Tânia dos Santos Sexanálise VozesLube [dropcap]A[/dropcap] lubrificação vaginal não recebe a atenção merecida – assim concorda a investigação social que se debruça sobre os seus significados e representações. Surpreendentemente ou não, muito já se estudou sobre a erecção masculina e as dificuldades, pressões e ansiedades que advêm do derradeiro momento em que a pessoa detentora de um pénis exige para o coito. A lubrificação, que é uma espécie de apresentação equivalente, mas para pessoas detentoras de uma vagina, continua escondida atrás da cortina e ainda não tomou a sua forma teatral e majestosa que precisa. Mas também seria demasiado redutor equipará-la com a erecção quando, na verdade, a lubrificação vaginal existe até fora do sexo. A lubrificação existe quando se quer e não quer. A pouca investigação que existe, contudo, aponta para a complicada relação pessoa-vagina. A dificuldade desta ligação vaginal já não é novidade para ninguém. Se continua a não ser fácil lidar com a naturalidade dos pêlos púbicos ou com o aspecto natural das nossas vulvas, a lubrificação tende a ser mecanizada e instrumentalizada (e até ignorada) para (simplesmente) ser entendida como uma forma fisiológica de estar da vagina– supostamente, sem nenhuma ligação à nossa construção e imaginação da mesma. Mas agora sabemos que a lubrificação tem muito que se lhe diga, e todos nós podemos opinar sobre ela extensivamente, só que raramente o fazemos. Um estudo publicado na Feminism & Psychology mostrou que um grupo de mulheres que representava e discutia a lubrificação com múltiplas dimensões e tensões – sim, é uma forma fisiológica de se mostrar excitação -, concluiu que esta é uma forma de ligação amorosa e sexual com o outro, uma forma de prazer e de confiança, mas também é um factor de ansiedade: porque (na imaginação das entrevistadas) é possível estar-se lubrificada de menos ou de mais. Isto é interessante porque parece que a lubrificação – como muitas outras valências da sexualidade dita feminina – está na incessante procura de um equilíbrio perfeito. A lubrificação pode ser de menos e proporcionar uma penetração vaginal dolorosa, causar fricção e dor e ter consequências na relação com o parceiro, mas também pode ser demais e parecer uma assustadora torneira a esguichar secreções vaginais. Para acrescentar a esta dinâmica, o mesmo estudo aponta para uma responsabilização individual da ‘potencial’ anormalidade na secreção e, por isso, sugere que julgamos o processo como unilateral. Não considerando, assim, a natureza da relação com o outro e de como pode afectar a vagina e a sua acção. Sem descurar, claro, que há situações particulares como a menopausa onde é característica uma diminuição da lubrificação natural, porque há um cocktail hormonal que assim o dita. De qualquer modo, julgo que esta tensão provoca alguma reflexão de como o corpo detentor de uma vagina é frequentemente representado e sentido como o responsável pelo bem-estar sexual do próprio e do outro. Independentemente da libertação sexual que já se conquistou até agora, teorias feministas parecem concordar que nestas questões do sexo é normal as mulheres responsabilizarem-se para atingir a perfeição. Ao ponto – também uma referência deste artigo – de existir uma prática subsaariana em que mulheres propositadamente secam a sua vagina para que a penetração vaginal seja mais apertada, como a de uma virgem. Escusado será dizer que esta prática traz problemas de saúde sérios – mas é este é só um exemplo exagerado de como há um desejo de tomar controlo sobre os nossos corpos para atingir algo… que muitas vezes não se sabe muito bem o que é. A autora também reforça esta imagem (e medo) do exagero, e de como certas representações de objectos femininos são contaminados pelo medo do excesso: à gordura, à celulite, ao sangue menstrual, às expressões emocionais ou aos malfadados e supostos ‘histerismos’ de outrora. A lubrificação também não escapa a esta dinâmica. A solução é sempre comunicativa, de partilha e abertura para falar com o outro acerca de como sentimos o nosso corpo e, especialmente, de como queremos vê-lo representado.
João Romão VozesFamília, sexo e outros afazeres domésticos [dropcap]É[/dropcap] cedo, é verdade, mas ainda assim esta é a minha última crónica anterior à consoada e só estarei de volta ao Hoje Macau depois de devidamente celebrada a chegada de novo ano, pelo menos de acordo com o calendário a que nos habituámos na Europa. Não é que a quadra natalícia seja assunto especialmente relevante em para a população japonesa, de larguíssima maioria budista ou shinto (uma variante local largamente tributária do budismo mais tradicional), mas ainda assim não escapo às promoções e decorações comerciais natalícias e às respetivas musiquinhas com que se faz questão de irritar os frequentadores de cafés e espaços comerciais um pouco por todo o mundo. Por estas paragens é outra a festa em que se reúne a família, assinalada por três convenientes feriados consecutivos a meio de Agosto, ocasião para intenso tráfego turístico interno no Japão. Celebram-se os antepassados já falecidos, cujo espírito visita os familiares por estes dias. Lanternas iluminadas em templos e altares domésticos assinalam a ocasião e a mesa das refeições inclui lugares para os vivos e para os mortos de cada família. São notoriamente diferentes as relações familiares no Japão em relação ao que nos habituamos a ver em Portugal ou na Europa, por muito diversos que sejam os padrões e comportamentos nas sociedades contemporâneas. Deixo de lado as minhas impressões pessoais, necessariamente enviesadas pela circunstâncias que o acaso faz com que me rodeiem, e recorro aos resultados mais recentes (publicados em 2017) do inquérito que a Associação de Planeamento Familiar do Japão (APFJ) publica a cada dois anos, com base em milhares de entrevistas supostamente representativas da população japonesa. Escusado será dizer que este é assunto de particular importância num país com acelerado envelhecimento populacional (mais de 60.000 pessoas acima dos 100 anos) e tendência para o decréscimo da população, mesmo em áreas metropolitanas como Tóquio, que um pouco por todo o mundo tendem a concentrar uma proporção cada vez maior dos residentes. Mostram as estatísticas demográficas que nas sociedades atuais já não se verifica apenas um processo sistemático de urbanização, com deslocação crescente das áreas rurais para as urbanas, mas também um movimento cada vez mais significativo da população de pequenas cidades em direção às grandes metrópoles. Um dos resultados que mais preocupa os autores do referido estudo é a escassa atividade sexual da população japonesa, uma tendência que já se notava em inquéritos anteriores e que se vem intensificando: os dados mostram que 47% dos casais não teve relações sexuais no mês anterior à entrevista – um aumento de 2,6 pontos percentuais em relação ao inquérito anterior (publicado em 2015) e de 15,3 pontos percentuais em relação ao primeiro inquérito (publicado em 2005). Doze anos de redução “dramática” (segundo o diretor da APFJ) das práticas sexuais de uma população cujos problemas demográficos têm naturalmente importantes implicações económicas (disponibilidade de força de trabalho ou sustentabilidade da segurança social). Entre as causas desta sistemática abstinência destaca a tradicional fadiga pelo excesso de trabalho (referida por 35% dos homens) mas também uma perspectiva do casamento em que a esposa é vista como “um familiar próximo” e não como uma parceira de romance. Talvez por isso, do lado das mulheres a “inconveniência” é a causa maioritariamente apontada, referida em 22% dos casos. Na realidade, esta perspetiva do casamento – em que o homem procura uma mulher que tome conta de si e do lar, é ainda comum numa sociedade altamente patriarcal, onde é frequente as mulheres abandonarem as carreiras profissionais depois de casar, mesmo quando têm muito elevadas qualificações (só 30% das mulheres japonesas trabalham). Também não é raro encontrar homens que sentem como uma “desonra” que a mulher trabalhe, porque isso de alguma forma representa a sua incapacidade de sustentar a família. Pelo contrário, são cada vez mais frequentes os casos de mulheres que viajam sozinhas ou com os filhos, enquanto os respetivos maridos trabalham e pagam a conta. O estudo também refere que esta generalizada ausência de vida sexual não se limita a pessoas casadas: entre a população solteira com idades entre os 18 e os 34 anos, 42% dos homens e 46% das mulheres nunca tiveram relações sexuais. De resto, 40% das mulheres adultas solteiras no Japão são virgens, segundo revelam os dados do estudo. Talvez estes comportamentos sejam também o reflexo de práticas culturais profundamente enraizadas, onde o contato físico – e até visual – entre pessoas é altamente restringido (até à inexistência, na realidade). Mas estes relatórios também mostram que a tendência para uma vida assexuada tem vindo a aumentar com o tempo, não se explicando apenas pela tradição histórica. Talvez a celebração do Natal não seja uma urgência num país de fraca tradição cristã. Mas já a recuperação natalidade parece ter uma urgência crítica para a viabilidade demográfica, económica e social do país. Não será o Japão caso único, ainda assim: na realidade, Portugal é o país europeu onde a evolução demográfica mais se assemelha à japonesa. Tende então um bom Natal e procriai, se vos aprouver.