Paul Chan Wai Chi Um Grito no DesertoUma má decisão política [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] comentador de Hong Kong, Johnny Lau, afirmou que um político deve possuir três qualidades: ética, coragem e discernimento políticos. Os deputados da Assembleia Legislativa não têm necessariamente de ser especialistas em leis, existem conselheiros jurídicos na Assembleia que se ocupam dessas matérias. Quando os deputados discutem as propostas de lei e as colocam à votação, estão a lidar com questões de ordem política. Estas decisões derivam dos antecedentes pessoais de cada um, do estrato social que representa e do interesse geral, que deve sempre ser tido em consideração. Mas, acima de tudo, é uma decisão que devem tomar com discernimento, conscientes das suas repercussões em termos sociais. Em termos históricos não existem “ses” e a História é irreversível. Quando acontecem infortúnios a única possibilidade é tentar remediá-los. Mas se as “terapias” falham, todos os envolvidos são apontados como responsáveis. Portanto, a melhor forma de lidar com o infortúnio é fazer tudo para o evitar. O resultado da votação pela suspensão do mandato do deputado Sulu Sou foi bem claro: 28 votos a favor e 4 contra. Esta decisão, quer em termos pessoais, quer em termos colectivos, é uma má decisão política. Em qualquer lugar deste planeta, para manter a estabilidade política é necessário disponibilizar aos opositores os canais apropriados para expressarem os seus pontos de vista, e não empurrá-los para um beco sem saída. Encorajar os jovens a juntarem-se ao sistema vigente, permite-lhes expressar as suas opiniões dentro desse sistema e chegar a um consenso social por via do debate. Mesmo as pessoas comuns, se se sentirem inseridas, escusam de inventar inimigos que não existem. E já que o Conselho Legislativo de Hong Kong se tornou um campo de batalha onde se digladiam os opositores políticos, não há qualquer necessidade de a Assembleia Legislativa de Macau se vir a tornar num “barril de pólvora”. O parecer submetido pela Comissão de Regimento e Mandatos sobre a suspensão do mandato do deputado Sulu Sou não era tendencioso e a análise dos conselheiros jurídicos da Assembleia lembrava a todos os deputados que o propósito da imunidade parlamentar é proporcionar a todos os representantes a possibilidade de cumprirem em pleno os seus mandatos. A imunidade dos deputados deve ser defendida a todo o custo, pois destina-se a evitar julgamentos de parlamentares. Quando um deputado estiver numa situação em que pode vir a ser julgado, a situação deverá ser muito bem analisada para apurar se existem provas muito consistentes que apoiem a acusação. Também é necessário analisar se essas provas substanciais entram ou não em contradição com os princípios fundamentais do direito à imunidade dos deputados. A questão é que uma suspensão do mandato transcende o deputado em causa e passa a envolver a Assembleia como um todo, especialmente no que respeita à manutenção da estabilidade e da dignidade do Parlamento. É lamentável que os deputados que votaram a favor da suspensão do mandato de Sulu Sou não tenham tido em consideração a dignidade da Assembleia Legislativa. Esta atitude vai enfraquecer inquestionavelmente o desenvolvimento político de Macau no futuro. As lutas não terão de existir se não houver opressão. Quando a luta substitui a discussão e a comunicação, cria-se um cenário em que, ao fim e ao cabo, todos ficam a perder. Não nos esqueçamos das sábias palavras de Mohandas Karamchand Gandhi, “Olho por olho e o mundo fica todo cego”. Antes da Assembleia Legislativa ter decidido pôr a suspensão do mandato do deputado Sulu Sou à votação, o cenário ainda parecia promissor porque qualquer pessoa sensata não iria optar por “vencer a batalha, mas perder a guerra”. Desejaria sim pôr fim à discussão o mais rapidamente possível e, após o termo do mandato de Sulu Sou, tomar as medidas que fossem necessárias, o que teria sido a decisão certa. A Assembleia Legislativa decidiu efectuar a votação a 4 de Novembro, e não nos dias 5 e 6 dedicados ao debate das Linhas de Acção Governativa da área dos Transportes e Obras Públicas. Parece-me ter sido uma resolução acertada, caso contrário Sulu Sou teria sido privado da última possibilidade de se defender. Infelizmente, as melhores expectativas não se vieram a concretizar. Actualmente Sulu Sou está sob suspensão do mandato e terá de enfrentar um julgamento. Não se sabe se irá ser condenado ou apenas sentenciado a uma prisão de 30 dias, essa decisão competirá ao juiz. As duas partes envolvidas poderão vir a apelar da sentença, se assim o desejarem. Mas o que sabemos é que a Assembleia Legislativa perdeu um deputado e que este caso político vai alimentar o falatório da cidade. Se a situação tivesse ido mais além e, em vez da suspensão estivéssemos a falar de cancelamento do mandato e de uma re-eleição para substituição do cargo, Macau ia enfrentar o caos. Quando atiramos uma pedra a um lago criamos uma ondulação momentânea mas, não tarda, o lago volta a serenar. Mas se continuarmos a atirar pedras para o lago, acabamos por nos molhar. Macau tem talentos, mas falta-lhe pessoas com discernimento político.
David Chan Macau Visto de Hong KongEfeito retroactivo e consulta pública [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo aprovou, a 4 de Novembro último, uma resolução para integrar a Lei Chinesa do Hino Nacional no Anexo III da Lei de Bases de Hong Kong. De acordo com o Artigo 18 desta Lei Básica, a Lei do Hino Nacional será aplicável à Região Administrativa Especial de Hong (RAEHK). A RAEHK tem o dever estatutário de implementar a legislação local adequada, ou seja, uma versão local da Lei do Hino. Este dever está de acordo com a Constituição chinesa e com a legislação local. Na mesma data, o Congresso Nacional aprovou a introdução de uma Emenda à Lei Criminal Chinesa no Artigo 299. Para além das estipulações originais relativas à utilização da bandeira e do hino nacionais, foram agora identificadas situações em que está interditada a transmissão do hino. A saber: Alteração maliciosa da música ou da letra Interpretação do hino de forma distorcida ou depreciativa Qualquer outra forma de insulto Se alguma destas situações se verificar, o transgressor será condenado até três anos de prisão efectiva e fica sujeito a controlo ou privação dos seus direitos políticos. O Gabinete para os Assuntos Constitucionais e do Continente do Governo da RAEHK declarou que durante o processo legislativo, o Governo iria tomar em linha de conta as opiniões dos legisladores e da população. O projecto de lei é o primeiro passo a dar em qualquer processo legislativo. O projecto começa por ser debatido no Conselho Executivo e, se passar, subirá para discussão à Assembleia Legislativa. Cabe ao Departamento de Justiça a redacção do projecto de lei. O projecto para a criação da versão local da lei do Hino Nacional, deverá estar em consonância com a Lei Nacional. Este assunto tem dado origem a muitos debates no seio da sociedade de Hong Kong. Um dos temas debatidos tem sido o “efeito retroactivo” desta lei. Se este efeito se verificar, as transgressões ocorridas no período anterior à implementação da lei ficam também sujeitas a sanção. Por exemplo, toda a gente sabe que em Macau a Lei de protecção dos animais entrou em vigor a 1 de Setembro de 2016. O Artigo 25 estipula que, infligir sofrimento a animais pode implicar uma pena de prisão durante um ano. Esta lei só é aplicável a acções praticadas a partir da data da sua entrada em vigor. Não tem efeitos retroactivos. Desta forma, se alguém tiver incorrido num crime desta natureza, digamos, a 1 de Outubro de 2015, não poderá ser condenado, porque nessa data a lei ainda não existia. Por uma questão de justiça para todos, é habitual as leis não terem efeito retroactivo. No passado dia 11 de Novembro, Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, declarou que, de acordo com a prática da RAEHK, as leis não têm por norma efeitos retroactivos, sobretudo no que à lei criminal diz respeito. Estas declarações parecem indicar que em Hong Kong a versão local da Lei do Hino não terá efeitos retroactivos. Espera-se pois que a lei só venha a ter efeito a partir da data da sua implementação. Mas Carrie Lam também apelou ao respeito pelo hino nacional e condenou qualquer forma de insolência. As suas palavras foram obviamente razoáveis, justas e necessárias. Outra polémica que envolve esta lei prende-se com a consulta pública. Rita Fan, antiga Presidente do Conselho Legislativo, afirmou que não haveria necessidade de consulta pública porque hoje em dia alguns legisladores discordam sempre dos projectos de lei apresentados pelo Governo. Mesmo que o Governo fizesse uma consulta pública, este tipo de legisladores ia manifestar-se contra a versão local da Lei do Hino. Antes de um projecto de lei subir ao Conselho Legislativo dá-se conhecimento da sua natureza através de uma consulta pública. Este procedimento está intimamente ligado ao espírito do Estado de Direito. Tem como objectivo notificar a população sobre as matérias legislativas a discutir no plenário. O Hino Nacional é um assunto da maior importância para a sociedade de Hong Kong. Todos os residentes, sem excepção, terão de obedecer à versão local da lei que regula a sua utilização. Como os conteúdos da versão local ainda não foram definidos, a consulta pública chamaria a atenção das pessoas e permitiria que deixassem as suas sugestões. Quanto mais sugestões forem feitas, mais claros serão os conteúdos da lei. Se o primeiro passo da legislação for omitido, estar-se-á a dar uma boa desculpa a alguns legisladores para vetarem a proposta de lei ou para pedirem uma revisão judicial nos Tribunais, alegando procedimentos legislativos incorrectos. Quanto mais tempo demorar a elaboração da versão local da lei, maior será a polémica à sua volta. A Chefe do Executivo afirmou que em Hong Kong as leis não têm por norma efeito retroactivo. Como tal, esperamos que a versão local desta lei não venha a ser excepção. A consulta pública poderá evitar uma revisão judicial nos Tribunais por procedimento legislativo inadequado.
