejuvenescimento nacional. Os objectivos passam pela finalização da construção de uma sociedade moderadamente próspera, em todos os aspectos até 2020, basicamente, realizando a modernização socialista em 2035 e construindo a China, como um grande país socialista moderno, em meados do século XXI. É de atender que, seguindo o caminho do desenvolvimento pacífico, procurar uma estratégia mutuamente benéfica de abrir e promover a construção de uma comunidade com um futuro compartilhado, é de grande importância para a causa do desenvolvimento pacífico da humanidade. A reforma para estabelecer um sistema de supervisão nacional, que está sob a liderança do Partido e abrange todos os que exercem o poder público é uma reforma significativa do sistema político e uma decisão importante para fortalecer a auto-supervisão do Partido e do Estado, pelo que todos, devem obedecer à Constituição. É de destacar o importante papel da Constituição na governança estadual e o comprometimento universal na garantia da sua implementação. Os empenhos para aderir ao domínio da lei devem dar prioridade à regra da Constituição. Os esforços para aderir ao governo pela lei devem colocá-lo em conformidade com a supremacia da Constituição. É de entender que todo comportamento anti-constitucional deve ser corrigido, sem falhas, e nenhuma organização ou indivíduo tem o poder de violar a Constituição ou a lei. Assim, todas as pessoas, órgãos do Estado, forças armadas, partidos políticos, grupos civis, instituições públicas e empresas devem ter a Constituição como seu guia fundamental. As pessoas em todos os níveis de cargos públicos, especialmente os principais funcionários, devem exercer o poder e trabalhar de acordo com a Constituição e a lei, e submeterem-se à supervisão do povo. É obrigação geral enriquecer as principais disposições institucionais da Constituição, o que desempenharia um papel importante na melhoria e desenvolvimento do sistema de socialismo com características chinesas. A revisão da Constituição, proporcionará uma garantia poderosa para o desenvolvimento do socialismo com características chinesas na nova era, dado que a Constituição é o cerne do sistema de direito socialista chinês, e a adesão ao Estado de Direito deve dar prioridade à regra da Constituição. Os esforços para aderir ao governo pela lei devem fazer, que se actue em conformidade com a Constituição, como sendo a máxima prioridade. Esta experiência, que é aprendida com a história do desenvolvimento da China, deve ser respeitada e amada. A partir do 18.º Congresso Nacional do PCC, em 2012, o Comité Central do PCC com o presidente Xi no centro do poder, levou o país a manter e a desenvolver o socialismo com características chinesas, estabelecendo o referido Pensamento. A revisão pode manter a Constituição ao ritmo do desenvolvimento do Partido e do país, mantendo a sua consistência, estabilidade e autoridade. Este é o compromisso do Comité Central do PCC de oferecer o seu conceito de governança de acordo com a Constituição. O PCC também fortalecerá a supervisão para garantir o cumprimento da Constituição, avançar na revisão constitucional e salvaguardar a poder da Constituição. O Comité Central do PCC, desde 2012, tomou medidas significativas para salvaguardar a dignidade e autoridade da Constituição, como por exemplo, ao estabelecer o “Dia Nacional da Constituição”, que é um mecanismo que tem por fim assegurar fidelidade à Constituição. A revisão proposta reforçará a implementação e a adesão à Constituição por toda a sociedade, aumentará a confiança das organizações de base em reformas e desenvolvimento, e fornecerá orientação constitucional para diversos sectores com vista a acelerar a reforma. O presidente Xi Jinping pediu, em 4 de Dezembro de 2017, no “Dia Nacional da Constituição”, para aumentar a conscientização pública sobre a Constituição e a sua implementação, que tem sido observada pela China desde 2014. A Constituição contém as regras fundamentais do país, e deve ser cumprida durante a implementação da lei, como disse o presidente Xi, em uma instrução enviada para a abertura de uma sala de exposições em Hangzhou. O salão apresenta documentos sobre a primeira Constituição da RPC, que foi redigida no mesmo local e promulgada em 1954. A legislatura da Assembleia Popular Nacional, adoptou a actual Constituição, a 4 de Dezembro de 1982, com base na versão de 1954. A sala de exposições é importante para a promoção da Constituição, para que mais pessoas se tornem conscientes e respeitem as leis do país de acordo com o Pensamento do presidente Xi, que solicitou ainda, à administração da sala de exposições para defender a liderança e o Estado de Direito e do Partido, e desempenhar o seu papel na promoção e implementação da Constituição. A partir de 4 de Dezembro de 2016, todos os funcionários eleitos ou nomeados, têm que fazer juramento público de fidelidade à Constituição. É importante salientar que a 28 de Novembro de 2017, um conjunto de regulamentos para promover a transparência nos assuntos do Partido foi revisto e adoptado, em uma reunião do Politburo Central do PCC, e publicados a 25 de Dezembro de 2017. O Regulamento do PCC sobre “Transparência nos Assuntos do Partido (Julgamento)”, foi o primeiro documento oficial divulgado desde o 19.º Congresso Nacional do PCC, em Outubro de 2017, que estabelecem as bases para as futuras regras de divulgação dos assuntos do Partido e especificam a definição, princípios, conteúdo, procedimentos e formas de trabalho. A transparência foi um passo importante para a implementação do espírito do 19.º Congresso Nacional do PCC e uma obrigação para o desenvolvimento da democracia intrapartidária e democracia socialista. O PCC, nos últimos anos, fez grandes esforços para explorar o caminho para a transparência nos assuntos do Partido, tendo revelado um conjunto de documentos, como o “Regulamento sobre o Estabelecimento de um Sistema de Porta-Vozes para os Comités do PCC”, o “Regulamento para Promover a Transparência dos Assuntos do Partido nas Organizações Primárias do PCC” e do “Regulamento de Estabelecimento e Melhoramento de Mecanismos de Divulgação de Informações e Interpretação de Políticas”. A partir do 18.º Congresso Nacional do PCC, em 2012, o Partido acelerou a sua campanha anticorrupção. A divulgação de informações sobre funcionários corruptos de alto nível e os casos de violações do Código de Austeridade de oito pontos do Comité Central do PCC, atraiu a atenção das pessoas para a “Comissão Central de Inspecção Disciplinar do PCC (CCDI) ”, em uma clara demonstração dos esforços para promover a transparência nos assuntos do Partido. Além disso, um relatório anual divulgado pelo Departamento de Organização do Comité Central do PCC, contém o número de membros e organizações do Partido, bem como a composição das organizações a todos os níveis. Além de promover a transparência em alguns assuntos dentro do escopo das suas funções, alguns departamentos do Partido, incluindo o CCDI, bem como a organização e os departamentos internacionais do Comité Central do PCC, também realizaram eventos do dia aberto aos diplomatas estrangeiros, agências de média estrangeira e público. Todavia, permanece um fosso entre o actual nível de transparência nos assuntos do Partido e os requisitos da nova era. O propósito da informação a divulgar não é suficientemente amplo, os procedimentos não são totalmente institucionalizados e a transmissão ao público muitas vezes mostra-se rígida e restrita. Algumas organizações e departamentos do Partido não conseguiram divulgar as informações mais interessantes para as pessoas mas, em vez disso, tornam públicas informações inadequadas, como segredos de comemorações. Os regulamentos sobre a transparência nos assuntos do Partido são de grande importância no exercício de uma governança completa e rigorosa, fortalecendo a supervisão intrapartidária e aproveitando o entusiasmo, a iniciativa e a criatividade de todo o PCC. É de considerar que há muito tempo houve divergências em teorias e práticas sobre a conotação de transparência nos assuntos do Partido. Os novos regulamentos do PCC pela primeira vez dão uma definição clara e autorizada a este respeito, pois exigem que as organizações do Partido divulguem assuntos relativos à sua liderança e construção, entre os seus membros. Assim, a liderança e a construção do Partido constituem todos os assuntos do PCC. Os assuntos do Partido, referem-se principalmente ao seu funcionamento interno, são o que as suas organizações e os membros têm o direito de conhecer, pois o PCC é o partido no poder na China e os seus assuntos e políticas influenciarão o desenvolvimento nacional.