Os sapos fingem-se de mortos para não terem sexo

Recentemente, vários jornais fizeram notícia de um estudo inédito em comportamento animal. Especificamente, do sapo comum europeu. Parece que o envolvimento sexual dos sapos não é pacífico. O macho prende-se à fêmea de tal forma forçosa que, em alguns casos, leva à sua morte. São sapos insistentes do seu desejo e instinto, querem copular à força, muito menos com o devido consentimento. A investigação mostrou, contudo, que os sapos fêmea não são passíveis à coerção do sapo macho. Os sapos fêmea simulam a sua morte para se escapulirem da sua insistência. No mundo dos sapos onde o consentimento, pelo menos, não é verbal, o sapo comum europeu desenvolveu estratégias para evitar o coito e as suas forças de coerção

Este exemplo do mundo animal ressoa em algumas experiências da sexualidade humana, onde até se pode comunicar de forma verbal e inequívoca. Em muitas situações é mais fácil fingir a morte do que dizer “não”. Em casos de violação o “não”, e a resistência física, pode espicaçar ainda mais a coerção. No livro “Amanhã o sexo voltará a ser bom” da autora Elizabeth Angel, explana-se de como o “não” enraivece agressores, quiçá humilham-nos, e a instrumentalização, ou a desumanização, do corpo da mulher prevalece. Também adianta que a total inação, apesar de ser protetora para evitar o escalamento da agressão, pode ser usada em tribunal contra a vítima: “Não mostrou suficientemente que não queria”.

Esta é a lógica que assume a ausência de um “não” como a presença do consentimento; um acompanhamento “óbvio” das teorias sobre a sexualidade e erotismo, onde se assume a dança dos corpos, sem reflectir que, por vezes, eles podem não saber como o outro quer dançar. Começou, então, a defender-se a presença do “sim”, para evitar assumpções demasiado esticadas. Só dizendo “sim”, em todas as suas fases, é que o consentimento assenta.

Elizabeth Angel, contudo, reflete também sobre a complexidade do “sim”. Para uma mulher afirmar que quer sexo, que quer ter prazer, ou que ousa a experimentar ou arriscar, abre um precedente onde o “não” já não é ouvido da mesma forma. Analisando a argumentação dos casos em tribunal de violação, frequentemente utilizam dados como o número de parceiros, outras experiências sexuais, e até o tipo de roupa interior, para responsabilizar a mulher pela violência sexual que exerceram sobre ela. A autora fala sobre como esta teoria de consentimento simplificada – onde basta dizer “sim” – encosta-se à “cultura da confiança”. Uma cultura que invisibiliza as dinâmicas relacionais, a bagagem emocional dos proponentes ou o contexto social em que vivemos. E que, pelas palavras da autora, ignora também o “facto de que as mulheres são frequentemente punidas por assumirem posições sexualmente assertivas que são instigadas a incorporar”.

Depois do movimento #metoo que assolou as sociedades ocidentais de forma mais intensa, era preciso procurar fórmulas para prevenir estes abusos. Todo um conjunto de temas foram abordados, conversas interessantes e necessárias correram a imprensa e a literatura. Há quem tenha desenvolvido aplicações onde se assina um contrato de consentimento para o sexo. Claro que a solução é precária: o consentimento pode mudar ao longo de todo o encontro e, acima do tudo, o consentimento não é um processo desprovido de contexto. Aplicações como estas continuam a não resolver os desequilíbrios de poder, hiatos no conhecimento, níveis distintos de à-vontade ou até suprimir níveis de auto-conhecimento que são essenciais para uma relação saudável com o sexo. O consentimento está intimamente ligado à vontade e ao desejo individual e do outro. Este inclui-se num espectro de experiências, e não está limitado à divisão categórica entre querer ou não querer sexo. O consentimento também precisa de ser teorizado em relação ao sexo que se quer e de como tê-lo. Desde o bom sexo, ao mau, ao violento, o consentimento é o acordo que as pessoas vão negociando (ou a ausência dele) e que resulta em cada uma destas configurações.

A informar estes processos estão padrões comportamentais, crenças, cânones culturais e religiosos que precisam de ser revisitados. No universo dos sapos aprendemos que nem tudo tem de ser como é. Nem por impulso, instinto ou desejo. Fingir de mortas, ainda que possivelmente uma resposta ao medo, ou uma resposta deliberada para o evitamento, não deixa de ser uma estratégia para contestar o que se julgava inevitável.

24 Out 2023

Sensate Focus de Masters e Jonhson

Quando nos anos 50 chegaram à conclusão de que a ciência sabia mais sobre parir bebés do que fazê-los, um ginecologista norte-americano, William Masters, com o auxílio da sua assistente de investigação, Virginia Johnson, decidiram desbravar terrenos nunca explorados. A experiência do sexo e do clímax não estavam analisadas, quantificadas ou teorizadas e eles trataram de resolver a questão.

Numa fase em que o sexo não saía das quatro paredes do quarto, estes investigadores propuseram a vários voluntários que trouxessem o sexo para o laboratório. Centenas de mulheres e homens foram convidados a atingir o clímax sob o olhar atento dos cientistas, monitorizado por máquinas que descreviam experiências fisiológicas. Alguns deles masturbaram-se, outros envolveram-se com voluntários anónimos à frente dos cientistas. Com a acumulação dos dados foi possível desenhar padrões de reconhecimento que facilitavam a compreensão generalizada da experiência sexual – desenvolveram o modelo de resposta sexual “normal” com 4 fases. Claro, que a amostra utilizada mostrou limitações. Numa tentativa de randomização, os investigadores vieram-se somente com homens e mulheres brancos, de classe média, com uma única coisa em comum: motivados para participar neste estudo altamente controverso. Insólito foi também quando os investigadores começaram a participar no estudo como sujeitos, envolvendo-se com o propósito de gerar mais dados e insight.

A sua investigação resultou em imensos artigos e dois livros que se revelaram populares. Apesar de terem sido criticados ao longo do tempo, eles desenvolveram uma forma de terapia sexual que era mais simples e rápida do que a terapia psicanalítica da altura. A terapia que desenvolveram chamava-se “sensate focus”. Os seus pressupostos entendiam que o sexo é uma condição natural que não pode ser forçada. Apesar do foco excessivo na fisiologia do sexo destes investigadores, uma perspectiva que ignorava quase por completo fatores psicológicos e sociais na resposta sexual, os exercícios sugeridos não deixam de ser relevantes até aos dias de hoje. Isto porque a investigação tem-se aproximado de novo ao foco nas sensações, e na sua importância para uma sexualidade plena e satisfatória. Os exercícios tentam desconstruir o excessivo foco na relação pénis-vagina na relação heterossexual, e tentam promover a comunicação. Com criatividade estes exercícios podem ser adaptados a todas as orientações e constelações amorosas com o intuito de promover a presença e consciência.

O método tem 5 partes. O primeiro o passo envolve o toque não genital, de modo que as pessoas envolvidas possam, à vez, explorar formas de toque e focarem-se nelas. Um oferece o toque, e o outro recebe, e depois trocam de posições. A ideia é que se dispam da expectativa sexual e desfrutem. No segundo passo, ainda à vez, os genitais já são estimulados e outras zonas erógenas, sempre ignorar a expectativa do sexo. Por exemplo, se o pénis estiver erecto, não fazer nada em relação a isso. No terceiro passo, sugere-se que se utilize óleos, ou lubrificantes, de preferência com base de água, se se utilizarem produtos de látex e borracha, para estimular outro tipo de experiências sensoriais. A ideia é que se continue ainda a dança onde primeiro recebe um e depois o outro. Sem receios, e sem pressão para compensar. No quarto passo, a estimulação sensorial já é mútua e no quinto passo, a exploração permanece sensual, em vez de sexual, isto é, incentiva-se o toque dos genitais, com interesse e curiosidade, ao roçar ou acarinhar, antes de explorar a penetração.

Esta forma terapêutica foi desenvolvida para tratar disfunções sexuais, e.g., disfunção eréctil ou vaginismo. Contudo, a complexidade destas condições não permite que esta técnica seja uma salvação certeira. Mas tem várias vantagens ao seu favor – explora a sensualidade e a presença para contrapor pressão, expectativa ou o nervosismo – e pode ser utilizada e apropriada por qualquer um que queira abrir espaços de consciência na sua vida sexual.

O trabalho destes investigadores foi romanceado na série televisiva Masters ofSex, que apesar de interessante, não explora em profundidade o legado teórico dos investigadores, nem as suas controvérsias. Ainda assim, contextualiza a dificuldade cultural em discutir estas questões que agora já são mais do domínio comum, e tratadas com mais leveza e importância.

20 Set 2023

Deixar o Sexo Transcendente

A capacidade de nos “absorvemos” pode ser bastante benéfica para o sexo. A absorção é uma característica individual que nos faz mais sensíveis às sensações do corpo, de tal forma que pode levar a uma experiência de transcendência. Diz um estudo que esta capacidade nas mulheres resulta em desejo sexual maior e nos homens, um aumento da sua atividade sexual. Há pessoas que têm uma maior tendência para a absorção do que as outras, afectando, de alguma forma, a sua sexualidade.

Para além disso, outra investigação tem sido desenvolvida em torno da capacidade para a transcendência durante a atividade sexual. O orgasmo é o seu facilitador. Características de personalidade à parte, o orgasmo parece suscitar um estado alterado de consciência. Investigadores convidaram participantes a masturbarem-se sob olhar da ressonância magnética para perceber o que é que acontecia ao cérebro. Os resultados parecem confirmar o que muita gente parece descrever da sua experiência– o orgasmo como um estado de perda de controlo momentâneo.

A ideia do sexo transcendente pode parecer mística demais, mas ajuda a explicar muito do inexplicável do sexo. Até experiências de sinestesia têm sido documentadas. Pessoas que vêem cores durante o sexo e o orgasmo, transformando a experiência muito para além da mundana. Mas, claro, nesta relação tão íntima do sexo com o transcendente está também a dificuldade das pessoas se conectarem com esta ligação: por várias razões.

A primeira talvez seja a admiração contemporânea por tudo o que é cerebral. As pessoas precisam de racionalizar e de ter controlo para terem sucesso na vida. E isso reflecte-se no sexo também. Controla-se tudo para garantir a melhor experiência sexual. É preciso isto aquilo, aqueloutro, é preciso ter xis posições, inovar, ser kinky, todos precisam de ter um orgasmo, se não mais do que um, e pronto. A perfeição, supostamente, consegue-se com planeamento, pesquisa e preparação. Nada contra, nem o objetivo é advogar que o sexo deve ser “espontâneo” – outro mito urbano. A questão é: será que no meio desse planeamento, é possível desligar o cérebro controlador e falante para desfrutar do momento?