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesPra lá do sexo [dropcap]S[/dropcap]exo é sexo. E há alturas que o sexo não é só sexo. Isto claramente reflecte a minha posição não binária de que a cabeça e o corpo não são duas entidades separadas. A verdade é que tudo afecta tudo, para ser assustadoramente generalista. O sexo leva com os nossos desejos, anseios, capacidades íntimas, medos e terrores. Se há gente que não vê isso talvez seja porque não lhe presta a devida atenção, porque gosto de acreditar que isto faz sentido para alguns, ou talvez para muitos. O corpo que carregamos não deve ser visto como um simples organismo biológico. A vida tem-me ensinado que corpo reage às ameaças do corpo e às da mente também. Apesar de alguma investigação apontar para a complicada relação corpo e mente, há outra que diz que não está cientificamente provado que o stress, por exemplo, afecte negativamente a saúde física. Com as dificuldades pela libertação do sexo das amarras de (tantas) sociedades até ditas progressivas, apercebo-me que a libertação sexual – como uma actividade não demonizada e de satisfação e prazer pessoal e/ou colectivo – põe em causa o que as sociedades modernas muito forçosamente querem manter: a exaltação do físico, biológico, mensurável e real em detrimento da mente, do pensamento, da sensação ou da emoção. Parece que estou a colocar isto de forma simplista para insinuar uma resposta simplista também, mas não é esse o objectivo. Não estou a defender a recusa total da procura do que é real. Se tento simplificar certas ideias é só porque quero torná-las inteligíveis. Já aqui referi como há estudos que mostram que a disfunção sexual masculina pode ser tratada com terapia, e este é só um exemplo. Esta ideia de que a mente precisa de atenção também, é de alguma forma polémica, mesmo que não seja visível. Isto porque o legado do iluminismo e da era da razão arrasou com qualquer forma mais experiencial dos fenómenos. Virámos a atenção para aquilo que é cientificamente relevante para a nossa existência – como se nos regêssemos por forças e vectores energéticos como os da Física (não sei se estarão cientes que há quem diga que a psicologia é ciência e há quem diga que não). Contudo, esta não é uma atenção descabida, principalmente nos dias que correm de ‘pós-verdade’, em que não há nada que nos valha senão a procura incessante pelos factos e pelas medições objectivas. Só que essa obsessão traz outros problemas: como é que medimos, resolvemos e compreendemos aquilo que não vemos? Será que a invisibilidade reduz-se à pura inexistência? Claro que me farto de falar do sexo e do prazer sem limites que só é atingido quando alinhamos o nosso corpo, a nossa mente, e o nosso espírito, se quiserem. Porque o sexo serve de metáfora para tudo, o sexo como produção biológica, cultural e social é uma dimensão entre muitas que nos torna absolutamente humanos. A humanidade que pressupõe aceitação, amor e tolerância, características essas impossíveis de medir com régua e esquadro. Estou a usar o sexo como pretexto para falar da saúde mental porque, na verdade, vejo mais incentivos à não-aceitação do que à aceitação. Quando queremos carregar um corpo sexual ele não precisa de ser só um corpo, precisa de disponibilidade para aceitar tudo aquilo que o sexo quer ensinar-nos. E frequentemente esbarramos com as caixinhas definidoras do que é aceitável. Ai os pêlos, ai as celulites, ai as vulvas, ai os pénis, ai as expectativas heteronormativas. Não precisamos só de um corpo – precisamos de coragem para mostrar um corpo. Precisamos de coragem para abrir a possibilidade de criar e ser intimidade. Já que foi o dia da saúde mental e eu não opinei atempadamente, aqui vai tardiamente. O sexo já foi a cura dos males neuróticos mas também pode ser a causa e processo dos mesmos males. Já que o sexo nos despe, literal e simbolicamente, só espero que comece a ser óbvia a ligação que o nosso corpo precisa de prazer, e a nossa profundidade psicológica também. O sexo é só mais um pretexto, entre muitos, para escrever e reflectir acerca da saúde mental e do bem que nos fazia se tivéssemos mais espaço para cuidar do nosso íntimo ser.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBruxas [dropcap]J[/dropcap]á que foi Halloween – isto é, em belo português, o dia das bruxas – não há nada como falar destas criaturas (míticas?) do imaginário ocidental. Quem são elas, onde estão e o que fazem? Teorias não faltam. A teoria feminista tem sido particularmente prolífica na compreensão do desenvolvimento desta imagem da bruxa, que é feia, tem uma verruga no nariz, e usa um chapéu pontiagudo. Como é que se diz? ‘A chover e a fazer sol, estão as bruxas no farol a comer pão mole’? Dei de caras com esta imagem da bruxa, primeiro, porque o dia das bruxas foi na semana passada e, segundo, porque há quem defenda que a bruxa tem muito que se lhe diga ao feminismo e ao sexo. É possível que caça às bruxas tenha acontecido pela não aceitação da emancipação feminina naqueles tempos sombrios. Parece confuso, até porque ninguém falava de emancipação das mulheres nessa altura, mas há quem ache, as ditas feministas ‘radicais’ de hoje em dia, que a bruxa representava a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que se atrevia a viver sozinha, a mulher que envenenava o patrão e incitava a revolta, que era parteira, que percebia dos meandros do sexo. Nada disto era desejável à figura feminina da época (também não acho que seja agora). Na altura muitas mulheres (e homens também) foram queimados na fogueira acusados de bruxaria. Não se sabe ao certo quantas pessoas poderão ter morrido durante três séculos, mas há várias estimativas: há quem diga 40.000, há quem diga 200.000. Vem-me automaticamente à cabeça a imagem de pessoas enfurecidas com tochas em fogo na calada da noite à procura de quem culpabilizar os males do mundo. A ‘caça às bruxas’ é sempre utilizada como o exemplo perfeito de histeria em massa. O movimento #metoo já foi acusado de ser uma caça às bruxas, neste caso, aos bruxos da misoginia – mas isso não interessa nada para aqui. Naqueles tempos sombrios as mulheres era consideradas mais fracas e susceptíveis à persuasão diabólica. Muitas das mulheres acusadas de bruxaria eram pobres, velhas e viúvas, na menopausa ou no pós-menopausa. Contudo, as bruxas surgem e surgiram de muitas formas e feitios, e por mais que se considere ‘radical’ o feminismo que tenta perceber que contornos esta caça as bruxas teve, as bruxas não deixam de ser uma questão bastante feminina. E parece que todos nós, uns mais do que outros, temos que lidar com a bruxa que existe. A psicologia do Jung analisa extensivamente o arquétipo da bruxa como a necessidade intrínseca de transgressão – que é socialmente vista como perigosa, malévola e indesejável. A bruxa, que é equiparada com a puta interior, vive à margem da sociedade, e – em vez de ser fruto do que quer seja que vivemos ou possuímos na nossa genética – é um produto civilizacional. Conseguiremos ir além da dicotomia da princesa e da bruxa das histórias de encantar e das mitologias? Como é que nos faz bem, a homens e mulheres de igual forma, incorporar os valores e fantasias das bruxinhas que outrora, e hoje, tememos tanto? A nossa bruxa, embora difícil de entender, é bastante normal. O problema é que a sexualidade, a perversão, e a diabolização do sexo que compete à bruxa incorporar, precisa de um espaço de compreensão. Mas quem é que tem coragem de dançar com a bruxa, e com o seu lado destrutivo e negro? Só aquelas e aqueles que têm a coragem de aceitar o maior desafio humano. Aprender a tocar, e a ritmicamente mexer com aquilo que mais nos aflige e nos assusta porque sabemos (ou pelo menos devíamos saber) que a bruxa não é nada mais do que um bocadinho de nós próprios.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasOs furacões não fazem sexo por amor [dropcap]O[/dropcap]s furacões não fazem sexo por amor, é verdade. Galgam fronteiras, assediam, penetram pelas calvas mais cândidas da natureza e nunca se aprestam a comer sushi para comemorar seja o que for. São maus como as cobras e transtornam os senhores que trabalham nas televisões. Perdoe-se-me a generalidade, já que a menção visa apenas aqueles vultos que as redacções colocam nas marginais a matutar rajadas e que depois se tornam em verdadeiras pás de moinho que chagam a franja aos nervos, de ponta a ponta. Cabelos hasteados pela ventania, as lentes dos óculos a imitar vigias de submarino, a roupa já a refogar e a voz, ah a voz, verdadeiramente em estado de pitonisa, a tremeluzir as cordas vocais e a esbravejar ao jeito dos grilos antes de serem esmagados por polegar de aço. Estes pobres repórteres, convocados para um acto tão nobre, acabam como que possuídos pela bernarda e não há interferência que lhes distraia a ‘palavra certa’ e o apetite abrasivo e vulcânico. Aristóteles bem avisou há 25 séculos que a voz é “todo e qualquer som” que “é produzido pelo choque”. O choque já mareava, como se vê, na cabeça dos clássicos. Mais, escrevia o filósofo: “A voz implica que o ar da artéria-traqueia seja, devido ao ar inspirado, agitado contra as paredes daquela. A prova do que afirmámos reside no facto de apenas ser possível emitir voz quando se retém a respiração, e nunca quando se inspira ou expira, já que unicamente podem os seus respectivos movimentos ser produzidos devido ao ar se encontrar retido desta maneira. Sendo assim, é evidente a razão pela qual são os peixes afónicos”(1). O que Aristóteles nunca pôde observar e analisar foi estas efígies a reportarem furacões, de frente para a crista das vagas, com a areia a chegar-lhes às brânquias e rapidamente a transmudarem-se em carpas e depois em tubarões tipo macilento, lívido, escaveirado. Qual afónicos, qual quê! Estes descendentes dos antigos locutores que abriram a caixinha das imagens no tempo de James Dean são hoje salamandras anfíbias que entram em transe nos directos. Com o microfone numa mão e a outra a fazer de quebra-mar, eles aprenderam nas universidades a procriar um tipo de excitação que resiste aos ansiolíticos mais fortes. Uma boa parte da formação teve e tem ainda como base a leitura de textos medievais em que as batalhas eram descritas com o justo exagero (os taxistas mais velhotes que detestam a uber chamam-lhe “hipérboles”). Alguns exemplos: “Haverá entre eles uma grande batalha, daí que o sangue chegará até à porta do moinho”, “…e farão uma grande batalha, de tal maneira que o cavalo branco não será reconhecido, devido ao sangue que se derramará entre eles…” ou ainda “E será tão grande e tanto o sangue que se derramará perto da fonte do ferro, que chegará até às cinturas dos cavalos, o que será penoso de ver”(2). Nas pós-graduações, depois de longo estágio nas futeboladas, a excitação é treinada com descidas a pique pela Boca do Inferno em que o mestrando se agarra à albarda de um burro sem usar luvas, pois o mesmo fizeram Fernando Pessoa e Aleister Crowley sem nada dizerem a ninguém. E o resultado, aliás brilhante, ficou para a história com H grande. Exemplos como este conduzem os futuros locutores (variante pás-de-moinho-em-tempo-de-tufão) a compreenderem quão mística é a aprendizagem de um conceito como o de “tempo real”. Geralmente é já na dissertação final que esta divindade da comunicação contemporânea – o “tempo real” – é desvelada. ‘Chegados aos finalmentes’, logo a seguir às praxes, repetem em uníssono o juramento de Hermes que preconiza que o atrito espácio-temporal próprio da matéria abrirá um dia as portas à televiagem: a trasladação imaterial para qualquer sítio em tempo real. Ou seja: passar da velocidade da notícia à instantaneidade pura, questão obviamente adâmica para os nervos mais espevitados. Enquanto tal não acontece, os novos repórteres exercitam esse salto ainda improvável e, por isso, face a furacões como o Leslie, deixam a voz entrar em estado (aristotélico) de choque e permitem ao corpo que se desmembre num sururu instantâneo. Os espectadores adoram, as audiências disparam e a catarse entumesce os espíritos. Mais cedo ou mais tarde, aparecerão ao lado da irmã do Ronaldo a matutar rajadas numa dessas revistas celestiais que todos conhecemos. E o personal coach gritar-lhes-á na curva do antigo Mónaco: “flecte, insiste. Flecte, insiste. Flecte, insiste”. Mnemósine, filha do céu e da terra, guardiã da memória e mãe de todas as musas (que sabem, há muito, que os furacões não fazem sexo por amor), não teria feito melhor. 1. Da Alma (De Anima), Org., introdução e tradução: Humberto Gomes, Carlos; Edições 70, Lisboa, 2001, p,76 2. Sánchez Alvarez, Mercedes, El Manuscrito misceláneo 774 de la Biblioteca Nacional de París, Gredos, Madrid, 1982 (fólios citados: 284r/284v, 285r/285v e 300r).
