Família, sexo e outros afazeres domésticos

[dropcap]É[/dropcap] cedo, é verdade, mas ainda assim esta é a minha última crónica anterior à consoada e só estarei de volta ao Hoje Macau depois de devidamente celebrada a chegada de novo ano, pelo menos de acordo com o calendário a que nos habituámos na Europa. Não é que a quadra natalícia seja assunto especialmente relevante em para a população japonesa, de larguíssima maioria budista ou shinto (uma variante local largamente tributária do budismo mais tradicional), mas ainda assim não escapo às promoções e decorações comerciais natalícias e às respetivas musiquinhas com que se faz questão de irritar os frequentadores de cafés e espaços comerciais um pouco por todo o mundo.

Por estas paragens é outra a festa em que se reúne a família, assinalada por três convenientes feriados consecutivos a meio de Agosto, ocasião para intenso tráfego turístico interno no Japão. Celebram-se os antepassados já falecidos, cujo espírito visita os familiares por estes dias. Lanternas iluminadas em templos e altares domésticos assinalam a ocasião e a mesa das refeições inclui lugares para os vivos e para os mortos de cada família.

São notoriamente diferentes as relações familiares no Japão em relação ao que nos habituamos a ver em Portugal ou na Europa, por muito diversos que sejam os padrões e comportamentos nas sociedades contemporâneas. Deixo de lado as minhas impressões pessoais, necessariamente enviesadas pela circunstâncias que o acaso faz com que me rodeiem, e recorro aos resultados mais recentes (publicados em 2017) do inquérito que a Associação de Planeamento Familiar do Japão (APFJ) publica a cada dois anos, com base em milhares de entrevistas supostamente representativas da população japonesa.

Escusado será dizer que este é assunto de particular importância num país com acelerado envelhecimento populacional (mais de 60.000 pessoas acima dos 100 anos) e tendência para o decréscimo da população, mesmo em áreas metropolitanas como Tóquio, que um pouco por todo o mundo tendem a concentrar uma proporção cada vez maior dos residentes. Mostram as estatísticas demográficas que nas sociedades atuais já não se verifica apenas um processo sistemático de urbanização, com deslocação crescente das áreas rurais para as urbanas, mas também um movimento cada vez mais significativo da população de pequenas cidades em direção às grandes metrópoles.

Um dos resultados que mais preocupa os autores do referido estudo é a escassa atividade sexual da população japonesa, uma tendência que já se notava em inquéritos anteriores e que se vem intensificando: os dados mostram que 47% dos casais não teve relações sexuais no mês anterior à entrevista – um aumento de 2,6 pontos percentuais em relação ao inquérito anterior (publicado em 2015) e de 15,3 pontos percentuais em relação ao primeiro inquérito (publicado em 2005). Doze anos de redução “dramática” (segundo o diretor da APFJ) das práticas sexuais de uma população cujos problemas demográficos têm naturalmente importantes implicações económicas (disponibilidade de força de trabalho ou sustentabilidade da segurança social).

Entre as causas desta sistemática abstinência destaca a tradicional fadiga pelo excesso de trabalho (referida por 35% dos homens) mas também uma perspectiva do casamento em que a esposa é vista como “um familiar próximo” e não como uma parceira de romance. Talvez por isso, do lado das mulheres a “inconveniência” é a causa maioritariamente apontada, referida em 22% dos casos. Na realidade, esta perspetiva do casamento – em que o homem procura uma mulher que tome conta de si e do lar, é ainda comum numa sociedade altamente patriarcal, onde é frequente as mulheres abandonarem as carreiras profissionais depois de casar, mesmo quando têm muito elevadas qualificações (só 30% das mulheres japonesas trabalham). Também não é raro encontrar homens que sentem como uma “desonra” que a mulher trabalhe, porque isso de alguma forma representa a sua incapacidade de sustentar a família. Pelo contrário, são cada vez mais frequentes os casos de mulheres que viajam sozinhas ou com os filhos, enquanto os respetivos maridos trabalham e pagam a conta.

O estudo também refere que esta generalizada ausência de vida sexual não se limita a pessoas casadas: entre a população solteira com idades entre os 18 e os 34 anos, 42% dos homens e 46% das mulheres nunca tiveram relações sexuais. De resto, 40% das mulheres adultas solteiras no Japão são virgens, segundo revelam os dados do estudo. Talvez estes comportamentos sejam também o reflexo de práticas culturais profundamente enraizadas, onde o contato físico – e até visual – entre pessoas é altamente restringido (até à inexistência, na realidade). Mas estes relatórios também mostram que a tendência para uma vida assexuada tem vindo a aumentar com o tempo, não se explicando apenas pela tradição histórica.

Talvez a celebração do Natal não seja uma urgência num país de fraca tradição cristã. Mas já a recuperação natalidade parece ter uma urgência crítica para a viabilidade demográfica, económica e social do país. Não será o Japão caso único, ainda assim: na realidade, Portugal é o país europeu onde a evolução demográfica mais se assemelha à japonesa. Tende então um bom Natal e procriai, se vos aprouver.

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