A segunda é que esta capacidade de “deixar ir” é especialmente difícil quando estamos acompanhados. Quando se baixam as guardas, coisas podem acontecer para além do nosso controlo e isso mostra vulnerabilidade. A vulnerabilidade é assustadora, até a do orgasmo, com as suas cores psicadélicas, ruídos inesperados, caras de prazer não-planeadas. As pessoas são povoadas por ideias de si próprios e dos outros que torna difícil não querer controlar certas coisas. As mulheres tendem a escrutinar mais a sua existência enquanto ser sexual do que os homens, apesar de eles não estarem livres de pressões sociais. Expectativas de magreza, de beleza, de como o corpo assim e assado deve ser apresentado, expectativas de vulvas com lábios simétricos e não muito evidentes, pêlos arrancados.

Um apelo ao sexo transcendente é um apelo ao sexo que não será incomodado pelas representações e expectativas do que o sexo deveria ser. Agora que se aproxima o verão, voltamos à carga com as obsessões pelas dietas e ginásios. Parece ainda não haver espaço para os corpos existirem como são e para a sexualidade ser vivida como se quer. A liberdade sexual ainda é um conceito demasiado utópico, ainda que se discuta o sexo de forma mais aberta na esfera pública. As amarras criadas por pressões sociais continuam a actuar sem dó nem piedade. Ainda é necessário um esforço individual e colectivo para que o sexo seja qualquer coisa de extraordinário – ao ponto da transcendência.

28 Abr 2021

Descansar pelo sexo

Esta reflexão sobre o descanso será tão humana como sexual. O descanso é necessário para tudo. Desde a saúde emocional e física, até à disponibilidade para ter uma noite (ou manhã) prazerosa de sexo. A vida mundana depende das oito horas diárias que passamos no mundo dos sonhos e de todos os momentos em que deixamos o nosso corpo relaxar.

Não há nada de particularmente inovador sobre este assunto, só que é frequentemente esquecido em prol de uma expectativa de produtividade a roçar o absurdo. O descanso não é gritado como prioridade, o descanso é frequentemente confundido com preguiça. Muitos irão discordar com este pedido de re-definição. Vivemos em sociedades onde são vangloriados aqueles que conseguem fazer directas e funcionar na perfeição ainda que em privação de sono. Mas para o nosso organismo funcionar correctamente, em todos os domínios, até no sexo, são necessários momentos de descanso eficaz. Chamem-lhe neoliberalismo, capitalismo desenfreado, ou o que quer que seja. Num mundo onde somos avaliados pela capacidade de produzir e pela nossa contribuição para a sociedade, não admira que o descanso seja entendido como supérfluo.

A investigação já andou de volta desse assunto e assim o confirma. As pessoas que, num laboratório, tinham que completar tarefas cognitivamente exigentes, obtinham melhores resultados quando, entre tarefas, eram encorajadas a descansar e a relaxar (com música propícia). Piores resultados tiveram aqueles que, entre tarefas, não tiveram indicações nenhumas. Aí está a importância de descansar de forma activa. Porque a investigação também mostra que não fazer nada não leva necessariamente ao descanso. Temos que nos orientar para isso. Meditação, relaxamento, dormir pelo menos 8 horas por dia são algumas das formas pelas quais podemos garantir que o corpo e o cérebro não entram em esforço e eventualmente, em colapso. Aqui vai um exemplo que ninguém fala: a investigação mostra que a falta de sono melhor prevê o desenvolvimento de diabetes tipo 2 do que a falta de exercício físico.

Agora, o que é que o descanso tem que ver com o sexo? Ora bem, espero não vos confundir com um salto argumentativo demasiado grande: mas o sexo é muitas vezes visto como mais uma atividade de produção. Uma tarefa para se incluir na agenda na expectativa de certos resultados. Quer-se sexo assim, assado, perfeito, rebeubeu pardais ao ninho. O foco excessivo no orgasmo resulta dessa visão utilitarista. O conceito orgasm gap – alugado da disparidade salarial em função do género –, apesar de extremamente útil para perceber a desigualdade de género no sexo, parece sinalizar que o sexo tem que ter orgasmo. Daí surgirem expectativas, ansiedades ligadas à performance que o sexo não haveria de querer estar associado. Não que o sexo seja uma forma de descanso. Dizem os que averiguaram que o sexo pode gastar entre 60 e 100 calorias numa sessão de 30 minutos. Mas o sexo funciona melhor se conseguirmos descansar o corpo e a mente. O descanso melhora a nossa disponibilidade com o mundo em geral, e em estar presente com o sexo e o corpo. Investigação que explora o sexo mindful parece reforçar esta relação também.

O descanso é importante para sermos seres humanos funcionais. Se descansarmos activamente e tivermos bons hábitos de sono, o sexo só tem que aproveitar a nossa disponibilidade para estarmos presentes. As revistas cor-de-rosa, e tanta outra coisa que a cultura popular nos impõe, parecem sugerir que o sexo é mais uma actividade que precisa de resultados. Desenganem-se. O que o sexo precisa é de um bom descanso.

8 Abr 2021

O sexo já não se faz no escuro

[dropcap]H[/dropcap]á muito que ainda não se sabe sobre o sexo e isso reflecte alguma, digamos, negligência por parte da ciência. Um exemplo doloroso foi que só no início deste milénio que o clitóris foi totalmente mapeado. Temas do sexo estiveram escondidos nas gavetas dos cientistas que, por desinteresse mais ou menos consciente, atrasaram o desenvolvimento de uma reflexão crítica do sexo. Nunca foi prioridade. O sexo continua a ser tabu, os vieses são mais que muitos e as queixas não param de rolar.

Mas há uma luz ao fundo do túnel. Estou a depositar a minha esperança nas muitas pessoas que agora andam a falar sobre o sexo nos mais diversos canais: são sexólogos, terapeutas, educadores sexuais, cientistas, activistas e pessoas que falam a título pessoal das suas experiências. Há um sentido de urgência em tornar público aquilo que acontece na escuridão do quarto – a intimidade não precisa de deixar de ser menos íntima, mas pode deixar de ser uma completa incógnita.

As redes sociais vieram ajudar muito na disseminação informal. As pessoas têm o poder de partilhar a sua visão do sexo e ajudar a criar comunidades onde a normalidade é o sexo positivo. Normalizar esse acesso também é essencial para que as pessoas possam fazer escolhas sobre o seu corpo, sexo e prazer. Um empoderamento sexual necessário para pôr em perspectiva as indústrias, medicina e até as ciências. A ejaculação da vagina ilustra esta dinâmica. Quando um recente estudo concluiu que se tratava de urina (e nada mais), houve uma onda de contestação nas redes sociais. Diz quem já experienciou e já viu acontecer que não podia discordar mais. O que não quer dizer que não devemos confiar na ciência, mas que a ciência precisa de escutar a experiência das pessoas – e provavelmente não está a fazê-lo. A Hite tentou fazer isso no seu estudo icónico de perceber o que dava prazer às mulheres. Mas claro, fazer ciência com base na fenomenologia já é cunhada por “pseudo-ciência” pelos críticos.

A experiência pessoal do sexo tem sido ignorada em detrimento de um conhecimento supostamente não enviesado. Isso só provoca mais enviesamento. As experiências de uma suposta maioria são tidas como as únicas experiências legitimas. Isso exclui todas as outras conversas que se mantêm secretas, longe do vislumbre da esfera pública. Muita gente vive a sua sexualidade com muita solidão e desinformação. Mas não tem que ser assim.

Não sabes como se masturbam as vulvas ou os pénis? Há vídeos que ajudam a explicar isso. Achas que a tua vulva é forma do normal? Vai olhar os muitos murais com a diversidade de vulvas que existem. Gostarias de experimentar sexo anal? Há vídeos e artigos para desmistificar os medos e explicar, passo a passo, os cuidados a ter. Achas que podes ser assexual? Junta-te à comunidade online. Fantasias com chuva dourada? Fala com terapeutas que te ajudam a perceber que, com consentimento, todo o sexo é normal.

Podem recomendar-se livros, blogs e publicações que fazem um trabalho precioso, muitos deles em língua portuguesa, em abrir a discussão do sexo. Estes têm sido, ao longo do tempo, fontes de inspiração para a minha (também) tentativa de disseminar uma sexualidade positiva. As contas @carmogepereira, @prontoadespir, @omeuutero ou @taniiagraca são algumas contas de instagram que refrescam as tradicionais ideias do sexo. Sempre com um pezito na ciência, estas contas avaliam de forma critica aquilo que vem cá para fora. Há muito pouco que justifique andar às escuras no sexo. Acendam as luzes, pelo amor das deusas.

1 Dez 2020

Sexo com corpo

[dropcap]N[/dropcap]ão podia sugerir ideia mais banal que esta: o sexo faz-se com o corpo. Óbvio. O nosso sentido de consciência está conectado com este conjunto de moléculas, células e órgãos que nos transportam por este mundo. O problema é que este corpo é, muitas vezes, entendido exclusivamente pelos olhos do modelo bio-médico. O desenvolvimento de medicamentos para o tratamento de disfunções sexuais são um exemplo dessa visão. Se não há erecção sugerem-se uns compostos para ajudar a reverter a situação, sem grande reflexão de que este corpo é bem mais complexo do que isso.

Este modelo também perpetua a assumpção de que estamos programados, como um computador, a reagir de determinada forma a estímulos. O sexo seria “natural”, tal com a maternidade. Seriamos compostos por algoritmos que prevêem comportamentos. Mas o corpo não está assim tão desconectado do mundo que habita. Molda-se e reage. O corpo que incorpora o social é outra proposta de corpo – esta, inspirada por Foucault. Ele foi dos primeiros a teorizar acerca das dinâmicas de poder sociais e institucionais que perpetuaram o binarismo de género e a heteronormatividade ao longo dos tempos. O corpo dança para responder às limitações de uma suposta normalidade. Neste caso, por exemplo, a disfunção eréctil seria contextualizada nas visões de masculinidade (e de ansiedade de performance) e a forma como estas imagens e pressupostos incomodam e limitam. Já muita investigação mostra que a não-erecção é resultado de dinâmicas às quais o viagra não conseguiria, sozinho, resolver.