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA educação sentimental [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro objecto que recordo é um avião de lata. O primeiro toque de que me lembro não é o de uma pele mas o da lata. Havia intrusa em casa, reclamada de mão em mão, armada de fraldas, pulmões, vagidos de aço e com regurgitos múltiplos. A minha irmã. Levei dias a lançar o avião de lata sobre o berço, num pretenso bombardeio. E não é que falhei, na mira e na aviação? Aos cinco anos, apanhando a minha avó a urinar de porta aberta, eu, no corredor, fiz o pino para ver se lhe via o… O quê, espicaçou uma vez o Piruças. O ouriço, respondi-lhe pronto. Aos seis anos tive o primeiro sonho erótico e percebi que me marimbava para o Édipo. Caminhava de mãos dadas com uma miúda ao longo de um socalco estreito, a meio de uma falésia ilimitada para cima e inacabável para baixo. O dia nascia, e cheirava a acetona. Andávamos aos espargos e sorríamos com a lâmina do caminho, no leve tremor dos afortunados. Aos nove, à nonagésima oitava vez em que me masturbei, cismei que uma coisa tão boa só podia acontecer cem vezes na vida. Guardei as duas últimas para quando casasse. Aguentei-me três semanas, num desespero, até que me enfiei na casa de banho e meia hora depois ia na cento e quatro, enquanto a minha mãe perguntava, Caíste da pia? Entrava-se na oficina por uma rampa. Aí, dois homens deitaram a primeira chapa de alumínio, com círculos perfeitos desenhados de alto a baixo; tendo-me depois um deles passado a tesoura para a mão. Eram para cima de 50 círculos, sem espinhas. Tinha doze anos e tinha querido experimentar ser operário, numa serralharia. Fiquei surpreendido pela facilidade com que a tesoura cortava o alumínio. E animei-me. Apesar do segundo círculo me ter parecido mais bicudo. Mas continuei a sorrir até ao sétimo círculo. Ao almoço, o encarregado despediu-me com uma palmada nas costas, amarfanhando-me uma nota de vinte na mão. “É uma foda, mas talvez nunca venhas a ser operário, rapaz!”. E ofereceu-me um dos quadrados de alumínio que tão arduamente recortara. Aprendi aí a ambivalência da linguagem. Os manos Ginga moravam ao lado dos meus tios-avós, na Azinhaga dos Besouros, na Pontinha. Três compinchas de Verão com uma pontinha de queques (os primeiros humanos que conheci atascados em polos e pulôveres) mas que não regateavam palmilhar o extenso vale de zínias e girassóis que nos separava da colina onde se empoleirava, clandestina, a Brandoa. Uma tarde, nesse vale, a meio de um canavial descobrimos uma conduta de esgotos, relativamente seca e com tamanho suficiente para avançarmos agachados em fila indiana até misteriosos meandros. A conduta atravessava à Colina da Luz e desembocava num canal de drenagem, mesmo ao lado de uma boutique para senhora onde trabalhavam dois mimos de raparigas que inquietaram os nossos plácidos sonhos de Verão. Foi a conduta que me levou ao primeiro beijo. Veio o 25 de Abril e os irmãos Ginga puseram-se ao fresco: o pai era da Pide. Acordei tarde para os primeiros mortos, aos quinze anos. Já tinha visto amigos meus fecharem a cancela sobre o rosto e um deles, gémeo do falecido, cortou os pulsos. Nada me calhava, uma infância feliz, capciosa, sem fios de prumo. Primeiro, uma avó, duma leucemia que apenas lhe carregou nos olhos a sombra chinesa que fora a sua vida. Depois o luto da namorada que me corneou. Eu tinha-a acariciado a tarde inteira de sábado por cima dos collants. No domingo ela foi a uma festa com uma amiga onde um marmanjo a massajou por dentro. Decidi vingar-me. Não fui um libertino, mas não me queixo. Um dia engatou-me uma miúda no Estádio, ao Bairro Alto. Já estava aviadita mas, em casa, emborcou uma zurrapa de litro quase de um gole, empurrou-me para a cama e pediu bate-me. E eu lá fui fazendo muito pouco conforme o que podia. Na manhã seguinte foi franca: fora uma noite desenxabida pois, justificava-se, com o antigo namorado jogavam à roleta russa durante o coito. Retirei-me, desejando-lhe “boa sorte e bons danos!”. E bom, mortifiquei de enfado uma dúzia de namoradas, quatro esposas, desiludi meia dúzia de amantes em encontros ocasionais e, no afã de me re-ligar aos libertinos, escrevi uma versão de Don Juan, um Don Juan cego que chegava às mil conquistas, até que em Sevilha o Papa fazia o primeiro milagre do seu pontifício e punha-o a ver. E ele perdia o dom, baratinado pela diferença que pela primeira vez descobria entre as mulheres. Há vinte e dois anos encontrei a minha mulher actual. Farto-me de a trair, com as personagens femininas dos livros que leio, ou com as que escrevo. E mais não posso contar. Dizem porém que as personagens femininas dos meus livros são mais fortes que os meus homens: é porque as conheço biblicamente. Contudo, nunca até hoje me tinha acontecido uma coisa tão grave. Bebia uma cerveja no Mimmos, em Maputo, e vejo uma miúda expressiva, loquaz, com uma sensualidade exultante. Conversa divertidíssima com o namorado e vejo com raiva que não o invejo, renuncio a atrair um meteorito que lhe caia em cima neste momento, não desejo estar no seu lugar; apanho-me mesmo a pensar no quanto gostaria que ela fosse minha filha e no prazer que me daria tê-la ajudado a tornar-se no que é. Deve ser isto a maldita maturidade, já não me deprime conceder que a minha apropriação do mundo não tenha de passar primeiro pelo sexo. E, afinal, pedi para ser maduro, eu? Não me consola o desabafo do cineasta Luís Buñuel, ao chegar aos sessenta: “finalmente, vou libertar-me da tirania do sexo!”. Francamente, meu caro Buñuel, envergonha-te: não passamos de duas bestas desemparelhadas da sã genealogia dos ursos, dois moles que preferem o desejo e a sedução ao estupro.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSobre o medo, a violação e o Nobel [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stou honestamente cansada. Estou cansada de ver o mundo nos meus olhos de mulher, que podiam ser uns olhos quaisquer. Cansada da forma leviana como se nomeiam putas. Cansada de tocar a cassete, rebobinar e tocar a cassete de novo. Cansada de ter medo que este mundo esteja a trnasformar-se de forma dramática e que a humanidade que outrora julgava garantida, é afinal altamente contestada. E este cansaço destrói o espírito, o desejo ou a esperança. Pelo menos destrói-me um pouquinho de cada vez. Nem o Nobel pela Paz me trouxe conforto. Mas eu admito a culpa, como já admiti antes. Admito a minha pouca tolerância em perceber como é que as mulheres são sempre as culpadas e manipuladoras em casos de violação, como é que a cultura do estupro é banalizada, de como discursos machistas, homofóbicos e racistas são apoiados pelas massas. A culpa também é minha, mas não entendo se foi a minha inactividade política ou a minha rejeição ideológica. Não é uma dificuldade particularmente minha, leia-se, as comunidades intelectuais foram apanhadas de surpresa também. Aquelas elites que passam o tempo a pensar nestas coisas estão na dúvida sobre o que é que está a correr mal neste mundo. A primeira assumpção é de que a ignorância impera. Ignorância face aos factos e a ausência de uma educação formal acerca de como funciona a sociedade, a política ou o sexo! – não estava a brincar quando escrevi na semana passada que o que falta é mais e melhor educação sexual e de género nas instituições formais de educação e não só – mas o problema do argumento ‘falta de educação’ é que é condescendente. E quem é que gosta de condescendência? Ninguém, porque assim que alguém assume a ignorância do outro, mais cedo ou mais tarde este outro levanta as garras de raiva e contestação. Porque as pessoas têm egos. Mesmo para aqueles que adoram discutir, discutem para quê? Para descobrir quem é que tem razão, e ninguém quer ser aquele que é o estúpido que não sabe nada. Isto é um problema que afecta todas as partes. Se há coisa que a bela da internet trouxe foi a possibilidade de ter acesso a informação – mas há quem tenha estragado isso também. A segunda assumpção é de que as pessoas são machistas, violentas e isentas de um pingo de humanidade. Ninguém gosta de ser chamado uma coisa tão verdadeiramente feia. Cada um de nós protege-se da melhor forma que podemos, e se isso implica ter que reconstruir as nossas realidades colectivamente para que assim sejam, não vejo melhor justificação para o pensamento construtivista – e com isto eu não quero dizer que estamos deliberadamente a criar mundos paralelos. O que acontece é que cada um de nós vive nas nossas bolhas, vivemos na ilusão de que, por exemplo, a violação é categoricamente definida de vítimas e violadores de características particulares. Vivemos na ilusão que os conceitos são universalmente definidos mas não o são. Depois deparo-me com o choque que é um acordão judicial português de ‘sedução mútua’ num caso de violação, toda a história do ‘quarto de Las Vegas’ ou o candidato a Presidente que diz que os homossexuais são resultado de ‘falta de porrada’. Se calhar não sair da minha bolha é minha responsabilidade, se calhar não ter saído da bolha não me preparou para estas notícias destruidoras de espírito, não sair da bolha torna-me incapaz de perceber verdadeiramente o que se passa. A Nadia Murad e o Denis Mukwege ganharam o nobel da paz pelo seu trabalho na sensibilização, prevenção e reparação da violência sexual em contexto de guerra. Por isso como vêem, nem tudo é terrível. Só é desafiante ser um idealista nos dias que correm.
Tânia dos Santos Sexanálise Vozes#elenão [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]le – não. Não é um ele qualquer, é um ele muito particular do contexto brasileiro. Um tal de Bolsonaro candidato à presidência. Pois, ele não. Dia 29 de Setembro várias mulheres (e homens) juntaram-se para reclamar que não o querem. Porque segundo certas pessoas ele é homofóbico, machista e racista. O movimento #elenão, liderado pelo grupo de mulheres contra Bolsonaro, ecoou pelas ruas no último sábado em, pelo menos, 18 capitais de estado, outras 65 cidades no Brasil, e também em Portugal. Mas existe uma oposição também, que não é de admirar. O #elenão tem um #elesim ou um #mulherescombolsonaro de resposta. A guerra política também é digital. Há ataques por hackers, há ondas de popularidade que tentam ser travadas, há trolls da internet a causar reboliço na secção de comentários, de posts, de videos, de artigos do jornal. Estão todos em pé de guerra porque uma secção da população o acha absolutamente desadequado para o papel de Presidente, e uma outra secção acho que aquilo que poderia ser desadequado, não o é de todo. Até o Stephen Fry já veio à comunicação social pedir que os brasileiros ponderem muito bem os seus candidatos nas presidenciais que se avizinham. Entrevistou Bolsonaro em 2011 a propósito do esforço do dito em não permitir que passassem uma legislação referente à educação para o género e orientação sexual nas escolas. Este era um pacote, um ‘kit gay’ como eles lhe chamavam, para contribuir para a prevenção da homofobia e a violência associada, nas camadas mais jovens. O ‘gringo’ do Fry teve dos momentos mais estranhos de sempre porque não é fácil falar com um homofóbico que não se considera homofóbico. Sendo ele homossexual, ainda mais estranho ficou quando o Bolsorano diz que o que é preciso é uma marcha do orgulho heterossexual e que ele não seria convidado! O que uma secção do Brasil julga é que este candidato traz resoluções simples para temas complicados, como o de tentar resolver o assustador aumento da criminalidade no país armando civis. E isso fá-lo popular, isso e não só, porque ele fala ‘francamente’ sobre temas que uma secção da população sempre quis discutir mas sentia que o ‘politicamente correcto’ esquerdista não lhes permitia. O pôr em causa um kit gay nas escolas, é um dos exemplos. Em vez de fornecer mais e melhor informação sobre a diversidade sexual, muitos julgavam que esta era uma estratégia de ‘recrutamento’ sexual para tornar as crianças tão naturalmente hetero e cisgénero em homossexuais. Essa secção do país encontrou o seu representante, que diz coisas polémicas e duvidosas, em plena esfera pública, e que acha que educação sexual inclusiva está a produzir homossexuais. Fantástico. Há boas hipóteses que ele possa tornar-se no próximo Presidente do Brasil – e digam-me lá se tudo isto não vos faz sentir um grandessíssimo déjà vu? A pergunta que permanece sempre – sempre – é quem é que vota nestas criaturas que parece que só disparam um discurso de ódio, violência e exclusão? Como (e porquê) é que a democracia se torna perigosa para si própria? A pergunta mantém-se mais pertinente do que nunca. E se a solução fosse uma boa educação para o sexo? Leram bem. Vou atirar agora com uma proposta fantasiosa a partir do testemunho de um ex-republicano norte-americano que agora virou democrata. Eu perguntei-lhe o que tinha acontecido para virar a moeda. Moeda esta bem delimitada nas suas caixinhas políticas – e ele disse-me que foi uma aula sobre género e sexualidade na faculdade. Isto não é fabuloso? O pessoal tem medo do sexo e das suas variâncias porque o sexo é transformador! Porque obriga a descobrirmos coisas sobre os nossos corpos, as nossas relações e sobre como vemos o mundo, e tudo isto é inerentemente político. Um ex-republicano que nos dias que correm poderia muito bem ter votado Trump não o fez porque aprendeu o sexo na Universidade. O sexo intelectual, o pensante, ou o reflexivo. Vou continuar a ter esperança de que o sexo saudável é o que vai mudar o nosso mundo. #elenão
Tânia dos Santos Sexanálise VozesRiso do sexo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] comédia é um veículo informativo. Já em português se diz que ‘a brincar, a brincar é que se dizem as verdades’ e não deixa de ser aqueles dizeres populares que não são ridículos de todo. Há teses académicas que provam que os temas difíceis são acompanhados de gargalhadas. Alguém se lembra da risota que era, dentro da sala de aula, quando se falava do aparelho reprodutor? Não vou falar de qualquer tipo de riso, mas do riso profissional, e nem é da comédia na sua generalidade, mas gostaria de vos falar da Hannah Gadsby e do seu último espectáculo de stand-up comedy. Para quem está familiarizado com os recantos da internet com facilidade encontrará a gravação desta performance, que se chama Nanette. Neste exercício de comédia a única voz que se ouve é a de Hannah, uma mulher lésbica que não está muito preocupada em mostrar-se particularmente feminina. Esta é uma mulher que já sofreu na pele a homofobia generalizada e internalizada nas nossas sociedades contemporâneas e, através destas experiências de violência e de incompreensão dos outros à sua volta, faz comédia. Porque a brincar a brincar é que se confessam a pior das verdades sobre nós e os outros. Não quero destruir a experiência de quem tenciona ouvi-la de viva voz neste espectáculo – que se ainda não o disse, recomendo vivamente! -, mas ela vai mais longe do que gozar com ela própria e com a sua experiência, ela põe em causa a experiência da comédia: dos artistas às suas audiências. Se o riso serve para libertar a nossa tensão e dificuldades, será que o faz de forma saudável? Será que uma mulher lésbica que conta as suas experiências (muitas delas traumáticas) num tom jocoso, revela que estão resolvidas? E a audiência, continuará a perceber a gravidade do preconceito diário de quem não se conforma com uma ‘dita’ norma? Por isso este espectáculo não é só um desabafo de como as sociedades falham continuamente na tentativa de igualdade ou liberdade de expressão de género e de sexo. A comédia urge em ser repensada, na forma como os artistas e as suas audiências dão sentido às suas vidas sexuais, e à, infelizmente, violência que muitas destas gentes estão sujeitas. Qual é, afinal, o papel do riso? Uma forma fácil de lidarmos com o nosso desconforto? Uma forma de entretenimento? Sem dúvida que é uma arte, mas como em tudo o que nós, seres sociais, tocamos, será que é crítica e politicamente suficiente? Este é um espectáculo de comédia, uma reflexão e uma zanga com o mundo. Todas as palavras proferidas são feitas com a maior honestidade, e isso é raro de se ver. Honestidade, humanidade, e uma pinta de humildade! É por isso que este é um espetáculo estrondoso, porque é engraçado, intelectualmente bem construído, e brutalmente honesto. E não sei se isto tudo foi deliberado para ser um sucesso ou não, mas a verdade é que a conclusão da tão bem construída verborreia da Hannah, é de parar de fazer comédia. Partilho com ela a preocupação do que fazemos com as palavras, e o que fazemos com o nosso gozo ou o riso. Não que ela tenha uma conclusão brilhante de como será a melhor forma de falar acerca dos homens que a violaram, ou da homofobia que lhe valeu bofetadas com negras e dores por todo o corpo. Mas ela, com toda a sua honestidade, sabe que gozar com isso não está a fazer-lhe bem, e também sabe que não é sua intenção, gerar um ciclo de ódio que junte as massas. O ódio (e dor) que sente são resultado da experiência pessoal nesta infeliz sociedade. O que é claro para ela é que quer ressoar a quem lhes faz sentido, e a quem não faz também, mas não quer ser um veículo para um movimento de ódio partilhado. Porque o ódio não precisa de mais ódio para ser resolvido, precisa de gargalhadas, claro. Mas no mundo complicado em que vivemos, nem sabemos o que uma ‘boa’ e inofensiva gargalhada poderá ser. A Hannah Gadsby, uma especialista do riso, deixou de o saber.