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO grande desafio [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente, dois apelos a instâncias superiores da justiça, um na RAEM e o outro na RAEHK, chegaram ao fim. Em Hong Kong, o Tribunal de Última Instância aceitou o apelo de Joshua Wong, Nathan Law e Alex Chow que recorreram da sentença do Tribunal de Primeira Instância. Os activistas tinham sido condenados a penas de prisão por terem tentado forçar a entrada na sede governamental, na sequência dos protestos associados à “revolta dos guarda-chuvas”. A sentença inicial foi revista e o Tribunal optou por pena suspensa e prestação de serviço comunitário. Os três jovens saíram em liberdade. Em Macau, o deputado Sulu Sou apresentou um recurso no Tribunal de Segunda Instância, contestando a decisão do plenário da Assembleia Legislativa de suspender as suas funções, mas o Tribunal recusou o apelo bem como o pedido de providência cautelar. Se Sou não recorrer para o Tribunal de Última Instância, a questão relativa à legitimidade dos procedimentos que levaram à suspensão do seu mandato na Assembleia Legislativa chegará ao fim. O Tribunal Judicial de Base retomará o julgamento do seu caso. Os finais distintos dos dois apelos demonstram a independência do poder judicial em ambas as regiões. Qualquer avaliação de sentenças de um Tribunal só pode ser feita através de processos jurídicos. É a salvaguarda da independência do poder judicial à luz do enquadramento legal. Um acto político não equivale ao estado de direito e não pode violar a justiça processual. Caso contrário, o estado de direito será substituído pela anarquia. Prefiro não falar sobre estes dois apelos, mas gostava de partilhar os meus pontos de vista sobre a lei através de um filme que vi. A TV Cabo de Macau passa muitas vezes um filme intitulado “O Grande Desafio”. É baseado numa história real protagonizada por Melvin B. Tolson, um poeta negro americano, que foi professor na década de 30. O filme conta como Melvin Tolson fundou e treinou a primeira equipa de debate do Wiley College, uma escola do Texas para negros, que viria mais tarde a vencer um desafio contra a equipa da Universidade de Harvard. É uma demonstração da difícil luta dos negros contra a discriminação racial. Como o filme passava repetidamente, acabei por vê-lo várias vezes. Para mim, um dos momentos altos da história é a apresentação do argumento de James L. Farmer, Jr. (filho de um pastor negro) durante a última sessão do debate, na qual citou a famosa frase de Augustine Hippo, “Uma lei injusta não é uma lei”, para contrapor a afirmação da equipa de Harvard, “nada do que ataca o estado de direito pode ser legítimo”. Nesse tempo, os negros não tinham os mesmos direitos dos brancos perante a lei. James L. Farmer afirmou ainda que, perante uma lei injusta, tinha o direito e o dever de a combater de todas as formas possíveis. Não através da agressão, mas sim com acções não-violentas. O Movimento da Não Violência continua a ser uma doutrina que surgiu com as lutas sociais dos anos 30. Há algum tempo atrás tive uma conversa com um membro pró-democrata do sector jurídico de Hong Kong. Ele defendia que a lei deve ser respeitada por todos os sectores da oposição. Se pensamos que uma lei é má, devemos lutar para corrigi-la, não para quebrá-la. Se todos transgredirem a lei porque a acham desadequada, a ordem social será destruída e só podemos esperar o pior. Estas palavras merecem-nos alguma reflexão. Nos últimos 100 anos da História da China houve sempre ausência de legitimidade democrática, dando origem à violência institucional, que tem um impacto muito maior do que qualquer outra violência. No processo de construção de uma sociedade governada pela lei, é vital encarar a sociedade como um todo, independentemente dos sistemas e do papel desempenhado pelos representantes da autoridade. Se tivermos a coragem de falar a verdade abertamente, podemos enfrentar grandes desafios. Quem ousar viver uma vida de verdade, será sem dúvida uma pessoa realizada.
Leocardo VozesA falha politológica [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]uito se tem falado por aí da “falência da democracia” ou do seu fracasso. Engraçado e ao mesmo tempo trágico que se fale, se analisem as causas, façam-se as analogias históricas, retirem-se as devidas conclusões e, no fim, se encare o “fim da democracia” como uma inevitável fatalidade. É pena que assim seja, uma vez que, e como disse o pensador, a democracia é o pior dos sistemas com excepção de todos os outros. O que se passa é que ainda se confunde democracia com classe política. E Estado com Governo. Quando falha o Estado não falha este ou aquele Governo: falhamos todos nós, que somos o Estado. E falando de falhas, mas agora das geológicas, aquilo a que temos assistido nos últimos três ou quatro anos é uma intensa actividade sísmica na zona que é conhecida pela falha na placa tectónica da política – a falha politológica. As frentes populistas a que temos assistido a sair agora da toca, anunciando o longo inverno da classe política convencional e a morte da democracia por holocausto nuclear, são agora as mesmas que eram antes, mas com outros temas. O avanço da tecnologia não foi acompanhado pela democracia, que assim não se dotou de um anti-vírus do populismo, e tem sido um derramar de infecções, umas atrás das outras, manifestadas através de meio cibernético, como não podia deixar de ser, e neste caso assumindo a forma de Facebooks e Twitters, os “transformers” da anti-democracia. Aí encontramos todos os vírus que contaminam a democracia. De um lado os conspiracionistas, do outro os saudosistas. Os primeiros engendraram uma teoria da conspiração que passa por acreditar que uma tal “Nova Ordem Mundial” está a levar a cabo um plano, com a cumplicidade da classe política e económica dominante e do Vaticano (pasme-se), que passa pela “substituição populacional” ou ainda “genocídio branco”. Isto seria complicado de explicar aqui em poucas palavras, mas “in a nutshell” quer dizer que se eu optar por casar e ter filhos com uma pessoa de outra designação étnica que não a minha, estou a cometer “genocídio”. A sério, é isto mesmo e mais nada, e não se deixem convencer de outra coisa. Os saudosistas, e destes tenho mesmo muita pena, são pessoas que descobriram finalmente que a democracia não foi feita para eles. Queriam uma placa dourada com o seu nome, descerrada com honras de pano de veludo vermelho, mas não deu. Daí que evoquem Salazar, o seu bom pastor, e recordem com saudades os tempos em que eram todos ovelhinhas no seu Presépio pobrezinho, coitadinho, que “nunca roubou”, sendo isto o melhor que se pode dizer dele. Os saudosistas que nasceram depois do 25 de Abril – data que desprezam sem saber nada dela – são simplesmente ignorantes. Não sabem do que falam. No fundo e no fim de contas, o que está mal não é a democracia. É a falha politológica, a provocar todos estes abanões que nos fazem temer pela solidez das fundações da democracia. E para isto não há remédio, não sei, nem vou dizer a ninguém o quê ou como deve pensar. Passa tudo por um exame de consciência, mas se querem uma recomendação que não fica mal aceitar, aqui vai: leiam, analisem, duvidem, coloquem-se no lugar das pessoas, em suma, pensem.
Tânia dos Santos SexanáliseFilhos Únicos [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om a viragem para o ano do cão – feliz ano novo chinês vindouro! – penso sempre se este será um bom ano para ter filhos. Será que os recém-casados vão correr para procriar e trazer boa fortuna para a vida do seu rebento e entes queridos? Não sei. Infelizmente, sei pouco sobre o zodíaco chinês, e também sei pouco sobre nascimentos, mas digamos que um excerto semanal sobre a sexualidade sabe dizer uma, duas ou três coisas sobre a procriação. Dediquei-me, há uns dias atrás, ao tema do controlo à natalidade – os incentivos e as proibições – e eis que não será certamente surpresa para ninguém que a política do filho único chinesa tenha sido das mais controversas e das mais invasivas às singularidades da vida privada. Argumentos prós e contra, há muitos. O meu foco não será tanto na argumentação da adequação do projecto de desenvolvimento económico e populacional. O que eu quero é reflectir acerca da dificuldade que é de implementar leis que lidam tão intimamente com a nossa intimidade, desculpar-me-ão a redundância. Se houve partes que correram mal nesta experiência de engenharia social foi porque haviam normas – tradições – que não estavam alinhadas com a proposta legal. No que toca à sexualidade, ao género e à família há valores e assumpções muito enraizadas nos seres e nas sociedades. A primazia do primogénito ou a valorização dos múltiplos filhos para ajudar a sustentar a família não mudou depois de 1979, quando, de repente a lei obrigava a ter um só filho. Tudo o que aconteceu para que as famílias pudessem ter o filho homem para continuar a linhagem familiar envolveu muitas decisões difíceis, e às vezes até crimes. Isto agora resulta numa discrepância brutal na quantidade de homens e mulheres na China continental, estima-se que existirão entre 32 a 36 milhões de homens a mais. Ninguém sabe muito bem o que é que este desequilíbrio de género poderá trazer. Os historiadores dizem que tanto homem junto só poderá trazer violência, e perpetuam a ideia de que quando demasiada testosterona está junta só poderá ter consequências nefastas – uma espécie de explosão de masculinidade tóxica. Mas eu quero ser mais positiva do que isso. Vem aí o novo ano, e novos anos são de renovação – e de limpezas primaveris – e eu fantasiei que esta é uma oportunidade para re-invenção familiar. Há mais homens do que mulheres na China, e depois? Acho que isso só é problemático se insistirmos com a lógica heteronormativa (lembram-se deste conceito?) em que não há nada para além de uma constelação familiar que envolva um homem e uma mulher. A vida familiar e privada parece definir a constelação societal, e ao estudar a política do filho único ainda mais impressionada fiquei acerca de como a nossa intimidade exige que as sociedades se reinventem, para melhor ou para pior. Quando a lei dita tão claramente de que forma devemos viver a nossa sexualidade e quantos filhos devemos ter, assistimos à formas de transformação familiares que influenciam gerações. Se calhar, mais do que se preocuparem com a quantidade de homens na China, podemos preocuparmo-nos com os ‘pequenos imperadores’ e ‘imperatrizes’ que governam a vida das suas famílias com exigências ‘imperiais’ acrescidas. Será que a China comunista, de valores anti-feudais, está preparada para sustentar os caprichos de tantos que nunca tiveram um irmão com quem partilhar as suas coisas, as suas ideias e a atenção dos seus familiares? Não quero eu dizer que todos os filhos únicos sejam uns mimados! Nada disso. Mas a vida familiar não é de todo simples, e desde muito cedo que molda as nossas perspectivas e expectativas acerca do mundo. Curiosamente, apesar de ser um tema mais que debatido na esfera pública chinesa, nunca ninguém se debruçou acerca deste fenómeno. Quem são os filhos únicos, e como é que eles vão liderar a China para o sonho chinês?