Ainda vos consigo oferecer mais uma perspectiva de corpo, inspirada no trabalho de Merleau-Ponty. Diria que é uma visão mais íntima e sensorial. A proposta é de que o corpo precisa de ser entendido como um espaço de processamento do mundo. Esse mundo que não precisa de ser verbal ou intelectual. A vida contemporânea ocidental tem contribuído para o contrário. Proveniente do dualismo de Descartes levado ao extremo, actualmente, vive-se em dissociação constante com o corpo. Por isso é que o sexo com consciência e aceitação – que deixa a sensação fluir e fruir – é um estado raro. A indisponibilidade de dar um pouco de tempo à sensação é resultado da pouca importância que damos ao corpo e à sua própria linguagem. Quantas vezes é que se deixam sentir? Sem as distracções do costume: sem a cabeça cheia, sem o smartphone que não pára de tocar e sem os emails que não param de cair. A honestidade no sexo e na sexualidade depende da capacidade de nos ligarmos com o corpo. Por mais básica que esta proposta pareça, o processo pode ser teimosamente difícil. Se quisermos voltar ao exemplo da disfunção eréctil, há investigação recente que mostra que terapia de grupo com recurso a técnicas de meditação são bastante promissoras.

Várias visões de corpo permitem reclamar o prazer de uma forma plural, complexa e inclusiva. Um exemplo extremo da visão bio-médica do corpo é o das crianças a quem os médicos decidem (!) se devem ter uma vulva ou um pénis quando nascem com genitais indefinidos. Só com propostas complexas sobre como interligar o social e o psicológico – com as suas representações e significado – e o corpo – com as suas sensações e subjectividade – é que entendemos de onde vêm os limites do sexo e de como é que podemos dar-lhes a volta. Como diz a genial Carmo Gê Pereira, educadora sexual e doutoranda em sexualidade humana, é preciso que todos sejamos polimorficamente perversos para reencontrar o prazer no corpo que habitamos e que merece ser explorado.

3 Nov 2020

A saúde mental e o sexo

[dropcap]D[/dropcap]ia 10 de Outubro celebrou-se o dia da saúde mental. Foram imensas as publicações que trouxeram alguma consciência para o tema. Até poderia parecer que o sexo não tem nada a ver com isso, mas tem bastante.

Até 1973 a homossexualidade fazia parte do manual de doenças psiquiátricas, e até 1992 ainda se considerava uma doença pela organização mundial de saúde. A sexualidade humana está envolta em muitas amarras ideológicas, heteronormativas, que criam limites de um suposto normal e de um suposto desviante, ou psicopatológico. Uma vida de não-conformismo com uma visão do sexo e género tradicionais, exige uma luta constante por legitimidade, visibilidade e normalização. Não é por acaso que muitos estudos mostram a maior prevalência de ideação suicida em jovens LGBTQI. A forma como as sociedades ainda não acolhem a diversidade sexual traz consequências sérias à subjectividade. Um desajuste que ainda é fonte de conflito e de mau-estar. O problema não é o não-conformismo, o problema é que os outros não sabem ainda recebê-lo.

Neste dia da saúde mental não basta pensar nas psicologias fora da norma, mas nas condições que fazem com que sejam entendidas como tal. Sou eu que estou mal? Ou são os outros que não conseguem receber-me?

Alguns académicos defendem a inclusão da sexualidade nos modelos de saúde e bem-estar. Principalmente porque o sexo como prazer não é elaborado o suficiente. A literatura mostra os benefícios do sexo para a saúde mental, como por exemplo, no alívio do stress, na criação de auto-estima e no processo de vinculação com o outro. O sexo está no meio do que julgamos intimidade e relação. Mas raramente vemos esse tipo de discurso nos canais oficiais – normalmente vemos o foco no sexo, como procriação, e na prevenção de comportamentos de risco. Discursos oficiais também podiam explorar o sexo como potencial mecanismo para reestruturar as nossas emoções e vivências se existir aceitação identitária e sexual – que é tanto um processo individual como relacional. De novo, as psicologias dependem tanto do que acontece dentro de nós, como com o outro-macro-ecológico que perpetua significados do que é expectável ou não. O sexo está no centro destas dinâmicas.

Queria, contudo, ressaltar que, ao fomentar um discurso em que o sexo é tudo de bom, e que as pessoas saudáveis se entregam ao prazer com mais regularidade, corremos o risco de excluir a assexualidade como uma forma, igualmente saudável, de se viver. Quando se tenta relacionar o sexo e o bem-estar é necessária uma gestão e análise cuidada dos limites que se criam e se re-criam do que deve ser normal ou não: e como se inclui ou se exclui certas vivências.

O sexo como objecto social e como experiência vivida ajuda a propor uma visão integrada do bem-estar. A saúde mental ainda tenta dicotomizar o mundo entre normalidades e desvios, sem olhar para os espectros do bem-estar de forma contínua, tal como a sexualidade tenta propor. Só fazendo uso de uma visão integrada destas dinâmicas é que conseguimos dar resposta ao desafio de se estar neste mundo de diversidades e adversidades, onde a normalidade é continuamente, e felizmente, contestada.

13 Out 2020

Exteriorizando sexo

[dropcap]S[/dropcap]exo em pé, no tapete, no lavatório ou na banca da cozinha. As pessoas na cama, não são as mesmas fora dela. Há vários factores que influenciam esta dinâmica. No mês do orgulho LGBTQI+, esta discrepância torna-se mais óbvia. Muita gente não consegue gozar de liberdades plenas para se entreter com os prazeres da cama, muito menos assumi-las fora das quatro paredes de um quarto. Ou até fora das paredes de uma casa: pode não haver espaço para as formas de expressão lá fora, para viver o sexo que nos faz mais sentido.

Ainda se sabe e se sente a pouca aceitação da diversidade sexual, até em países liberais. Nota-se também a persistência em não se falar sobre sexo. A ideia que as pessoas têm do sexo e a forma como as pessoas fazem sexo e têm prazer com isso, continua a ser muito alienígena em muitos contextos. Nestes anos de escrita sobre o sexo tenho-me familiarizado com, e divulgado a literatura sexual que o mundo nem sempre acompanha. Porque perceber o estado da sexualidade fora da cama, e fora de casa, é ainda uma missão muito pertinente, se quisermos atacar as desigualdades associadas a ela.

A educação sexual teria um papel muito importante em desmistificar as assumpções retrógradas que o sexo ainda tem. Mas a educação sexual é um produto socio-político e, por isso, pode estar revestido de ideologias partidárias. Não assumem uma posição humana, quiçá, universal, do prazer. Nestes programas, a enfase continua a ser na contracepção, ignorando por completo o prazer. A masturbação é tabu, o orgasmo é tabu.

Puxando pela procriação, o prazer do sexo torna-se tabu. E essa tendência de deslegitimar o sexo continua a ser um tópico preocupante, mas deveras interessante, desde que entrou na esfera pública, com Freud.

A psicanálise não foi bem recebida em muitos contextos, apesar do seu vocabulário ter sido apropriado pelo senso-comum. Muitas das ideias chave, para a época, e ainda agora, são difíceis de ser digeridas. Isso acontece porque nos afastámos do sexo desde há muito tempo, e tornámo-lo num artefacto exterior à vida, de forma utilitária e descartável. Deixámos de perceber o sexo e o corpo, que sabe de desejo, para trás.

Reinam-se as vidas humanas no dualismo cartesiano persistente. Preza-se tudo o que acontece com a razão, inteligência e pragmatismo, mas nunca com o corpo. O corpo que talvez sinta de formas que não nos são inteligíveis de ser explicadas. As ideias que começaram com Freud ainda são polémicas e suscitam interesse porque o sexo ainda tem esse caracter incompreensível. Aliciando o comum mortal com ideias e sensações pelas quais nunca passámos antes.

Este potencial do sexo raramente salta para o exterior. Porque ainda não soubemos como fazê-lo. Da mesma forma como criamos divisões entre o corpo e a mente, criámos divisões entre o sexo e tudo o resto, desvalorizando a forma como o sexo afecta as nossas identidades, as nossas formas de estar com a vida, a forma como encaramos o prazer num mundo progressivamente mais competitivo e rápido. Claro que podem existir algumas orientações de como contornar esta tendência, mas não devem ser confundidas com receitas de fácil aplicação. O caminho pode ser lento e longo guiado pela honestidade e simplicidade do prazer.

Exteriorizar o sexo dentro dos nossos eixos de significado é um processo tão simples que se torna deveras complexo, com todas as forças que nos obrigam a contrariar aquilo que de mais puro o sexo tem para oferecer.

8 Jul 2020

365 dias

[dropcap]O[/dropcap] filme mais visualizado na plataforma de streaming de eleição tem muito sexo. O 365 DNI (365 dias) está pelas bocas do mundo e popularidade não lhe falta. O filme é mauzinho. A banda sonora não podia ser pior. Os diálogos são fracos, a interpretação também. Comparam-no com o Fifty Shades of Grey, o filme que conseguiu fazer o erotismo popular e de fácil acesso, mas esse com algum BDSM e voyeurismo.

A sinopse é simples, trata-se de uma versão erótica d’A Bela e o Monstro. O monstro é um chefe de família de uma máfia qualquer italiana, a bela é uma rapariga polaca que estava na Sicília de férias. Ele rapta-a e ela tem 365 dias para se apaixonar por ele. A tensão sexual amontoa-se até culminar em muito sexo. Não há grande carinho, só tesão, sedução e penetração forte para que os gritos dela se façam ouvir em Varsóvia: palavras do galã desta trama.

Não podia deixar de comentar o estado deste sexo que se popularizou. O filme até começa bem, com masturbação e um dildo, que não é comum no pequeno e grande ecrã. Ganham pontos com isso. Mas depois de uma masturbação aplaudida, há três fellatios seguidos. Perderam pontos aí. As referências a penetração são inúmeras, como se fosse a única forma de sexo que existe. O sexo é violento e bruto – que não tem mal nenhum, só que é uma imagética tão utilizada, que já cansa. Todas as premissas e posições do sexo que lá vi pareciam inspirados numa pornografia corriqueira. Penetração e mais penetração, e o que é que podemos ter mais? Penetração. Não há uns preliminares jeitosos e sensuais, não se perde muito tempo em explorar outras partes do corpo. Há um pouco de cunnilingus, pronto. Nem foram muito por fetiches, como por momentos julguei que mergulhassem, quando se focaram nos pés da rapariga mais tempo do que eu esperava. Fetiche por pés teria sido uma inovação interessante para um filme popular como este. Fica a dica.

Já para não falar que o enredo é discutível e problemático. O consentimento tem que lá estar – esse acordo explícito entre gentes que garante o sexo prazeroso a cada parte. Neste filme não há nada disso. Começa logo com o abuso que é um homem raptar uma mulher para que ela se apaixone por ele – e ela apaixona-se, como seria de prever. Para quem pensa a sério acerca das mensagens e representações que este tipo de filmes passa a reacção é de horror ao ver a romantização da síndrome de Estocolmo. O raptor até lhe garante que não lhe faz nada sem que ela lhe peça, mas ele fez muita coisa que ela não pediu. Como ficar presa na Sicília numa mansão com um mafioso, ou ser constantemente apalpada em supostos jogos de sedução. A vítima apaixona-se, assim, pelo raptor, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Nem precisou dos 365 dias, parece que só precisou de duas semanas a dois meses, nem dá para perceber bem. De representações românticas preocupantes e sexo limitado, o filme não traz nada de novo, só os clichés do costume que perpetuam os mitos do costume.