Sofia Margarida Mota Manchete SociedadeDSEJ | Subdirectora adverte menores sobre a possibilidade de sexo dar prisão A subdirectora dos Serviços de Educação e Juventude continua a proferir declarações polémicas. Leong Vai Kei falou a menores de idade da imputabilidade de crimes sexuais, mesmo em relações consentidas. O jurista António Katchi considera as afirmações da subdirectora “incorrectas” [dropcap style=’circle’]L[/dropcap] eong Vai Kei, subdirectora dos Serviços de Educação e Juventude (DSEJ) , defendeu na sexta-feira que as escolas têm a obrigação de advertir os alunos, mesmo que sejam menores de idade, para a possibilidade de se cometerem crimes se tiverem relações sexuais, ainda que consentidas. “Em Macau, os jovens de 16 anos podem ser responsabilizados criminalmente. Portanto, temos de ensinar aos nossos alunos a responsabilidade legal se tiverem sexo, seja consentido ou não. Independentemente disso, têm responsabilidade legal [e] podem ir para a prisão”, afirmou Leong Vai Kei. Questionada sobre o que sucede, por exemplo, se estiver em causa uma situação em que dois jovens de 15 anos mantém relações sexuais consentidas, Leong Vai Kei respondeu: “Eu não sei se vão os dois para a prisão mas, enquanto educadores, temos de transmitir aos nossos alunos as suas responsabilidades”. No entanto, a posição da subdirectora não tem cabimento legal, como explicou o jurista António Katchi na passada sexta-feira, em entrevista no telejornal da TDM. “Completamente incorrecto” disse o jurista, até porque “nem faz sentido”. “A partir dos 16 anos, quem praticar um facto ilícito, qualificado pela lei como crime considera-se imputável”, começou por explicar. Ou seja, aos 16 anos as pessoas são consideradas criminalmente responsáveis. Mas o crime, quando se trata de uma relação sexual entre duas pessoas maiores de 16 anos, só acontece no caso de não ser uma relação consentida, como num caso de violação, pelo que “para este crime, como para qualquer outro, só é imputável quem tiver pelo menos 16 anos”, explicou o jurista. Quanto aos jovens menores de 16 anos, mesmo que pratiquem um acto que a lei defina como crime, são inimputáveis, logo não são punidos. No entanto, António Katchi adverte que a subdirectora não falou de violação. “Quando se trata de uma relação em que haja consentimento, e vamos pressupor que este consentimento é livre e esclarecido, ou seja, a pessoa não consentiu por estar intoxicada por exemplo, não há violação. Os menores de 16 No entanto, podem existir outro tipo de crimes com adolescentes entre os 14 e 15 anos, “mas não exactamente nos termos em que ela [Leong Vai Kei] se refere a este assunto”, diz. Neste sentido, há que distinguir duas situações: se estão em causa relações sexuais com um menor de 14 anos ou entre os 14 e os 15 anos de idade. No primeiro caso, “qualquer outra pessoa [maior de 16] que tenha relação com ela [menor de 14], estaria a praticar um facto que, nos termos da lei, seria qualificável como abuso sexual de crianças. Mas “se ambas tiverem menos de 14 anos são inimputáveis e obviamente que não respondem criminalmente. O mesmo se passa se ambas foram menores de 16 anos”, ou seja, com 14 e 15 anos”, refere. Aos maiores de 16 anos pode ser aplicada pena de prisão, no entanto os menores, apesar de inimputáveis criminalmente, podem ser alvo de outros tipos de medidas. “Ao dizer que as crianças em causa não podem ser punidas, refiro-me apenas à aplicação de sanções penais, “máxime” a prisão, pois era esse o “fantasma” agitado pela sudirectora da DSEJ. Mas existe ainda o regime tutelar educativo dos jovens infractores, que oferece uma alternativa de reeducação em lugar da punição”, esclarece o jurista ao HM. Pontos no is De forma a ilustrar os contornos legais que escaparam à subdirectora da DSEJ, António Katchi exemplifica. “Vamos supor que uma pessoa tinha 16 anos e a outra tinha 13, como uma das pessoas já é criminalmente responsável, logo imputável, “responderia pelo crime de abuso sexual de crianças porque a outra teria menos de 14”. Há ainda a situação em que nenhum dos envolvidos é menor de 14 anos e em que ambos têm 14 ou 15 anos. Aqui “nenhuma delas responde criminalmente porque são inimputáveis”, aponta. No entanto, “na pior das hipóteses” estes jovens podem ser sujeitos ao regime tutelar educativo dos jovens infractores, “um desfecho legalmente permitido, nunca a pena de prisão, como afirmou a subdirectora da DSEJ”, reitera o jurista ao HM. “Mas esta solução só seria admissível se um dos jovens abusasse da inexperiência do outro (isto, na hipótese de o outro também ter 15 anos, porque, se tivesse menos de 14, o primeiro poderia ser sujeito ao regime tutelar educativo dos jovens infractores independentemente de ter abusado da inexperiência do outro)”, acrescenta. O abuso de inexperiência está previsto legalmente para este tipo de casos em que “a lei já não atenta apenas na idade mas também na experiência e exige que haja abuso de inexperiência para preencher este tipo legal de crime”, esclarece. Atentando às declarações de Leong Vai Kei, acrescenta António Katchi, a partir dos 16 anos já nem se aplicam estas regras, à excepção do caso de violação, em que a relação sexual não é consentida. Para o jurista e professor universitário, também não cabe aos serviços de educação ditarem a idade a partir da qual os jovens podem ou não ter relações sexuais. “[A DSEJ] pode dar as informações necessárias sobre o que diz a lei e aí convém dar as informações correctas. Quanto ao resto pode dizer que os professores vão ensinar aquilo que seja correcto do ponto de vista científico ou pedagógico. Mas, evidentemente, que não cabe à DSEJ, como organismo público, estar a ditar regras morais”, remata. O tema foi abordado com a subdirectora da DSEJ num encontro com os meios de comunicação social em língua portuguesa, depois de Leong Vai Kei ter afirmado que a DSEJ não recomenda o sexo antes do casamento, cuja idade legal é aos 18 anos. Problema de expressão Nenhum aluno é encaminhado para diagnóstico clínico por causa da sua orientação sexual. A garantia foi dada na sexta-feira por Leong Vai Kei, num encontro exclusivo com os meios de comunicação social em língua portuguesa para esclarecer mal-entendidos gerados pelas declarações que proferiu recentemente sobre a homossexualidade. “Penso que houve uma falha de interpretação da minha parte. Eu estava a pensar em disforia do género [quando falei no diagnóstico clínico]. Cometi um erro nas minhas declarações. Peço desculpa por ter causado esse mal-entendido”, afirmou Leong Vai Kei. “O meu ponto é: se [a perturbação de] um estudante, por causa de ansiedade, insónia ou alterações no apetite, ou talvez por pensar que está a ser alvo de discriminação chegar a um nível em que realmente afecta os estudos, o sono, o apetite, a comunicação com os colegas e a relação com a família então acho que isso é muito importante. Se chegar a um ponto em que os nossos agentes de aconselhamento não conseguem lidar, então talvez precisemos de ajuda profissional como de psicólogos clínicos”, explicou a ‘número dois’ da DSEJ. A disforia de género, anteriormente designada de transtorno de identidade de género, tem lugar quando a identidade sexual ou de género se encontra em contradição e conflito com o sexo biológico e genético, gerando uma manifesta insatisfação e inconformidade com a anatomia sexual de nascimento e o papel social que dela se espera. A mesma responsável ressalvou, porém, que o facto de um aluno ser encaminhado para diagnóstico clínico “não significa que tem uma doença”: “Se tiver obstáculos na aprendizagem, por exemplo, enviamo-lo para diagnóstico clínico para ver qual é a sua necessidade real para procurar dar-lhe o melhor serviço”. Os agentes de aconselhamento escolares têm como missão prestar apoio aos alunos, encaminhando os casos para profissionais quando ultrapassam o seu raio de acção, como para um médico se em causa estiverem eventuais problemas de saúde, insistiu. No ano lectivo de 2017/2018 existiam 220 agentes de aconselhamento (116 psicólogos e 104 assistentes sociais) de um total de nove instituições subsidiadas pela DSEJ. Segundo Leong Vai Kei, 13 estudantes procuraram voluntariamente aconselhamento devido a distúrbios emocionais relacionados com questões sexuais, ou seja, mais um do que no ano lectivo 2016/2017. A subdirectora da DSEJ sublinhou ainda que o organismo promove valores como o amor e o respeito pelo outro, garantindo desconhecer a existência de um problema de discriminação nas escolas: “Ajudamos os alunos a não discriminarem ninguém, seja por causa do género, da aparência ou da inteligência. Toda a gente é única”. “Trabalhamos mesmo muito para ajudar os estudantes a aceitarem-se e a amarem-se uns aos outros sem discriminação. Penso que Macau é um sítio onde vivemos em harmonia”, complementou. “Não vamos mudar o estudante [se ele for homossexual]. Sabemos que isto é algo que não podemos mudar. É quem a pessoa é. É muito óbvio no nosso currículo e na educação sexual que não há discriminação”, realçou a Leong Vai Kei. Segundo dados facultados na mesma conferência de imprensa pelo director do Centro de Educação Moral da DSEJ, Chan Ngai Hong, esses valores são incutidos nomeadamente através de materiais didácticos para todos os níveis de escolaridade, adoptados por um universo de 70 escolas. Ou seja, sensivelmente 90 por cento, existindo no caso do ensino secundário complementar “um tema sobre a homossexualidade”. Muito novos para discernir A subdirectora da DSEJ manteve, porém, a ideia de que os alunos em idade escolar não têm faculdades para discernir se são ou não homossexuais. “Estamos a falar de estudantes. Se um aluno de 12, 13 ou 15 anos diz que é homossexual não acredito que realmente signifique que seja. O estudante está numa fase de desenvolvimento, está à procura da sua identidade. Não apenas género, mas tudo. Todos em algum momento fomos adolescentes. Quando crescemos, abrimos os olhos e o horizonte, sabemos mais sobre nós”, apontou. Leong Vai Kei deu um exemplo: “Mesmo os jovens do ensino secundário quando escolhem a faculdade, às vezes mudam [de opinião] porque ainda são muito novos para decidir”.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBDSM [dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]DSM é a sigla oficial para a prática de bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo – sim, o acrónimo inclui todos estes princípios. Esta forma de expressão sexual está incluída na lista de parafilías da DSM, o manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais. O que (erradamente) pressupõe que quem pratica BDSM é doente mental. Durante muito tempo a psicanálise tentou explicar as motivações que levam as pessoas a procurar prazer na dor e tudo apontaria para as experiências traumáticas nos indivíduos, na infância ou na adolescência. Mas têm existido algumas tentativas para desconstruir esta perspectiva patológica. A investigação tem mostrado que os praticantes da BDSM até nem são assim tão diferentes do resto da população (apesar de mais investigação ser necessária), em miúdos, o que é que isso quer dizer? Que na realização de testes psicométricos da personalidade, estes praticantes encontram-se na média populacional. Então, se a BDSM não está tão fortemente associada com a psicopatologia e com as explicações da psicanálise, porque é que as pessoas sujeitam-se a ser dominantes ou submissas no jogo da dor e prazer? De acordo com a autora Pamela Connolly, ainda estão por explorar diferenças na fisiologia individual, i.e., de como as endorfinas conectam a dor e o prazer, e a sociologia que pode estar por detrás da psicologia do fenómeno, de como as normas culturais e as sanções sociais podem influenciar a procura de universos e personagens alternativas. Os interessados em BDSM ou os já praticantes que não se apoquentem, porque sentir prazer com beliscões nos mamilos não é sinal de um estado emocional e psíquico terrível per se. Há quem sugira que, na verdade, esta recriação é saudável e funciona como um mecanismo de coping para as nossas frustrações e dificuldades nos jogos de poder a que estamos frequentemente sujeitos, as do nosso dia-a-dia. Não encontrei estatísticas para uma