António Conceição Júnior VozesO Segundo Renascimento [dropcap]T[/dropcap]alvez esta reflexão pudesse começar com “era uma vez”. Porém, a história da China é demasiado longa e neste caso interessa-me revisitar o seu passado recente, quando por volta de 1977 Deng Xiaoping tornou ao poder, consolidando-o desta vez. O ex-estudante em França, agora solidamente sentado na cadeira do poder, trazia em si um olhar pragmático para a sua China. Para trás ficavam os dogmas e excessos da Revolução Cultural. Deng queria uma China moderna, passo a passo. Primeiro permitiu que os camponeses viessem vender os seus produtos nas cidades. Com o crédito alcançado por esse sucesso, o pragmatismo desenvolve-se. Uns anos mais, diria que “o socialismo não significa pobreza”. Isso recorda-me quando, ainda nos finais do anos 70, para chegar a Guangzhou, tive de atravessar de jangada quatro ou cinco braços de rio. Hoje a viagem faz-se de comboio rápido. Deng, fazendo uso de máximas chinesas, definiu as primeiras medidas de abertura interna que conduziriam à emergência de uma economia socialista de mercado. Nesse pragmatismo, em que o socialismo fica salvaguardado, afirmou que não lhe importava que um gato fosse branco ou preto, mas sim que caçasse ratos. Citam-se frases deste líder da abertura da R.P. da China. Premonitoriamente afirmou:”quando os nossos milhares de estudantes regressarem a casa, irão assistir à transformação do País”. Crítico, comentou que “os jovens quadros sobem de helicóptero. Precisam de subir passo a passo”. Afirmaria também “procura a verdade nos factos”. A China do século XIX trazia a todos os patriotas más recordações. Era preciso consolidar uma política de firmeza quanto ao território chinês. Deng Xiaoping formula a sua máxima de “Um País, dois Sistemas” com o intuito de, pacificamente e através de acordos, retomar os territórios de Hong Kong e de Macau, recebendo estes a classificação de “Segundo Sistema”. O intuito era de que, através de um fenómeno de capilaridade, e no período de meio século, o desenvolvimento das Regiões Administrativas Especiais pudesse contaminar o continente. Não foi porém preciso, porque o pragmatismo de Deng virou-se para o interior onde aos poucos nascia um mercado produtor e consumidor interno. Nas últimas décadas a prosperidade bateu à porta de muitos. Em 2002 a classe média era de apenas 3 por cento, mas uma década depois, em 2012, já correspondia a 31 por cento, ou seja, 420 milhões!!! Se as assimetrias ainda existem, não estarão esquecidas e a solução vem com a emergência dos novos heróis, os milionários e bilionários chineses, homens como Wang Jianlin (31.3 mil milhões USD), Jack Ma (28.3 mil milhões USD) no topo de uma lista dos vinte mais ricos cuja mais baixa fortuna é de 6.3 mil milhões de USD. É assim que, com visão a longo prazo, uma característica do Primeiro Sistema, os milionários se tornam também nos motores de desenvolvimento do País, em sintonia com o Estado. Deng é já uma memória reverenciada. As novas lideranças seguem o trajecto. A afirmação política como potência internacional é importante. Em 2008 as Olimpíadas são o cenário ideal para uma dessas afirmações. Zhang Yimou encena um espectáculo belíssimo de abertura que ficou na minha e terá ficado na memória de muitos. Os tempos de Li Ning já vão longe. A afirmação da R.P. da China é total. 51 medalhas de ouro, 21 de prata e 28 de bronze. A velocidade de transformação da China é enorme. A economia, nos anos 1990, tinha chegado a um crescimento inaudito de dois dígitos. O mundo assustava-se. Aliás, a China actual tem mostrado, à semelhança do Renascimento dos Tang (618-904), uma ampla abertura ao exterior. É assim que, tal como Deng regressou de França, milhares de quadros foram estudar na Europa Ocidental, municiando-se, bebendo do Ocidente, imperativo para a globalização, muito provavelmente inteiramente apoiados pelo Estado Chinês. Mas se a excelência da apresentação e dos resultados olímpicos foram uma incontornável afirmação política que já vinha sendo preparada desde os tempos de Li Ning, cada vez com maior excelência, é fundamental que Macau aprenda não apenas com a China mas com o mundo, sem medo, sem preconceitos, porque os quadros locais estão longe de terem capacidades e abertura ao mundo, que só poderão adquirir lá fora. Mas, mais do que isso, é importante que o Governo de Macau lhes suporte por inteiro estudos de especialização e de línguas estrangeiras no exterior, e que estes se integrem , sem se acolherem na companhia de colegas, o que seria refúgio indesejável. Os grandes projectos internos de arquitectura na China decorrem de concursos ou convites internacionais sem que se tenha de concessionar a arquitectos chineses, só porque sim. Que o digam Siza Vieira, arquitecto Português prémio Pritzker, com o seu edifício sobre a água na cidade de Huai’an, província de Jinan. Nunca a excelência, venha de onde vier, constitui um erro. Os líderes chineses sabem-no. O desenvolvimento da China está em todo o lado e faz empalidecer as R.A.Especiais. Com efeito, em Guangzhou, o Guangzhou Evergrande Taobao, verdadeiro gigante do futebol, assinou há anos com o Real Madrid um protocolo para se criar a maior academia de futebol do mundo, desporto tanto do agrado de Xi Jingping. E eis que, assim, em mais de 75 campos, se planeiam desde já as estrelas de amanhã, enquanto a importação de técnicos se faz descomplexadamente, porque um dos paradigmas do conhecimento é o reconhecimento das próprias limitações. A busca da excelência é total, e a Evergrande aliada à Tao Bao são um colosso financeiro. Trabalha-se, como se imagina, para o médio prazo. No campo das Artes, há uma cidade que me tocou profundamente. Trata-se da histórica cidade de Hangzhou, próxima de Xangai, mas possuidora de uma Academia de Arte que mostra bem o nível de abertura cultural, cultura que se estende ao modus vivendi. E desta Academia, sediada numa cidade conhecida pelo seu lago ocidental, o Shi Wu, pela sua placidez, pela proibição das buzinas dos automóveis, respira-se um ambiente propício a tudo o que é reflexão, estudo, criação. Tê-la visitado, constituiu para mim uma experiência enriquecedora da existência de outros mundos que não precisam da nossa circunstância, e que produzem coisas brilhantes. E a cidadania é tudo isto, é a busca permanente da excelência que só existe com a abertura das mentes, com o recurso a quem sabe em alternativa à ignorância – esse não saber que não se sabe – independentemente da sua situação ou origem, para que se possam formular projectos credíveis para que a R.A.E.M. possa corresponder às expectativas que a Mãe Pátria tem, quando fala de diversificação, que não se fará nunca sem um suporte cultural, que urge ser dado aos quadros locais. E porque a expressão cultural e artística são o espelho da vida de uma sociedade, aqui se deixam alguns exemplos provenientes de Hangzhou. O estádio “ninho de andorinha” As mulheres Tang do Renascimento Chinês Os seguidores de Confúcio A invenção dos tipos móveis Academia do Guangzhou Evergrande: 75 campos de futebol Academia de Arte de Hangzhou por Albert Parsons prémio Pritzker Pan Gong Kai Wang Dongling Chao Guo Biblioteca do distrito cultural de Binhai, em Tianjin UM OUTRO RENASCIMENTO Sendo o homem uma circunstância, perceber-se-á que o ambiente envolvente é de extrema importância, condicionador ou potenciador do desenvolvimento humano. Mas para que tudo isto se realize com o nível de excelência que a R.P. da China nos habituou é preciso que se insira também no movimento integrador da Grande Baía traçado pelo Presidente Xi Jingping. Agora que o crescimento interno é uma realidade em contínua consolidação, Xi Jingping volta-se para o exterior, formulando pela política da Faixa e da Rota – a Faixa económica da Rota da Seda do século XXI – que propõe ao mundo em geral e aos países emergentes em particular, o usufruto da cooperação e do usufruto das vantagens da conectividade. Curiosamente Portugal, país dito periférico, mas o mais antigo da Europa, tem vindo a erguer-se através de grandes personalidades, desde António Damásio, neurocientista autor do “Erro de Descartes” e director do Brain and Creative Institute da Universidade da Califórnia até Horta Osório, o salvador do Lloyds Bank, ou o recém-falecido Belmiro de Azevedo, que estimulava os seus subordinados a terem as suas próprias empresas. Do primeiro Secretário-Geral das Nações Unidas unânimemente eleito, António Guterres, até ao Presidente da República Portuguesa que está em todo o lado, conferindo com a sua presença a atenção aos mais necessitados, enquanto o Ministro das Finanças Mário Centeno, recém-eleito Presidente do Eurogrupo por unanimidade à segunda volta. Há ainda Cristiano Ronaldo, cinco vezes o melhor jogador do mundo e José Mourinho, o treinador especial e tantos outros que brilham por vários continentes, e diversos campeões mundiais, além de artistas, de Júlio Pomar a Paula Rego, provenientes de um país pequeno que é o primeiro destino turístico da Europa. Por causa da memória portuguesa, Macau foi designado, como Plataforma para os países Lusófonos. A grande China não tem complexos com a história de Macau. Os grandes líderes caracterizam-se pela visão ampla e assim, o legado da portugalidade em Macau, os seus elementos conjugadores deveriam ser ainda mais valorizados pela sua inimitável singularidade. É e será sempre através das capacidades de conjugação e articulação cultural que se procederá à transformação das mentalidades, sobretudo para quem precisa de substituír certezas por dúvidas. E a partir delas procurar a exigência em desfavor da ignorância, a excelência em alternativa à mediocridade. Todo o desenvolvimento requer um trajecto. E todo o trajecto um ideário, uma linha de pensamento coerente, fundamentada, a curto e médio-prazo, expressa com os pés bem assentes na terra. Numa cidade multi-milionária como a R.A.E.M., super-excedentária, apenas a excelência faz sentido, não a má tradução, por exemplo, para o termo “talentos”. É que qualquer tradutor (universalmente tradutore-traditore)precisa de vivenciar a cultura da língua que procura interpretar, porque é na interpretação que a tradução se clarifica. E sem verdadeira interpretação não há comunicação fiel. É assim que em todo este contexto, emerge a consciência de que a fantástica biblioteca do distrito cultural de Binhai, em Tianjin ameaça tornar-se uma vulgaridade na China, à medida que o País progride cultural e civilizacionalmente neste novo Renascimento. O meu receio porém é que, em certos lugares, a vulgaridade seja a pouca importância que certos protagonistas dão a bibliotecas, quanto mais à cultura ou a distritos culturais…
Leocardo VozesLaki sa layaw [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s filipinos são há muito um ingrediente da massa humana que compõe a região do delta do Rio das Pérolas, ou seja, Macau e Hong Kong. As ex-colónias do sul da província de Cantão são destinos de eleição para a massiva vaga migratória das Filipinas, pois a adaptação é mais fácil do que a outras paragens, como o Japão ou os países da peninsula arábica, onde existe também uma grande diáspora. Se considerarmos os chineses, tanto os de Macau como os do continente uma comunidade apenas, os filipinos serão a segunda maior comunidade da RAEM, com mais de dez mil elementos. Mas é difícil avançar com um número exacto, pois assim como as ilhas do seu arquipélago, que são mais quando a maré está baixa, é possível que habite no território uma quantidade significativa de filipinos em situação ilegal. Tenho e sempre tive amigos filipinos praticamente desde que cheguei vai para mais de vinte anos. No entanto por alguns que tive sorte em conhecer, há outros que desejava nunca ter conhecido. Quer dizer, compreendo que estejam cá numa situação de inferioridade, e que precisem de se defender com as poucas armas que têm, mas podiam ser mais criativos nos “truques” que usam, e já agora menos descarados nas mentiras que contam. As empregadas domésticas, por exemplo “matam” a mãe e o pai uma ou duas vezes por ano para justificar ausências prolongadas ao trabalho, e se deixam alguém no seu lugar quando vão de férias, garantem ser “uma prima”, e “da máxima confiança”, mas na verdade é alguém que conheceram há quinze dias no Largo do Senado. Espero que nas entrelinhas entendam que não estou a generalizar, de todo. Aliás os “maus” Filipinos são uma minoria, e de um modo geral são um povo simpático, acessível e trabalhador, contando que tenham o mínimo de motivação. A maioria só quer saber da sua vida, trabalha, manda o dinheiro para casa, vai à igreja no dia de folga e não chateia ninguém. As “más sementes” são por vezes indivíduos que até chegaram a Macau com as melhores das intenções, mas entretanto a vida correu-lhes mal, foram também eles enganados por outros, envolveram-se com más companhias, caíram nas malhas do jogo ou da droga, ou por outra razão qualquer, e infelizmente há um vasto leque de razões. Apesar de tudo não se portam assim tão mal. É natural que tenham desenvolvido um mecanismo de defesa próprio, mesmo que por vezes vá para além dos limites do razoável. Imaginem que deixavam o vosso país em busca de uma vida melhor, e uma vez num país estranho eram explorados, enganados, maltratados e discriminados. Imaginem ainda que tinham que suportar estas humilhações e outras, pois lá na vossa terra natal há pessoas que dependem do dinheiro que mandam todos os meses. Compreende-se que tenham criado uma “rede” que os permita sobreviver, uma vez que o estatuto de trabalhador não-residente confere-lhes poucos ou nenhuns direitos. Mesmo que os métodos estejam já ultrapassados, têm que se desenrascar de algum jeito. Mas nem só de TNRs é feita a comunidade filipina; existe ainda um número considerável de residentes permanentes naturais das Filipinas ou de etnia filipina. Não sei o número ao certo, mas penso serem por volta de dois mil, e o número tem aumentado, pois há quem se tenha fixado há muitos anos e produzido uma nova geração de filipinos. E é ao falar desta segunda geração de filipinos com BIR que passo a explicar o título deste artigo, e se tiveram a paciência para ler até agora, devem estar com curiosidade. “Laki sa layaw” quer dizer em tagalog “mimado”, ou “menino/a mimado/a”. E de facto é mesmo assim. Não me canso de repetir que não quero generalizar, mas muitos destes jovens filipinos e Filipinas que conheci não fazem a minima ideia do que é a vida. A maioria nasceu em Macau, e outros vieram para cá ainda novos, e não imaginam sequer o que é emigrar, ganhar a vida, lutar pela próxima refeição, sujeitar-se a privações várias, como os seus compatriotas que aqui chegam numa condição muito pior do que a deles. Sentem-se filipinos, claro, e vão à terra dos pais de férias uma vez por ano. Gostam daquilo, acham piada, e têm resmas de parentes, primos, tios e tias, que olham para eles de baixo, sentindo uma ponta de inveja. Não existindo em Macau escolas filipinas, estudam nas escolas chinesas ou nas internacionais, os que podem. Muitos falam cantonense, outros falam português (os que têm um pai ou mãe português, e nem todos), mas todos dominam o inglês. A maior parte deles fala tagalog, mas outros nem por isso, ou falam pouco, o que não deixa de ser lamentável. São uma juventude descontente, uma geração X. Nasceram cá mas não são chineses, e como não beneficiam do mesmo desconto que é dado aos portugueses, os chineses olham para eles como sendo “filipinos”, e pouco importa que tenham ou não BIR. O seu papel na RAEM do futuro é uma grande incerteza. Aquele personagem na imagem em cima é Juan Dela Cruz, a personificação do espírito e da unidade do povo “pinoy”, o equivalente do Tio Sam para os americanos, ou do nosso Zé Povinho. O folclore filipino tem ainda um contraponto a este símbolo, um tal Juan Tamad, que era tão preguiçoso (“tamad” quer dizer “preguiçoso”) que se sentava debaixo da árvore à espera que a fruta lhe caísse na mão. Não considero que os filipinos sejam preguiçosos, antes pelo contrário – têm muito mais de Juan Dela Cruz do que de Juan Tamad. O que os leva a ser por vezes rejeitados pelo mundo “globalizado” é o facto de serem um povo singular, com uma cultura e uma identidade muito próprios, em suma, são especiais. Agora só precisam de decidir de que forma desejam ser considerados especiais. Tinham tudo a ganhar se fosse no bom sentido. Fazem-nos falta.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesDisfunção sexual [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntre o corpo e a mente do que a disfunção sexual pode ser, há uma panóplia de tratamentos para curar este mal que pode assolar qualquer pessoa. De todas as gentes, todas as orientações, todos os géneros ou órgãos sexuais associados. Podem ter um pénis ou uma vagina, ou os dois, que a disfunção sexual pode afectar o nosso apetite e performance para o sexo. A definição está no tão conhecido manual da doença mental, sendo a categoria guarda-chuva que acolhe por exemplo, a disfunção eréctil, formas de hipoactividade sexual, a, mais comummente designada por, ‘frigidez’ nas mulheres e ‘impotência’ nos homens. Curiosas descrições, não são? porque as mulheres devem ser calorosas ou ‘amorosas’ e os homens potentes, pujantes e energéticos – só para referir, uma vez mais, que estas assumpções de género estão por toda a parte, e no nosso dia-a-dia. Voltando à categoria de disfunção que não é fácil de compreender – ou de aceitar, porque reforça a ideia da patologia em nós –, esta pode estar associada a factores físicos, psicológicos e sociais. Quando identificada com uma etiologia física, a disfunção é tratada através de, quiçá, uma cirurgia e facilmente resolvível. Quando as causas são psicológicas e/ou sociais (permitam-me considerar que o psicológico e o social não são facilmente dissociáveis, e por isso os tomarei como causas ‘semelhantes’) é que a porca torce o rabo, o burro não levanta o pau, ou qualquer outra metáfora que ajude a imagem de que os possíveis tratamentos não são tão fáceis de delinear. Aqui é que o conceito de ‘disfunção’ parece ser contra-producente, porque dificuldades de cariz psicológico são mais difíceis de ser levadas a sério na população em geral. Pensemos na disfunção eréctil, por exemplo, em que existe um tratamento medicamentoso, mas que não é eficaz a longo-prazo. A investigação parece mostrar que, em combinação, a psicoterapia tem efeitos mais positivos e persistentes no tempo. Aliás, o primeiro grupo de investigação sobre sexualidade humana em Portugal (Sexlab, na FPCE da Universidade do Porto) tem-se debruçado sobre isso mesmo, de como a psicoterapia pode curar a disfunção eréctil. Entre vários exemplos, isto prova que o sexo apesar de se apresentar como puramente físico – e muitas vezes fala-se no sexo como uma necessidade física… – envolve-se em dimensões cognitivas, emocionais e mentais que são vulgarmente ignoradas. Qualquer doença mental sofre do mal do estigma também, porque julga-se que a mente, muito rápida e facilmente, consegue resolver o que quer que seja: depressão, esquizofrenia ou distúrbio bipolar. Mas o sexo consegue complexificar aquilo que julgávamos simplesmente biológico e físico. O sexo, só é sexo, porque temos órgãos sexuais e porque temos uma cabeça que dá sentido a aquilo que sentimos. Talvez pensar que a nossa sexualidade reside na nossa mente não seja uma ideia fácil de digerir. Mas é tal e qual um atleta de alta competição, que mesmo que esteja muito envolvido na performance e no treino das suas competências físicas, precisa de disponibilidade mental. Na mente é que se jogam os medos, anseios, culpas ou a vergonha e a disfunção sexual alimenta-se demasiado destas valências que precisam de ser, acima de tudo, reconhecidas e pensadas. Talvez a função do sexo não seja o coito puro e duro, talvez seja um redescobrir emocional que envolve outras gentes, ou que nem envolve ninguém. A disfunção é assim um sintoma de muitas das nossas dificuldades integradas em várias dinâmicas e que precisam de tratamentos que possam acolher a complexidade do físico com o emocional.