Ainda assim, o raio do filme não deixa de ser uma sensação, e acho que sabemos porquê. O filme pode ser mau, mas trouxe um enredo fácil com muito sexo às nossas pobres almas que têm aturado este 2020 horrífico e cansativo. Estou convencida que se o filme fosse lançado noutra altura qualquer, não teria o mesmo impacto. Mas agora está a tornar-se num filme de culto, com críticos e apreciadores ansiosamente à espera da sequela (da trilogia!) – e de voltar a rever os protagonistas deste drama erótico.

1 Jul 2020

Ficção do Sexo e do Vírus II

[dropcap]J[/dropcap]á há novas estórias de amor – fictícias e verídicas – em tempos de covid-19. Esta é mista. Gentes que contemplam pelas janelas dos seus apartamentos e casas, sonhando com o nervoso miudinho que fica na barriga quando vemos quem nos excita. Há quem veja uma dança da janela, uma rapariga de cabelos escuros ondulados a dançar ao som de uma banda indie rock qualquer.

A rapariga que dança começou agora um diário, o diário da pandemia. Também dança e canta, para espantar os males? Várias culturas ensinaram-lhe que cantar cura coisas, espanta outras. ‘Continuem com as vossas rotinas’, dizem uns, ‘aproveitem para descansar’, dizem outros. ‘É tempo de masturbação’, dizem todas as sexólogas na internet. Quanta confusão mental num espaço tão pequeno que é uma casa. Tantos problemas no mundo que se mostram nus em tão poucos metros quadrados. Se calhar o mundo nunca mais será o mesmo, ninguém sabe ao certo. Ela não é futuróloga e rapidamente deixa de pensar nisso. Ela pensa na redefinição do amor. Mudam-se as crenças, mudam-se as vontades, mudam-se os comportamentos. O isolamento é agora uma prova de amor. Ainda assim sente-se ligada a quem mais ama porque há modernices, e porque tem um caderno e uma caneta em casa. Escreve parvoíces e desenha infantilidades – um diário para se distrair com (e d)ela própria.

Alguém a viu de uma outra janela e apaixonou-se pela dança, pelo cabelo, por qualquer coisa que não sabe. O amor não acontece assim, mas a atracção, sim. Ela não faz ideia a quem pertence a silhueta por detrás da janela. Vive naquela casa há anos e nunca reparou que tinha a vista perfeita para uma rapariga de cabelos escuros ondulados. A vida pré-isolamento era mais atarefada. Agora está parada, com mais tempo para contemplar vidas e janelas. Talvez o isolamento tenha atiçado o tesão, como as forças opostas que constroem os nossos dilemas internos. ‘Quando sou obrigada a estar sozinha, mais me apetece estar com alguém’. Ela deixa um recado na janela, e espera que só ela repare. ‘Rapariga de cabelo escuro e ondulado que gosta de dançar à janela, queres jantar comigo?’. Desenha um arco-íris também, para não destoar das outras janelas. O jantar teria que ser reinventado, depois pensaria nos pormenores. Ela não costuma ser tão extrovertida, mas a visão catastrófica do mundo obrigava-a a arriscar. Esperou que o objecto do seu desejo respondesse positivamente, com uma mensagem na janela, também? Esperou mais um pouco. Enquanto esperava, imaginava cenários de enamoramento em tempos de pandemia. Não tinha medo da rejeição, a solidão já a acompanhava de uma maneira ou de outra. Continuou à espera de um qualquer sinal.

O amor é um alívio – tal como a esperança que nos motiva para pintar um arco-íris, colá-lo à janela e pedir que tudo fique bem. A incerteza é lixada, mas o amor ajuda a encará-la. O amor, que alimenta a solidariedade, empatia e esses clichés todos optimistas, precisa de um objecto, de uma concretização qualquer. Nesta invasão de medos activam-se formas de conexão virtual e mental. Não há formas certas ou erradas, há a redescoberta de uma forma diferente de se ser. Ainda não sei se a rapariga de cabelos escuros e ondulados reparou na mensagem, como é que irá responder, o que irá acontecer. A satisfação está na presença destas duas personagens que, sem uma pandemia, não seriam quem são.

1 Abr 2020

Sexo (e outras coisas) em tempos de pandemia

[dropcap]O[/dropcap] mundo vive (oficialmente) uma pandemia. Especula-se o quão isto afectará as nossas vidas, as nossas estruturas institucionais e a nossa prática diária a curto, médio e a longo-prazo. Já há uns meses que a Ásia vive em isolamento, um estado de solidão que nos é tão anormal. Agora o epicentro está na Europa, com isolamentos auto-propostos ou recomendados pelo governo. A guerra contra o desconhecido está aí e não se sabe se teremos a estrutura para combatê-la.

O que sabemos é que esta luta necessita de uma orquestrada resposta que navega decisões de teor socio-político e pequenas práticas diárias individuais: como lavar as mãos ou sair de casa só quando estritamente necessário, com particular enfâse no isolamento e no distanciamento social. Mesmo que estas sejam medidas para salvaguardar a saúde física, a saúde mental precisa de cuidado também. A ansiedade colectiva e individual está a níveis catastróficos. O isolamento em nada contribui para minimizar esta ansiedade, nem à tendência de ficar obcecado com as notícias, na espera de actualizações e notificações. Ansiedade que tem alimentado notícias falsas, trocas de mensagens de voz pelo whatsapp falsas e outras actividades que têm deixado as pessoas alienadas pelas razões erradas. O impacto destes meses à saúde mental não é um infeliz efeito secundário, é um efeito que precisa de ser prevenido, acima de tudo. Há investigação feita que mostra que o isolamento contribui para stress pós-traumático, depressões e outros problemas emocionais.

As distracções, nestas alturas, são importantes para as pessoas desligarem-se dos cenários de medo que se montam de momento (principalmente quando ninguém sabe o fim desta situação atípica). Assim serão capazes de se distanciarem da ansiedade, em vez de vivê-la a todo o momento. O sexo é uma tão boa distracção como qualquer outra. E com isso há quem especule que haverá um baby-boom, tal como eu especulei anteriormente quando a epidemia era só do que se falava. Há quem também especule muitos divórcios, porque as famílias terão que ficar em casa, sem estímulos exteriores. De qualquer modo, haverá espaço e tempo para o sexo. Para quem está em casa com alguém com quem pode fazê-lo, e para quem está sozinho. A masturbação deverá ser importante durante estes tempos. Os seus benefícios de tratar o corpo e a mente são nos bem conhecidos: ajuda a relaxar, a melhorar o humor e a fortalecer o sistema imunitário. Mal não fará, especialmente em tempo de pandemia. Não é por acaso que o site da pornhub está a oferecer uma subscrição completa aos italianos que estão em isolamento. Um gesto solidário para quem precisa do escape do sexo. Aproveita-se este momento de impasse social para procurar novas fantasias, novos fetiches e novas experiências sexuais. Encomenda-se o brinquedo sexual que sempre se desejou, ou começa-se os exercícios vaginais que nunca encontraram a disciplina para ser implementados. Tanta coisa que pode ser (sexualmente) concretizada.

Procurar formas de distração em tempos de distanciamento social deve ser visto como um mecanismo de defesa que ajuda a equilibrar os níveis de ansiedade. Níveis que são inevitáveis, perante tanta incerteza. Distrações podem ser o sexo, vídeos de gatos, filmes ou séries. Este é um apelo ao prazer em tempos sombrios. O prazer que não é sinónimo de luxúria. O prazer como potenciador de bem-estar dentro das circunstâncias, e das limitações, em que vivemos.

18 Mar 2020

Amor em tempos de epidemia

[dropcap]F[/dropcap]ace uma epidemia ninguém deve ter muita vontade de trocar fluidos. Numa altura em que até o ar não deve ser demasiado partilhado, partilhar a intimidade dos fluidos corporais torna-se num risco. Estive estes dias em Nova Iorque onde vi uma peça que explorava extensivamente o fellatio, e esperei que me oferecesse material suficiente para escrever sobre o sexo oral. Mas o coronavírus começou a assombrar-nos e não consigo parar de pensar no assunto. Obsessivamente. Nova Iorque é fabulosa, mas o coronavírus é assustador.

Encontrar o amor ou simplesmente mantê-lo vai ser difícil durante estes tempos, que nem sabemos quão longos serão. Tempos de muita vulnerabilidade que esperariam que o toque e o conforto dos outros nos salvassem de alguma coisa, mas é, na verdade, só mais um facilitador. Um perigo que continua desconhecido nas suas formas e feitios. Este mal tem como único propósito sobreviver de corpo em corpo. Corpos que estarão mais preparados para lidar com o choque que este vírus provoca do que outros. Corpos que poderão estar mais em contacto com o exterior do que outros.

Uma forma de lidar com esta crise é o isolamento, isolar pessoas para isolar o vírus. E assim a epidemia obriga a contrariar aquilo que nos é mais humano: estar com os outros. Milhares de pessoas estão presas nas suas casas sem saber o que esperar, ora por obrigação ora por preocupação. Só que o isolamento não nos é natural. Não contribui para o conforto, como o toque de alguém que nos é próximo. Será preciso amar à distância, manter os metros e até os quilómetros para fugir das tosses e dos ares que contaminam. Andar por ruas vazias, ou andar com medo das ruas cheias de gente. As pessoas tornaram-se num inimigo sem nome.

Os inerentes problemas sociais e políticos dos nossos sistemas vêm à tona, com estas crises. Nota-se que ainda estamos longe de perceber a forma como entendemos as pessoas, a medicina, as liberdades individuais e colectivas, o pânico e o medo – e de como se entende o poder. Em contextos de relações interpessoais (amorosas) por várias vezes explorei a comunicação na resolução de desencontros de intimidades. Sem surpresas, a solução de problemas a nível macro-social precisa de comunicação. As estruturas de poder só serão capacitadoras e eficazes se houver comunicação humilde, transparente e clara – que não seja alarmante nem fantasiosa. Parece fácil, mas é tão difícil. Neste processo de aprendizagem, que tem ocorrido ao longo dos séculos, por muitos continentes de várias epidemias, tenho sempre a sensação que esta aprendizagem dura o seu tempo, à custa de muitas vidas. Não consigo desligar dos micro-cosmos de emoções de quem se sente obrigado a afastar-se da vida normal por um vírus que ataca ainda no seu estado silencioso – e da desconfiança pelas estruturas que deveriam salvar as pessoas de situações de medo e incerteza.