possível percentagem de praticantes, mas diria que não são poucos, todos com uma grande variabilidade de desejos e experiências. Não será surpreendente, contudo, que um sair do armário da BDSM seja difícil (e o consequente registo em algum tipo de estatística). Os estudos apontam para uma falta de sensibilidade por parte dos elementos da sociedade em geral, e dos médicos, enfermeiros e outros técnicos de saúde em particular, acerca destas práticas de dominação e submissão – e esta falta de sensibilidade contribuem para um loop marado de desentendimento, estigma e preconceito. Na cultura popular até que começam a existir referências ao tema, mas isso parece desconstruir pouco. Estive a ler a opinião de praticantes BDSM face ao grande filme que inseriu no imaginário colectivo sexual uma miúda virgem que se inicia no mundo do sexo e das amarras numa masmorra com um tipo jeitoso – sim, o fifty shades of grey – e eles não estavam contentes. Isto tem que ver com a recriação do processo de sedução no filme, que ficou muito longe da complexidade da experiência em si (mas desde quando o cinema popular retrata a complexidade da vida, anyway?). Estas representações do sexo, e do BDSM em particular afectam as nossas realidades sociais. O problema é que é fácil assumir que só alguém muito maluquinho é que iria bater, e pior ainda, deixar que o batessem em contexto sexual. Daí ser um tópico polémico, sensível e problemático. Mas desenganem-se se julgam que se trata de uma prática de simples violência. O consentimento é um conceito chave para uma BDSM feliz porque só dá uma tareia marota e só leva com a tareia marota quem assim o quiser. Ninguém está ali sem ser de livre vontade, e se não estiverem, já é estupro e não uma prática sexual kinky. De bem verdade que quanto mais realista a prática parecer, melhor, mas dentro de certos limites. Não é por acaso que se decide uma palavra de segurança que costuma ser tão aleatória como ‘elefante cor-de-rosa’, porque coisas como ‘pára’, ‘estás a magoar-me’ são supostamente parte do role-play. O potencial da prática está a olhos vistos, seja para o desenvolvimento psico-emocional ou sexual, ou até para desenvolvimento económico e profissional: uma fetichista profissional criou uma empresa que junta BDSM com outras terapias alternativas como o Reiki. Terapias alternativas com um kinky twist, como ela lhe chama. A melhor forma para desbloquear as energias e tensões localizadas com carinho, e uma palmadinha?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO que passa na televisão? [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida diária já começa a ser aborrecida para ser retratada televisivamente. Já lá vai o tempo (no início dos 2000) que parecia uma verdadeira loucura colocar um grupo de pessoas numa casa com câmaras durante meses, gravando-lhes todos os passos. Foi necessário inserir novas e entusiasmantes regras para que o ‘jogo’ continuasse a ser interessante. E não há nada mais interessante que o amor e o sexo, por isso parece que virou moda – nos últimos anos, porque eu ando mesmo desactualizada do mundo televisivo – explorar até ao tutano o amor, a intimidade e a sexualidade com uma equipa de cameramen (ou women) atrás dos indivíduos que procuram o amor ou os casais que tentam desenvolvê-lo. Há vários programas deste género, nos EUA, Reino Unido e outros países europeus, uns programas mais aparvalhados do que outros. Mas deixem-me falar-vos do ‘Casamento à Primeira Vista’ que basicamente junta concorrentes que são ‘cientificamente’ provados como pares perfeitos, e o primeiro episódio, em que eles se conhecem, é já a cerimónia de casamento. O programa acompanha-os nas primeiras semanas deste matrimónio, até culminar no possível divórcio ou na tentativa de continuarem um casal na vida ‘real’. Não sei que vos diga – talvez não tenha nada de muito estruturado para dizer. Certamente não se admirarão que os casais não duram muito tempo. Aliás, numa pesquisa muito preliminar, diria que todos eles acabam em divórcio. Mas os divórcios não me surpreendem, só que me irrita que isto tudo seja feito com o pretexto de ser uma experiência social e que é acompanhada por especialistas, nomeadamente psicólogos, que supostamente auxiliam no ‘matchmaking’ e no consequente processo de casamento ‘forçado’. Primeiro, acho vergonhoso que profissionais da saúde mental estejam a compactuar com a ideia de que todo este processo é científico – há concorrentes que dizem que os dedos foram medidos, como se isso fosse um factor de correspondência relacional de qualquer tipo – e segundo, que estejam a mostrar as interacções de casal como ‘reais’ ou exemplificativas do que quer que seja. Não me quero armar em moralista (apesar de ser tentador) mas os participantes sabem para o que vão e são maiores e vacinados para fazerem o que bem entenderem das suas vidas (mesmo que seja casarem-se com um estranho), mas pergunto-me se as pessoas poderão ter depositado demasiada esperança no papel dos tais profissionais que supostamente são especialistas em relacionamentos. Se o pessoal quer aparecer na televisão e fazer uns dramas para a câmara, óptimo, mas só espero que ninguém se convença que vão de facto encontrar o amor das suas vidas. Parece que a televisão anda a abusar do conceito de ‘matchmaking’ que os sites de procura romântica como o Okcupid alegam utilizar. Análises essas que podem ou não funcionar, não me vou debruçar demasiado sobre isso porque até sei pouco – mas sei o suficiente para saber que as medidas do corpo e dos dedos (!!) em nada contribuem para estas análises. O que acontece é que as câmaras, a constante falta de privacidade e a noção de que aquilo que fazemos está disponível para todos verem, altera o nosso comportamento. A alegada insinuação de que estes programas são experiências sociais é falsa, porque no mundo real não temos a constante exposição social – nacional – global. Esta – vou chamar-lhe de – fraude é problemática na medida que convence as pessoas que as novelas são ficção, mas que a televisão da realidade é a realidade de facto. A televisão, com propostas outrora honestas de informação e conhecimento, parece que anda a deturpar uma realidade que muitos de nós até precisaria de ter contacto. Porque – como é que podemos interagir com a normalidade da nossa realidade se aquilo que nos é apresentado como real é mascarado pelos valores que levam a audiências televisivas?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesTestículos [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap]s tomates, bolas, ovos – para fazer uso da gíria global – produzem esperma e testosterona, as substâncias mais masculinas do universo. Eu nunca tive a experiência de ter testículos por razões óbvias. Mas digamos que tive curiosidade em perceber mais e melhor acerca deste par de ‘esferas’ que andam penduradas nas virilhas de metade da população. Claro que este interesse não veio do nada – parece que saiu um estudo que mostra que os testículos têm bactérias (daquelas boas, como a vagina as tem) e que uma grande variedade de bactérias pode estar de alguma forma relacionada com fertilidade e com uma boa contagem de espermatozoides – em contraste com outros testículos com menor variedade de bactérias e que apresentavam uma contagem menor. Apesar da investigação estar ainda numa fase inicial, parece que estão a desenvolver alguma terapêutica medicamentosa de forma a trazer estas ‘saudáveis’ bactérias ao sistema masculino e promover a produção de esperma. Apercebi-me que a partir daí pouco mais sei sobre testículos e os cuidados a ter em relação a eles. Conhecer duas pessoas que sobreviveram a cancro nos testículos também me ajudou a perceber que, como aspirante a terapeuta sexual, o meu conhecimento acerca de testículos é estupidamente limitado, dos pénis é que ainda se vai sabendo um pouco mais. O meu primeiro passo foi procurar na Internet o que é que há para saber sobre as gónadas masculinas, e qual foi o meu espanto ao ver que a informação é demasiadamente confusa. Só aparecem aqueles sites com ar duvidoso em que é necessário fechar anúncios atrás de anúncios para ter acesso ao conteúdo que estou a procura. Que depois dão dicas como esticar o escroto e pôr os testículos em água quente – e isso parece-me uma péssima ideia. Todos nós sabemos que os testículos quanto mais fresquinhos, soltos e airosos, melhor. De bem verdade que as gónadas masculinas precisam de cuidados especiais. Já verificaram os vossos testículos hoje? Estão com boa cor, um bom formato, um bom tamanho? Não quero de todo incentivar a paranóia dos testículos em ninguém, mas digamos que problemas nos testículos são relativamente comuns e não há nada como estarmos atentos e apostarmos na prevenção. Vai de problemas simples a outros mais graves e particularmente dolorosos (como torção testicular que, como o nome indica, é quando os testículos se torcem um no outro). O cancro nos testículos é o pior cenário, mas é mais facilmente resolvido quanto mais cedo for encontrado. Assim sendo, surpreendeu-me que formas de auto-examinação dos testículos não fossem mais vulgarmente disseminadas (tal como acontece com a apalpação mamária) – é que até para encontrar isso na Internet não foi fácil. Talvez seja estigma, preconceito ou vergonha que justifiquem a pouca atenção testicular na contemporaneidade. Ou se calhar é medo, ninguém quer encarar a possibilidade de poder ficar sem testículos – porque os nossos indicadores anatómicos interessam-nos, e à forma como vivemos a nossa identidade de género. Mas parece que estamos perante um fantasma de contornos preocupantes onde só temos a masculinidade hegemónica a quem culpar. Aquela que diz que um homem tem que ter tomates para encarar a vida, por isso não encara os ditos de todo. Os tomates, bolas ou ovos, esses que são socialmente construídos como sinal de força, de coragem e de virilidade, mas que na verdade são de grande fragilidade e delicadeza. Os ovinhos da fertilidade que pendurados com os seus ambientes bacteriológicos e os seus formatos curiosos – a propósito, é normal o testículo direito ser ligeiramente maior que o esquerdo, e é normal o esquerdo estar mais pendurado que o outro – precisam de uma contínua atenção.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO Sexo das Alterações Climáticas [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s alterações climáticas é um daqueles temas transversais a tudo, tal como o sexo, por isso decidi casar um tópico com o outro para um argumento, que não é novo para alguns, mas talvez seja para outros. Tenho sofrido da particular frustração por ver que as alterações climáticas, que estão aí ao virar da esquina, ou que até já chegaram em força, é um conceito entendido como desconectado de tudo à nossa volta. Não está desconectado do ambiente em si, claro, mas está desconectado dos nossos sistemas morais, sociais, psicológicos, e do nosso dia-a-dia, no fundo. Já em tempos me debrucei acerca de uma sexualidade ecológica, a forma mais fácil de casar os temas – seja porque se ama o planeta e se faz amor com o solo, as árvores e as plantas ou porque se tomam decisões de compra mais ecológicas, como vibradores, lubrificantes e outros que tais – com a garantia que não estamos a poluir o ambiente ou nós próprios. Mas será que basta? Será que é suficiente ter hábitos de consumo mais ecológicos e ponderados para evitar o fim da civilização tal e qual como ela existe? Será que a solução são os carros eléctricos, pensando agora num sentido mais lato de hábitos de consumo, ou os produtos biológicos,ou os materiais biodegradáveis, ou as casas inteligentes? Quando, no ano passado, Macau viu passar os tufões mais intensos e mortíferos dos últimos tempos, uns atrás dos outros, eu pensei para mim mesma que a minha geração, muito provavelmente, assistiria ao início da degradação dos nossos ambientes e sociedades. E o que tenho aprendido é que as alterações climáticas vêm aprofundar o fosso socio-económico das nossas cidades, países, continentes, e planeta. No dia da Mulher, as Nações Unidas apresentou uma campanha toda bonita sobre como as alterações climáticas são um problema de género – também. Eu sei que esta é uma ideia difícil de perceber, e