David Chan Macau Visto de Hong KongAs agruras do negócio [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] publicação “Doing Business do Banco Mundial para 2018” (WB report) foi lançada a 30 de Outubro pelo Grupo Banco Mundial. É o 15º ano consecutivo em que o Banco Mundial publica uma análise periódica sobre a capacidade negocial dos diversos países e regiões.” Este estudo “avalia todos os aspectos das 11 áreas relacionadas com a criação de um negócio etc.” A comunicação social de Hong Kong divulgou o acontecimento e revelou que o estudo inclui uma classificação das zonas económicas quanto “à facilidade de criar negócio”. Hong Kong aparece classificado em quinto lugar, com uma pontuação de 83.44. Para iniciar um negócio em Hong Kong é necessário possuir um Registo Comercial (Business Registration). Como o Governo não prescindiu da sua taxa sobre este registo as custas vão subir em 2018 enfraquecendo a competitividade da região. O Secretário das Finanças, Paul Chan Mo-po, defendeu a necessidade da aplicação da taxa e afirmou que as custas anuais do Registo Comercial montam apenas a 2.250 HKD, uma quantia razoável para criar um negócio. O Secretário das Finanças adiantou: “Penso que existem aqui alguns mal-entendidos que é preciso esclarecer.” O Registo Comercial é um documento obrigatório para quem quer abrir actividade na área de negócios, que terá de ser obtido junto do Departamento de Receitas Territorial, de Hong Kong. O empresário pode criar o registo em nome individual, em sociedade ou em Companhia £da. Sem este documento qualquer transacção comercial é ilícita. O Registo Comercial deve ser renovado todos os anos mediante o pagamento de uma anuidade. Se a empresa encerrar, deve notificar o Departamento de Receitas Territorial para que os serviços dêem baixa do documento. Como foi dito, a anuidade deste registo é de 2.250 HKD. Este valor divide-se em duas partes, 2.000 HKD são direccionados para os cofres do Governo e os restantes 250 HKD são encaminhados para O Fundo de Insolvência e Protecção Salarial. Este Fundo foi criado para apoiar trabalhadores em situação de insolvência ou de falência. Quando um trabalhador entra em situação de insolvência (por falta de pagamento dos salários), deve reportá-lo ao Departamento do Trabalho e apresentar uma petição de falência contra o empregador. Nessa altura pode ser reembolsado de salários em atraso e de outros benefícios em falta. No entanto não receberá a totalidade do que lhe é devido. Este reembolso tem um limite. Mesmo quando o Governo da RAEHK prescindia da aplicação da taxa, o montante de 250 HKD para Fundo de Insolvência e Protecção Salarial sempre existiu. O valor de 2.250 HKD não é efectivamente excessivo para uma empresa. No entanto, abrir um negócio em Hong Kong custa muito caro, a taxa do Registo Comercial constitui apenas uma de muitas despesas. Imagine-se que íamos abrir uma empresa na forma de Companhia £da. De acordo com o Regulamento Empresarial, a empresa deverá ter uma morada registada. A empresa terá de estar necessariamente sediada em Hong Kong e não no estrangeiro. É uma forma de confirmar que a actividade é exercida na na cidade. Como sabemos, o valor dos alugueres em Hong Kong é extremamente elevado, sem dúvida excessivo para uma empresa acabada de criar. Para reduzir esta despesa, é costume estas jovens firmas adquirirem, em sistema de leasing, um endereço comercial numa empresa de contabilidade ou num centro de negócios. Através de um pagamento anual entre 2.000 e 5.000 HKD, a Companhia £da. pode dar cumprimento aos requisitos estatutários. Mas o Regulamento Empresarial não se fica por aqui. É ainda obrigatório que a empresa seja “auditada”. As auditorias terão de ser efectuadas anualmente. Todas as facturas, recibos, livros-razão, etc. devem ser apresentados ao auditor. Após a auditoria, as contas serão apresentadas ao Departamento de Receitas Territorial para serem apurados os impostos a cobrar. A taxa de auditoria varia de auditor para auditor, mas representará sempre outra soma que a empresa terá de despender. A taxa de auditoria, o aluguer do espaço comercial e as taxas do Registo Comercial são despesas a que um jovem empresário não pode fugir. Somando todas estas despesas compreende-se facilmente que representam um encargo considerável e que ultrapassam em muito os “suportáveis” 2.500 HKD. Na comunicação de Ms. Carrie Lam, Chefe do Executivo de Hong Kong, por altura da apresentação do programa político para 2018, foi sugerida uma redução de impostos para as pequenas e médias empresas. Propõe-se que o imposto sobre as receitas desça dos actuais 16,5% para 8,25%, para os primeiros 2 milhões de lucro realizado. A implementação de uma série de novos benefícios para os residentes de Hong Kon, vai aumentar as despesas do Governo. Com a redução de impostos e o aumento das despesas, parece improvável que venha a haver redução da taxa do Registo Comercial e esta taxa continua a ser elevada para quem quer começar um negócio.
Carlos Morais José A outra faceO direito de não ser [dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]asta nascer. E o que deveria ser um acto natural surge imediatamente carregado de significados. Somos filhos, cidadãos, temos um nome e milhares de expectativas à nossa espera. Depois tornamo-nos alunos, eventualmente soldados e, finalmente, namorados, nubentes, casados, progenitores, empregados nisto ou patrões daquilo, entre outras possibilidades. Temos é de ser qualquer coisa. Sempre, em todos os momentos, vemo-nos constrangidos a ser algo como se isso fosse realmente parte integrante do que somos. E quantas vezes não sentimos, inapelavelmente, que não somos aquilo que somos? Quantas vezes estranhamos os papéis que desempenhamos, bem ou mal, nas nossas relações com os outros? E quantas vezes não nos sentimos o maior dos hipócritas por representarmos um personagem que, bem o sabemos, pouco ou nada tem a ver connosco? O problema é não termos direito de não ser. Obrigatoriamente, somos qualquer coisa, uma dessas categorias que não inventámos mas às quais temos de nos sujeitar. A penalidade é bem forte e passa logo por sermos ou não reconhecidos pelos outros. Quem não é nada de reconhecível exila-se numa terrível solidão. É só experimentar e dizer a alguém desconhecido que não se é nada. O espanto, eventualmente, o medo, toma conta do interlocutor. Pois se não é possível catalogar e arrumar em gavetas, como posso ter confiança, ainda que mínima, nesta pessoa? Será que ela é, realmente, uma pessoa? Ou será apenas pessoa alguém a quem forem atribuíveis as características “normais” e as óbvias pertenças? É na distância a esta “normalidade” que se joga parte do fascínio que resta a esta época… No entanto, tudo se tornaria fluído se não fossemos. Por vezes, a ânsia classificativa, analítica, a grelha sobre o real, apresenta-se como um constructo desesperado, um mecanismo fruste de atribuição de sentidos, incapaz de domar a realidade, senhor da falta e origem do remorso. Mas a sua ausência levaria à criação de um mundo no qual não nos reconheceríamos e obrigaria a uma aprendizagem radicalmente quântica, em que as oposições deixariam de ser a base do pensamento e o universo passaria a ser interpretado como um bailado, onde se estava mas não se era. Aparentemente impossível, portanto. Logo, para dar sossego ao mundo, temos de ser qualquer coisa. Seja ela o que for, pois tudo parece fazer falta: os juízes e os criminosos, os médicos e os doentes, os políticos e os cidadãos, e por aí adiante… Tem é de se ser qualquer coisa, ainda que não nos apeteça ser nada ou entendermos que ser é contrário ao curso da física ou que, politicamente, a ideia de Ser descamba no fascismo. Não! Nada , rien, niente, nulla di nulla! Há que ser, existir não chega. Como deixar de ser sem se ser outra coisa qualquer? E será essa uma meta desejável? Quererei eu perder as qualidades que me tornam no que sou e pelas quais os outros me reconhecem, para deixar de ser e simplesmente existir? A condição é simples: exige um longo, prolongado, disciplinado, afastamento de seres que são e um mergulho nas águas do mundo; obriga a uma participação plena no aparente fluir e a travessia do rio Letes, um compulsivo esquecimento. Não a morte física mas um despojamento total do passado, na ânsia de uma vida no instante. Claro: ninguém tem direito a não ser. Como diria Shakespeare, todo o mundo é um palco cada um de nós representa o seu papel, cada um de nós é qualquer coisa. E, sobretudo, cada um de nós tem uma dívida imensa por pagar, o que nos impede de deixar de ser, mesmo quando queremos simplesmente ser outra coisa. És e pronto! Nada a fazer! Mas… se o pensei é como se já tivesse não sido. E este pensamento, tão português, fez emergir um sorriso que não atribuo ao que sou mas a esse universo de possibilidades outras que o não ser, discretamente, acumula.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no DesertoSuspensão ou expulsão? [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Agosto, os jornais publicaram o relatório da “Sondagem sobre o nível de interesse na eleição para a Assembleia Legislativa”, organizada pela Associação de Desenvolvimento e Pesquisa da Inteligência Criativa de Macau e pelo Instituto de Investigação Social e Cultural da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau. A sondagem foi realizada através de um questionário online. Os 456 questionários preenchidos registaram uma pontuação média de 46.2%, abaixo dos 60% considerados positivos. Um dos organizadores desta sondagem foi o Prof. Pang Chuan, um dos deputados nomeados pelo chefe do Executivo da actual Assembleia Legislativa. A 6ª. Assembleia Legislativa assumiu oficialmente funções há menos de dois meses, durante os quais muitas sessões já tiveram lugar. Tirando a área de Transportes e Obras Públicas, que ainda não foi totalmente debatida no âmbito do Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018, as quatro áreas restantes já foram objecto de debate. O público tem estado mais ou menos a par do que se passa na Assembleia através das transmissões televisivas e dos jornais. Dos diversos temas levados a debate, destacamos aquele que se tornou assunto de conversa em toda a cidade, ou seja, a “impossibilidade de contratar um camionista, mesmo que se lhe pague 40.000 patacas”. Se o desempenho da actual Assembleia Legislativa também vier a ser avaliado, pergunto-me qual será a classificação do Prof. Pang Chuan, já que também é deputado. Aposto que estão todos de acordo que Sulu Sou Ka Hou é o deputado da actual Assembleia Legislativa que mais se destaca do geral. Numa altura em que os mandatários nomeados pelo chefe do Executivo estavam a ser criticados pelos participantes de um fórum público, pensaram que as criticas que lhes eram dirigidas tinham partido dos “apoiantes de Sulu Sou”. Mas por que é que o deputado mais jovem se tornou o centro das atenções na Assembleia? Porque pode vir a ser o primeiro representante a ver o seu mandato suspenso, ou mesmo cancelado, pelo plenário. No que diz respeito ao alegado envolvimento de Sulu Sou em reuniões ilegais, que terão tido lugar antes da sua candidatura a deputado, a Acusação está completamente a par da situação, mas eu também estou, já que fui mandatário da lista do “Novo Progresso de Macau” , que concorreu às eleições para a Assembleia Legislativa. As outras listas que difamaram o “Novo Progresso de Macau” durante o período eleitoral, também estão certamente bem informadas. De facto, os membros da lista do “Novo Progresso de Macau” analisaram os possíveis impactos que as acções desenvolvidas pelas forças policiais no âmbito do caso da “Doação de 100 milhões de yuans feita pela Fundação de Macau à Universidade de Jinan, em Guangzhou”, teriam, a curto prazo, no processo de Sulu Sou. Os membros da associação fizeram uma análise detalhada e uma avaliação dos riscos deste caso, e foram de opinião que as acções de Sulu Sou são absolutamente sustentáveis em termos legais. A acusação é uma coisa e o julgamento é outra. Esta polémica não teve um efeito significativo nas eleições. Mas o que interessava era utilizar as acções de Sulu Sou como trunfo para atacar a oposição durante o processo eleitoral. No entanto, nessa altura, não existiram críticas directas aos seus comportamentos, apenas alguns rumores caluniosos e sem fundamento. E porque é que este assunto não foi trazido à baila de forma frontal? Será que não lhe deram importância? Os opositores de Sulu Sou não mencionaram este tema intencionalmente, porque, se o tivessem feito teriam também de falar do caso da doação da Fundação de Macau à Universidade de Jinan, no qual Sulu Sou monitorizou as acções do Governo da RAEM, e isso apenas abonaria a favor do jovem deputado. Por isso, os opositores na sua “esperteza”, evitaram o assunto. Quando a Comissão de Assuntos Eleitorais da Assembleia Legislativa reconheceu que Sulu Sou tinha sido eleito e submeteu este reconhecimento à aprovação do Tribunal, a equipa do “Novo Progresso de Macau” não ousou ter um segundo de descanso. Por agora, as audições e o julgamento de Sulu Sou são meros procedimentos rotineiros. A existir problemas, talvez passem antes do mais pela razoabilidade, ou falta dela, da acusação feita pela polícia. Depois disso, compete à Assembleia Legislativa decidir a forma como vai resolver a situação deste jovem deputado que desempenha o seu dever no hemiciclo sob o lema “Reformar a Assembleia Legislativa rumo ao Desenvolvimento Sustentável”. Já que se costuma dizer que a ausência de notícias é bom sinal, eu reformulo e passo a dizer, a ausência de opiniões é bom sinal. O parecer da Comissão de Regimento de Mandatos sobre Sulu Sou não é de todo tendencioso, o que quer dizer que os membros da Comissão foram incapazes de encontrar razões válidas para apoiar o termo do seu mandato. Se um deputado poder ser suspenso ou expulso sem provas substanciais, estar-se-á a ir contra a vontade dos eleitores e a prejudicar a própria Assembleia Legislativa. Recentemente, alguns jovens de Hong Kong saíram da prisão sob fiança após apresentação de recurso. Todos eles agradeceram a Rimsky Yuen, “Secretário da Justiça,” por ter permitido que os apoiantes da desobediência civil aprendessem uma lição valiosa e por ter ajudado a população a tomar consciência do valor do “estado de direito” em Hong Kong. Se o mesmo se passar em Macau, pergunto-me se os interessados irão “agradecer a Wong Sio Chak, o Secretário para a Segurança”.