Pelo menos já vi que se faz uso do humor negro pelas redes sociais chinesas. As pessoas que se protegem de formas criativas para não se perder o que nos é mais humano, os jogos, a diversão, a interação com os outros. As tecnologias que nos aproximam e que oferecem algum conforto. O medo que talvez nos faça ainda mais sedentos por toque e atenção, como se o amanhã pudesse ser a nossa sentença de doença (ou de morte). O assunto é tão sério que aparvalhar é só mais um mecanismo de defesa. ‘Talvez daqui a 9 meses haja um baby boom!’, gozava uma amiga. Entretanto, tenta-se esperar, e agir, para que tudo corra bem.

3 Fev 2020

O sexo gosta do oculto

[dropcap]O[/dropcap] lado inocente e puro desta humanidade mostrou-se não ter espaço para o sexo. O sexo é diabólico e veste-se de vermelho, a cor do pecado, e o inferno está cheio de fornicadores que se regozijam com os corpos nus de prazeres incompreensíveis. A dicotomia do bem e do mal – de uma história já muito antiga – reforça a ligação íntima entre o sexo, o oculto e as suas bruxas diabólicas. Mulheres que sabiam demais para o seu próprio bem – da cura, do cuidado e do prazer. Ainda que a bíblia não fale explicitamente sobre a sexualidade, o sexo ainda perpetua uma rigidez estupidamente simples com anos de tradição religiosa. Foram estas as ideias que levaram a queimar mulheres vivas na fogueira. E o sexo alimentou-se da premissa de que há algo de errado em saber mais sobre sexo.

As bruxas mantiveram-se, até de forma bem literal. Em tempos em que o sexo já é mais banal e menos demoníaco, o sexo continua a adorar ultrapassar os limites do razoável – dentro e fora de subjectividades.

Há, por exemplo, a ‘magia sexual’ que é a arte de utilizar a energia sexual para lançar feitiços durante a lua cheia, ou noutras luas que achem relevantes. A prática passa por ouvir a música que desperta erotismo necessário, acender uma vela, masturbar com o auxílio de um dildo de cristal (ou qualquer outro dildo), lançar um feitiço com o poder do orgasmo e esperar os resultados. As bruxas contemporâneas são versadas nestas práticas e partilham a sua sabedoria pelos canais de informação comuns – para os curiosos que queiram saber mais sobre sexual magic ou magick.

Eu diria até que no lado oculto do sexo explora-se bem mais do que a magia. Vejo-o como a plataforma onde se desafia a vergonha e a humilhação do prazer. Os fetiches, e tantas outras fantasias, vivem do oculto, do desconhecido e do incompreensível. Vão além do sexo heterossexual de fazer bebés (a única forma aceitável de fazer sexo, aos olhos de muitos) e encontram-se na criatividade, no inexplorado. Aliás, não é por acaso que os fetiches e as práticas mais kinky fazem uso de apetrechos que poderiam ser de bruxas ou de agentes do mal. O látex preto, o chicote, as botas altas e os corpetes completam a representação do lado ‘negro’. O sexo adora o imaginário do dominador e do dominado, e para muitos, até da vergonha e da humilhação. Estas dinâmicas existem para contestar quem diz que o sexo deve ser assim ou assado, para contestar os mecanismos de opressão do sexo, fazendo uso deles mesmos.

O sexo que gosta do oculto poderia ser só mais uma confirmação que que é no oculto que ele deve permanecer. Mas a proposta é de que haja reinterpretação de conceitos e práticas. O sexo no oculto e a magia do sexo é só mais uma desculpa, como tantas outras, para forçarmo-nos a olhar o sexo dentro e fora das nossas relações, das nossas subjectividades e das nossas expectativas. O voyeur e o exibicionista gozam com a possibilidade de fazer o que é errado. O senso comum de que o fruto proibido é o mais apetecido é uma explicação limitada, mas ainda importante, para algum dos padrões do sexo – os limites existem para serem quebrados e contestados. O oculto nasce da forma como se vê o passado e a nossa contemporaneidade e do que, deliberadamente ou não, deixámos por explorar e escondido. Os persistentes tabus do sexo são o combustível para a reinvenção e exploração. Se o sexo gosta do oculto, nós também vamos gostar.

15 Jan 2020

Lugar do Corpo no Sexo

[dropcap]T[/dropcap]emos pouca consciência do espaço que o nosso corpo ocupa. Diria, até, que são poucos aqueles que têm consciência de si próprios, da consciência plena dos seus limites. O sexo, se bem feito, pode criar uma ligação com esse lugar. O corpo que deambula sem pensar muito, anda para a frente para trás sem sabermos muito bem como. Prendemo-nos nos automatismos diários e não permitimos a redescoberta. Claro que há quem defenda que já nos focamos no corpo demasiado, no corpo médico e mecanizado. Nesse caso o sexo é frequentemente simplificado, tomando o corpo como garantido. Esta tese é a da complexificação do corpo como lugar de prazer sem automatismos ou expectativas. O prazer que não é o simples orgasmo, ‘o fim último’, mas um dos seus caminhos. O prazer que vem em estarmos presentes com o nosso corpo.

Em crianças o corpo é claramente o nosso veículo, e nós aprendemos a lidar com ele – através de movimentos cada vez mais sofisticados que o nosso corpo desenvolve. Depois desenvolvemos o pensamento abstracto e aí ficámos, na cabeça. O nosso desenvolvimento estagna a nossa possibilidade de descobrirmos além – dentro do corpo, mas para além da nossa imaginação. A naturalidade de nos reconectarmos com a nossa presença deixa de ser natural, ou fácil. Exige o esforço de encontrarmos aquilo que ignoramos: o lugar de corpo que julgámos conhecer. O sexo é o lugar onde nos poderíamos deslumbrar vezes sem conta com a subtileza do toque e com a coordenação dos nossos sentidos. Só que esta consciência plena do nosso corpo, até no sexo, é rara. Vivemos no passado e no futuro e esquecemo-nos do momento presente. O corpo está lá, muito mais do que nós.

A meditação também é uma forma de nos ligarmos com o presente – e está muito na moda. A sua eficácia na prevenção de mal-estares mentais já foi mais do que mostrada. Há quem diga que a nossa desadequação com o presente é o resultado de vidas contemporâneas de mil e uma distracções. Estamos sempre a pensar em alguma coisa. Tal como a meditação, o sexo poderia ser a nossa oportunidade de desligarmos das tormentas do passado e das ansiedades do futuro, mas mesmo assim, trazemo-las para a cama. Por isso há quem proponha trazer a meditação para a cama também, ainda que sexo viva do prazer da entrega dos sentidos. O toque, paladar, olfacto, visão e audição, tudo importa na entrega ao sexo ou, pelo menos, deveria importar.

Esta é uma ideia que está longe de ser inovadora. Já nos anos 50, quando a primeira investigação sobre o sexo começou a surgir e os primeiros terapeutas sexuais começaram a surgir também, esta ideia de ‘foco sensorial’ era chave para que as pessoas pudessem ter uma atitude mais saudável com o sexo. O sexo, que frequentemente se distorce de expectativas irreais e que enfatiza determinadas performances, deixa os seus praticantes muitas vezes perdidos, nervosos e insatisfeitos. Estes princípios sensoriais são utilizados para nos gentilmente afastarmos do que se passa na nossa cabeça, sem pressões e sem julgamentos. A investigação mostra a importância deste foco sensorial para nos tornarmos mais presentes. Mais do que uma simples técnica para melhor aproveitarmos o sexo, é uma forma de estar.

Se o sexo, de consciência plena, é uma forma de meditação que nos conecta com o corpo – e com o corpo de um outro, se for caso disso –, e se a meditação traz imensos benefícios para a saúde, o sexo tem o potencial de ser a cura para muitos males. Males que atormentam a nossa existência enquanto seres sexuais, e enquanto seres que têm que lidar com este mundo confuso, cheio de notificações, e sem espaço para redescobertas.

6 Nov 2019

Dos hábitos

[dropcap]O[/dropcap] meu avô materno morreu com cerca de noventa anos. Gabou-se durante largas décadas de nunca ter ido ao médico e de nunca ter tomado um comprimido. Quando lhe apareceram cataratas nos olhos, não deu grande atenção à coisa, até ficar cego de um deles.

Deixou-se relutantemente operar ao outro olho para logo se lamentar de não ter operado ambos. Quando o ia visitar, vendo ele já muito mal, acenava-lhe de longe e gritava-lhe
vende-me um desses borregos, o mais gordinho?
para ele responder, irritado com o despeito dos citadinos

não estão para venda!

Detestava médicos, hospitais e tudo quanto na cidade por motivos vários o afastasse do campo e dos seus afazeres.

Tinha outra característica peculiar: fazer sexo todos os dias; coisa que, a determinada altura da sua provecta idade, a minha avó deixou de achar piada. Criando a necessidade o engenho, o meu avô passou a dizer à minha avó, sempre que iam para o quarto, à noite

Maria, é a última…

E, durante quase vinte anos, todos as noites foi a última.

Numa dessas noites, a minha avó, tentando de algum modo fugir ao prazer que para ela se tornara um suplício, caiu da cama. Fracturou o fémur. Escusado será dizer que a minha avó tinha tanto apreço por hospitais e cidades quanto o meu avô. Nisso, coincidiam em uníssono.

Magríssima e picuinhas com a comida, enquanto esteve no hospital comeu apenas as bolachas Maria que a minha mãe lhe levava. Era para ter estado três meses mas ao fim de mês e meio estava pronta para ir para casa. Ao que parece, não tinha sinal da osteoporose que costuma afligir as mulheres a partir de uma certa idade.

A minha mãe ofereceu-se para a ir buscar ao hospital e levá-la para casa. Ao contrário da satisfação que esperava ver na sua cara com a ideia de ir para casa, a minha avó, cochichando, perguntou-lhe

não posso ficar uma semaninha ou duas mais?

A minha mãe, estupefacta

mas mãe, porquê?

E a minha avó

ai filha, nunca estive tão descansada…

A minha avó, que nunca tirou férias (o campo não tira férias, filha, respondia, quando a minha mãe lhe perguntava porque não tiravam uns dias para passear), descobrira na inesperada hospitalização um sossego que nunca conhecera ou de que não se lembrava. Provavelmente, o mais parecido que teve a vida toda com férias. Não pôde ficar essa semana adicional. Não disse uma palavra durante a viagem. O meu avô, sempre todo emoção, recebeu-a em lágrimas.

Ainda hoje penso no que ele terá feito enquanto a minha avó esteve fora.