pouco consensual. Que diferença faz se eu for homem, mulher ou outra identificação de género, à vista das alterações climáticas? Não serão os efeitos os mesmos para todos? Há quem discorde – as alterações climáticas são um problema que têm afectado primeiro as comunidades já frágeis, que para além de verem os seus ambientes a deteriorar-se, vêem-se em confronto com outro tipo de desafios. Países com escassez de água, de condições básicas de sobrevivência, seja pela seca ou pela inundação, sofrem de maior desigualdade de género. Tal como o sexo, as alterações climáticas não são um problema do mundo físico, somente, são um problema do mundo social. Reparem: a escassez de recursos ou as transformações no ecossistema, mexem com temas tão delicados como a maternidade – será que podemos ou devemos trazer uma criança ao mundo? – ou com a contracepção – porque é que os peixes andam cheios de hormonas femininas? – ou com o nosso consumo sexual – será que preciso de 30 vibradores, um de cada cor, para completar a minha colecção megalómana de dildos? Quanto mais consumimos, mais poluímos, não é? O sexo das alterações climáticas não deverá ser uma discussão sem fim, porque de perguntas sem resposta já estamos nós fartos. O que considero útil neste desafio temático, é olhar para aquilo que está a acontecer no nosso planeta de forma interseccional – que o ambiente está no estado desequilibrado em que está, e que pode afectar e reforçar as dinâmicas de poder já existentes. No exercício de distopia da Margaret Atwood, que explora as questões das mulheres e as questões do ambiente (em vários exercícios de ficção, e não só na sua mais aclamada obra), torna este mesmo argumento óbvio: as alterações que o nosso planeta anda a sofrer são um desafio também ao sexo que fazemos, ao sexo performativo e representado e ao sexo que desejamos. O sexo destas sociedades que parecem mais loucas do que sensatas: mais loucas por poder, por desigualdade, nunca loucas por amor, ou pelo menos, nunca da forma certa de amor.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo de Paralelos e Perpendiculares [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] geometria que esperamos da vida não é única, nem previsível. O que sentimos nem sempre corresponde ao mundo que vivemos, às vezes está ao lado, às vezes está no encontro e às vezes estamos nós a sabotar com tesouradas as realidades que podiam ser mais pacíficas, mas que não são. O dualismo corpo – mente é uma dessas realidades complicadas. Desde Descartes que começámos a separar o corpo da nossa consciência, um objecto material e outro imaterial que vivem de forma (quase) paralela mas que se encontram nas esquinas. O Damásio bem tentou desmistificar o pressuposto cartesiano com o seu tratado mais popular ‘O Erro de Descartes’, mas nem a perspectiva das ciências puras e duras, muito menos as medicinas holísticas vêm ajudar à mudança. Porque é que esta é uma discussão relevante ao sexo? Eu atrevo-me a dizer que o sexo interessa a tudo, e que tudo interessa ao sexo. O sexo no fundo é interseccional às várias dimensões da vida. Neste dualismo, o sexo manifesta-se na consciência de quem somos e na forma como lidamos com o nosso corpo e com a nossa ‘materialidade’. Percebem? Mente e Corpo. Se calhar a solução para a desmistificação dualista não é neurologia do Damásio. Precisamos de sexo. Porque se o sexo carrega o dilema corpo mente mais polémico de sempre, se calhar até será capaz de resolvê-lo. Podemos pensar nas várias dimensões do sexo, nas suas formas conceptuais para perceber que o dualismo cartesiano até se encaixa. A sabedoria popular facilmente escolhe o sexo como biologia ou o sexo como emoção para melhor perceber as vidas sexuais. E isso só perpetua a crença que estas poderão ser arestas paralelas, não relacionadas – mas as perpendiculares existem, tanta intersecção que existe! Tal como existem as tesouras, de golpes certeiros dos quais não estamos à espera, como o Marcelo Rebelo de Sousa que veta a lei da mudança de género em Portugal. No fundo, o que é problemático para o sexo é o uso do corpo, este corpo que é julgado com características essencialistas – se tens uma vagina, és mulher, se tens um pénis, és um homem. E o uso deste corpo de forma tão categórica sobrepõe-se as imaginações desta mente, que também tem corpo, mas que o re-inventa. O prazer é dos exemplos clássicos de contestação do dualismo, que só existe com corpo e mente, juntos, em sintonia, em perpendicularidade. O prazer que pode ser o sexual e o orgásmico, também é o de sermos quem somos. Porque o corpo e a mente também nos fazem sentir mulher quando temos um pénis, ou homem quando temos uma vagina. Quando aparecem acusações de que a naturalidade do corpo não é respeitada percebe-se que a doutrina dominante acredita que o corpo que se vê é real, e a nossa consciência… O que poderá ser? A grande vitória das gentes Irlandesas que num referendo histórico conseguiram acabar com a abolição do aborto, uma luta de mentalidades que punham em causa a utilização deste corpo – de que direitos e liberdades? Quando a cabeça tem juízo, o corpo não paga, o corpo também pode ser feliz. Estou ciente de que a minha tentativa de simplificação só veio complicar. Mas talvez, mostrar a complexidade da mente e do corpo para não os colocarmos em caixinhas certas e direitinhas seja o melhor caminho. Para não estarmos convencidos de que o que é paralelo nunca se encontra e que, lá por magia ou o que quer que seja, o paralelo ‘perpendicula’ – só mesmo porque geometria nunca foi comigo.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesCaprichos (ou como ouvir uma vagina) [dropcap style=’circle’] Q [/dropcap] uem tem uma vagina – mulheres, mulheres trans e também possivelmente homens – saberá que é um pedaço de corpo delicado e versátil, com capacidade de promover o prazer e a procriação. Quando nós temos caprichos do sexo e fantasiamos com tudo e mais um par de botas (daquelas com salto agulha, sensuais), o nosso corpo também tem uns caprichos por satisfazer. O que quero dizer com isto: o capricho, definido como uma vontade inexplicável e repentina, não é só uma vontade da mente, mas uma vontade do corpo. E quem é que entende as vontades do corpo na sua plenitude? Poucos de nós. Porque vivemos a vida presos na nossa existência mental, e lá de vez em quando temos uma brecha de consciencialização deste corpo que nos carrega, que tem apetites, que tem manias e caprichos. As vaginas são pedaços particularmente misteriosos que poucos parecem entender – poucas e poucos parecem ter a vontade, sequer, de olhá-la, cara a cara, mediada com a ajuda de um espelho. A inabilidade de poder olhá-la francamente no nosso dia-a-dia talvez venha ajudar ao nosso evitamento constante. Há quem se lembre, certamente, da primeira vez que tentou colocar um tampão – porque enfim, está sol, há uma boa praia e nós queremos evitar pensar que o período existe e que possa estragar os nossos planos – e é então necessário todo um domínio das partes íntimas para poder colocar um ‘mini’ pedaço fálico de algodão, com o intuito de absorver o inevitável sangramento. A vulva e vagina são vistas como sagradas, e a ideia de que está lá toda uma área flexível (muito flexível), capaz de absorver aquele pedacinho, é, para muitas, difícil de compreender. Se isto é difícil para as virgens, para as que começaram a sua vida sexual também pode ser complicado porque, é como vos digo, há pouca consciência da vagina. A vagina ressente-se, claro, e capricha-se. O que se tornou no senso comum vaginal de evitamento, algum nojo, e em casos mais extremos de repúdio, faz com que as necessidades da vagina não sejam ouvidas com atenção. O tabu da menstruação e do prazer sexual feminino também leva com o tabu da vagina, tanto que mais não seja porque ‘originalmente’ estaria escondida por detrás de um pequeno arbusto de pelugem púbica, que até essa é rejeitada hoje em dia. Já ouviram a vossa vagina hoje? Estará em que fase folicular? Como é que gosta de ser estimulada? Saberemos tratá-la bem, com saúde e bem-estar? Estou ciente da minha hipocrisia, porque verdade,verdadinha, também não percebemos nada do nosso corpo de outras partes menos censuráveis, quanto menos do orgão sexual biologicamente tido como feminino, e historicamente alvo de alguma negligência, de todas as naturezas. Se pudesse mudar de carreira num abrir e fechar de olhos, provavelmente teria sido ginecologista e terapeuta sexual, e tentaria pregar por aí a importância do bem-estar vaginal – e digamos que não são só as mulheres que se aproveitam desta vantagem. Vagina feliz leva a um sexo feliz, em qualquer idade. Será necessário relembrar que o nosso corpo que cresce e se desenvolve, muito na expectativa do sexo, passa por fases mais ou menos difíceis? Com mais ou menos apetites, mais ou menos lubrificação. A maternidade até, que de partos e nascimentos transformam vaginas e o sexo. Onde e quando é que se fala disso? Na novela das 21h? No telejornal? Na literatura erótico-pornográfica? Na medicina? Onde é que afinal se fala de vaginas felizes e caprichosas ao longo da idade adulta?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA História do sexo servirá a alguém? [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] História do sexo tem muitas linhas e tem poucas. Se já é um tema tão dificilmente trabalhado nos dias de hoje, imaginem olhar para os milénios da nossa história sexual, com todas as complicações que lhe conferimos na contemporaneidade. Nos museus daqui e de acolá, daqueles que têm artefactos em cerâmica e porcelana, lá de quando em vez me deparo com uma peça centenária erótica – são uma delícia de se observar. Quando na representação colectiva imaginamos um antepassado de emancipação sexual duvidosa, é com surpresa que nos deparamos com os objectos de quem quisesse criar, ilustrar, expor e admirar as formas (as posições!) dos corpos que copulam. Claro que a História conta-nos dos amores, desamores e extra-conjugalidades daqueles que viveram há muitos anos, mas eu dou por mim a pensar: quem seriam os ‘tarados’ de serviço? Os que ponham a mão na massa para criar, em porcelana e outros materiais, corpos semi-nus em plena penetração, ou todos os outros que simplesmente queriam pensar o sexo fora do quarto? Como o conservadorismo sexual perdura mais do que gostaríamos, também não são muitos os investigadores que se debruçam sobre isso. Na China, esse paraíso de figuras e formas eróticas da antiguidade, um dos mais preocupados com a temática do sexo e da sua história quis abrir ‘o’ museu do sexo. Em 2001 Liu Dalin quis expor cerca de 3700 objectos eróticos da China milenar: imagens em porcelana, gravuras, objectos fálicos (os dildos da altura), estátuas, estatuetas, tudo. Ora que surpresa, o museu não teve grande apoio na sua criação e manutenção. O interesse sociológico-científico de Liu Dalin foi mal interpretado por uma tentativa de vulgarização do sexo e da ‘pornografia’. Será que uma sala carregada de dildos dos milénios passados não tem valor pedagógico absolutamente nenhum? Ninguém entendeu esse intuito. Aliás, surpreendentemente ou não, o Museu, que se situava numa zona animada do Bund em Shanghai, foi realojado para Tongli, uma pequena aldeia a 80 km da metrópole, em 2004. Nem tudo é assim tão mau porque Tongli até é uma aldeia bastante turística (já ouviram falar da pequena Veneza da província de Jiangsu?) e o Museu agora ocupa o espaço de um edifício histórico da dinastia Qing. Mas ainda assim… esta mudança de localização não deixa de ser indicativa de qualquer coisa. Numa entrevista Liu Dalin explica como foi difícil ter apoio na divulgação do Museu, até porque o logótipo orgulhosamente divulgava o caracter para ‘sexo’ e ninguém queria colocá-lo em lugar nenhum. Diz o fundador que este museu serviria para termos maior consciência, no oriente e no ocidente, acerca das representações do sexo na antiguidade chinesa. Quando em tempos mais daoistas o sexo era visto como um contributo para a saúde e era vivido de forma libertadora, as filosofias de Confúcio vieram ‘castrar’ a liberdade sexual, e a partir daí o tabu intensificou-se. Parece que os tarados, os tais que gostavam de sonhar e explorar o sexo fora da obrigação da procriação, de alguma forma contribuíram para a criação destes artefactos de beleza imensa e sexualidade intensa. Acerca dos significados, simbologia e utilização dos mesmo é que há pouca reflexão, porque ninguém se quer meter a estudar essas coisas. Objectos de formas fálicas foram encontrados em túmulos de imperadores e familiares, autênticos strap-ons que se especula terem sido utilizados para a estimulação anal masculina, mas ninguém sabe muito bem. A História, do que quer que seja, serve muitos propósitos. Não sou eu que o digo, os historiadores concordam comigo. A do sexo só vem mostrar que sempre houve uns movimentos de maior ou menor contestação do que uns e outros podem achar do sexo, esse sexo que pode ser livre, ter menos preocupações, ter menos problemas, e ter muito mais originalidade.