Jorge Rodrigues Simão PerspectivasA emergência da China (II) “New China’s was not a capitalist economy on the basis of private ownership, as in European and American countries, nor was it a socialist economy on the basis of public ownership, as in the Soviet Union and Eastern Bloc countries. It was something altogether novel: a new-democratic economy, with both a capitalist sector and a socialist element. The regime of the new democracy was a system of democratic centralism designed by the National People’s Congress. It was totally different from the parliamentary system of the former democracy, and belonged to the classification of the representatives’ conference of the socialist Soviet Union. However, it was also completely different from the Soviet system, because it eradicated class, while the Chinese system was based on an alliance of all revolutionary classes.” “Characteristics of the Common Programme Draft by the Chinese People’s Political Consultative Conference, September 22, 1949” – Zhou Enlai [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, apesar do seu motivado discurso em Bandung, e das suas negociações com Kissinger, não era visto pelo Ocidente como um diplomata. A sua visita a África, em 1963, deixou-o muito desiludido quando os africanos rejeitaram o seu pensamento sobre a revolução, pois era o última ideia que os recém independentes países africanos procuravam. Tais países desejavam estabilidade. A China talvez tenha cometido erros com a África, assim como esta cometeu muitos erros consigo mesma, dado que o continente ficou dividido em cinquenta e cinco países e com duas mil subdivisões históricas, culturais e linguísticas. A China aprendeu como ser um estado o mais rápido possível, especialmente com os poderes coloniais que foram enfraquecidos pela II Guerra Mundial e que começaram a sair com mais avareza sem preparar as estruturas governativas e a administração pública dos estados que rapidamente se tornaram independentes. A Nigéria teve a sua sangrenta guerra civil no final da década de 1960. O Congo desmoronou-se desde o início da década de 1960. Nos países onde as potências coloniais se recusaram a sair, e ressalve-se a situação de Portugal que se recusou a descolonizar Angola, guerras sangrentas de libertação entraram em erupção, traduzidos em conflitos originados por movimentos competitivos de libertação. A China, em Angola, apoiou o movimento errado, ou seja, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). O Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) no poder desde a independência, em 1975, foi apoiado pelos soviéticos e cubanos. A China apoiou no Zimbábue a luta armada de Robert Mugabe contra o governo da minoria branca conservadora que, em 1965, declarou unilateralmente a independência como Rodésia, e liderado por Ian Smith. Robert Mugabe tornou-se primeiro-ministro, em 1980, ao ganhar as primeiras eleições democráticas. Em Abril desse ano, é declarada a independência, passando o país ter o nome que actualmente ostenta, e a partir de 1982 Mugabe começa a liderar o país como ditador, até 21 de novembro de 2017, quando renuncia a favor de Emmerson Mnangagwa que tomou posse como presidente, a 24 de Novembro de 2017. O apoio da China a Robert Mugabe significou não só amizade duradoura, como o Zimbábue sempre manteve com a China desde a independência em 1980, um rápido e ardiloso trabalho diplomático para reparar as relações com os países que não tiveram a ajuda chinesa, como foi o caso de Angola. Ainda que a China tenha começado a fornecer assistência ao desenvolvimento de África pouco depois de Bandung, é facto que iniciou uma nova fase dessa ajuda de forma mais aguerrida, muito ligada a futuras parcerias comerciais e exploração de recursos, após a era da libertação da maioria negra na década de 1990, quando a África do Sul finalmente alcançou o domínio da maioria negra sob a liderança de Nelson Mandela (prémio Nobel da Paz de 1993) e líder do Congresso Nacional Africano (CNA na sigla inglesa), fundado em 1940. Nelson Mandela foi presidente do país de 1994 a 1999. As parcerias comerciais e a exploração de recursos começaram em boa verdade, dez anos após a enunciação formal de Deng Xiaoping sobre as “quatro modernizações”, em 1978, de forma a que sua máquina industrial funcionasse e pudesse fabricar mercadorias para o comércio, que exigiam recursos minerais e petrolíferos em grande escala e que a África poderia fornecer. A remoção das tensões políticas com os Estados Unidos, juntamente com a plenitude de todas as liberdades diplomáticas, foram igualmente importantes para o sentido chinês de globalização que, desde esse período, começou a alarmar o mundo ocidental, e com o assento no Conselho de Segurança da ONU, percebeu o seu significado, o que aplacou todos os seus presentimentos sobre ser o “império do meio”, apesar do longo período de marginalização. Apesar da caducidade da “Teoria dos Três Mundos”, a aspiração a um papel de liderança nunca desapareceu completamente da China, que entendeu que devia ser realizado pela diplomacia económica e não pela diplomacia política. Mesmo assim, a enunciação da teoria, conjuntamente com o reconhecimento diplomático da China pelos Estados Unidos, que conduziram a ter o referido assento no Conselho de Segurança da ONU, e ao sucesso das “Quatro Modernizações”, estabeleceu uma era de prosperidade e uma forma peculiar de globalização chinesa, pois o seu poder começou a estender-se a todos os cantos do planeta. O papel da África foi crucial, embora seja de enfatizar que o alarme ocidental sobre a compra chinesa de tanta influência económica no continente nasce de análises muito fracas. Em primeiro lugar, a influência foi literalmente adquirida. A China não forçou a colonização da África, como a Europa o tinha feito. A China não apoiou o racismo por causa da expropriação mineral, como os Estados Unidos o fizeram e acima de tudo, a África não é um continente negro tolo e inocente que não podia fazer escolhas por si e em seu benefício. A China sempre teve que negociar as portas de entrada para a África e apareceu com um novo modelo económico, que poderia ser chamado de “modelo de Xangai”, em oposição a um “modelo de Washington” baseado nos imperativos políticos e na condicionalidade económica do Ocidente. O “modelo de Xangai”, era a condição leve, com um generoso carregamento de liquidez, projectos de desenvolvimento e fundos, que precederam a exploração de recursos minerais e petrolíferos. Se os africanos muitas vezes conduziram negócios difíceis, apesar dos medos ocidentais de inocência e da ingenuidade africana, os chineses geralmente, configuravam a África de forma condescendente e superior, e que foi especialmente real para as empresas privadas chinesas que poderiam ser terrivelmente ingénuas e racistas nas suas ideias acerca da forma de operar em um contexto africano. A difícil gestão chinesa das minas da Zâmbia, por exemplo, levou a muitas mortes de trabalhadores locais sem condições adequadas de saúde e segurança, no quase inexistente sistema nacional de saúde do país. Tal situação alargou-se a um sistema de valores que sustentava o modelo oficial chinês. A experiência e os ganhos de trabalhar na África ajudaram os chineses nos seus planos para o futuro. A África trouxe um novo amanhecer para a China. O Ocidente sempre desfilou, ao lado da sua generosidade, às vezes como condição para receber benefícios, valores de democracia, pluralidade e transparência. A generosidade chinesa foi retratada como suborno e sem valor. O que provavelmente está no trabalho realizado é a ética confucionista de “guanxi”, que descreve a dinâmica básica de redes de contactos e influências pessoais, e que constitui um conceito central da sociedade chinesa. No entanto, é uma reciprocidade em uma cadeia de hierarquias verticais. Enquanto os valores ocidentais na sua forma mais pura são horizontais, como em uma democracia, os valores confucionistas não o são. O respeito e a obediência fluem, desde a pessoa ao imperador. Todavia, a provisão e cuidados devem fluir para baixo, caso contrário, o imperador perderia o mandato do Céu. Além disso, a personagem superior não deve apenas causar um fluxo de valor, deve fazê-lo primeiro e, se o destinatário abaixo for particularmente fraco (ou subdesenvolvido), o fluxo para baixo deve ser generoso, o que revela a visão chinesa do destinatário africano, que é (talvez inconscientemente) de uma entidade mais fraca e comprovadamente menos desenvolvido. O provimento chinês de acordos com adoçantes abundantes, pode ser visto como parte da responsabilidade chinesa em um arranjo hierárquico, mesmo quando toda a retórica é sobre parcerias iguais. Tal, como na “Teoria dos Três Mundos”, o ethos subjacente era uma liderança chinesa e, implicitamente, de superioridade. Tal senso de liderança era, em um sentido mais verdadeiro, uma expressão do realismo chinês como uma abordagem das relações internacionais. A China considerou que era impotente e foi um grande choque psicológico, após milénios de poderio. Actualmente considera-se livre para voltar a ser novamente uma super potência, mas por causa da era de humilhação, teve um genuíno e confucionista senso de solidariedade com os outros que emergiam da mesma condição. Era um idealismo empático com realismo, o mesmo sentimento de afastamento cultural que levou a China a um perigoso estádio um século antes. É de considerar que desta vez, com grande parte dos recursos do mundo em seu poder, está certa de que ganhará em parte a batalha da globalização. O caso chinês sugere que a apreciação cultural se torna importante para a compreensão da política externa, de forma que o “stress” da escola inglesa sobre a história e o “stress” da escola de Copenhaga sobre as formações discursivas, devemos acrescentar o “stress” nas formações culturais. No que concerne à China, o “stress” seria confucionista, mas também no sentido preconizado pela escola inglesa, totalmente histórico, dada a memória íntima e a recordação do século de humilhação pelos poderes imperiais. O comportamento dos Estados Unidos após a II Guerra Mundial em relação à China não teria sido mais que um eco contínuo dessa situação. O avanço nas relações com os Estados Unidos, ocasionado em grande parte pelos esforços de Kissinger e Zhou, foi intuitivo e, na medida em que um actor intuitivo pode ser racional, lideraram sem a panóplia de ambos os lados do aparelho de formulação governamental de política externa, com toda a sua organização burocrática, e sem as respostas de repertório. Simplesmente não havia um repertório nesta situação. Há um outro exemplo em África, no qual o presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, entrou em negociações com Frederik Klerk (presidente da África do Sul de 1989-1994 e vice-presidente de 1994 a 1996, sendo no último período presidente, Nelson Mandela) acerca do racismo sul-africano em 1989, sem qualquer preparação racional, resumos de políticas ou biográficos. O presidente Kaunda, desconsiderou o seu Ministério dos Negócios Estrangeiros e o seu pessoal da Casa do Civil, entendendo que era uma racionalidade formada inteiramente pela intuição e fé na força moral da igualdade e no desejo pela paz. A China, no caso da África, estabeleceu um longo namoro, e está a receber o retorno à medida que os acordos de longo prazo de exploração de recursos naturais se concretizam. O sentimento nasceu de uma empatia chinesa pela humilhação de África nas mãos dos poderes coloniais e Zhou Enlai, em 1956, criou como marco da política chinesa, o princípio da não-intervenção nos assuntos internos dos outros países. Esta foi simultaneamente uma observação do princípio fundamental do vestfalianismo, e também um compromisso com a África, de que a China não seria como as grandes potências que foram ao continente nos séculos XVIII e XIX. A reforma da Organização da Unidade Africana (OUA), em 2000, viu a adopção do princípio da não-indiferença. É um princípio que tem sido irregular e selectivo, talvez simplesmente convenientemente observado, diante da turbulência e das matanças que continuam em certas partes da África até ao presente. Os chineses, associados com uma posição do século XX, nada têm a dizer à formal posição africana do século XXI. Talvez, e uma vez mais, olhando para trás se poderia negar à China a possibilidade de olhar o futuro que lhe pertence. Todavia, deve haver a consideração sobre a formulação da política externa chinesa que está a ser sujeita ao impulso e à tracção, nos termos que Graham Tillett Allison, Jr. descreve no seu livro “Reaking Foreign Policy: The Organizational Connection”, de diferentes organizações na ordem ideológica, económica e política chinesa, em que todos procuram adquirir posições em matéria de relações externas. Existem as estruturas organizadas do governo, como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Gabinete do Primeiro-ministro do Conselho do Estado. Podemos dizer que as estruturas de pesquisa, particularmente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, têm sido até agora menos fortes, pois há os órgãos de política externa do Exército de Libertação do Povo Chinês, e acima os comités de política externa do Partido Comunista Chinês. As instituições financeiras chinesas, cada vez mais, têm uma grande palavra a dizer em toda a conjuntura. Todavia, os órgãos do partido são os mais importantes em matéria de tomada de decisões e ninguém sabe como funcionam. Na ausência de uma figura como Zhou Enlai, que foi correctamente e propositadamente impenetrável, pela sua sobrevivência política, poucos líderes existem com carácter ou personalidade, que se possa dizer terem carregado um poderoso ethos pessoal para o domínio global, como foram os casos de Zhou Enlai e Kissinger.