David Chan VozesCirurgia em suspenso [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]m Hong Kong, no passado dia 13 de Outubro, o Dr. Kelvin Ng Kwok-chai saiu à pressa do Hospital Queen Mary, antes de terminar um transplante de fígado que estava a realizar. O Dr Kevin saiu para efectuar uma operação que tinha agendada numa clínica particular. A conclusão do transplante foi adiada por três horas, até ao seu regresso. O Dr. Kelvin contava que a cirurgiã chefe, a Drª. Tiffany Wong Cho-lam, tivesse continuado o transplante após a sua saída. Mas como surgiram alguns imprevistos, a Drª. Tiffany decidiu suspender a intervenção até à vinda do colega. No período em que ocorreu este incidente, o Dr. Kelvin estava sob contrato especial a tempo parcial com o Hospital Queen Mary, celebrado devido à escassez de cirurgiões especialistas na sua área, e era consultor honorário deste hospital. As condições especiais do contrato foram determinadas pela falta de “cirurgiões altamente qualificados” capazes de realizar intervenções mais complexas. O Queen Mary é o único hospital público de Hong Kong a realizar transplantes de fígado. Um “cirurgião altamente qualificado” tem de ter, no mínimo, 17 anos de prática cirúrgica. Os dados demonstram que só existem sete médicos no Queen Mary capazes de efectuar com sucesso um transplante de fígado. No passado mês de Dezembro, um painel de investigação emitiu um relatório que foi entregue ao Hospital. Salientava que o Dr. Kelvin estava convicto que a sua colega, a Drª. Tiffany, tinha condições para concluir o transplante sozinha. No entanto, os dois médicos não tinham discutido nenhum plano de emergência. O Dr. Kelvin também não tinha tomado medidas para evitar eventuais conflitos entre as chamadas de emergência do Hospital Queen Mary e as marcações na clínica privada. O relatório concluiu que o procedimento do Dr. Kelvin foi “inaceitável” e “desnecessário”. O painel de investigação recomendou que o Hospital Queen Mary lançasse um código de conduta de forma a regular os papéis e responsabilidades do pessoal honorário. O Hospital foi também instado a realçar que, os médicos de serviço devem agir atempadamente de forma a dar resposta pronta às necessidades dos pacientes. Após a publicação do relatório o Dr.Kelvin afirmou: “Aceito as conclusões do relatório. Continuo ao serviço do Hospital a tempo parcial. O meu cargo a tempo inteiro na Universidade de Hong Kong mantem-se.” A Autoridade Hospitalar de Hong Kong está a considerar separar os processos de forma a determinar se o Dr. Kelvin deverá ou não ser acusado. O chefe da unidade de transplantes do fígado da Universidade de Hong Kong, o Professor Lo Chung-mau, declarou que o Dr. Kelvin é um médico muito dedicado. Adiantou ainda que, se for castigado e impedido de trabalhar no de Hospital Queen Mary, serão os doentes os principais prejudicados. O Professor Lo prosseguiu: “Nestes casos, o objectivo da punição não deve ser provocar mal-estar – mas sim permitir que mais doentes sejam ajudados.” O Professor Lo disse ainda que aqui não está em causa a ética profissional, mas sim o julgamento pessoal do Dr. Kevin. “Se ele tivesse deixado o doente por motivos pessoais, digamos, para ir ao restaurante ou ao cinema, estaria em causa a ética profissional. No entanto, acredito que nesta situação, ele foi obrigado a pôr no prato da balança as duas situações… Se ele não tivesse ido à clínica, o outro doente poderia processá-lo.” Este caso deu muito que falar em Hong Kong e não deixa de ser compreensível. Abandonar um paciente durante uma operação é caso para preocupação generalizada. Quando um doente se submete a uma cirurgia, põe a sua vida nas mãos do médico. Felizmente, nesta situação não houve consequências graves. Se tivesse havido alguma complicação que afectasse a saúde do doente, o médico podia ter sido processado por negligência. Mas, como não houve danos, a questão da negligência não se coloca. Será que abandonar um doente durante uma operação implica quebra do código de conduta profissional? A resposta depende da natureza do código de conduta em causa. Os códigos de conduta implementados pelo Conselho Médico são preceitos e normas que regulam os procedimentos médicos. Se o código de conduta não especificar que o médico não pode abandonar o doente durante uma operação, dificilmente se poderá falar de má prática profissional. Pelo que se sabe, o Dr. Kelvin será castigado internamente, mas, no entanto, devemos ter em conta as declarações do Professor Lo. Se o Hospital reduzir o horário de consultas do Dr. Kelvin, os doentes serão afectados pela ausência de um médico altamente qualificado. Mas se não houver qualquer punição, vão fazer ouvir-se muitas vozes em Hong Kong. Aparentemente, estamos perante um dilema. Seja como for, é inaceitável um médico abandonar um doente durante uma operação. Não se pode permitir este comportamento. É necessário implementar novas regras de conduta da prática médica de forma a impedir que casos semelhantes ocorram no futuro. A experiência de Hong Kong é vital para Macau, já que é necessário reflectir sobre a melhor forma de alterar o nosso sistema de saúde.
João Luz VozesA Harmonia [dropcap style≠‘circle’]P[/dropcap]or aqui está tudo bem, espectacular, não podia estar melhor depois dos envidados esforços das sacrossantas autoridades para manter esta terra solidamente segura e protegida contra influências desequilibradas externas. Quero saudar-vos e dar-vos as boas-vindas à terra da pura felicidade, o território do amor e contentamento de todos, este enclave de equilíbrio imóvel, o centro do júbilo máximo onde não há espaço para imperfeição. Eu sou a concórdia, o esteio de pureza e higiene social, transformo o mundo num desenho animado, onde os polícias são agentes da Playmobil e os cidadãos personagens de anime. Pelas ruas não faltam sorrisos rasgados a amarelo emoji, pessoas que passeiam infantilidade fermentada no encerramento a cidade redoma sitiada em aprazimento e dinheiro. A vida é uma aventura de proporção exacta e consonância obediente para toda a pequenada da Região Administrativa Especial do Clube dos Amigos Disney. Prevejo que no futuro, todos os residentes vão usar bibe e circular pelas ruas de mãos dadas trauteando cantigas de equilíbrio e sensatez. A paz social e a tranquilidade residem na conformidade, na concórdia e no amor pelo escrupuloso cumprimento. Eu sou o resultado do punho vigoroso do pai poder, o somatório dos disciplinadores açoites dados pela mão que todos dirige com sabedoria em direcção a um futuro melhor. Por favor, não sejam impertinentes, sejam meninos bonitos e não discutam como me alcançar, como alicerçar harmonia, pois essa é uma das principais tarefas dos iluminados. Eu sou o garante da simetria, da regularidade, da coesão de onde nasce a fraternidade, do entendimento entre irmãos, do amor absoluto despido dos excessos da irracionalidade. Comportem-se, por favor, para o vosso bem, ou o desalinho toma conta das vossas vidas e aí terão de ser trazidos à harmonia pela força. Entristece-me ver uma sociedade de chakras desalinhados, sem feng shui, onde a pornografia e a indecência ganham terreno. Este desígnio de tomar o espírito humano, de o moldar à segura complacência, não é pêra doce, muito pelo contrário, é uma maça raineta. Deve ser a queda símia, essa vertigem biológica funda nos genes das pessoas, que leva ao arrebatamento, à dispersão e às tesões pouco sensatas, ao nascimento de pensamentos contrários à ordem pública. Porquê este gosto pelos abismos lúbricos, pelo pluralismo onde o confronto é, não só inevitável, mas génese desta inquietação que palpita no sangue das pessoas? Dizem que esta é a natureza do Homem, nascido para a desobediência desde os primeiros capítulos no Jardim do Éden, irrequieto a lançar-se em fluxos migratórios tendo o sonho como bússola, ou a sonhar com outra realidade que não esta. Porquê esta propensão para a lascívia, para a controvérsia? Porque é que nunca estão satisfeitos e insistem na crítica, na participação cívica. Calem-se e obedeçam. Reneguem a revolução que a biologia vos dita e conformem-se a mim, a narcotizante harmonia. Chega de prazeres ilegais e imodestos, tudo o que é do domínio do lúbrico deve ficar reservado aos estrangeiros, esses mafarricos com cifrões nos olhos. Qualquer escorregadela por parte do mui prezado residente deve ser tido como um assunto reservado à intimidade, que jamais será capaz de contagiar ao resto da população. Quero mostrar-vos como a submissão é óptima, como é o mais confortável porto de abrigo e a forma de alcançar uma sociedade comedida, bem comportadinha, sóbria, que lava os dentes depois das refeições, que se penteia antes de sair de casa, que quando lhe é pedido para saltar prontamente pergunta quão alto. Quero mostrar-vos as vantagens de viver num cartoon onde tudo é perfeito, quero inundar as ruas com a música da senhora no radiador, do Eraserhead, que canta que no paraíso está tudo bem. Ela tem toda a razão, está tudo impecável, podem dormir um soninho descansado porque os senhores que sabem das coisas estão no poder a consolidar a harmoniazinha. Haverá alguma coisa melhor que isto?!