16 Ago 2019

Coisas de vulvas, o mito da virgindade e o verdadeiro sexo

[dropcap]A[/dropcap]s vulvas escondem-se e mostram-se de várias formas. A pluralidade de formas que ninguém discute já levou a que muito boa gente se sentisse obrigada a uma vulvoplastia. Um exemplo clássico de como a expectativa da vulva perfeita já foi aproveitada pela nossa sociedade de consumo. Com estas pressões de transformação começa a existir pouco espaço para a variabilidade e diversidade dos sexos e dos genitais femininos. O pouco conhecimento acerca dos cuidados a ter com as vulvas também é preocupante. Aliás, o pouco que se sabe sobre genitais tidos como femininos ou masculinos é preocupante de várias formas, até ao nível de saúde pública. A educação sexual continua a limitar-se a falar de vaginas e pénis e de DST’s e de preservativos de forma limitada, descontextualizada do prazer e sem descontruir os tabus do sexo que nos afectam física e psicologicamente. Porque ainda há quem queira uma vulva perfeita e há quem queira retrocede-la no tempo. Virginizá-la com auxílio da cirurgia plástica. Patetices.

O conceito de virgindade é problemático também – uma construção social ao invés de uma condição fisiológica clara que sempre nos quiseram vender. Construção essa que pressupõe que o hímen, quando quebrado por penetração vaginal, vá sangrar e que desaparece magicamente logo após a primeira relação sexual vaginal. A confusão anatómica pressupõe o hímen como um pedaço de película a tapar a entrada da vagina. Só que não – o hímen é mais uma orla membranar, bem elástica, com um círculo no meio. Até pode ter vários círculos/falhas, até franjas.

Não há nada de anatomicamente típico no estudo da virgindade – especialmente quando uma mulher de meia-idade, trabalhadora do sexo, já ter apresentado um hímen semelhante à de uma adolescente. Estas não são raras excepções à virgindade, mas a confirmação de que observação vaginal pouco nos diz sobre o seu estado sexual. O hímen pode ter muitas formas e feitios e pode parecer – como já vi descrito – um floco de neve com complexos rendilhados. Os testes de virgindade são inúteis. Vários contextos sócio-culturais é que nos tentam convencer que são fiéis e úteis no entendimento da sexualidade feminina – na perpetuação da dominação sobre a sexualidade feminina.

Com certos entendimentos vulvares acompanhados pelo mito do hímen e da virgindade vem outra concepção problemática: a de que o sexo de penetração entre uma vagina e um pénis é o único que existe. Supostamente, a iniciação faz-se pela primeira vez que o pénis entra, o hímen se parte, e toda a dignidade da mulher se perde. Só que o sexo é tão mais completo e complexo do que isso. Se se mudar a forma como se vê o sexo e retirar-se a primazia do sexo vaginal da equação, ficamos com uma visão muito mais igualitária e interessante. Uma visão em que o sexo é muito mais criativo e inclusivo. Uma visão que quebra com as visões binárias do género e do seu papel na sexualidade.

Gostava de encontrar um verbo simpático para descrever o sexo que fosse menos ofensivo do que a (fabulosa) gíria imprópria para menores de dezasseis anos – mas que fosse menos amorosamente carregado do que ‘fazer amor’. A utilização do verbo é importante para entender este processo que é o sexo, e deixarmos de essencializá-lo à sua forma redutora – a um simples substantivo. A vulva verdadeira não existe, o hímen como vulgarmente entendido, muito menos.

O sexo é tanto mais do que um pénis e uma vagina – porque também há vagina com boca, pénis com ânus, pénis com boca e tantas outras combinações possíveis (sim, ainda há mais). As vulvas e os sexos precisam desta abertura e crítica – para além do que nos é tido como óbvio.

24 Jul 2019

Por que (não) precisamos de Chás Afrodisíacos

[dropcap]T[/dropcap]odos temos teorias do que é o desejo, o sexo e o amor. Atribuímos significados às nossas sensações e definimos cronologias do que vem primeiro ou depois.

Primeiro o desejo, depois o sexo e depois o amor, talvez. Pelo menos os psicólogos da evolução do comportamento parecem sugerir que o amor veio por último – um desenvolvimento natural para justificar a sobrevivência. Que não é bem a nossa sobrevivência, mas a dos genes que os nossos bebés carregam. E claro, lógica mais natural é de que os bebés irão sobreviver melhor se tiverem um pai e uma mãe a protegê-lo. Assim pensam uma facção de psicólogos que gostam de simplificar e normalizar aquilo que – talvez – não traz grande vantagem em ser assim simplificado.

Mecanizar o que somos resulta numa enorme ausência de significado nas nossas vidas. Parece que vivemos para racionalizar tudo e todos, somos ateus e descrentes. Queremos esmiuçar o que é complexo porque a fenomenologia do saber não basta. Não basta sentirmos, temos que pensar de forma a deslegitimar o que sentimos. Como se o nosso sistema sensório-motor estivesse a enganar-nos e precisássemos de esclarecer exatamente o que se passa connosco.

Na forma mais romântica de sermos, estas sensações que o desejo, o sexo e o amor trazem, poderão muito bem justificar o que somos. Como se fizesse parte da nossa procura de sentido. Só que biologia despe tudo de magia. Deixa-nos a sós com a ideia de que afinal somos só feitos de mecânicas e químicas que justificam o que sentimos. A investigação mostra que os caminhos neuronais para o desejo e para o amor são muito semelhantes. E o que é que isso nos interessa?

Precisamos mesmo de procurar os caminhos neuronais do amor? Há quem ache que sim, eu acho que não. Optar pelo modelo biomédico do sexo e do amor é assumir que a procura por quem somos, até nas formas mais esotéricas, não as incluem. Se tentamos reduzir a magia do amor à presença de oxitocina, estamos mal. Tiramos a possibilidade de sermos mais do que um conjunto de células que só reage quando tem que reagir. Por exemplo, julgar que chás afrodisíacos curam a falta de desejo é assumir que o corpo pode ser só um corpo. Nada mais. E quem fala de chás, fala de medicação ou outras técnicas que assumem que o sexo só precisa de um estímulo e não de uma história – complexa, rica, com vitórias e perdas que lhe fazem parte – para resultar em desejo, sexo e amor.

A solução é a estória ou a narrativa. As narrativas que contamos – melhor do que as áreas do cérebro que se activam numa ressonância magnética – mostram-nos melhor como o desejo cresce ou desaparece. Com o uso das palavras penetramos os símbolos, as emoções ou os comportamentos dos diferentes estados de enamoramento. Não presenciamos só aos significados, mas à mobilização de conteúdos que nos reinventam. Da forma como bebemos da imaginação para sobreviver à distância de quem mais gostamos ou para sobreviver a proximidade de muitos anos. Criamos estórias para contrariar a tendência mecânica e simplista. Estórias que podem ser criadas por muitos ou individualmente. As culturas tendem a definir as estórias amorosas dignas de serem vividas ou imaginadas. Só que nós somos uns rebeldes pelo prazer e pelo amor. Recriamos os contos de fada para sermos felizes – porque só contando e apropriando das nossas estórias é que podemos senti-las como nossas. Com as perspectivas vigentes, podemos ser princesas, príncipes e vilões ou animais que se regem por instintos e nada mais. A verdade é que num mundo de opções de como escolhemos viver o desejo, o sexo e o amor são sempre escolhas entre narrativas. Podemos optar por amor e sexos fantásticos ou do tipo aborrecidos que as narrativas biológicas nos tentam impingir.

3 Jul 2019

Também há censura no sexo

[dropcap]A[/dropcap] censura dos órgãos genitais bem que podia ser um problema do passado. Um pé é sempre um pé. Mas os genitais podem ser outra coisa qualquer? Formas de calão como passarinha, rata ou pipi existem por alguma razão. Censuramo-nos e coramos ao som de palavras simples como vulva ou pénis. A censura não precisa de ser regulada pelo sistema. Os poderes de censura também são individuais.

Gostamos de criar significados alternativos ao que nos é menos conveniente encarar, aquilo que julgamos prejudicial às nossas sociedades. O sexo à luz da tradição judaico-cristã é uma realidade dolorosa. Somos obrigados a reinventar o sexo com formas mais infantilizadas e simplistas para poder aceitá-lo. Tudo começa com o mito das abelhas, ou das cegonhas, ou de outro qualquer animal que parece estar envolvido na narrativa do sexo. A educação sexual mais progressiva é contra este fabular. Mascarar o sexo com a narrativa da abelha é evitar a naturalidade e a normalidade do prazer. Como se o sexo fosse um acto de violência que tenha que ser apagado para evitar a revolução das massas. Uma vulva é uma vulva, um pénis é um pénis e devemos usar essa linguagem desde cedo – são só os nomes cientificamente correctos. Há uma objectividade associada à simplicidade da nossa fisionomia. As múltiplas camadas de significado só ofuscam práticas de auto-consciência corporal e de sexualidade informada. A censura previne isso mesmo: conhecimento.

Claro que estamos cheios de narrativas, e até a simplicidade da nossa fisionomia vem de uma narrativa. Mas a narrativa não é ameaçadora, é só informativa. A forma como encaramos e entendemos factos não produzem consequências óbvias. Não falar abertamente sobre sexo não faz com que as pessoas não o tenham. O sexo vai continuar existir, mas menos informado. Este é o medo infundado que, por exemplo, justifica a resistência de alguns pais em aceitar educação sexual nas escolas. A censura funciona como um obstáculo a conversas honestas – somente – contribuindo para o triunfo do medo. Claro que o corpo feminino é mais passível à censura, porque o entendem como explicitamente sexual. Ao ponto de se sugerir censurar os mamilos femininos com mamilos masculinos. A segurança assexual de mamilos masculinos certamente consegue esconder a sensualidade dos femininos. Aliás, um rapaz chinês com um problema endócrino raro viu crescer-lhe uma mama. A foto que foi publicada desta situação peculiar censura o mamilo esquerdo (o que agora tem um aspecto mais feminino), mas deixa o masculino.

Os paradoxos do sexo e do género levam a isto.

Estas são representações que devemos (temos que) transformar. Não serve a ninguém continuarmos a censurar a linguagem de vulvas e de pénis, muito menos das imagens dos mamilos femininos (ou até pêlos púbicos, outro clássico) quando as consequências apontam para uma narrativa deficiente do sexo. As situações mais flagrantes mostram mulheres adultas que não sabem onde ficam a entrada da vagina, da uretra ou o clitóris porque não se fala sobre elas. Não sabermos do nosso corpo é tramado. Não entendermos as histórias que levaram a padrões duplos também não nos capacita para os destruir. Como se ficássemos para sempre cegos com uma perspectiva da história que afinal podia ser múltipla. Como a história de nações que, perante factos, são capazes de escondê-los como um gato escondido de rabo de fora, julgando a censura inevitável, como se fosse a obra da nossa natureza instintiva de protecção. Mas é só uma estratégia – uma escolha.