Leocardo VozesCannabis Sodomis [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]i ontem num desses sítios nas redes sociais de notícias “a la minuta” que o Canadá se prepara para legalizar o uso da “cannabis” (vulgo “erva”) para fins recreativos. O gémeo bonzinho dos Estados Unidos da América já tinha passado uma lei que permitia o uso da “cannabis” para fins medicinais e terapêuticos, mas agora prepara-se para dar um passo que, do ponto de vista neutral, se pode considerar “progressista”. E digo neutral porque já abordei aqui este assunto, e dependendo das opiniões mais ou menos conservadoras, podia-se tornar numa discussão interminável. Contudo, na secção de comentários desta notícia exercia-se o contraditório a todo o vapor e, entre os argumentos de “progressistas” e “conservadores”, não pude deixar de reparar na entrada de um cavalheiro, onde se lia: “quem não consome droga e leva no traseiro é do tempo das cavernas… vocês é que são os evoluídos” (não era “traseiro” que estava lá escrito, mas entendem a ideia). Desde quando é que dar na passa se tornou sinónimo de homossexualidade? Será que o autor deste fabuloso raciocínio mete-se nos copos e dá porrada na mulher, como um tipo “às direitas”? Desconheço se o faz, mas por esta ordem de ideias, suponho que sim. Vem com o “pacote” completo. É um facto que hoje em dia as redes sociais estão ao alcance de qualquer um, incluindo – e sem querer estar aqui a estratificar ninguém – pessoas que nunca pegaram num livro em toda a sua vida, ou que concluíram o ensino básico há mais de 30 anos, e nunca tiveram muitas oportunidade de se expressar pela escrita. Daí as centenas de usuários que escrevem “passas-te na prova?”, “hades ver”, ou “muinto jiro”, ou ainda os que debitam aquilo que antes só ouvíamos de alguns motoristas de táxi, daqueles que gostam de paleio. Não é grave, nem sequer justifica o chorrilho de inanidades que se lêem um pouco pela rede. Para mim isto faz parte de um problema muito maior, a que eu chamo “politização das coisas” ou “politização de tudo”. Explicando isto resumidamente, existem comportamentos considerados “liberais”, ou ainda “de esquerda”, que são rejeitados por quem acha que talvez o mundo se torne muito melhor se ficar parado ou até se voltar um bocadinho para trás. Assim suponho que coisas como a dialéctica cannabis/sodomia, apresentada ali em cima, se incluam no mesmo grupos de outras como o aborto, a eutanásia, a ideologia de género, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o aquecimento global, a imigração, o acolhimento de refugiados ou o orgulho negro. A bipolaridade que existe nesta “politização de tudo” faz com que a alternativa a isto esteja pejada de conceitos abstractos, como o patriotismo, a etnia, a cultura (?), mas acima de tudo uma forte rejeição de todos os outros mencionados anteriormente. Montado o circo e com os gladiadores de um e outro e lado, muito se vai agredindo verbalmente, esta gente. Estes compatriotas, vá lá. Mas as redes sociais são o que são – e ainda bem. Felizmente existe uma maioria silenciosa que pensa pela própria cabeça, vota mais e barafusta menos e, no máximo, vamos apanhando uns ataques de azia, provocados por quem acha no direito de afirmar que quem gosta de fumar “cannabis” é necessariamente um sodomita passivo. Tempos difíceis estes pelos que estamos a passar agora, com tanto conflito, tanta injustiça, tanta incerteza quanto ao futuro, enfim, o mesmo caminho de sempre que a humanidade vem a tomar, a caminho do inevitável abismo. A solução não é simples e por cada buraco que se tapa abrem-se outros dois, mas existem sempre paliativos que nos ajudam a suportar melhor o tempo que nos resta neste mundo. É tudo uma questão de como encarar este fatalismo; ou aceitar a mudança, e que atrás de tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir, ou estrebuchar, agarrado ao que já passou, e a ficar cada vez mais velho. De idade, e de espírito, também.
David Chan Macau Visto de Hong KongCritérios de avaliação [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início deste mês os jornais falaram sobre a história de Julie Yu Hung-hsua, uma professora universitária reformada que, nos últimos três anos, tem tentado processar a Universidade de Hong Kong. Julie desencadeou este processo porque a Universidade atribuiu mestrados a quatro estudantes que ela tinha chumbado. O processo tem desgastado financeiramente a antiga professora. Em 2014, Julie Yu chumbou quatro estudantes de mestrado, mas após recurso, um painel da Universidade reverteu a decisão da docente. Os alunos tinham obtido a classificação D+ no curso de marketing, uma avaliação feita a partir de trabalhos práticos e teóricos. Na altura, em resposta às queixas dos estudantes, a professora fundamentou a sua decisão a partir de uma tabela que mostrava a assiduidade e participação nas aulas. Descontentes, os jovens recorreram ao conselho universitário. Dois meses mais tarde, Yu foi informada que um painel constituído por três membros tinha subido as classificações de D+ para C. A professora afirma que o painel se recusou a justificar a decisão e que apenas comunicou com ela uma vez por mail. No email interrogavam-na sobre o seu sistema de classificação e sobre a clareza com que tinha passado a mensagem aos estudantes. Depois de ter sido informada da subida das notas, Julie Yu apresentou uma reclamação por escrito à Universidade. Na resposta podia ler-se que a decisão estava tomada e que era irreversível. Em Abril de 2015, crente no seu “inalienável direito a ser informada e ouvida”, a professora lançou um processo judicial contra a “ilógica, irracional, inconsistente e arbitrária” decisão do painel. Em Julho de 2017, o Tribunal de Último Recurso recusou o apelo contra a rejeição do caso, tomada pelo Tribunal de Primeira Instância. A rejeição tinha por base a natureza académica do processo e a demora na sua instauração. O Tribunal tem um período de retroactividade de apenas três meses. Do ponto de vista académico, podemos afirmar que o professor tem o direito inalienável de ser informado e ouvido sobre todas as matérias que dizem respeito ao exercício da sua função. Não existe nenhum motivo para que uma decisão deste foro seja alterada por outrem e, que para além disso, o professor não tenha sido informado das alterações e dos seus motivos. Se não existe um mecanismo legal que permita levar estes casos a Tribunal, porque é que não o criamos? Se deixarmos este tipo de coisas em segredo, não favorecemos a imagem das Universidades, nem das empresas privadas. São situações que afectam a Gestão de Pessoal, no que respeita ao cumprimento do dever dos funcionários, se tomarmos em conta os padrões que lhes são exigidos. Não se pode alterar esses padrões sem uma razão válida. Mas voltemos a analisar as notícias sobre este caso. Pelo que foi dito, podemos verificar que a assiduidade e a participação contam para a avaliação. Numa cadeira obrigatória, como era o caso, a “Assiduidade” é um critério implícito. Não se pode atribuir notas a alunos que não comparecem às aulas. Mas, por vezes, este critério de classificação traz algumas dificuldades. Por exemplo, numa aula de três horas, se o aluno só estiver presente durante uma hora terá direito a um terço da pontuação? E se o aluno estiver presente de corpo, mas ausente de espírito, digamos porque adormeceu ou está a sonhar acordado, como é que o professor o há-de classificar? A “Participação” é outro critério de classificação. De uma forma geral, os professores preparam exercícios para as aulas, por exemplo, apresentações orais, discussões de tópicos específicos, etc. Imaginemos que quando estamos a falar de participação nos referimos a uma “apresentação oral”. Volta a apresentar-se-nos uma dificuldade. As notas serão atribuídas aos alunos porque eles fazem apresentações, ou porque fazem boas apresentações? Se o único critério for a “Apresentação” a nota ser-lhes-á atribuída quer o desempenho seja bom ou mau. Se o critério for o desempenho, as notas dependem da qualidade do trabalho. Como as notícias não foram específicas neste ponto, não podemos acrescentar mais nada à discussão. Seja como for, estes quatro estudantes tiveram sorte porque depois do recurso viram as suas notas passar de D+ para C. A Universidade poderá ter tido as suas razões para subir as notas, mas nós nunca o saberemos. Mas, a bem das boas práticas universitárias, seria preferível tornar públicas essas razões. Ensinar é uma arte e tudo depende da relação entre o professor e os alunos. Se os critérios de classificação forem suficientemente claros, e houver boa comunicação, a maior parte das dificuldades são superadas. Este tipo de informação deve ser feita por escrito e mais tarde lida em aula, para se ter a certeza de que todos os alunos a recebem. Também é aconselhável ir lembrando os alunos dos critérios de classificação. Evita que algum deles venha a dizer, “Esqueci-me, desculpe.” Recorrer aos Tribunais para resolver disputas académicas não é a melhor solução. Ficam todos a perder, a Universidade, o professor e os alunos. Se não houver harmonia, o professor não quer trabalhar na Universidade e o estudante não quer ter aulas com professor. Não é bom para ninguém.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesNo Divã com o Sexo [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pesar da psicanálise ter sido o grande impulsionador da teorização do desenvolvimento sexual e da saúde mental, hoje em dia são raros os psicoterapeutas que usam uma perspectiva estritamente psicanalítica. Hoje, cada vez mais, os psicoterapeutas tentam incorporar as várias perspectivas psicológicas de como lidar com o sofrimento humano e com o(s) processo(s) de procura de bem-estar – mas como é que se lida com o sexo? Surpreendentemente ou não, somos todos humanos e todos temos vieses que nos podem tornar mais ou menos tolerantes quando discutimos a sexualidade. Os psicoterapeutas podem ter mais ou menos capacidade de explorar, com o seu cliente, identidades e formas de sexualidade menos prototípicas. Surpresa: nem todos nós encaixamos nos paradigmas ocidentais, que se baseiam, fundamentalmente, numa perspectiva evolutiva, cisgénero, heterossexual e onde o sexo serve unicamente os fins de procriação. A dificuldade em falar do sexo de forma saudável, é transversal a todas as categorias profissionais que, à partida, achamos nós, deveriam ter valores mais progressivos, ou que fossem, pelo menos, a favor do bem-estar individual e colectivo. Assim acontece quando continuamente assistimos à representação do outro – o que não encaixa na expectativa heterossexual – como silenciado, hiperssexualizado ou assexualizado. Na formação psicoterapêutica começam a existir conceitos que nos auxiliam a pensar estas questões do sexo e uma delas é a do sexo-positivo. Considerem um espectro em que num extremo está o sexo-negativo e no outro o sexo-positivo. De um lado temos as dificuldades associadas à culpa e à vergonha do sexo, e da outra temos consciencializada a necessidade de considerar o sexo como parte integrante do nosso desenvolvimento saudável, nas suas várias expressões livres e consensuais. Muito para além das identidades sexuais como as entendemos, o sexo-positivo engloba o bem-estar físico e as experiências e relações de prazer. Um psicoterapeuta sexo-positivo sabe que é necessária uma sensibilidade particular para lidar com as tendenciais mensagens e valores sociais de erotofobia que muitas vezes são trazidas para o processo terapêutico. A erotofobia, conceito ao qual eu sou relativamente nova, reforça que o medo do erótico, ou, medo de aceitar o nosso erotismo, está associado a outras formas de comportamento nefastas para a saúde, bem como uma diminuição da auto-estima. Até há bem pouco tempo, no manual de diagnóstico à doença mental (DSM-IV), ainda se encontrava listado como patológico o sadismo e masoquismo sexual (vulgarmente denominado por BDSM). Não tem sido fácil desfazer a ideia de que não existe uma ‘normalidade’ categórica do sexo. Tanto que ainda existem um número de assumpções sexo-negativas que associam as práticas BDSM a ‘traumas não resolvidos’ ou de desajuste social e sexual, em que (supostamente) há uma forte dependência nas relações de poder que se acreditam ser ‘perpetuadas’ na vida real. Esta estigmatização (e má informação), que acontece entre terapeutas e profissionais, parte da contínua confusão entre BDSM consensual e não-consensual, este último bastante associado à literatura forense. Poderia dar muitos mais exemplos, ocorre-me por exemplo, as constelações poliamorosas que muito provavelmente, em contexto terapêutico, serão analisadas à luz de relações monogâmicas – o que não servirá de grande ajuda, muito pelo contrário. E porque estas coisas têm vindo a acontecer, existem vários apelos pelo sexo-positivo no sentido de valorizar a expressão e desejo sexual consensual, que ultrapasse a nossa necessidade de considerar patologia aquilo que – bem trabalhado e bem aceite – nos traz a uma relação saudável connosco próprios e com os nossos desejos e prazeres.