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO turismo e a cidade “There can be little doubt that tourist areas are dynamic, that they evolve and change over time. This evolution is brought about by a variety of factors including changes in the preferences and needs of visitors, the gradual deterioration and possible replacement of physical plant and facilities, and the change (or even disappearance) of the original natural and cultural attractions which were responsible for the initial popularity of the area.” “The Tourism Area Life Cycle, Vol. 1: Applications And Modifications” – Richard Butler [dropcap]O[/dropcap] turismo está a passar por mudanças fundamentais em relação ao mercado, à estrutura da indústria e ao produto em si, sendo transformações impulsionadas por uma fundamental transição para padrões pós-modernos de consumo, tornando o turismo, uma das marcas de referência dos modos de produção e consumo na economia do conhecimento. Os modelos tradicionais de gestão do turismo e planeamento estão a adaptar-se rapidamente a uma nova realidade em que o turismo joga, quantitativa e qualitativamente, um papel sem precedentes na formação do desenvolvimento económico. Tendo em consideração as interconexões entre o turismo e a cidade do ponto de vista da pesquisa orientada para as políticas, o turismo penetra e influencia cada vez mais as decisões políticas em todas as áreas do desenvolvimento da cidade, tais como o uso da terra, desenvolvimento de locais, regulamentos de construção, infra-estruturas, inovação, qualidade ambiental, inclusão social, empreendedorismo e governança urbana, o que torna urgente incluir perspectivas de turismo nos modelos implementados para enfrentar questões e desafios urbanos. O turismo pode apoiar as cidades na construção da sua reputação, promoção do seu capital relacional na arena global, ao propor e apoiar um modelo de qualidade do desenvolvimento urbano. Além disso, o turismo urbano é, por si, um fenómeno multifacetado. Os diversos tipos de viajantes chegam a uma cidade com propósitos muito diferentes, e as suas múltiplas interacções com os moradores e com as atracções e infra-estruturas da cidade, dão origem a uma variedade de tipos de turismo, daí a existência de uma ampla gama de modelos de turismo sobreposto (e modelos de negócios) que coexistem. O turismo é uma função essencial de contextos urbanos contemporâneos. O potencial e as limitações da integração do turismo nas políticas urbanas são realizados por meio de uma variedade multifacetada e multidisciplinar de contribuições. A partir de diferente perspectivas, pode ser analisada a forma como a procura do desempenho do turismo pode contribuir para qualidade da vida urbana e para o bem-estar das comunidades locais (qualidade dos espaços, emprego, acessibilidade, inovação e aprendizagem), mas também pode criar riscos, tensões e conflitos, como é atestado pelo aumento de acções anti-turismo em reacção à mercantilização cultural e ao turismo de gentrificação induzida. A esse respeito, a integração do turismo na agenda urbana é condição (tanto intelectual e política), por abordar de forma crítica e positiva as assimetrias produzidas pelo fenómeno do turismo urbano. Tais assimetrias levam a uma (manejável) troca entre os interesses dos residentes e os dos turistas ou desencadeiam um jogo positivo, para o bem-estar dos residentes permanentes e temporários. É de considerar que um ressurgimento do interesse no fenómeno do turismo urbano deve ser conectado com uma variedade de factores de natureza contingente e estrutural. O turismo tem vindo a crescer e a diversificar-se na última década, e num contexto global em rápida mudança, a indústria de viagens tem-se vindo a transformar. As previsões da “Organização Mundial de Turismo (OMT) ”, apontam que o número de chegadas internacionais de turistas no mundo aumentará 3,3 por cento anualmente, em média, até 2030, enquanto, o “Fórum Económico Mundial”, que se realiza anualmente em Davos, prevê que o sector de viagens e turismo crescerá 4 por cento anualmente, a uma velocidade maior do que outros sectores económicos, como a produção, transportes e serviços financeiros. Além das tendências crescentes, a diversificação e a transformação global do fenómeno do turismo tem estado a ser observado e questionado. Os tipos de inovação devem ser analisados, como resumindo os campos em que a novidade e as trajectórias emergentes podem ser procuradas; a inovação a novos nichos de mercado, concentrando-se na abertura de novas oportunidades de mercado através do uso de tecnologias; a inovação regular que segue padrões históricos de acréscimo de mudança; a inovação revolucionária, que deriva do uso intensivo de tecnologias em produtos ou serviços específicos, ainda não envolvendo toda a indústria do turismo; e, finalmente, a inovação arquitectónica que afecta a indústria do turismo como um todo. É importante considerar que um dos desafios actuais no domínio da pesquisa do turismo consiste na identificação de inovações turísticas e na análise dos seus aspectos sociais, efeitos económicos e culturais, bem como da sua capacidade de mudar profundamente a forma como os viajantes, por um lado, e os operadores turísticos se envolvem com desenvolvimento do turismo. O turismo é um fenómeno situado e ao longo da sua evolução na sociedade global, não foi um insignificante factor nas trajectórias evolutivas das cidades. E, no entanto, o turismo urbano parece persistir à margem do debate sobre as cidades, pois raramente é estudado como parte de uma economia, sendo principalmente confinado como um agente de gentrificação e como resultado directo (e quase aceite) da regeneração liderada por processos de cultura. Quais são os motivos da marginalização do turismo em estudos urbanos? A resposta tem em parte a ver com uma história intelectual de que o turismo é relegado a desempenhar o papel de alternativa fácil por atraso das regiões periféricas que permaneceram fora dos processos de industrialização. Têm sido propostos dois tipos ideais, como sejam o turismo de urbanização e a urbanização do turismo, sendo ambos destinados a sinalizar a incorporação do turismo em processos de urbanização. O último (urbanização do turismo), identifica o turismo como o principal motor de moldagem física, social e económica da cidade. O turismo urbano e o lazer desempenham um papel predominante na produção local. O turismo de urbanização não prevalece na economia urbana, e é uma das muitas dimensões para explicar a trajectória evolutiva das cidades. Existe consciência do crescimento no discurso global do turismo, sobre a necessidade de convergir em um caminho do turismo sustentável que parece coincidir com o turismo de urbanização racional, onde o turismo não assume a liderança na economia local, mas contribui para a diversidade urbana, lazer e cultura atmosférica de consumo. A conceitualização sustentável do turismo urbano é a principal resposta aos efeitos negativos que o seu rápido crescimento tem provocado. Todavia, esforços significativos de pesquisa devem abordar o turismo de urbanização, as suas formas, políticas e práticas que o caracterizam e os seus efeitos e limites. O papel do turismo na formação do desenvolvimento social, económico e tecido físico das cidades, faz pressupor a necessidade da existência de aprofundamento de muitas formas intermediárias que o turismo carrega em contextos urbanos. O desenvolvimento do turismo global está intimamente interligado com a trajectória de transformação urbana e urbanização. A população residente deve ser articulada com uma população temporária e oscilante de visitantes, com impacto no tecido físico e socioeconómico urbano. O crescimento desproporcionado em números, aumento de receitas e expansão da presença de turistas em várias áreas urbanas analisados por estudos de vizinhança, instam ao tratamento do turismo como facto urbano significativo. As cidades não são apenas os principais destinos ou pontos de atenção dos itinerários dos viajantes, mas também são a origem da maioria dos viajantes, dado que 80 por cento dos turistas são provenientes das cidades, e esta é uma das razões fundamentais para a reconsideração do turismo como um factor crucial no desenvolvimento da cidade, como afirma a “Declaração de Istambul de 2012”, promovida pelo OMT, que é a agência da ONU encarregada da promoção turística sustentável e universalmente acessível. Muitos são os países que aceitam que o turismo é um recurso fundamental para as cidades e seus residentes, porque pode contribuir para o rendimento local, bem como para a manutenção de infra-estruturas e prestação de serviços públicos. A “Declaração de Istambul” descreveu o turismo como a maior indústria do mundo, criadora de benefícios económicos e promoção da cultura e bem-estar, bem como da coesão e preservação do património. A OMT enfatizou a importância das políticas públicas que impulsionam os