5 Jun 2019

Sexo Bipolar

[dropcap]O[/dropcap] que dizer da semana em que o estado do Alabama passou a proposta lei do aborto mais restritiva e Taiwan tornou o casamento homossexual uma possibilidade legal? Choramos e celebramos recuos e avanços na mesma semana – para nos sentirmos profundamente confusos. Avanços e recuos num movimento perpétuo.

O estado bipolar sexual em que vivemos provém da confusão que são os nossos sistemas sócio-políticos. Temos testemunhado movimentos que começaram a deixar para trás o pensamento progressista que julgávamos carregar. Têm-se construído barreiras discursivas e simbólicas para deslegitimar o que são lutas e visibilidades absolutamente necessárias. A 17 de Maio celebrou-se o dia internacional da luta contra as fobias de género e de orientação sexual – e é com insatisfação que me apercebo que o dia terá que continuar a existir por muito tempo. Quando os partidos em Portugal para as eleições europeias fazem uso do termo ‘ideologias de género’ para deslegitimar a naturalidade do nosso ser, devíamos preocuparmo-nos. Mas depois temos Taiwan, o orgulho dos nossos olhos neste grande continente Asiático. Há esperança – se calhar há.

No Alabama – e sobre o aborto que é agora punido com 99 anos de prisão – a contestação é criativa e eficaz para desmascarar os supostos valores pela vida. Valores que carregam mais raivas silenciosas contra os corpos detentores de útero do que outra coisa. Um país que se recusa a regular as armas para regular os úteros – torna ainda mais visível a bipolaridade patriarcal em que vivemos. O valor da vida de um embrião é exageradamente tido como o de um bebé. Só que por alguma razão o valor da vida da mulher que é violada (no cenário mais negro) é discutível. A pena é mais alta para quem faz um aborto do que para quem viola uma mulher. Esta lógica não chegou às pobres cabeças que provavelmente nunca tiveram educação sexual, mas que tomam decisões sexuais. Não sabendo dos corpos e dos processos apelam-se a valores universais da vida em contraste com a morte (o assassinato!) e controlam-se os corpos dos outros por consequência.

Houve quem sugerisse greve sexual para reforçar que os úteros, as vaginas e as vulvas são de quem as têm. Mas nem sei se isso irá funcionar porque o problema está na ausência de respeito centenária por quem os têm.

Depois temos Taiwan que muito nos emocionou nesta semana. Foi tão bom apreciar as fotografias das gentes que na rua manifestaram a felicidade de um amor que agora pode ser legalmente reconhecido. Outros direitos virão. Outras lutas por esta Ásia fora serão travadas – certamente. Em Taiwan mostrou-se que a liberdade para sermos quem somos pode coexistir com o sentido de compreensão social. Ainda que os direitos não sejam plenos, como os da adopção, já é um começo.

Vivemos em sociedades que usam e abusam do quão bipolar somos – entre responsabilidade individual e social, usam-se estratégias ideológicas a nosso bel-prazer. O corpo é de quem? Nosso ou de todos? Como é que se equilibra os valores liberais com solidariedade e respeito mútuo? A síndrome bipolar sexual vive desta indecisão. A forma como escolhemos justificar este dilema pode legitimar ou deslegitimar os outros. Em Taiwan, a prioridade foi a liberdade de identidade e de expressão sexual e no Alabama a lógica da vida por nascer é romanceada em contraste com as vidas que, de pele e osso, se sujeitaram ao pecado mortal. Nem quando essa vida é fruto de um incesto a liberdade prevalece. Quando queremos um mundo justo, vemo-nos confrontados com a dispersão de dificuldades e posições sociais. Talvez possa ser feliz em Taiwan e talvez nunca precise de ir ao Alabama. Mas e a nossa responsabilidade em criar um mundo menos bipolar e mais preocupado com os direitos humanos?

22 Mai 2019

A Anormalidade da Normalidade do Sexo

[dropcap]A[/dropcap] ideia que mais gosto de defender é a de que o sexo normal não existe. A expectativa que atingimos certas metas sexuais ao longo das nossas vidas, não é infundada, mas irrealista. Quem somos, de onde viemos e para onde vamos, sexualmente falando, envolve-se de narrativas já nossas conhecidas. Clichés, se quiserem, do género, do sexo e de como fazer filhos.

Falsas crenças sobre os nossos corpos e de como devemos sentir os nossos corpos – sem termos sentido o nosso corpo primeiro. Há uma visão muito fixa do que é o sexo. O sexo é entre um homem e uma mulher. O sexo é a penetração vaginal e a virgindade só se perde quando ela acontece (tudo resto não conta…). Os homens são uns tarados e as mulheres umas santas. O pénis é de fácil orgasmo e a vagina um mistério orgásmico que nem vale a pena aprofundar. A lista é infindável.

Uma colega de faculdade há uns bons tempos escreveu um texto que me trocou as voltas. O texto criticava a excessiva ênfase do sexo vaginal quando se falava de sexo. Foi como se permitisse uma reinvenção. A partir daí veio-me uma vontade de desfazer os mitos, as caixas categóricas e as expectativas. Comecei a perceber que o sexo esteve sempre preso à penetração vaginal. Sexo oral ou sexo anal existem para evitar o acto em si (como formas de ‘contracepção’) ou para chegar à derradeira penetração. Estas ideias têm persistido com muita força porque pensamos sobre o sexo sem grande flexibilidade ou crítica. Se achamos que já sabemos tudo, como ganhamos espaço para mudança? Cabe-nos perguntar por que é que o sexo é só vaginal? Quando é que os preliminares são sexo também? Quando é que o prazer é uma forma prolongada de estar na cama e não o único e derradeiro momento orgásmico?

Para chegarmos à verdadeira diversidade sexual precisamos de romper com o mito do que é normal. A normalidade é redutora, exclusiva e preconceituosa. Mas a criatividade na cama permite que o prazer faça cada vez mais sentido para cada um de nós. A orientação sexual e a identidade fazem parte deste conjunto de formas de nos reinventarmos. A forma como nos agarramos a uma normalidade artificializada por centenas de anos de repressão social e religiosa, faz-nos pessoas limitadas. Não só porque não reconhecemos no outro o direito à diversidade e ao prazer, mas porque ficamos amarrados em nós mesmos. Não aproveitamos o sexo como um encontro privilegiado entre o mental e o físico. O nosso corpo é negligenciado por sociedades cada vez mais intelectualizadas e racionais. No sexo podemos dar-lhe espaço fora dos ‘limites’ do sexo. Sexo é penetração – e carícias, toques, lambidelas e momentos de partilha de imensa intimidade.

A consciencialização da anormalidade da normalidade do sexo conseguiu que a homossexualidade saísse do manual de doenças psiquiátricas. Também foi com esta consciencialização que indivíduos transgénero e intersexo começaram a reivindicar os seus direitos e prazeres. As vulvas também se tornaram mais felizes com o direito a serem como são – apesar da procura por cirurgias plásticas vulvares continuar a ser assustadora. A abertura e confiança em comunicar aquilo que nos dá prazer na cama, para lá da penetração, para lá dos medos e fantasmas do sexo, é só mais uma feliz consequência. O sexo normal é uma invenção, o ‘anormal’ é só uma continuação honesta de nós mesmos.

8 Mai 2019

Cheira a Sexo

[dropcap]A[/dropcap]s feromonas contribuem para a atracção e o bom sexo. Dizem os especialistas – ou a cultura popular? Há alturas em que já não sabemos ao certo. O odor cheio de hormonas importa, diz-nos a etologia com o estudo do comportamento dos mamíferos não humanos. Nesses casos a atracção e a cópula dependem de uma compatibilidade olfativa. Nós, como bons mamíferos que somos, também seguimos o exemplo – ainda que tenhamos uma capacidade olfativa muitíssimo pobre. Mesmo assim o cheiro consegue associar-se a memórias e a respostas emocionais – e pode muito bem afectar o nosso ser sexual com pouco esforço cognitivo, i.e., não precisamos de pensar, simplesmente o sentimos e respondemos.

Mas estes automatismos puramente fisiológicos não me convencem. Claro que o cheiro interessa na atracção e na cama. Não é por acaso que os desodorizantes masculinos – especialmente esses – são anunciados como ímanes de mulheres. A investigação bem mostra que são as mulheres as mais sensíveis aos odores. Como é que o olfacto afecta a excitação é que não tem sido sistematicamente estudado. Curiosamente há um estudo publicado no ano passado no Archives of Sexual Behaviour que sugere que o cheiro afecta, mas negativamente. Neste estudo as mulheres viram um filme pornográfico e metade farejaram um algodão com odor corporal e as outras farejaram um algodão sem qualquer odor. Parece que aquelas que cheiraram o algodão sem cheiro ficaram mais sexualmente excitadas ao ver o vídeo. Isto sugere algo de verdadeiramente fascinante: o que é natural não é tão natural assim. Esta reacção anómala à naturalidade das feromonas no sexo aponta para a nossa tendência de artificializar o sexo. Como um jogo de repressões e liberdades, no sexo já nada do que é natural é amplamente aceite ou confortável. Basta pensar nos pêlos púbicos, por exemplo. Ou até podemos continuar nos cheiros – como é que se aceita o cheiro de uma vagina? A indústria dos produtos de higiene feminina é prolífica por alguma razão.

Mesmo que queiramos insistir que existam instintos inatos no modo como a sexualidade é sentida e praticada, a forma como temos construído a sexualidade é pautada pela incapacidade de abraçarmos a naturalidade. Cheiros incluídos. Tenho cá para mim que o estudo não correu bem porque os tais algodões tinham suor do sovaco de um membro do sexo oposto completamente aleatório. Por mais que se queira activar os processos automáticos associados ao processamento do cheiro e das feromonas, a cognição provavelmente se enojou do cheiro a rato morto que aquele algodão emanava. Mas isto sou eu a conjecturar explicações para um resultado que pareceu surpreendente ao que se pensava saber sobre o sexo. Os homens não apresentaram grandes flutuações ao cheiro – talvez porque confirme a hipótese que o homem é muito mais visual do que as mulheres. Ainda não se sabe ao certo.

Não quero eu dizer que as feromonas não tenham um papel importante na nossa sexualidade. O cheiro interessa quando está dentro de um pacote de seduções e atracções. Mas esta é só a minha teoria. A atracção, por mais inata que seja, é construída de expectativas. Quando essas expectativas por quem queremos copular se alinham com um cheiro e feromonas irresistíveis, que mostram uma adequação genética incrível (seja lá o que isso for), aí é que está o tesão.