Carlos Morais José A outra face VozesO resto não vale nada [dropcap]S[/dropcap]ubitamente, um Verão pesado, do nosso descontentamento. Um Verão birrento, um Sol intensamente presente no momento que deveria ser de ausência. Falta de paciência. Que Verão é este, que Sol nos descoroçoa? Porque ardemos neste umbral que vestimos de pessoa? É um Verão teimoso, nu de nuvens, ungido de um insuportável azul. Num relance, quando do suor nocturno acordo, pergunto: onde é o Sul? E quero andar. Mas há neste clima algo seco, intratável, indizível, algo de trevas disfarçadas de luz, que não seduz. Logo me fico. E certifico a imobilidade com duas ou três machadadas breves: numa vai o Sol, com as cortinas; noutra o dia, com as meninas; e ainda outra, arrepiada, assustada de não cortar nada. Não sei se a culpa é do tempo. Que é estranho lá isso é! Como ler, nesta desamparada estrada, a das voltas e travoltas, a das voltas da manada? Não sei. Saberá o rei, esse vidente. A mim, dói-me um dente e assim humilíssimo me recolho. Agora dói-me um olho. Irra! Que me há-de doer sempre qualquer coisa! Que seca esta vida de alforreca, esparramado na praia, esmagado pelo Sol. Clima inclemente… esquecia-me… dói-me um dente… Quererá isso dizer que não posso mastigar? Que nem sombras posso ver? Não. Consigo correr, assim rente pela estrada e dar curvas e vociferar com o caminho. Olha p’rá qu’ele… coitadinho… ficou-se pelas covas neste Verão sem remissão. Vai-te embora, vai-te embora, diziam em tom de nora as mulheres num alvoroço. Pobre moço que ao tremoço deve horas de oração. Nunca existiu perdão que não seja esquecimento, seja gato ou jumento, muralha ou paredão, nunca existiu perdão… Estamos condenados ao Sol, à Lua, aos lamentos. Vêm do céu, caem como a chuva haverá de cair, torrencial, animal. E neles olímpicos nos banhamos. Não queremos amos, isso garanto. Preferimos o espanto de saber sem entender. Aliás, não quero saber nada. Prefiro os burros e a sua perfeita andadura. E candidamente confesso: sim, quero o que morre, não o que dura; quero o que renasce a cada hausto, no desembaraço das metamorfoses; quero tudo outra vez mas desta vez sem vozes. Aspiro ao silêncio, dizia ainda antes de ver. Eu sabia lá o que era isso. Mas não é fácil renegar. Aqui estou, aqui me tens. Não te voltes contra mim, minha mãe. Tudo menos isso. Basta de desdéns. Chega de Sol, chega de sombras. Quero o cinzento, o seu lamento, a tristeza assoberbada. O resto não vale nada. Pois. Passeio o esqueleto no trottoir. Solta-se uma gargalhada. O resto não vale nada.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA emergência da China (I) “Zhou Enlai was a quintessential Chinese leader and devoted his postwar career to preserving and promoting Chinese national interests until his death.” “The Making of China’s Peace with Japan: What Xi Jinping Should Learn from Zhou Enlai” – Mayumi Itoh [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Imperador Napoleão afirmou que o mundo devia ter cuidado com o dragão adormecido, para que não o despertasse. A China não estava apenas adormecida, mas perdida num tempo antes da modernidade e incapaz de emergir do sonho denso de um mundo anterior, no qual tinha sido o país mais avançado do planeta, certamente o mais virtuoso e sábio, mas de alguma forma foi submerso pelo poder e pelos saques do que antes eram Estados bárbaros com regras primitivas e populações rudes. O arrastamento de uma China sonâmbula para a globalização foi um enorme choque para um império que se tinha isolado. As potências imperiais do século XIX, unidas por uma rápida modernização do Japão, sujeitaram a China a enormes humilhações que continuaram no século XX, especialmente por parte do Japão que ocupou uma grande parte do seu território nos anos anteriores à II Guerra Mundial. Os chineses não se solidarizaram, pois encontravam-se divididos em dois campos armados concorrentes, com aspirações para duas formas muito diferentes de República, uma administração de fantoches japoneses, e vários enclaves do senhor da guerra. Os exércitos chineses, não importa o quão desesperadamente e tardiamente se procuraram modernizar-se, acabaram por sucumbir diante dos japoneses devido à sua terrível liderança. A facção nacionalista do “Kuomintang” (Partido Nacionalista Chinês), liderado por Chiang Kai- shek, foi um aliado dos Estados Unidos, Reino Unido e da União Soviética durante a guerra, e lutou com os britânicos na Birmânia, mas enfrentou quer o exército o japonês, como o exército comunista do Presidente Mao. No final da II Guerra Mundial, a luta continuou na China, e os comunistas saíram vitoriosos em 1949, dirigindo as forças nacionalistas de Chiang para o exílio na ilha de Taiwan. Todavia, a China estava em ruínas e o regime comunista iniciava as suas novas políticas sociais e económicas, com grande custo para a estabilidade do país. A diplomacia foi, com excepção da União Soviética comunista uma prioridade e os Estados Unidos como aliado dos nacionalistas derrotados, determinante no congelamento da China à diplomacia internacional, retirando-lhe respeitabilidade. Os Estados Unidos, utilizando o seu poder de veto nas novas Nações Unidas, impediram a China de ocupar o seu lugar no Conselho de Segurança, mantendo o regime nacionalista no seu lugar da ONU. As relações com a União Soviética começaram a arrefecer, em 1956, quando Nikita Khrushchev iniciou o processo de repudiar os excessos tirânicos de Estaline. Os chineses consideraram como o ínicio de um revisionismo muito longo, o que justificou uma nova diplomacia, com o fim de encontrar aliados em um mundo mais vasto. O lugar de primeiro secretário do partido comunista soviético foi ocupado por Khrushchev, após a morte de Estaline em 1953, e não havia indicações públicas de que se iria desviar significativamente do legado que tinha herdado. O discurso de quatro horas de Khrushchev, em 25 de fevereiro de 1956, foi de acusação a Estaline por ter conduzido um culto de personalidade, assustando desse modo todo o mundo comunista, incluindo a China. Tornou-se claro para os chineses, mesmo antes do discurso, que confiar unicamente na União Soviética, em termos de apoio diplomático era imprudente. O primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, assistiu à “Conferência Afro-asiática de Bandung”, que se realizou entre 18 e 24 de Abril de 1955, e que foi uma enorme reunião de líderes do mundo emergente e o precursor-chave para o “Movimento dos Países Não Alinhados (MNA)”, que reuniu cento e quinze países, tendo proferido um discurso que constituiu um marco no movimento. A incursão diplomática do primeiro-ministro chinês teve como fim a procura de aliados diplomáticos e grangear a apreciação internacional para o que China tinha realizado. Simultaneamente, foi uma tentativa da China de reconhecer que outros também tinham passado por um século ou mais de uma terrível imperialização. Os chineses tinham estado demasiado isolados do mundo, não tinha fundamentos empíricos para a solidariedade e não poderiam ser por razões ideológicas, pois a maioria do mundo afro-asiático não era comunista, embora muitos países tivessem inclinações para uma forma ou outra de socialismo. O primeiro-ministro Zhou fez um discurso de empatia, baseado essencialmente em principios éticos, referindo o facto de outros países os terem despojado e que os chineses os ajudariam. Outros países impuseram a sua soberania e os chineses não interfeririam nos assuntos internos dos países, cujo funcionamento pertencia exclusivamente aos seus governos. A combinação de assistência e não-intervenção ou não-interferência tem sido algo que os chineses aplicaram como principío e grande motivação desde essa época. A China, no seguimento da “Conferência de Bandung”, iniciou a sua assistência financeira às nações emergentes, apesar da Republica Popular da China (RPC) ter apenas sete anos de existência e o seu governo, gerir um país desesperadamente pobre e subdesenvolvido. Os modelos de arranque rápido do presidente Mao para apressar a modernização e a industrialização não resultaram e tiveram enormes custos em termos de deslocamento social. O presidente Mao era um poeta visionário que tentava ser um planeador industrial, com desconhecimento de indústria ou industrialização, dado não ser esse o seu mester. Os que o rodeavam, como o primeiro-ministro Zhou e mais tarde Deng Xiaoping, pegaram nas peças do quebra-cabeças e tentaram construir com sucesso uma ordem pragmática e científica para o desenvolvimento chinês. O primeiro-ministro Zhou liderou o caminho em termos de relações internacionais com o seu discurso de Bandung, tendo sido extremamente influente e pioneiro nos conceitos das “quatro modernizações”, em 1963. O primeiro-ministro Zhou, também foi pioneiro no que mais tarde se designou pela “Teoria dos Três Mundos”, que considera que as relações internacionais compreendem três mundos político-económicos, em que Primeiro Mundo, compreendia as superpotências, o Segundo Mundo, compreendia os países aliados das superpotências e o Terceiro Mundo, compreendia os países do MNA. Ainda que, esta teoria tenha sido articulada como a visão oficial do mundo chinês, novamente por Deng Xiaoping, num discurso na ONU, em 1974, foi o primeiro-ministro Zhou, que estabeleceu o seu conteúdo na década de 1960. Foi bastante poético para o presidente Mao ter-se entusiamado com o tema e ter sido oficialmente declarado como uma formulação sua, aplaudida pela presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda, considerado como um rei-filósofo africano, durante a visita à China, em 1974. Os temas enunciados pelo primeiro-ministro Zhou, em Bandung, desenvolveram-se, mas antes de 1974, ocorreu um evento diplomático inovador, que deu à China a liberdade internacional para desenvolver a sua visão de Bandung e a aproximação com os Estados Unidos ocorreu. A teoria das quatro modernizações foi mais tarde considerada como política pelo sucessor do presidente Mao, Deng Xiaoping, em 1978. As modernizações foram fundamentais para a China desenvolver o seu sector industrial e, portanto, a base económica que era necessária às suas relações internacionais de assistência aos outros países, bem como para a concorrência com o mundo ocidental desenvolvido. A aproximação dos Estados Unidos e da China foi um objectivo de Henry Kissinger, que desejava três situações, sendo a primeira, a liberdade de enfrentar a União Soviética, como uma superpotência antagonista única, sem a interferência da China. como outro poder conflituante; em segundo, um sentido de limites responsáveis ao comportamento regional chinês, devendo os Estados Unidos sair com sucesso da guerra de Vietname; e, em terceiro, a incorporação da China no concerto das grandes potências, quer para o tornar credível e viável, com nenhum país a jogar cartas viciadas fora da mesa e obrigar os chineses a respeitar as regras de ser parte de um concerto de nações, e, fossem previsíveis as suas acções. Os chineses consideraram razoável, o que significava que China não tinha que enfrentar, quer a União Soviética, como os Estados Unidos, sendo um enorme passo para uma região mais pacífica, se de facto os Estados Unidos resolvessem os seus interesses no Vietname. A China seria reconhecida, finalmente, como uma grande potência, mesmo estando dentro do concerto de nações, terminando assim a era das humilhações e que poderiam ser tomadas medidas para alcançar o progresso económico, em um regime comercial que não excluía o Ocidente e, em particular, os Estados Unidos. Todavia, Kissinger não tinha ligações diplomáticas directas com a China. Além disso, o conhecimento da China por parte dos Estados Unidos era limitado, dada a purga de linguistas e sinólogos do Departamento de Estado durante a era de McCarthy, anti-comunista de caça-bruxas. Os chineses não se encontravam em melhor posição. Até certo ponto, sem processos organizacionais e sem planeamento dos temas, os papéis fundamentais desempenhados por Kissinger e Zhou, representaram a forma mais pura de comportamento do actor racional, visto na diplomacia internacional do pós-guerra, embora, no bom sentido deva ser entendido que as duas individualidades confiaram altamente na intuição. O seu sucesso em poder desenvolver uma formidável empatia pessoal foi um acidente da história. Kissinger teve que fazer a referência a ditadores como porta de entrada, e os chineses tiveram que implantar o ténis de mesa como símbolo de que uma nova história era possível. Olhando para trás, revela que tal estratégia foi de certa forma idiota. Kissinger fez as conversações secretas de abertura diplomática em 1970 com o presidente paquistanês Yahya Khan, ex-responsável pela rebelião no Paquistão Oriental no mesmo ano, e eventualmente da sangrenta secessão do Bangladesh e com o romeno Nicolae Ceausescu, o último ditador comunista que certamente não lamentou as atrocidades cometidas de sessenta mil mortos, quando foi sumariamente executado, a 25 de Dezembro de1989, tendo Kissinger pedido a ambos que usassem os seus bons ofícios para demonstrar a vontade de conversar com a China. A China mostrou que estava disposta à abertura de conversações diplomáticas e usou o subterfúgio de convidar atletas dos Estados Unidos a jogar uma partida de ténis de mesa no seu território, tendo acontecido em Abril de 1971. No isolamento diplomático da China, após a II Guerra Mundial e na era subsequente de hostilidade política, nenhum contacto desse tipo parecia possível. Foi o advento da “Diplomacia de Ping-Pong”, e o sentido geral internacional foi de que as relações entre os Estados Unidos e a China poderiam estar descongeladas. Mesmo assim, Kissinger fez duas visitas secretas à China, em Julho e Outubro de 1971, e trabalhou com o primeiro-ministro Zhou Enlai na preparação da visita pública do presidente Nixon à China, em 1972. A visita foi cheia de pompa, mas era apenas o rosto de uma aproximação, cujos detalhes tinham pouco a ver com Nixon ou Mao. Ainda que do lado chinês tivesse quase tudo a ver com Zhou, não existia uma confiança total nos Estados Unidos, como nunca se daria até ao presente. Após tantos anos de hostilidade, não era possível uma transformação do dia para a noite no que concerne à política externa. Os chineses continuaram a trabalhar na “Teoria dos Três Mundos”. A teoria real não durou muito tempo como uma conceptualização activa do mundo. Era mais um sentimentalismo que qualquer outra coisa, tendo o sentido de que a China tinha um papel de liderança, especialmente, entre os que também estavam a sair da humilhação. A teoria propôs um Primeiro Mundo de alcance e ambição imperial, e isso era uma união conjunta dos Estados Unidos e da União Soviética, ou seja, as duas grandes superpotências ainda procuravam o domínio global. O Segundo Mundo era constituído por uma zona intermediária, consistindo nos países da Europa, embora a teoria não o dissesse, pois os chineses nunca tiveram uma abordagem articulada da América do Sul. Este mundo poderia ser cortejado pelo Primeiro ou pelo Terceiro Mundo e o sucesso desse namoro poderia determinar a luta de poder entre o Primeiro e o Terceiro. Nesse sentido, a teoria tinha objectivos diplomáticos. O Terceiro Mundo era basicamente o mundo emergente, o não alinhado, mas com um retoque que consistia em ser um mundo liderado, defendido e protegido pela China. Foi esse conceito de que a China poderia fazer essas coisas e que outros países do Terceiro Mundo desejariam que as fizesse mas que nunca as faria contra os interesses desses países, que em muito pouco tempo se revelaria falso. A União Soviética, em 1979, de “fora de um céu azul”, que tem o significado de um evento que ocorre inesperadamente, sem qualquer aviso ou preparação, como os estrategistas militares ocidentais descreveram, ou seja, sem sinais de alerta ou mesmo sinais visíveis de preparação, invadiram o Afeganistão. O Ocidente não conseguiu impedi-lo e nem o poderia fazer a China. Uma parte do Terceiro Mundo foi ultrapassada por metade do Primeiro Mundo e a China, longe de ser o seu efectivo campeão e protector, só podia assistir, tão surpreendida e despreparada como o Ocidente. Todavia, outro evento significativo ocorreu entre 17 Fevereiro a 16 de Março de 1979, que foi a invasão do Vietname pela China. Tendo sido aliado do Vietname do Norte na guerra contra os Estados Unidos e o regime por estes apoiado no sul, os chineses envolveram-se num conflito com o estado unificado que ajudaram a criar. A invasão foi breve. Os vietnamitas sentiram o embaraço e afastaram as forças chinesas, sem ter havido um derrotado. Endurecidos por anos de luta contra os Estados Unidos, os chineses eram simplesmente mais do mesmo. Mas esse foi precisamente o problema. A China comportou-se como um gigante do Primeiro Mundo, não estando a defender essa parte do Terceiro Mundo. Após 1979, a teoria nunca foi novamente mencionada. Isto não significou que os chineses abandonaram o princípio da solidariedade com o mundo emergente. A China simplesmente percebeu que não poderia ser automaticamente o seu líder. A China também percebeu que tinha muito a aprender sobre as complexidades e as ambições desse mundo. Estas podiam não coincidir com as ambições chinesas, podendo até, no caso dos vietnamitas, ser contra elas.