impactos positivos do turismo urbano, enquanto evitam ou mitigam os efeitos negativos, ou seja, se a maioria das políticas de turismo forem concebidas como estratégias autónomas de mercadologia e promoção, em tempo, realizarão uma reflexão estruturada sobre as políticas urbanas integradas. A questão crucial é a de saber em que medida as instituições de ensino superior podem ajudar a comprovar estas afirmações e orientar o debate para a definição de base teórica e acção empírica, responsável, sustentável e acessível ao turismo. Os impactos das viagens nas cidades de destino que recebem visitantes são significativos das perspectivas comerciais, sociais e culturais do turismo. Os gastos dos visitantes constituem uma fonte de negócios cada vez mais importante, constituindo receitas para as cidades de destino, abrangendo a hospitalidade, vendas a retalho, transportes, desporto e indústrias culturais. É um importante motor económico para o emprego e fonte de rendimento para as cidades, e conjuntamente com o fluxo de visitantes, agrega o conjunto de novas ideias e experiências que beneficiam os visitantes e as cidades de destino. Se, por um lado, o turismo é representado como uma panaceia panglossiana para muitos (em alguns casos, até para todos), os problemas de desenvolvimento (como fonte de receita, ideias, emprego, conexão e dinamismo), por outro lado, a consciência dos muitos efeitos negativos do turismo tem alimentado interpretações cada vez mais críticas dos seus impactos e papel nas áreas urbanas, marcando o fim da lua-de-mel das cidades com o turismo urbano, com o surgimento de movimentos anti-turismo pela reivindicação dos moradores ao seu direito à cidade. É de considerar os argumentos esgrimidos na descrição dos efeitos desiguais de aumento de rendimento e deslocamento induzido pela dinâmica urbana associada ao turismo, lazer e consumo, com as consequentes implicações sociais, económicas e exclusão política. O turismo urbano continua a ser um campo imaturo de pesquisa simplista e as descrições sobre o fenómeno turístico da cidade são o resultado, e não se entende como é possível a feitura de legislação sem suporte científico. A falta de estudos científicos sobre o turismo abundam, e desde logo ressaltam os estudos de negligência do turismo nas cidades e das cidades que negligenciam o turismo. É evidente que tem havido uma espécie de consenso implícito sobre a negligência do turismo no processo de urbanização e desenvolvimento económico. A imaturidade do turismo urbano como domínio analítico tem raízes históricas, pois até à década de 1980, a literatura académica sobre o turismo urbano era muito limitada para não dizer quase inexistente, posteriormente, o turismo urbano começou a tornar-se parte integrante dos estudos de turismo, embora como um fenómeno bastante distinto e consequente área de pesquisa, pois uma profunda visão rural continuou a caracterizar o turismo por longo tempo. O preconceito anti-urbano caracterizou especialmente o contexto anglo-americano, onde o turismo estava principalmente ligado à ideia de recreação ao ar livre, no campo, onde o contacto directo com a natureza podia ser experimentado, e por contraste, na visão industrial, as cidades foram concebidas como lugares para o trabalho árduo, para as tarefas sérias dos serviços, comércio e governo. Desde a década de 1980, o interesse no turismo urbano cresceu rapidamente, em paralelo com a crescente atenção dada à necessidade de regular e contrariar as externalidades negativas do turismo em cidades históricas. O modelo de férias marinhas ao sol que surgiu na década de 1960 começou a diminuir, enquanto o turismo urbano cresceu. Esta tendência foi impulsionada pelo surgimento e fortalecimento do transporte aéreo de baixo custo, conjuntamente com a melhoria da conectividade das cidades europeias. A liberalização do transporte aéreo na União Europeia significou uma revolução no turismo, uma vez que afecta fortemente os fluxos de viajantes, tanto quantitativamente quanto qualitativamente. As “Transportadoras de Baixo Custo (LCCs na sigla na língua inglesa)” estão a deslocar viajantes para fora das rotas tradicionais, criando novos destinos. Os destinos emergentes são muitas vezes cidades pequenas, geralmente não famosas, onde as companhias aéreas de baixo custo pagam tarifas e taxas aeroportuárias mais baixas. O entusiasmo por um cenário turístico radicalmente dinâmico levou à concepção das LCCs como uma oportunidade não só para expandir a geografia do turismo, mas também para reposicionar destinos bem estabelecidos. O governo de Malta, por exemplo, em 2006, ofereceu incentivos às companhias aéreas de voos baratos em uma tentativa de favorecer curtas férias urbanas e expandir o turismo cultural/patrimonial na despesa do modelo sol e praia. O resultado foi um aumento no número de chegadas, mesmo que não tenham ocorrido mudanças estruturais na procura turística. Ao mesmo tempo, as LCCs desencadearam uma nova onda de discussão sobre a contribuição do turismo para o desenvolvimento local. Tem sido defendido que o facto de o maior número de turistas fluírem, como os permitidos pelas LCCs, nem sempre significam desenvolvimento do turismo local e que nos negócios do destino turístico, sendo necessários modelos que maximizem os benefícios e mitiguem as externalidades negativas.
Jorge Morbey VozesO “segundo sistema” [dropcap]P[/dropcap]or acreditar firmemente no legado que representa o pensamento de Deng Xiaoping, génio ímpar da China do nosso tempo, de que faz parte o princípio “Um País, dois sistemas”; Por sentir que Macau atravessa um momento difícil que pode comprometer a viabilidade do Sistema Político estabelecido na Lei Básica, por deficiência de conhecimento do funcionamento do Estado de Direito, trave mestra em que assenta a edificação do “segundo sistema”; Por entender que as comunidades que formam o tecido social da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China devem entender plenamente a via por que circula o seu destino colectivo e a construção da sua felicidade colectiva, unidas entre si e no respeito individual e colectivo pelos símbolos e autoridades nacionais da República Popular da China; A propósito do almoço oferecido recentemente, a alguns macaenses, por Sua Excelência o Chefe do Executivo, pareceu-me oportuno lembrar um artigo escrito em 28 de de Janeiro de 2005 no jornal “Ponto Final” sob o mesmo título: O “segundo sistema” Ouve-se de vez em quando o lamento de macaenses, com alguma notoriedade em Macau, alegando que o “segundo” sistema os tem discriminado, não lhes dá as oportunidades que merecem, nem reconhece o seu papel legitimador desse mesmo “segundo” sistema. O princípio “um país, dois sistemas” foi a fórmula criada por Deng Xiao Ping para superar o antagonismo ideológico capitalismo/socialismo e abrir caminho à reunificação da China. O objectivo de tal princípio visa harmonizar sob a bandeira da República Popular da China, o sistema e as políticas socialistas do Interior com o sistema capitalista em que assentam as economias de Macau, Hong Kong e Taiwan. Dele não se extrai um mícro de propósito discriminatório. Étnico ou rácico. Nem se vê que o relativo menor sucesso do Sr. Tung Chee-Hwa na RAHEK possa ser atribuído ao déficit de gente lusa em Hong Kong para legitimar o “segundo” sistema. A Lei Básica da RAEM, com generosidade e pragmatismo, confere o estatuto de cidadania aos residentes de Macau, independentemente da sua nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas e ideológicas, instrução e situação económica ou condição social (art. 25.º). Passando dos enunciados teóricos à prática, volvidos mais de cinco anos de vida da RAEM, encontram-se deputados portugueses no seu órgão legislativo, assessores portugueses nos gabinetes dos membros do Governo, directores de serviços, coordenadores de equipas de projecto e quadros superiores portugueses por toda a Administração Pública e magistrados portugueses nos órgão judiciais. Na actividade privada é visível a prosperidade de advogados, médicos, engenheiros, arquitectos, industriais de restauração e outros profissionais portugueses. Nascidos em Macau ou em outras paragens. Sem discriminação. Discriminação era antes. E não há muito tempo. Quando os chineses, por mais habilitações que tivessem, fora do sistema de ensino português, na Função Pública, por exemplo, apenas podiam ser motoristas ou serventes. Macau é cada vez mais um espaço admirável e cheio de oportunidades para todos. A questão é ter unhas, como se costuma dizer em português. Uma bioquímica macaense, preterida em concurso de admissão aos Serviços de Saúde, será a excepção que confirma a regra? Haverá outros casos? Nesta como em outras matérias, a cultura chinesa que enforma o Poder Político na RAEM é muito pragmática. Na linha, aliás, do que dizia também Deng Xiao Ping: “Não importa que o gato seja branco ou preto. O importante é que apanhe os ratos”.