24 Abr 2019

O parto é sexo

[dropcap]C[/dropcap]ontinuando a rubrica que existem desencontros entre ter sexo e fazer bebés, há que desmistificar o parto como o simples e higienizado acto de parir. A Ina May Gaskin é uma parteira norte-americana que defende a sexualização do parto. Se o sexo trouxe a criação última, também é o sexo que nos ajuda a perceber o nosso corpo na altura de parir.

A imaginação popular mostra o parto como um momento nada gracioso. Mostra-o doloroso, difícil, de alto risco para o bebé e para a mãe. Deve ser controlado a todos os momentos. Mas há muito medo à volta do parto. Como é que uma criatura que cresceu tanto consegue sair de um canal tão pequeno? Todas vivem no horror deste desajuste. Só que este medo não ajuda ao parto em si – o parto é um jogo de hormonas, ter adrenalina no corpo só faz com que o corpo tenha vontade de fechar e fugir. Se estivessem a parir no meio da selva e aparecesse um tigre, o vosso corpo dir-vos-ia: ‘Parem tudo! O melhor é sair daqui para fora’. As hormonas precisam de ser simpáticas para o que está a acontecer. Na vida contemporânea não há o risco de um tigre aparecer, mas há outros medos que podem atrapalhar o processo.

A hormona que se quer é a oxitocina, e essa é a hormona do amor – a do sexo, se quiserem. O corpo encarregar-se-á de produzi-la naturalmente durante o parto, mas é sempre bom ter uma ajuda. Essa ajuda só virá quando o parto for visto como a continuação de uma sexualidade saudável. Por isso é que há quem defenda que este é um momento de amassos, beijos, abraços e carícias também. O alargamento vaginal ocorre naturalmente durante o sexo. Da mesma forma que o pénis se expande, a vagina também se expande. Se o parto precisa de uma boa expansão porque vai sair um bebé de uma vagina, a Ina May Gaskin sugere estimular o clitóris. Só que tornar o parto sexual com uma possível estimulação clitoriana é uma visão demasiado pornográfica para o sagrado nascimento. Uma coisa é fazer e ter um bebé, outra coisa é o sexo. A linha é ténue, mas em vez de vermos o mundo a preto e branco, as gradações de cinzento ajudam-nos a perceber mais e melhor os nossos corpos e os nossos medos.

A consciencialização do sexo no parto também apoia partos cada vez mais naturais. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, as cesarianas são eficazes na mortalidade infantil quando variam entre 10-15% dos nascimentos. Há países com valores bem mais altos que esses (Portugal e a China estão entre os 30-40 por cento). Outros procedimentos menores – como a episiotomia, um corte no períneo – são utilizados por rotina, e não quando são estritamente necessários. Por isso é que há quem pondere parir longe das paredes hospitalares e ficar em casa com uma parteira. Não porque haja negligência médica, mas porque o ambiente e o contexto hospitalar podem oferecer condições adversas para um corpo que tenta dilatar naturalmente. Para mulheres com uma gravidez de baixo risco, ficar em casa com as pessoas que ela quer por perto faz com que a recente mamã se sinta mais confortável. Espaços onde não seria alienígena uns beijos ou estimular o clitóris. Tudo isto ajuda na magia que é aumentar o colo do útero e a vagina para empurrar um bebé para o mundo.

Percebo bem como é que pode ser um choque pensar no sexo e no parto como complementares.

Romantizar o parto também não é a solução ideal. O parto é bonito com a sua sujidade e a sua estranheza. Olhá-lo como um procedimento médico parece um extremo a evitar. O processo natural para o qual o corpo passou imenso tempo a preparar-se precisa de sexo. A aceitação do sexo e da vagina – e dos seus super-poderes – fazem o parto sexual.

17 Abr 2019

Como se fazem os bebés

[dropcap]U[/dropcap]ma amiga comentou que fazer sexo e fazer bebés poderão ser encarados como actividades diferentes. Uma coisa é o sexo, outra coisa é fazer um filho. Uma coisa é ter prazer, outra coisa é criar uma família. Há momentos de intercepção também. Mas quem faz sexo porque quer um bom orgasmo, pode ser um depravado. Quem tem filhos é decente. Mas o sexo nunca desaparece dos nossos mundos de significado.

Os pais que procriam em decência, terão que encarar a dura realidade de uma criança que se tornará adolescente e adulto. É preciso falar de sexo em algum momento e de como se quer incluir o sexo na parentalidade. Falar da intimidade é um dever cívico que não se resume a uma conversa do que são pipis ou pilinhas. Nas nuances do sexo e do comportamento sexual existem conceitos confusos. Há necessidade de clarificar emoções e direitos para que certas situações deixem de ser assustadoras ou estranhas. Estes são conteúdos que vão muito além dos métodos contraceptivos que existem e de ‘como se fazem os bebés’. Os conteúdos programáticos das escolas são inflexíveis, simples e de contrastes distintos e limitados. Estes carregam também uma fraca noção do direito à auto-determinação pessoal das crianças e jovens. Como se eles não tivessem nada a dizer, como se eles não pudessem participar na conversa.

Devemos falar de intimidade, consentimento, contracepção e prazer. Mas não há fórmulas perfeitas. Só abrindo espaços seguros e sem julgamento é que é possível explorar a curiosidade natural do sexo. Julgar que se pode controlar os conteúdos sexualizados a que as crianças e jovens têm acesso é pateta. Mais vale oferecer-lhes ferramentas onde eles próprios possam dar sentido às imagens e aos conceitos. Falar sobre sexo pode ajudar, mas impõem-se certos desafios.

Primeiro porque pensar na sexualização infantil/juvenil é difícil. Há um medo premente que conversas sobre sexo motivem a iniciação sexual. Segundo, há demasiada imaturidade sexual por este mundo fora para pensar que a solução passa por simples conversas. Poucos relacionam a obrigatoriedade do sexo – para a propagação genética e perpetuação da vida familiar com o bem último da vida humana – ao prazer dos corpos nus. A parte dos bebés é pragmática, a parte do prazer é polémica. A tensão cai obrigatoriamente na premissa que o sexo fora da procriação é crime – um exemplo bem contemporâneo é o caso do Brunei onde agora o sexo homossexual e o adultério são punidos com pena de morte. Portanto – estamos preparados para falar sobre sexo?

Não. Podemos não falar sobre sexo com os mais jovens? Também não. Falamos como podemos disto de ‘como fazer bebés’ e de como não tê-los. Esticamos os conteúdos para uma conversa sobre sexo cada vez mais informativa para depois percebermos que falar sobre sexo (e género também) é agora visto pelos mais melindrados como uma escolha ideológica. Sexo não é ideologia, sexo é um facto. Este facto de consequências reais precisa de ser apresentado da forma que melhor inclui a diversidade. Porque o sexo não é só sobre fazer bebés, é sobre percebermo-nos a nós próprios e à nossa sexualidade.

10 Abr 2019

Lube

[dropcap]A[/dropcap] lubrificação vaginal não recebe a atenção merecida – assim concorda a investigação social que se debruça sobre os seus significados e representações. Surpreendentemente ou não, muito já se estudou sobre a erecção masculina e as dificuldades, pressões e ansiedades que advêm do derradeiro momento em que a pessoa detentora de um pénis exige para o coito. A lubrificação, que é uma espécie de apresentação equivalente, mas para pessoas detentoras de uma vagina, continua escondida atrás da cortina e ainda não tomou a sua forma teatral e majestosa que precisa. Mas também seria demasiado redutor equipará-la com a erecção quando, na verdade, a lubrificação vaginal existe até fora do sexo. A lubrificação existe quando se quer e não quer.

A pouca investigação que existe, contudo, aponta para a complicada relação pessoa-vagina. A dificuldade desta ligação vaginal já não é novidade para ninguém. Se continua a não ser fácil lidar com a naturalidade dos pêlos púbicos ou com o aspecto natural das nossas vulvas, a lubrificação tende a ser mecanizada e instrumentalizada (e até ignorada) para (simplesmente) ser entendida como uma forma fisiológica de estar da vagina– supostamente, sem nenhuma ligação à nossa construção e imaginação da mesma. Mas agora sabemos que a lubrificação tem muito que se lhe diga, e todos nós podemos opinar sobre ela extensivamente, só que raramente o fazemos. Um estudo publicado na Feminism & Psychology mostrou que um grupo de mulheres que representava e discutia a lubrificação com múltiplas dimensões e tensões – sim, é uma forma fisiológica de se mostrar excitação -, concluiu que esta é uma forma de ligação amorosa e sexual com o outro, uma forma de prazer e de confiança, mas também é um factor de ansiedade: porque (na imaginação das entrevistadas) é possível estar-se lubrificada de menos ou de mais. Isto é interessante porque parece que a lubrificação – como muitas outras valências da sexualidade dita feminina – está na incessante procura de um equilíbrio perfeito. A lubrificação pode ser de menos e proporcionar uma penetração vaginal dolorosa, causar fricção e dor e ter consequências na relação com o parceiro, mas também pode ser demais e parecer uma assustadora torneira a esguichar secreções vaginais.
Para acrescentar a esta dinâmica, o mesmo estudo aponta para uma responsabilização individual da ‘potencial’ anormalidade na secreção e, por isso, sugere que julgamos o processo como unilateral. Não considerando, assim, a natureza da relação com o outro e de como pode afectar a vagina e a sua acção. Sem descurar, claro, que há situações particulares como a menopausa onde é característica uma diminuição da lubrificação natural, porque há um cocktail hormonal que assim o dita. De qualquer modo, julgo que esta tensão provoca alguma reflexão de como o corpo detentor de uma vagina é frequentemente representado e sentido como o responsável pelo bem-estar sexual do próprio e do outro. Independentemente da libertação sexual que já se conquistou até agora, teorias feministas parecem concordar que nestas questões do sexo é normal as mulheres responsabilizarem-se para atingir a perfeição. Ao ponto – também uma referência deste artigo – de existir uma prática subsaariana em que mulheres propositadamente secam a sua vagina para que a penetração vaginal seja mais apertada, como a de uma virgem. Escusado será dizer que esta prática traz problemas de saúde sérios – mas é este é só um exemplo exagerado de como há um desejo de tomar controlo sobre os nossos corpos para atingir algo… que muitas vezes não se sabe muito bem o que é. A autora também reforça esta imagem (e medo) do exagero, e de como certas representações de objectos femininos são contaminados pelo medo do excesso: à gordura, à celulite, ao sangue menstrual, às expressões emocionais ou aos malfadados e supostos ‘histerismos’ de outrora. A lubrificação também não escapa a esta dinâmica. A solução é sempre comunicativa, de partilha e abertura para falar com o outro acerca de como sentimos o nosso corpo e, especialmente, de como queremos vê-lo representado.

13 Fev 2019