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesO amor não existe, faz-se [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão tenho os créditos desta expressão maravilhosa, os créditos vão para o anúncio de um hotel com propósito de receber casais calorosamente e sexualmente envolvidos. Faz-se amor porque ele não existe realmente. Digamos que num mundo de materialismo pouco poderá tornar o amor mais real do que fazê-lo. Manuseando as formas mais naturais dos corpos, tal e qual como viemos ao mundo, permitindo o rubor de certas partes mais propícias ao prazer. Assim acontece o amor, o sexo, pronto. Mas o amor, apesar de se poder fazer de forma tão (aparentemente) simples não se mantém só porque sim. O amor será como construir uma bela casa, que precisa de estrutura, tijolos, pintura e decoração adequada. Há elementos mais importantes que outros, e diria que há alguns mais universais e outros mais particulares aos casais em causa. A terapia de casal tenta explorar algumas destas dinâmicas amorosas de forma a reestruturar o amor – que pode estar simplesmente perdido, à espera de ser reencontrado. Em certos contextos de tradição judaico-cristã o amor deveria ser para sempre, mas já ninguém acredita nisso. O amor que ‘seja infinito enquanto dure’ já dizia o Vinicius de Moraes. A prova viva é de muitos recém-casados se divorciarem em menos de um ano. Afinal, como é que se garante um final feliz se o amor não existe? Trabalhar o amor como uma figura de barro, com alguma delicadeza e cuidado. Quem é que está para isso? Talvez os mais tradicionais e antigos ainda consigam imaginar vidas românticas com um só protagonista. O primeiro namorado torna-se no primeiro e último marido. Ainda que seja uma ideia que tenha funcionado e ainda funcione para alguns, nunca funcionará para todos. O mundo está tão cheio de tentações e de pecados, para manter o tom da semana santa que ainda agora passou, que os desafios ao amor romântico são muitos. Um casal amoroso é amoroso até certo ponto. A violência pode estar presente, a infidelidade, o desentendimento, a opressão e o medo. Quando a união poderia representar a mais pura forma de confiança e de entendimento mútuo das almas e dos corpos, nem sempre é isso que acontece. Conhecer o outro de uma forma mais profunda tem muito que se lhe diga. Atrever-me-ei a dizer que o amor é a arte do conhecimento e da compreensão, na medida porém, o conhecimento total do outro é inatingível Alguma coisa se vai descobrindo ao longo do tempo e dos tempos, nunca sem medo da inevitável transformação que faz com que a total desmistificação do outro seja improvável. O amor é como encontrar o equilíbrio entre o que conhecemos do outro e nos faz confortável e daquilo que nunca seremos capazes de alcançar. O tesão dá uma ajudinha ao amor e à paixão. Excluindo os assexuais, outras orientações e identidades concordarão com a estreita relação entre o amor e o sexo, ou o desejo. Alguns dar-lhe-ão mais importância do que os outros – porque eu acho que cada um tem a liberdade de expressar-se sexual e amorosamente como bem entender– mas a exploração do corpo faz parte do pacote de conhecimento. Conhecer o outro é saber quando ele está rabugento e respeitar o seu espaço, mas também é conhecer-lhe o cheiro, saber como consegue atingir o orgasmo ou saber onde é que ele prefere ejacular. Na minha humilde opinião, fazer amor não se limita ao sexo. Essa seria uma visão simplista demais. Pretendo incentivar o poder ‘agêntico’ dos seres – o que nos faz ter controlo das situações – pelas questões amorosas, porque o amor faz-se. O amor não é uma coisa que acontece zás-trás, plim-plim. O amor faz-se acontecer.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesNas Complicações do Sexo [dropcap]Q[/dropcap]uando o sexo fala mais alto que todos os nossos instintos, tornamo-nos animalescos. Damos espaço aos nossos animais irracionais ao reagir de acordo com os nossos impulsos sexuais e finalmente rendemo-nos aos corpos suados e ao prazer. Mas se há coisa que tenho tentado exprimir é que a biologia do sexo não explica tudo. Nós, as pessoas que o praticam, traçamos limites conceptuais sobre o sexo e as suas práticas associadas. Estas são ideias repetidas e transmitidas através das nossas conversas, dos nossos textos, das nossas imagens, dos nossos órgãos de comunicação social, enfim, de todas as formas comunicativas. Como que por magia, estas acções de criação de significado elaboram uma imagem, uma representação social do sexo. É isso que faz com que uma fotografia de uma miúda de biquíni com uns pelitos a sair da virilha seja automaticamente censurado nas redes sociais. Porque é estranho, não é? Não há sinal de pornografia, nudez ou violência, são uns pêlos que na verdade, verdadinha, não passam de pêlos, e que ainda assim são ofensivos a olho nu. Ainda há pouco tempo a mais conhecida rede social censurou a Vénus de Willendorf. Aquela estátua pré-histórica com maminhas grandes e ancas largas. Estas ideias nas nossas cabeças sobre o que é decente ou não é (aquela velha história da boa sexualidade e sexualidade desviante que é perigosa) apresenta-se como ‘natural’ mas na verdade, não deixam de ser ideias que nós construímos, em conjunto. Vamos fazer um jogo, quando eu digo sexo, quais são as três palavras que vos vem à mente? Sem pensar muito, mais automático que puderem. Prazer. Pénis. Orgasmo. Prazer, com a ajuda do pénis, para atingir um orgasmo. Até dá para delinear uma temporalidade. O sexo que podia ser simples assim, complica-se infinitamente na prática, particularmente, na prática social e diária do diálogo sexual. Aliás, eu diria que os problemas do sexo começam pela falta de um verbo digno e de fácil acessibilidade. O que é que quero dizer com isto: temos o verbo ‘f****’, um favorito pessoal, que lhe falta um correspondente menos grosseiro. Copular? Fazer/ter sexo? Ter relações sexuais? Nada. Se ao menos ‘sexar’ pudesse entrar no nosso dicionário como um neologismo por uma necessidade de simplificação. Mas nunca o puderá ser, porque ‘sexar’, de acordo com o dicionário, quer dizer ‘determinar o sexo de um ser vivo, geralmente animal, por meio da análise de ADN, de traços morfológicos ou de comportamento’. Nada sensual. Mas estas complicações não são necessariamente infelizes, porque ao menos obrigam-nos a pensar no sexo. E sabe tão bem pensar no sexo… nos momentos de intimidade com o outro, nos prazeres do corpo, nas formas sócio-culturais de expressão sexual, nas fantasias de alcançar uma sexualidade feliz e plena de/para todos. Pensar à séria é o que muitos evitam. Vivemos tempos de evitamento, até em desafios de outras naturezas. Olhem para os jornais, para o que tem acontecido em países remotos assolados pela guerra, em decisões políticas complicadas de entender, em participação democrática que dá voz à violência, xenofobia e ódio. A vida está cheia de complicações ainda por resolver, na cama, no quarto, em casa, na cidade, em países e no mundo. Eu percebo que comparado com tensões internacionais, a minha preocupação com um verbo que simplifique ‘fazer o sexo’ pareça uma preocupação fútil. Mas desafio-vos a pensar fora da caixa, a desconstruir as narrativas a preto e branco e que se aceite – e que se aprenda a discutir – as sombras de cinzento que a vida nos proporciona (por falar em sobras de cinzento, já estão por aí novas e picantes descrições da sequela do re-descobrimento do sexo no grande ecrã). Encarar aquilo que evitamos com emoção – com paixão. E agora? Quais são as três palavras que a palavra ‘sexo’ evoca? Prazer. Liberdade. Compreensão?
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDo Prato para o Sexo [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] comida com ou sem sexo poderia ser uma questão útil, mas raramente o é. Estou a ver muitas ligações entre uma coisa e outra, os dois são necessários (talvez um mais do que o outro) e dão prazer. Se pudermos juntar os dois prazeres numa experiência conjunta teremos prazer ao quadrado, diriam os matemáticos. Mas como é que se quantifica o prazer gustativo e o prazer sensual, e de que forma se equacionam estas propriedades do prazer na recriação da experiência humana? Já todos ouviram falar do chocolate, certamente. O chocolate produz químicos nos nossos cérebros que são os mesmos do prazer sexual. Mas comer chocolate não é a mesma coisa que a penetração de corpos. Podia ser a mesma coisa, mas certamente que não é. Um ‘foodgasm’ não é um orgasmo, nem a pornografia tem muito que ver com a tão recentemente popularizada ‘food porn’. O sexo é particular a uma intimidade das gentes e do tesão. A comida é prazerosa de uma forma não sexual, ou não sensual, ou será que é? As ostras parecem vulvas descobertas, as bananas e os pepinos são (escandalosamente) fálicos. O abacate e a papaia desenham vaginas, as tartes de maçã… não se parecem com nada, mas já iniciaram a sexualidade de certos jovens de uma certa realidade cinematográfica. O estímulo visual pode provocar a imaginação, mas o melhor são as propriedades ditas afrodisíacas de certos alimentos. São precisos nutrientes que mantêm a erecção e lubrificação. Dizem os especialistas que os espargos, por exemplo, fálicos e cheios de vitamina E e potássio são óptimos para manter a irrigação sanguínea nas partes que interessam. Os abacates e as ostras ajudam na produção de testosterona, os morangos, um clássico do romance, estão cheios de coisas boas para a produção de hormonas. Enfim, já perceberam a ideia, não quero ser uma enciclopédia nutricional. Mas por favor, deixem-me constatar o óbvio que falta ser reforçado: comidinha saudável, corpo são e o sexo acompanha os benefícios. Para ninguém se convencer que comer abacates em quantidades industriais tem o mesmo efeito instantâneo que o Popeye e os espinafres. Falta a comida no sexo – a comida que acompanha a penetração que referi há pouco. Talvez um clássico de morangos com chantilly, ou uma prática para dias especiais, para quando se precisa de um ‘picante’ na relação sexual. Picante esse, acautelem-se, para ser consumido e não ser esfregado em lugar nenhum. Os mais cautelosos ainda sugerem que comida nenhuma poderá ser inserida nas partes íntimas, mas que pode (e deve) ser abusada na pele. Para os interessados na logística, esta não é uma actividade para quem gosta das coisas limpas. Porque corpos nus, esfregadelas e uns amassos com comida à mistura, vai certamente deixar muita desarrumação e sujidade. Lençóis, o chão, ou qualquer outra superfície manchados de chocolate líquido e outros que tais… Mas para quem não tem problemas com isso, regozigem-se com a exploração oral de corpos e sabores. Aliás, parece que os japoneses têm tradições gustativas ainda mais requintadas. O nyotaimori que até já chegou ao ocidente (apesar de ter sido recebido com muitos protestos) é a prática de usar mulheres nuas como pratos de sushi. Ou outra – e esta não percebi se era verdade ou não – de usar o pequeno recipiente que as pernas fechadas de uma mulher criam, e lá verter licor para ser cuidadosamente consumido em infusão com a penugem típica da região. Isto é só puxar pela imaginação e aproveitar as propriedades nutricionais e quiçá afrodisíacas para uma sexualidade e alimentação feliz. A equação que leva o prato ao sexo não é complexa, é simples, é só juntar os ingredientes e ter a vontade certa. Prazer ao quadrado, será?