Leocardo VozesManson Grand Prix [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ealizou-se no passado fim-de-semana mais uma edição do Grande Prémio de Macau, que é uma daquelas coisas que, ou se gosta, ou se ignora – ou pelo menos se tenta ignorar. A minha relação com este evento, o maior cartaz desportivo (?) do ano no território, é um misto de desencanto, comunhão amigável e indiferença. É assim um bocado como uma pessoa de quem não tínhamos uma boa primeira impressão, depois chegamos a desenvolver uma relação cordial de quase amizade, e que depois ficámos sem ver por uns tempos, e actualmente cumprimentamos mais ou menos timidamente. Quando a cheguei a Macau julgava que o Grande Prémio era uma espécie de “monster meeting” depois de finda a época de Fórmula 1, onde os pilotos desta disciplina realizavam uma etapa extra-campeonato (vejam só a minha inguenidade!). Após o abismo dessa desilusão para o qual me encaminhei direito que nem um patinho, aprendi a aceitar o Grande Prémio e até pensei que gostava dele, como requerimento para me considerar um “local”, completamente “integrado”, mas depois percebi que era um amor por interesse que não tinha interesse nenhum. Para quem não acha aquilo tudo “o máximo”, o melhor é aprender a manter a televisão desligada durante os quatro dias do Grande Prémio, ou melhor ainda, sair do território na quarta-feira à tarde e regressar no Domingo à noite. Mas isto é para quem pode, pois os que precisam de trabalhar na quinta e na sexta-feira encontram uma espécie de “muro de Berlim” construído em redor do circuito da Guia, e quase tão aborrecido de passar quanto o original (eu próprio não tenho muita razão de queixa, pois vivo e trabalho em “Berlim Ocidental”). E uma dúvida que ainda ninguém me conseguiu esclarecer: o que acontece à população que vive na Estrada dos Parses? É recolocada temporariamente, é indemnizada por ter lá os carros a rugirem-lhe à porta, ou é toda “aficionada” do “circo”? O Grande Prémio é a nossa versão revista, aumentada e um bocadinho mais poluidora do Carnaval brasileiro; em comum tem o facto de mal ter terminado esta edição, já se estar a pensar em preparar a próxima. No mesmo dia em que caiu o pano do Grande Prémio de Macau, faleceu Charles Manson. E agora pode ser que o título deste artigo faça algum sentido. Não vou fazer aqui a apologia da violência e do horror como alguma forma de “arte marginal”, ou tentar relativizar os crimes hediondos cometidos por este indivíduo: Charles Manson não merecia estar vivo e muito menos solto. Posto isto, trata-se aqui de um génio, mas do mal. Um indivíduo que só precisou de passar 19 dos 83 anos da sua vida em liberdade para ter deixado uma ferida aberta na humanidade e de que ainda se fala 50 anos depois. Manson conseguiu convencer um monte de gente de que “era Deus” através dos argumentos mais absurdos (e muito LSD, também) , e ainda teve uma carreira literária e discográfica na prisão, enquanto cumpria as 12 perpétuas a que foi condenado. A questão dos nossos tempos é a seguinte: quem são os Mansons dos nossos tempos? E a que “família” pertencemos nós, também? Adeuzinho que foste tarde, ó Charles Manson. E longa vida ao Grande Prémio de Macau, já agora.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesClímax [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] segredo para o bom sexo não é o orgasmo. O orgasmo faz parte, claro, mas o sexo não se reduz a este único momento. Quando vemos tutoriais e artigos de revistas femininas de como atingir o orgasmo, nos seus diferentes tipos, reforça-se a ideia que o sexo, para ser considerado sexo, tem que culminar no dito. Mas como nunca vale a pena cristalizar o que quer que seja: 1. De que vale a expectativa orgásmica? Se focarmos toda a nossa actividade sexual, incluindo a masturbação, no caminho real para o orgasmo, a coisa pode correr mal. É como se diz e é bem verdade, o orgasmo acontece quando menos se espera. Quanto mais quisermos sentir o prazer máximo, mais difícil será chegar lá. Sabotamo-nos quando colocamos um enorme peso na performance sexual: quando julgamos que o bom amante é aquele que se vem e que faz vir. Nos extremos do espectro temos casais heterossexuais em que o prazer masculino é privilegiado (se a mulher não atingir o orgasmo, que se lixe) e no outro lado os casais que julgam a ausência de orgasmo um desastre sexual. No meio é que está a virtude, i.e., parem de dar o protagonismo ao orgasmo – porque assim ele não consegue tornar-se protagonista de todo. 2. Quantos tipos de orgasmos existem? Revejam os diferentes tipos de orgasmos que já tiveram e como é que lá chegaram. O orgasmo, e agora vou pensar particularmente no feminino, tem muitas vias de acção. Quando existem disputas pelo número de orgasmos que existem – será que são 4? Ou 8? Ou 12? – é comum esquecerem-se de referir que todos os corpos são diferentes e por isso os formatos de prazer também são diferentes. Recebemos alegremente todas as milhares de sugestões de prazer que possam existir por aí, mas quem conhece o nosso corpo, somos nós. A anatomia dos nossos sentidos, quando bem investigadas, permitem possibilidades infinitas de exploração. O botão do amor, o clítoris, é de tamanho bem mais generoso que o visível a olho nu, com 8000 finais nervosos que se estendem no pavilhão pélvico – por isso, porquê reduzirmo-nos a acariciá-lo debaixo do seu capuz? As mulheres de várias gerações que nunca tiveram a oportunidade de dar prioridade ao prazer, nem sempre estão sintonizadas com os seus potenciais orgásmicos. Potenciais esses que até podem nem passar pela directa interação vaginal e clitorial. Com muita paciência e dedicação, a boca ou mamilos podem levar-vos às nuvens do orgasmo. 3. Como chegamos à (nossa) variedade de orgasmos? Nem todas nós temos a sorte de ter uma vida profissional a testar brinquedos sexuais – e assim passar as horas úteis do dia a explorar os nossos caminhos de corpo e prazer. Mas a facilidade do clímax não é o mesmo para toda gente, e há quem precise de umas horas extra para se dedicar às respectivas estratégias. Para chegar à variedade temos que não abusar das nossas fórmulas certeiras para o orgasmo e não ter medo de explorar outras. Os brinquedos sexuais de múltiplos tamanhos, formatos e vibrações têm um papel importante nesta investigação pessoal. A experiência directa, as conversas com as amigas, as leituras eróticas ou as nossas reflexões fazem parte deste processo que nem sempre é linear – desenganem-se se acham que um vibrador vos transporta automaticamente para o sonho orgásmico, muitas vezes é preciso paciência até lhe tomarmos o jeito. Surpreendentemente ou não, o que mais importa ao nosso orgasmo é a nossa mente (e ter um brinquedo sexual também ajuda). O nosso estado cognitivo-emocional cria condições para a nossa disponibilidade e curiosidade sexual, permitindo que todas as sinapses associadas ao toque, à estimulação, ou à fantasia possam culminar nas contracções orgásmicas que tanto queremos experenciar. Mais do que uma dica aqui ou ali, o segredo para o orgasmo é uma entrega física e mental plena, atentos às sensações e às complicadas interacções em que o nosso corpo nos envolve, até chegar ao clímax.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSelecção do júri (Parte III) [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os dois artigos anteriores analisámos a selecção do júri e a língua usada durante o julgamento de Donald Tsang. Hoje vamos debruçar-nos sobre os bastidores do júri, antes de ter sido revelado o destino do antigo Chefe do Executivo de Hong Kong. Um dos jurados foi excluído pelo juiz um dia antes do início das deliberações, deixando o Tribunal envolto numa aura de mistério. O juiz Andrew Chan Hing-wai, declarou, “Registaram-se algumas ocorrências que, no entanto, não nos dão motivo para preocupação.” O juiz não adiantou mais explicações para a sua decisão. Assim, o júri ficou reduzido a oito jurados. No final da audiência o colectivo retirou-se para deliberar. Após um largo período de debate o júri não conseguiu chegar a um consenso, que no mínimo exige o acordo de seis jurados. Em resultado desta situação Donald Tsang não pôde ser condenado. Agora que o julgamento acabou, o mistério da exclusão do jurado já pode ser revelado. Certo dia, durante a hora do almoço, o jurado, a quem nos referiremos como Mr. Q, foi ter com Chip Tsao, uma personalidade mediática apoiante de Donald Tsang. Mr. Q, que era desde há muito fã de Chip Tsao, tirou-lhe fotografias e esteve à conversa com ele por algum tempo. Durante a conversa Tsao perguntou-lhe: “Você é de Xangai?” Ao que o outro retorquiu: “Não, sou de Pequim.” Um funcionário que se apercebeu da situação, separou imediatamente Mr. Q dos outros jurados e reportou o sucedido ao juiz. O funcionário ficou preocupado com possíveis interferências exteriores na decisão do jurado, até porque sabia que Tsao estava sentado na galeria ao lado da família de Tsang. O apoio de Tsao a Donald Tsang também é do conhecimento público. O juiz, temendo a parcialidade de Mr. Q, exclui-o do júri. Como referimos a semana passada, a condição de jurado é contínua, só se considerada interrompida quando o julgamento termina. Durante este processo, os jurados não podem ser influenciados por terceiros. Este é um dos motivos pelos quais não estão autorizados a comparecer nos seus locais de trabalho. A conversa de Mr. Q com Tsao origina uma situação idêntica. Antes da decisão ser tomada, o jurado ao serviço do Tribunal, não pode contactar com ninguém. Possivelmente, nem Mr. Q, nem Tsao, tiveram consciência de que a tal conversa informal e as fotos poderiam vir a ter consequências graves, mas baseando-se nos princípios de justiça e de igualdade de oportunidades, o juiz excluiu Mr. Q. A decisão do juiz foi correcta. A lei tem de ser encarada com seriedade, porque estabelece a regra pela qual todos se regem. Se o juiz não a levar a sério, quem a levará? Após 14 horas de deliberação, os oito jurados não chegaram a consenso, que pede como foi dito, um mínimo de seis votos a favor de uma decisão, pelo que não foi pronunciado nenhum veredicto quanto à culpabilidade ou inocência de Donald Tsang. Às 23.05 o júri comunicou ao juiz, por escrito, a impossibilidade de estabelecer um veredicto. O juiz recusou-se a aceitar a situação e pediu que voltassem a reunir. A discussão prosseguiu até às 5.15, altura em que os jurados voltaram a comunicar ao juiz: “Após debate exaustivo, o júri não conseguiu que pelo menos seis jurados chegassem a consenso. Cada jurado defende firmemente os seus pontos de vista. Decidimos terminar.” O juiz dispensou os jurados, afirmando: “Sei que a vossa tarefa é difícil, mas cumpriram-na de forma consciente.” “Com estas palavras vos agradeço. Estais dispensados.” É o segundo julgamento que Donald Tsang enfrenta pela acusação de corrupção passiva, relacionada com a troca de favores com uma estação de rádio local. O primeiro julgamento tinha terminado precisamente da mesma forma que este, ou seja, com um empate do júri. Mais uma vez Donald Tsang não pôde ser considerado culpado. Mais tarde, o Tribunal foi informado que o Secretário da Justiça não pretende repetir o julgamento. O juiz aceitou a decisão e arquivou o caso, que necessitará ainda da aprovação do Tribunal de Primeira Instância, ou do Tribunal de Apelação. “Não é invulgar que seja pedido um novo julgamento se surgirem novas provas e se for considerado do interesse público.” Em resumo, o caso de corrupção passiva contra Donald Tsang terminou. Em todas as investigações criminais que decorrem em Hong Kong, os investigadores reúnem o máximo possível de provas, para fornecer à acusação. Neste processo, é muito provável que nem todas as provas reunidas tenham sido entregues à acusação, porque se algumas delas beneficiassem o réu, deverão ter sido entregues à defesa. Portanto, é muito pouco provável que surjam novas provas acusatórias. Além disso, Donald Tsang pode alegar “gravidade extrema” se for chamado mais uma vez a Tribunal por esta acusação. Seja como for e por agora, para Donald Tsang e para o júri este caso está encerrado.