Tânia dos Santos SexanáliseSedução ou Assédio? [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s temas polémicos exigem-nos opiniões. Todo o movimento #metoo norte-americano (e mundial) veio levantar questões importantes acerca da nossa sociedade e da forma como percebemos o género e o sexo. Os globos de ouro foram palco de um mar negro de indumentárias de luxo femininas. A indústria cinematográfica e televisiva tem assistido a toda uma maré de acusações e queixas da forma como o assédio sexual parece fazer parte da normalidade diária – e têm havido contínuas tentativas de as condenar. Há quem ache a tentativa de activismo durante uma gala cinematográfica absolutamente patética (no sentido que não é assim que se faz política); há quem ache que o movimento se tenha tornado numa caça às bruxas; há quem ache que é de louvar a tentativa de consciencialização sobre tema. Não estou muito preocupada em pensar ‘qual a melhor forma’ de resolver o problema. Porque o que me parece central é perceber se existe um problema de todo. Se isto não é claro para muita gente, se calhar o primeiro passo é clarificar. Para mim é bastante óbvio que o problema existe, mas eu tive uma educação muito feminista – e por favor não se esqueçam que o feminismo é muito plural e diversificado – e já senti na pele as múltiplas nuances do assédio. Um dos mais importantes mitos acerca do tema é que o assédio divide os homens como os maus da fita e as mulheres como as vítimas indefesas. O que não é bem verdade, se pensarmos no género e no sexo como uma construção social, onde vários actores contribuem para os significados e práticas associadas. Gostava que esta reflexão fosse para além da lógica de ‘quem é que tem a culpa?’ – porque isso só parece atiçar hostilidade. Vamos afastarmo-nos disso por um momento, e partir para uma introspecção acerca das normas que regem as relações interpessoais, particularmente em contexto laboral. Não quero soar muito quadrada, mas quando se trabalha, acho que gostaríamos de ser tratados de forma profissional. Não me parece que deverá haver muito espaço para a sedução – para a importunação ou o assédio sexual. Quando eu faço uma apresentação de teor académico, não estou à espera que comentem as minhas pernas, o meu decote, ou a proporção da minha cintura com as minhas coxas. Mesmo no mundo distante de Hollywood, mesmo que a imagem e o sexo venda nos castings de representação, acho que temos o direito de ser avaliados de acordo com as nossas habilidades profissionais. Até que ponto é que o sexo tem que estar presente em todas as coisas da nossa vida? Parece que o sexo é commumente utilizado como uma ferramenta de controlo do outro (e das sociedade em geral). E nestes jogos de controlo, os homens normalmente assumem um papel e as mulheres normalmente assumem outro. Quando uma resposta francesa ao movimento #metoo veio a público, pareceu-me haver uma confusão entre os conceitos de sedução e de assédio. Tenho sido surpreendida pelo sarcasmo de muitos cronistas, opinadores públicos, mulheres e homens de igual forma. A sedução é um fenómeno bilateral – para um tango bem dançado são precisas duas partes com alguma coordenação. Por outro lado, o assédio já é a insistência de uma parte para com a outra – que não é desejada pelos dois, só por uma. Para além desta diferença ter que ser reforçada vezes e vezes sem conta, também vale a pena relembrar que as mulheres têm sido mais sujeitas a tratamentos menos devidos (e a esta confusão de conceitos) – o que não quer dizer que os homens não sejam assediados também. A tentativa de tornar o assédio socialmente condenável tem sido interpretado como demasiado ‘radical’ e um ‘exagero’ – isto porque considerou-se este tipo de interação como (absolutamente) normal durante muito tempo. Os homens aprendiam que era assim que podiam lidar com as mulheres, e as mulheres aprendiam que faz parte da sua existência ter que aprender a lidar com os avanços que por vezes não são desejados. Mas tem-se tentado mudar a forma como vemos o assédio, de forma a não confundi-lo com sedução. Podiam ser a mesmíssima coisa, mas felizmente, não o são.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesExame de mandarim [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s estudantes Lau Tsz-kei e Andrew Chan Lok-hang foram suspensos na sequência do envolvimento nos protestos contra a obrigação do exame de mandarim. Os incidentes ocorreram no campus da Baptist University, Hong Kong. Inicialmente estiveram envolvidos 30 alunos nos protestos. Os estudantes começaram por abordar os funcionários do Centro de Línguas da Universidade. Um vídeo clip mostra Lau a falar de forma rude e incorrecta. Este exame é obrigatório há muito tempo e é condição necessária à formatura. No entanto, alguns alunos alegam que o exame é bastante difícil e requerem a sua isenção, se puderem provar que o seu domínio do mandarim é suficientemente bom. Lau e Andrew eram dirigentes activos de um grupo de apoio à língua cantonesa na Universidade. Lau afirma que nem ele, nem nenhum dos seus colegas, ameaçou qualquer funcionário, no entanto admite que os manifestantes estavam um pouco “acalorados”. “Só queríamos dialogar e colocar dúvidas. Não penso que isto fosse uma ameaça à segurança destas pessoas. Na realidade, eles podiam entrar e sair à vontade do gabinete. Por acaso até os ajudamos a recolher algumas cartas … não houve qualquer contacto físico.” Mas Roland Chin Tai-hong, Presidente da Universidade, não partilha desta opinião e acredita que os comportamentos dos estudantes puseram em causa a segurança dos funcionários. A suspensão temporária, independente da conclusão do processo disciplinar, foi necessária. “Investigações preliminares determinaram que, nesse dia, a conduta dos estudantes fez com que os professores se sentissem ameaçados e insultados. Este comportamento vai contra o código de conduta do aluno. Todos os estudantes, funcionários e professores se sentiram insultados com este incidente.” Roland Chin, adiantou que, a partir deste pressuposto, o director dos assuntos estudantis, Gordon Tang Yu-nam, recomendou de imediato a suspensão dos dois alunos. “Ficam impedidos de assistir a aulas e comparecer a exames, mas podem entrar no campus.” Os estudantes reagiram mal e apelidaram o Presidente da Universidade de “insensível”. Lau declarou: “Estou chocado. Normalmente estas decisões são tomadas depois da conclusão da investigação.” No seguimento da divulgação deste caso na imprensa, Andrew recebeu mais de 100 mensagens com ameaças de espancamento e morte no Facebook. Acabou por decidir suspender o seu internato de um ano no Hospital de Medicina Chinesa da Província de Guangdong e regressar a Hong Kong, porque o Hospital estava a receber telefonemas com ameaças. O outro estudante suspenso, Andrew, afirmou: “Continuo a receber inúmeras mensagens com insultos e ameaças e o Presidente não toma quaisquer medidas, só pensa em castigar-nos e não faz nada quanto à nossa segurança.” Mas o Presidente da Universidade diz que isso não é verdade e que está preocupado com a situação. Afirma que pediu à Escola de Medicina Chinesa que enviasse um professor para acompanhar Andrew no seu regresso a Hong Kong. Tanto quanto se pode perceber, a maior parte das pessoas condena o comportamento destes estudantes. Só porque não conseguem passar no exame de mandarim, alguns alunos criaram um movimento contra esta prova. Daqui resultaram comportamentos abusivos e, aparentemente, funcionários e professores foram insultados. Os estudantes negam estas alegações e afirmam que ninguém sofreu danos físicos e que é não é aceitável castigar antes da conclusão da investigação. Mas a que é que se devem estes comportamentos dos estudantes? Nos anos 90, o Governador de Hong Kong David Wilson alargou o leque de Universidades para combater a saída de estudantes para o estrangeiro. Desde essa altura, existem cada vez mais Universidades de Hong Kong, o que aumenta significativamente a competição entre elas. Os alunos são tratados mais como “clientes” do que como “estudantes”. Diria mesmo que são tratados como “VIPs”. Estão ao dispor serviços de “excelência”, nomeadamente passar o maior número de alunos possível. Um grau elevado de reprovações não é um bom cartão de visita para a Universidade, pode conduzir a um decréscimo de inscrições. Os estudantes apercebem-se desta “condição” e, portanto, esforçam-se pouco. Deixaram de estar concentrados no estudo. Para além disto, por causa dos preços elevadíssimos da habitação, hoje em dia em Hong Kong a maioria dos casais tem apenas um filho. Os pais concentram todo o seu afecto nessa criança. Quando cresce, pode ser levada a acreditar que é merecedora de toda a atenção deste mundo. Acrescenta ainda uma certa tendência, inclusivamente veiculada através do Conselho Legislativo de Hong Kong, que pode criar nos jovens a ilusão de que têm direito a tudo. Neste enquadramento social, não é de estranhar que os estudantes se sintam à vontade para gritar, protestar e dizer os disparates que quiserem. É também por isto que acham que, se ninguém sair ferido, não fizeram nada de mal. Tratar os estudantes como VIPs pode dar origem a grandes problemas.