Hoje Macau China / ÁsiaPequim quer proibir a presença de strippers em funerais [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Governo da China quer proibir a presença de strippers em funerais, uma tradição que existe em algumas províncias no interior do país e que é uma resolução de Pequim para o ano novo. Algumas comunidades no interior do país utilizam a presença de strippers para levar mais pessoas às cerimónias. Segundo o jornal britânico The Daily Telegraph, os mandatários chineses querem acabar com essa tradição que ainda é muito respeitada em províncias do interior como Henan, Anhui, Jiangsu e Hebei. Segundo o jornal, essa é a terceira vez desde 2006 que o Governo chinês tenta acabar com o costume. Entre as comunidades mencionadas acredita-se que um funeral cheio de gente traz fortuna e boa sorte para o espírito do morto. O Governo chinês criou uma linha de telefone especial para a população denunciar shows eróticos nos funerais e a família do morto pode ser multada ou até mesmo presa. Além disso, o Governo está levar a cabo uma campanha nos órgãos de comunicação social para convencer a população que levar strippers para cerimónias fúnebres é uma manifestação de decadência moral e cultural resultante da influência do ocidente no país.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSexo e Aleatório [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] sexo quer-nos nus, vestidos não tem tanta graça. Há quem não concorde totalmente, uma rapidinha de órgão sexual descoberto e mais nada, para encaixar os sexos, e/ou as bocas e outros orifícios de prazer, também é kinky. Mas para além do prazer sexual, podemos nós esquecer o que de mau o sexo pode trazer? A violência? Só com a nossa intimidade descoberta é que nos magoamos, só para fazer justiça à máxima taoista de que o bem só existe porque o mal anda algures. Gostava de escrever melhor para expressar melhor – comunicar melhor – se é que conseguem perceber a diferença. O sexo não é só um bode expiatório para o nosso reencontro pessoal, é também a possível concretização de sermos felizes com os outros. O sexo tem tanto que ver connosco próprios como é parte integrante da nossa socialização, de quando aprendemos que os outros são importantes na nossa vida. Da mesma forma que damos sentido à música, ao sonho, ou à fantasia e aos conteúdos culturais que nos embalam constante e incessantemente ao construirmos as nossas narrativas. O sexo está lá, nem que seja porque cada um de nós nasce do sexo, nasce do amor ou da ausência dele. Nasce do toque, seja esse de corpos nus ou de corpos cobertos, tocaram-se. Quando era uma criança pré-consciente do sexo e da forma como os bebés nascem, teorizei com o auxílio das novelas brasileiras, que esse toque era o simples beijo, e que com trocas sucessivas de saliva os nossos corpos de poderes alquímicos tornariam vivo o que era inexistente. Este excerto chama-se aleatório porque nunca sabemos o que o sexo suscita e estou a exercitar formas de o descobrir. Caímos em escorregas de significados que provavelmente não têm fim – nem início. A queda contradiz-se com a ascensão porque – lá está – precisamos de opostos e de equilíbrios, morais, éticos ou racionais. Mas tal como as ondas sonoras, as frequências caem e crescem com a mesma sintonia, nunca se definindo como o progresso ou a retrocesso. O sexo nem sempre é bom, nem sempre é mau, simplesmente existe no meio da nossa existência, que tanto insiste no caos. Tantas revistas, tantos canais, tantos vídeos, tantos livros, tantos manuais, tantos textos (!!) para dissecar os significados do sexo e do amor da mesma forma, para chegar a conclusões mais ou menos esclarecedoras acerca do que nós podemos fazer pela nossa sexualidade e pela dos outros. Virgens de todos os géneros, tamanhos e estilos, valores puritanos que pairam até nos espíritos mais liberais. É tudo uma confusão! Mulheres que acham que o assédio é um assunto sério, outras que acham que restringe o acesso à liberdade de importunação. Feminismos de todas as cores e feitios, que ao contrário do que se julga, de muito pouco tem de consenso. Homens que pedem por mais direitos, e outros que dizem que já têm os suficientes. Serão questões de raça, de género, de sexo, de classe social? Afinal o que é se passa neste mundo de injustiças, sexuais e de outros tipos, que não consegue arranjar soluções consensuais para a justiça social? Para a justiça sexual! Ai de quem me traga mundos a preto e branco, de moralismos claros, de soluções pré-definidas. Escrevendo aleatoriamente, na nossa tentativa de perceber o que quer que seja, também as vidas parecem aleatórias. Discussões que nunca mais acabam porque tudo é problemático e nada nunca é fácil. Há um conforto em pensar que nada fica sempre na mesma, e que não há respostas simples para absolutamente nada. O sexo é complexo, as respostas sexuais são complexas, as posições sexuais podem ser complexas. As vidas sexuais que procuram sentido(s), e que raramente o encontram, nunca desistem de tentar.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSex-Talk [dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]nvestigar a sexualidade humana não é tarefa fácil. Como escrevo sobre sexo todas as semanas quase que me esqueço que o à vontade para falar sobre o sexo não será o mesmo do que qualquer outro tópico de conversa. E isso depois reflecte-se na dificuldade em estudá-lo, ou de produzir respostas de ajuda eficazes. Os serviços que providenciam algum tipo de apoio mais especializado ao sexo, vêem-se obrigados a arranjar estratégias criativas de atrair utentes. No mundo ocidental em que vivemos há um paradoxo interessante entre não falar sobre sexo, mas usá-lo como produto de consumo. O sexo vende, e por isso o marketing usa clichés da atracção sexual que continuam a funcionar, mas falar sobre o sexo de forma aberta e saudável é que está quieto. Aliás, sempre que vejo movimentos de pais contra a educação sexual nas escolas, pergunto-me se eles não têm noção que os seus filhos pré-adolescentes são bombardeados com vídeoclipes com mulheres semi-nuas e altamente sexualizadas a toda a hora. Mas isso é uma circunstância da vida, falar sobre o sexo é que não pode ser, não se expõe assim a ‘perversão’- ainda a atraem com mais força. Por estas e muitas mais tontices, é que falar sobre o sexo é difícil e limitado pelo tabu – o que torna a investigação socio-biológica do sexo das mais desafiantes. Ao menos temos séries e filmes, O Sexo e a Cidade seria uma delas, ou o Girls, se pensarmos na televisão mais americanizada. Estes são dos poucos momentos televisivos em que o sexo é apresentado de uma forma mais natural, mais realista. Tudo o resto são exageros hiper-sexualizados e hiper-românticos que ajudam a perpetuar mitos já nossos conhecidos. Por isso, quando queremos entrar nestas construções sociais do sexo – que a televisão, a música, o consumo, a nossa experiência individual ajuda a criar – o expectável seria entrevistar pessoas sobre o sexo, pô-las a falar para melhor compreender as suas cabeças. Mas imaginem o horror que poderá ser, pôr uma sala cheia de estranhos a conversarem acerca de, por exemplo, satisfação sexual? Nós, que somos seres sociais a trabalhar um equilibrio saudável entre o individual e o social, precisamos de comunicar. É preciso comunicar sexo seja isso de forma mais informativa, mais pessoal e íntima, melhor ou menos problematizada. Não basta sexar, é preciso conversar. E isto serve como dica para toda uma vida, não só uma queixa dos que estudam o sexo e vêm dificuldades acrescidas simplesmente porque é um tópico difícil. Conversem com o parceiro, com as amigas e com os amigos. Há certos mitos e crenças de roda do sexo que são contraproducentes, que perturbam o bem-estar individual e de casal. O remédio? Uma boa conversa com um copo de vinho com a melhor amiga para desconstruir alguma tolice – que os homens não têm que vir-se na cara da rapariga, por exemplo, só para reforçar que os mitos vêm de toda a parte, até da pornografia. Costumo pregar o direito universal do sexo, pela nossa identidade sexual, prática e fantasia. Mas frequentemente esqueço-me que o maior desafio não é ter sexo, mas falar sobre ele. Num estudo que tenta perceber de que forma a satisfação sexual é conceptualizada, a comunicação sexual apareceu como parte do processo para chegarmos à satisfação plena. A natureza da relação amorosa, e de forma que ela é comunicada também faz parte integrante do desafio a dois, a três ou de toda uma sociedade ou planeta. O sexo vem dos corpos, da mente e da linguagem que cria as relações, as partilhas e os mundos por descobrir. Para uma sexualidade saudável é preciso conversar sobre sexo, demais, e nunca de menos.
João Luz Manchete SociedadeSexualidade | Jovens de Macau com comportamentos de risco muito cedo Um estudo da Associação Sheng Kung Hui revelou que 40 por cento dos jovens inquiridos tiveram a primeira experiência sexual aos 14 anos. Além do uso de métodos contraceptivos inadequados, o inquérito revelou que 10 por cento pensa em suicídio e consumo de drogas quando termina uma relação [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Associação Sheng Kung Hui realizou um inquérito a jovens da zona norte e da Taipa, que revelou que 40 por cento dos inquiridos tiveram a primeira experiência sexual aos 14 anos. “Naturalmente é muito cedo até porque, hoje em dia, a maturidade é adquirida cada vez mais tarde um bocado como consequência da vida que os jovens têm”, explica o psicólogo Pedro de Senna Fernandes. O estudo foi realizado em colaboração com o Centro de Pesquisa de Macau e com o apoio do Instituto de Acção Social e recolheu entrevistas de 207 jovens assistidos pela Associação Sheng Kung Hui. De acordo com o psicólogo ouvido pelo HM, o início de vida sexual tão precoce pode ser reflexo de “primeiras responsabilidades e autonomias adquiridas tardiamente” e do exercício de “actividades muito orientadas”. A sexualidade para ser vivida na sua plenitude requer uma estrutura emocional sustentada, capacidade que os jovens de 14 anos não possuem. Além da tenra idade, o inquérito revelou que os métodos de contracepção usados são desadequados. Pedro de Senna Fernandes acrescenta que a forma precoce em que se inicia a vida sexual pode fazer com que a experiência perca significado. “A experiência sexual envolve uma multiplicidade de emoções inerentes à própria experiência. A libido e tudo o que constitui o prazer requer uma estrutura emocional que estes jovens ainda não adquiriram”, explica. Juventude irrequieta Aos 14 anos, os jovens ainda têm pouco conhecimento do seu próprio corpo, uma dimensão física que começa a ser explorada depois da explosão hormonal e neuronal que ocorre nos dois anos antes do início da adolescência. Em contraste com os números avançados pela Associação Sheng Kung Hui, a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude está a promover até Fevereiro de 2018 a Actividade Promotora da Educação Sexual na Comunidade – Amor e Acompanhamento. Segundo nota da DSEJ, as actividades pretendem “criar um relacionamento agradável entre dois sexos, ter cuidado com as armadilhas de amizade na internet e elevar a capacidade de autoprotecção”. Outro dado preocupante relevado pelo estudo foi o número de jovens que pensaram em suicídio, automutilação e abuso de drogas na sequência de fins de relações. Pedro de Senna Fernandes explica que o “ideário suicida pode ser espoletado por experiências frustrantes, numa altura em que emocionalmente há uma flutuação muito forte entre os campos da euforia e da tristeza”. Nesse aspecto, o psicólogo considera que em Macau, “embora tenha melhorado um bocadinho, as crianças são super-protegidas e têm a satisfação de todas as vontades que manifestam”. Algo que “a partir do momento em que têm de combater uma frustração emocional, como o parceiro não querer terminar a relação, ou não querer aprofundar, degenera numa gestão de frustração que pode conduzir a ideários não desejáveis”. Para Pedro de Senna Fernandes, o facto de 10 por cento dos jovens inquiridos terem respondido desta forma é algo muito preocupante. Também no que diz respeito ao consumo de estupefacientes, a propensão para este comportamento de risco é algo com dimensão hormonal. “O comportamento de risco dos jovens está ligado à amígdala, que é o centro do impulso e prazer, muito mais desenvolvido que o hipotálamo bio córtex, que é o centro da razão”. Além disso, a pressão de pares e o medo dos ostracismo também aumentam a probabilidade de se incorrer em comportamentos de riscos.