Carlos Morais José A outra faceUma permanente obsessão [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando vejo um filme passado em Macau, independentemente da sua qualidade, fico sempre fascinado pelas imagens, quase estupidificado e, ao mesmo tempo, submerso numa catadupa inenarrável de emoções. A coisa agrava-se quando a história retrata gente de Macau e o seu quotidiano. Tenho então um prazer quase voyeurista em entrar na casa das pessoas, dar pelos seus objectos, pelas fotografias sobre móveis de fórmica, as músicas trauteadas, os restos das vidas espalhados pelas mesas, pelas cadeiras, pelo chão. Produz-se em mim um estranho reconhecimento de algo que realmente nunca presenciei, uma familiaridade com o que nunca vivi, um estranho sentimento de pertença, de partilha, meramente imaginário da minha parte. Terei alguma vez entrado num apartamento parecido com aquele? Seria tarde e agora não me lembro. Ou talvez isso nunca tenha realmente acontecido. Isto ocorreu-me ao ver o filme “Sisterhood”, da realizadora de Macau Trace Choy. Independentemente da história ou do tema, a mim bastariam as imagens para me manterem agarrado ao ecrã, invadido por uma catarata de emoções. Por quê? Afinal, os ambientes retratados não são meus conhecidos mas algo dotado de uma existência pressentida. Não são sítios onde vivi mas espaços ocultos ou inacessíveis, que fazem parte do quotidiano de toda esta gente que me rodeia, mas aos quais o meu acesso é basicamente nulo. São os milhares de vidas à minha volta, envoltas sempre no mistério da sua cultura e na abissal diferença do seus desejos. Então por que razão isto me perturba tanto? Que tenho eu a ver com isto? O filme em si é excelente, a história transporta-nos entre a cidade pré e pós crescimento desmesurado do Jogo. Existe a nostalgia do que existiu e desapareceu e um enorme vazio, unicamente colmatado pelas relações que restam do passado, mas que os novos ritmos tornam obsoletas. Tudo isto bastaria para tornar este um bom filme. Mas, para mim, é a presença da cidade, dos perfis e dos contornos, das pessoas e dos lugares, reais, imaginários e ou desaparecidos, que realmente me fascinou e com certeza me vai obrigar a rever várias vezes. Por quê esta minha tão estranha e permanente obsessão, que me faz ir da lágrimas ao riso, da estupefacção à euforia, da saudade à tristeza e ao desespero?
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesO erro médico “Misdiagnoses, wrong prescriptions, operating on the wrong patient, even operating on the wrong limb (and amputating it): these are the consequences of rampant carelessness, overwork, ignorance, and hospitals trying to get the most out of their caregivers and the most money out of their patients.” “Killer Care: How Medical Error Became America’s Third Largest Cause of Death, and What Can Be Done About It” – James B. Lieber [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]rrar é humano, perdoar é divino. Embora possa ser aplicado em geral, perdoar, esquecer ou ignorar erros na medicina não é aceitável, uma vez que as consequências podem ser desastrosas. Os erros na vida quotidiana conduzem a acidentes de trânsito e à existência de vítimas. Os erros na indústria prejudicam os trabalhadores e as comunidades. Ambas as situações são motivo fértil de erros que os profissionais da saúde podem praticar ao cuidar dos pacientes. Os erros em medicina são evidências de que algo correu mal nos cuidados de saúde do paciente e da comunidade e que causou danos, que devem ser prevenidos e corrigidos. As evidências são inúmeros, pelo que os médicos podem e devem trabalhar muito para os evitar. Os exemplos de erros médicos abundam, como procedimentos exploratórios e diagnósticos injustificados, efeitos adversos previsíveis mas imprevistos de intervenções médicas ou drogas, decisões cirúrgicas indesejáveis ou incorrectas e os seus resultados, tratamento não suportado pela evidência da sua eficácia e eficiência. Todos os tipos de erros e as suas consequências, sejam de natureza médica ou não, têm múltiplas implicações, como correcção e prevenção, actividades legais, reclamações para reparação e compensação, procura e implementação de melhorias ou avaliações dessas iniciativas e actividades. As consequências económicas, sociais, físicas e de saúde mental são importantes para aqueles que cometem erros e para as suas vítimas. A vida moderna nem sempre simplifica ou elimina problemas e desafios de erros. Pode, de facto, torná-los mais frequentes, sofisticados e desafiadores para os controlar. No plano social, os erros médicos são considerados para os tribunais como matéria de vários litígios que devem levar a correcções solicitadas pelos autores e feitas por profissionais da saúde, suas instituições e ambientes de trabalho e outras compensações das vítimas pelos perpetradores. Qualquer erro médico é um produto de várias circunstâncias externas, incluindo o ambiente, condições de trabalho e pressões, considerando a tecnologia em rápida evolução e o sistema administrativo. Tais factores externos só contribuem para a essência (os factores internos) por trás do erro médico, ou seja, o raciocínio defeituoso do médico, lógica, pensamento crítico e tomada de decisão. Os factores internos são sobre o que acontece no nosso cérebro, no cérebro daqueles com quem se trabalha e nos cérebros dos que criaram o ambiente de trabalho e as ferramentas da situação da saúde que se tem em mãos e que incluem os atributos fisiológicos e patológicos, atitudes, habilidades motoras e sensoriais, bem como as respostas a factores externos. Os factores externos são sobre o que acontece fora do cérebro. O convívio com o erro médico é uma experiência aprendida como qualquer outro acontecimento. O dano também é causado por não ensinar, aprender e compreender erros médicos como falhas no pensamento crítico. A compreensão, prevenção e correcção dessas falhas é a principal responsabilidade de todos os profissionais de saúde. A mensagem que deve ser revelada é de que erro e dano médico está interconectado, não sendo idênticos a nível teórico, nem a nível prático. A metodologia do estudo e gestão de erros e danos médicos é dividida entre casos únicos e múltiplos e eventos. O erro humano (individual) e do sistema, no entanto interligados, não são idênticos, pois o seu entendimento e controlo são metodologicamente complementares e mais úteis se forem tratados separadamente. Os usos de evidências sobre erros e danos médicos e a forma de os tratar por meio de argumentação, pensamento crítico e lógica informal são tão importantes como produzir a melhor evidência, pois ambos estão necessariamente ligados. O erro e o dano médicos são fenómenos conjuntos, como a doença e a saúde e daí o dever de serem estudados e controlados por métodos epidemiológicos. Por mais desconfortável que possa parecer a alguns humanistas, os cuidados clínicos de pacientes individuais e em grupo, protecção e promoção da saúde, tanto a nível individual como comunitário, também significam saúde industrial (no âmbito de uma ética e leis rigorosas). A medicina beneficia e deve usar da experiência retirada de erros e danos de fontes externas, como indústria, desenvolvimento de novas tecnologias, transporte, negócios, economia, administração e gestão, finanças, além da psicologia, ergonomia, cinesiologia, sociologia e bioestatística para humanamente e efectivamente produzir a melhor saúde possível de indivíduos e grupos de indivíduos. O facto de cometer erros, compreender as suas causas e ocorrências, e preveni-los sempre será parte integrante da medicina, por mais lamentável que isso possa ser e parecer. As consequências, de facto, do erro podem ser desastrosas para os pacientes, profissionais de saúde e comunidades. O domínio de erro médico tem muitas partes interessadas, incluindo pacientes, médicos, outros profissionais de saúde, magistrados, advogados, investigadores, economistas de saúde, sociólogos, psicólogos, ergonomistas e assistentes sociais. A segurança do paciente como um todo pode ser considerada sinónimo de ausência de erro médico e na prática e pesquisa não só de medicamentos, mas também de qualquer domínio relacionado com a saúde. As relações actuais com o erro na fabricação, no desenvolvimento de novas tecnologias e seus usos, e no transporte beneficiam das principais contribuições e progressos provocados por muitos especialistas que trabalham principalmente em campos não médicos. Os profissionais da saúde estão actualmente a adicionar uma nova dimensão ao mundo cada vez mais integrado da literatura médica. Os erros médicos não só ocorrem esporadicamente, mas também podem ser epidémicos, endémicos e até mesmo de natureza pandémica. A epidemiologia clínica e de campo está a concentrar-se gradualmente na pesquisa das causas de erro médico, na investigação da sua ocorrência e na efectividade de programas correctivos e intervenções. O seu envolvimento na alfabetização está a crescer, assim como a argumentação do pensamento crítico moderno e a lógica informal subjacente ao raciocínio médico, à tomada de decisão e às contribuições epidemiológicas. A grande variedade de causas de erro médico, como formação inadequada, falhas das tecnologias médicas tradicionais e novas nos seus desenvolvimentos e usos, influências fisiológicas, psicológicas e ambientais, gestão de dados e informações, deficiências de execução, falhas de funcionamento do sistema de saúde e de comunicação, erros baseados em regras e de raciocínio, bem como tomada de decisão. A noção de erro médico é separada dos danos. O erro médico nem sempre causa danos, ou seja, o erro e o dano médico tem causas específicas por vezes sinónimas e outras vezes distintas. O estudo de ambos é crucial para melhorar a segurança do paciente. A medicina em domínios clínicos e comunitários avança de várias formas, incluindo os resultados espectaculares em áreas fundamentais, como pesquisa de células estaminais, genética médica ou explorações moleculares. A produção, avaliação e uso das melhores evidências em farmacologia básica e clínica, disciplinas cirúrgicas e outros cuidados clínicos que cobrem todas as faixas etárias são de extrema importância. A melhoria contínua da pesquisa, raciocínio, pensamento crítico e metodologia de tomada de decisão em todos os domínios torna-se essencial. Só melhorando e reorientando a educação médica e estruturando e expandindo o processo e impacto da avaliação do atendimento médico, incluindo a tradução do conhecimento se poderão obter resultados palpáveis na senda de uma melhor prática médica. O desenvolvimento de novas tecnologias, incluindo o seu contexto ético, a melhor atenção e acções para entender, prevenir e controlar os erros humanos e de sistemas em atendimento clínico, medicina comunitária e saúde pública em todos os domínios mencionados, bem como na experiência em expansão resultante de sua correcção poderão diminuir as estatísticas do erro e dano médico. É de considerar que muitas vezes esquecemos que aprender com os nossos erros e corrigi-los é uma ferramenta educacional e de aprendizagem extremamente poderosa (se feita correctamente) e que os pacientes beneficiarão imensamente de outros erros infelizes cometidos no passado. Esta é talvez a maior vantagem de aumentar a atenção que se atribui ao domínio do erro médico. Os erros na medicina, tão temidos pelos médicos e seus pacientes, e são, sem dúvida, mais do que alertar a evidência de que algo está errado, causa danos e deve ser prevenido e corrigido. Os erros médicos ocorrem como avaliação de risco, diagnóstico, tratamento, prognóstico e decisões relacionadas, mas também ocorrem, às vezes endemicamente, na pesquisa e na prática de medicina clínica, familiar e comunitária ou saúde pública. Às vezes, raramente, esperadas, explicadas ou não, são uma parte importante do problema de erro geral em vários empreendimentos humanos. Ainda que a maior parte do esforço na medicina esteja focada em boas evidências de acções benéficas e os seus resultados, usos e efeitos, deve notar-se que eventos nefastos, como os erros médicos, boas evidências sobre os mesmos, bem como seu controlo exigem igual atenção, compreensão, e prevenção. O contrário seria o oposto da ética médica. Os erros médicos também desempenham um duplo papel, mencionado excepcionalmente, do ponto de vista das relações causa-efeito. Os erros médicos são causados por algo. Metodologicamente, são variáveis dependentes, consequências de alguma situação. É necessário conhecer as suas causas, preveni-las e corrigi-las. Por outro lado, os erros médicos causam danos como morte ou lesão. Os erros neste contexto são as causas do dano e servem como variáveis independentes na associação com as suas consequências. O dano pode levar a uma cascata de outras consequências. Os erros médicos pertencem a uma família maior de erros em vários domínios, como os erros no desenvolvimento e uso de novas tecnologias, ergonomia, administração, gestão, política e economia. A experiência em todos esses campos, adquirida ao longo das três últimas gerações, é parcialmente aplicada em medicina. As especificidades da medicina exigem atenção adicional aos factores humanos e outros que afectam tanto os prestadores de cuidados, quanto os pacientes ou comunidades na configuração e no contexto da sua prática. Os erros ocorrem não apenas na pesquisa e avaliação de saúde, fundamentalmente, clínica e comunitária, mas também em situações directamente perturbadoras na prática e na prestação de cuidados diários. Os erros também ocorrem na tradução de conhecimento e em consequências benéficas ou nocivas de usos ou não de evidências. Qualquer erro médico é um produto de várias circunstâncias, incluindo o ambiente, condições de trabalho e pressões, tecnologia em rápida evolução, gestão, administração ou funcionamento do sistema e outros factores externos. Tais factores externos contribuem apenas para a essência (factores internos) por trás do erro médico, ou seja, o próprio raciocínio defeituoso do médico, lógica, pensamento crítico, tomada de decisão e seu desempenho sensório-motor. A fronteira entre o primeiro e o último é a realidade diária. A patologia humana ensina sobre mecanismos subjacentes comuns e, em seguida, sobre cada transtorno e doença individualmente considerada e sobre como tratá-la. Ao lidar com os erros atribuídos ao pensamento crítico na medicina, da mesma forma, aprende-se sobre paradigmas, elementos e regras do pensamento crítico, e depois de se estar familiarizado com a sua patologia (ou seja, os transtornos, falhas e falácias) como doenças do raciocínio que, em última instância, levam e produzem erros médicos e as suas consequências. Sem essa aprendizagem e experiência, como é possível prevenir e, de qualquer forma, minimizar os erros médicos? É de entender que conviver com erro médico é uma experiência aprendida, como qualquer outra situação. O dano também é causado por não ensinar, aprender e compreender erros médicos como falhas no pensamento crítico? Erros médicos ocorreram muitas vezes no passado, ocorrem actualmente e ocorrerão infelizmente, no futuro. Deve-se aprender a viver com os erros e a evitar da melhor forma que se puder, dada a evolução das circunstâncias da prática e da pesquisa médica, pois é de atender aos variados e principais estímulos médicos, a urgência e a magnitude do problema em medicina interna e cirurgia. Alguns dos principais jornais, revistas e monografias tentam explicar o desafio (especialmente o diagnóstico) do público oferecendo uma selecção de grandes relatórios e artigos sobre o problema do erro médico. Algumas Universidades e instituições internacionais desenvolvem rotas e estratégias para lidar com o problema dos erros em medicina e cirurgia e todo o movimento de prevenção e controlo de erros médicos, está a ganhar propósitos mais claros e a atenção está a tornar-se estruturada e organizada. Se considerarmos uma perspectiva mais ampla de erros na medicina, enfrentamos o problema geral de erros médicos como a diferença entre o comportamento real ou a medição e as regras de expectativas para o comportamento ou medição, mais especificamente enfrentando o problema de falhas na acção planeada e o seu cumprimento (erro de execução) ou uso de um plano incorrecto para atingir um objectivo (erro de planeamento). A acumulação de erros resulta em acidentes. Um erro pode ser um acto de comissão ou de omissão. Por exemplo, em cirurgia, um erro é mais do que dar um mau nó ou uma sutura mal executada. Muitos erros médicos são, em um sentido mais amplo, erros clínicos que podem ser realizados por outros profissionais de saúde ou quando trabalham em conjunto. Em termos mais gerais, talvez seja correcto dizer que um erro médico é algo que aconteceu no consultório e que não deveria ter acontecido e que absolutamente não é para voltar a acontecer. Os erros na medicina são imputáveis em diversas situações como na formação (conhecimento, atitudes e habilidades), falha de tecnologias médicas (o equipamento está mal instalado, projectado ou avariado), utilizações inadequadas de tecnologias médicas (o equipamento é usado onde, quando, e no que não deve), factores fisiológicos e psicológicos como a condição física e psicológica do médico e outros profissionais de saúde como a fadiga ou stress, registo, processamento e recuperação de dados e informações causados por tecnologias da informações e seu uso (inadequação da tecnologia da informação e avaria), competências deficientes na execução (movimento ou actividades sensoriais baseadas em experiência passada), erros taxonómicos devido a enganos (classificação de actividades defeituosas devido a etiologia mal explicada ou usada), falhas do sistema (funcionamento dos serviços de saúde, triagem e subsequente atendimento de emergência que não funcionam como deveriam), erros de comunicação e avarias, erros fundados em regras (orientações, guias de utilizador não seguidos), erros no raciocínio e decisões sobre problemas de saúde. É de ponderar que praticar um erro médico não é necessariamente negligência com todas as suas consequências jurídicas e financeiras, mas pode acontecer e causar algum tipo de dano. Os erros médicos são estudados e avaliados de duas formas que nem sempre são claramente especificados, sendo que uma abordagem é investigar as causas de erros médicos (erros são consequências ou variáveis dependentes), e em outra apreciação, os erros médicos estão relacionados como causas prejudiciais (erros são causas ou variáveis independentes). As taxonomias actuais de erros médicos nem sempre especificam o possível duplo papel dos erros. Os erros médicos não se limitam ao diagnóstico ou a decisões de tratamento, pois podem ocorrer em qualquer fase do trabalho médico, como a avaliação do risco de doença, compreensão das suas causas e eficácia de intervenção para prevenir, curar ou controlar de outra forma um problema de saúde ou o seu prognóstico a nível individual ou comunitário. Os erros médicos também podem ser estudados através de métodos quantitativos, tais como a bioestatística ou informática, de métodos adoptados de outros domínios como a aviação, ou de métodos qualitativos e com o lugar reconhecido das humanidades em medicina, a porta abre-se para lógica informal e pensamento crítico (um companheiro natural para a medicina fundamentada em evidências e epidemiologia clínica) como guardiões contra os erros médicos.