João Luz VozesConvidado de casamento chinês [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo em qualquer parte do mundo, a cerimónia do matrimónio na China é uma epopeia de mil labores e rituais simbólicos que culminam no dia em que o noivo conquista definitivamente a noiva, começando a perdê-la de imediato. Ok, dramatizo, mas foi assim que senti a coisa, como uma mudança de estação. No entanto, a primeira reflexão foi bem mais prática. Não faria mais sentido o lançamento de arroz num casamento oriental? Esta forma de agressão ritualística com comida, após uns copos de vinho chileno, agigantou-se para a fantasia do arremesso de noodles aos recém-casados. Tudo é possível no sossego da imaginação enquanto se sorri educadamente para os convivas de mesa. Mas, adiante. No meio de um considerável fosso linguístico e cultural, foi-me explicado que a própria data do casamento não é deixada ao acaso. Como tal, a data deve ser escolhida por um monge, um vidente, ou alguém com uma sintonia paranormal ao universo da boa e má numeração. O objectivo é encontrar um dia auspicioso para dar o nó. Na véspera do grande dia, cumpre-se a cerimónia de escovar o cabelo da noiva, algo que ultrapassa em muito o significado de uma normal ida ao cabeleireiro. A tarefa deve ser executada pela mãe, ou sogra, enquanto são recitadas frases de desejos de um matrimónio que dure a vida inteira, onde não faltem filhos, dinheiro e saúde. Estes gestos trazem a noiva, definitivamente, para a idade adulta. Outro aspecto interessante e bem diferente do que se passa na cultura ocidental é a serenata que o noivo faz enquanto a noiva se encontra noutra sala atrás de uma porta semi-aberta. Este detalhe do protocolo chinês tem como palco a casa da noiva onde o noivo tenta recolher a aprovação dos amigos e familiares da sua futura esposa. Não me foi explicado o que acontece no caso do noivo ter uma voz de unhas em quadro de ardósia. No fundo, esta parte da cerimónia pretende representar a ideia de que a lindíssima noiva não se entrega a um pelintra qualquer. Finda a cantoria e alguns jogos de compreensão impossível, a noiva sai do quarto e junta-se ao seu futuro esposo e encaminha-se para o automóvel que a levará ao altar, que neste caso foi num hotel em Kowloon. Chega a altura de uma das fases mais importantes do casamento chinês, a cerimónia do chá, em que os noivos agradecem e demonstram todo o respeito que os seus pais merecem por os terem aturado este tempo todo. À semelhança do casamento ocidental, há também o corte de um bolo de núpcias mas, no Oriente o bolo é falso, num aparato desprovido de sentido para um português com apetites de pastelaria. No fundo, o casamento chinês é um somatório de cerimónias carregadas de simbolismo e respeito, longe do deboche e da ébria orgia de excessos que é a celebração do matrimónio à ocidental. Talvez fosse desta específica boda, mas a educação e a classe foram a tónica da noite inteira. Indo ao que interessa, e àquilo que nos une enquanto seres humanos, a noite foi marcada pelo festim infinito de comida, um desfile sem fim de iguarias e copos sempre cheios. Um mundo inteiro unido em mil brindes, com os noivos e os seus séquitos a irem de mesa em mesa brindar com os convidados. A certa altura senti pena dos noivos que não tiveram um momento de descanso ao longo do dia, forçados a não desarmar os amistosos e agradecidos sorrisos perante milhentas fotografias de circunstância. Como não poderia deixar de ser, a última mesa a ser desocupada no inteiro andar do hotel, onde se celebraram pelo menos três casamentos, foi a nossa. Ali ficámos a vogar numa maré cheia de tinto chileno até nos mandarem embora, cumprindo o nosso desígnio de ébrios marinheiros, aportados pelo acaso num casamento chinês em Hong Kong. A minha primeira boda oriental deixou-me com uma ideia sentimentalista de unidade entre os povos. Seja em que canto do mundo for, o dia do casamento é uma festa e uma celebração de indulgência para todos, menos para os noivos, vítimas de mil labores festivos. Que vivam uma longa vida nos braços um do outro.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no DesertoO Chefe do Executivo e o deputado [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Chefe do Executivo Chui Sai On apresentou na Assembleia Legislativa, durante uma hora, o “Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018”, no passado dia 14 de Novembro. Segundo o relatório, tudo irá permanecer em consonância com o status quo, registando-se um aumento no orçamento da segurança social. A temática do Relatório versa, como de costume, a redução de impostos, a distribuição de dinheiro e os aumentos salariais, sem surpresas nem inovações. O Chefe do Executivo deve pretender chegar ao fim do seu mandato, que termina dentro de apenas dois anos, de forma estável e pacífica. O que o futuro nos reservar virá a ser da responsabilidade da próxima Administração. Comparado com a segurança derivada do Relatório das Linhas de Acção Governativa, o deputado Sou Ka Hou enfrenta uma guerra aberta. Os leitores terão provavelmente conhecimento de que, na véspera da apresentação do Relatório, a Assembleia Legislativa, o Ministério Público e as Forças de Segurança de Macau emitiram os seus próprios comunicados de imprensa sobre o envolvimento de Sou Ka Hou no caso das “reuniões ilegais” e sobre a acusação que lhe foi feita de “prática do crime de desobediência qualificada”. O julgamento do deputado está marcado para breve. No seu comunicado de imprensa, a Assembleia Legislativa afirmava que, de acordo com o Estatuto dos Deputados à Assembleia Legislativa, o caso tinha sido enviado para discussão à Comissão de Regimento de Mandatos e que se aguarda o seu parecer. O Ministério Público forneceu apenas um apanhado geral dos pormenores do caso no seu comunicado. Estes dois órgãos públicos prestaram esclarecimentos sobre a situação. Mas, as Forças de Segurança de Macau emitiram uma nota explicativa contendo 27 pontos críticos, semelhante à reconstituição detalhada de um crime, de uma forma que cria nos leitores a sensação de estarem a presenciar um julgamento. Em Macau, uma sociedade regida pela lei, antes de um suspeito ser julgado, deverá ser tratado ao abrigo do princípio da “presunção de inocência”. Este direito legal, que assiste a todos os réus, é reconhecido pela Convenção Internacional das Nações Unidas e é uma salvaguarda fundamental dos direitos humanos. Neste aspecto, Macau não é excepção. No entanto, as autoridades do Governo da RAEM parecem ter abraçado e trazido para a praça pública a causa da acusação, o que não deixa de ser estranho. O caso aconteceu há um ano atrás. A condenação de Sou por “reuniões ilegais”, só poderá ser decidida no Tribunal Judicial de Base. Mesmo depois da deliberação deste Tribunal, qualquer uma das partes pode apresentar recurso. É um assunto de competência jurídica. Já quanto à permanência de Sou Ka como deputado, a decisão caberá, após parecer da Comissão de Regimento de Mandatos, à Assembleia Legislativa, que reunirá em sessão plenária para o efeito. Esta decisão será tomada, com a presença de todos os deputados, por escrutínio secreto, mas Sou não será o único a enfrentar as consequências, os outros 33 deputados também serão afectados. Após ter apresentado o “Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2018”, o Chefe do Executivo deu uma série de entrevistas. Um dos jornalistas lembrou-o que, desde que assumiu o cargo, tem vindo a alertar a população para o potencial risco que existe na compra de propriedades imobiliárias, que registam aumentos constantes de preço. O Chefe do Executivo comentou que o mercado imobiliário se rege pela lei da oferta e da procura e que a maioria dos compradores são residentes, sendo que alguns deles adquirem uma segunda habitação. O problema de raiz está no facto de o rápido crescimento da economia de Macau apenas beneficiar um pequeno grupo, sendo a maioria afectada de forma negativa. Hoje em dia, quem detém poderosos interesses na sociedade controla a distribuição dos recursos e, de forma alguma, abre mão do seu domínio. Confrontado com uma série de problemas sociais, o Governo da RAEM recorre basicamente ao Plano de Comparticipação Pecuniária e às pensões para minorar a insatisfação e distribui subsídios para garantir o apoio de associações e organizações. Macau é conhecido por ser “uma sociedade com muitas associações e organizações”. Muitas delas, subsidiadas pelo Governo, garantem apoio às suas políticas. Nos tempos que correm, com a entrada em alta das taxas do jogo, esta aliança com as organizações e associações, prontas a patentear o seu “patriotismo e amor a Macau” tem, até certo ponto, criado uma falsa sensação de super-estabilidade. Em resultado desta situação, a discrepância entre os ricos e os pobres, e a complementar crise escondida, têm vindo a tornar-se cada vez mais graves. Pessoas mais jovens, como é o caso de Sou Ka Hou, sem qualquer apoio das associações tradicionais, são muitas vezes apanhadas na teia quando tentam agir de forma genuína contra uma situação de injustiça. Sou Ka Hou defendeu activamente posições de oposição de forma bastante destemida, acabando diversas vezes por ser estigmatizado e rotulado de defensor da “Independência de Macau”. A forma como a Assembleia Legislativa lidar com este caso, dará uma oportunidade à população e aos eleitores de Macau de ficarem a conhecer o seu funcionamento e a verdadeira natureza dos seus deputados. Nos próximos dois anos, tempo que falta até ao termo do seu mandato, o Chefe do Executivo Chui Sai On não deve ser sujeito a mais pressões. Mas para Sou Ka Hou, este biénio será certamente um período de teste.
Leocardo VozesCom “o meu dinheiro”, não [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau continua a ser um oásis, caros leitores. O Chefe do Executivo foi anunciar as Linhas de Acção Governativa (LAG) para 2018, e nela está incluída a sempre tão aguardada “participação pecuniária”, vulgo “os cheques” distribuídos a meio do ano pela população, que aquando do início da sua distribuição, há dez anos, foram tidos como uma medida para fazer face à elevada inflação. A inflação vai e vem, e os cheques foram ficando. Isto em termos leigos quer dizer mais ou menos que o Governo “dá” dinheiro à população, mas também cobra impostos – claro, nem poderia ser de outra forma. Aqui não se discute muito, ou de todo, no que são aplicados os impostos, talvez porque não tenhamos assim muitas razões de queixa, ou não hajam motivos de indignação nesse particular. Já em Portugal o caso muda de figura. Portugal é a capital mundial da indignação, e aquilo que o(s) Governo(s) faz(em) como o “o nosso dinheiro”, que é como quem diz, o dinheiro “dos nossos” impostos, não é excepção. Tenho visto bastante disto, quer em comentários em artigos de opinião na imprensa, quer nas redes sociais (especialmente aí), e é claro que o factor da simpatia partidária não é despeciendo para explicar desta nova tendência para cada português se tornar especialista em fiscalidade – há uma tendência para cada um puxar a brasa à sua sardinha, portanto. Olhemos para o exemplo de requalificação da zona da Mouraria, em Lisboa, que inclui a construção de uma nova mesquita, num total de três milhões de euros – dos “nossos impostos”, lá está, e que equivale a menos de um euro por contribuinte. Aqui pesa a notória antipatia pela confissão maometana (leia-se islamofobia), que leva a que certos grupelhos apelem ao argumento da “ida ao bolso” dos portugueses para criar a ideia (errada) de que sem mesquita, o dinheiro seria aplicado noutra coisa qualquer, ou revertia directamente para a carteira de cada contribuinte. Curiosamente ninguém se importou muito com outras obras que, isso sim, podem ser considerados elefantes brancos. O Estádio de Aveiro, por exemplo, construído para a organização do Euro 2004, custou 60 milhões de euros na altura, e foi utilizado cinco vezes desde então. E não, não pode ser utilizado para se fazerem ali piqueniques, por muito que “o vosso dinheiro” o tenha pago. E não é apenas nas obras públicas que se reclama pelo dinheiro “dos nossos” impostos. O canal público de televisão também tem sofrido com esta nova escola de pensamento, que atribui a cada português o super-poder de achar o que deve ser feito ou não com “o seu dinheiro”. Se a RTP (a agradeço desde já ao canal público pela RTPi, que aqui a milhares de quilómetros de distância nos aproxima mais das origens) passa um programa que não é do agrado de alguns, toca a sacar do argumento dos impostos, refilar, barafustar e bater com o pé, quando o mais fácil seria simplesmente mudar de canal. Os fiscalistas de trazer por casa preferem dar a entender que por cada programa que um português não gosta, foi “do próprio bolso” que o pagou. Claro que aqui o contraditório não existe; ninguém vai gostar de um programa e dizer “sim senhor, isto é o que eu chamo de uma aplicação bem feita do dinheiro dos meus impostos!”, pois não? Esta ideia mesquinha e errada de que um português está a pagar do seu bolso por coisas de que não gosta ou que não lhe interessam pode servir para tudo e mais alguma coisa. Por esta lógica, uma estrada que liga o interior ao litoral do país pode dar muito jeito a quem vive nas povoações mais remotas, mas lá está, porque é que EU tenho que pagá-la, se não me serve para nada? E se o tio Zé dos Nabos, de Carrazeda de Ansiães, apanhar uma bebedeira de caixão à cova, ao ponto de precisar de ficar internado no INEM durante dois dias, com o MEU dinheiro? Eu não sou obrigado a pagar pelas bebedeiras do tio Zé dos Nabos, pois não? Ou será que sou, tal como ele é obrigado a pagar pelas minhas? Mais contenção amigos. O tal dinheiro é de todos, é verdade, e obviamente que desejamos uma aplicação sensata do mesmo. Mas alto lá, e para concluir, “olhem que não é bem assim”. Não caiam no conto dos vigários que pensam que sabem o que deve ser feito com o tal “dinheiro de todos”.
Tânia dos Santos Vozes11.11 [dropcap style≠‘circle’]D[/dropcap]iria que há locais, socialmente falando, favoráveis à condição de vida solteira. A China talvez não seja um desses lugares se nos relembrarmos da denominação nada carinhosa de shengnu, ‘left-over woman’, quando se tem 28 anos e ainda não se casou. Há uma falsa crença que a vida não-casada é uma vida de desastre, mas o conceito começa a ser menos categoricamente quadrado. Neste caso, vamos agradecer ao consumismo económico pelo nascimento de dias dedicados à vida solteira, e que o fazem em tom de festa. Ora aqui está uma criação chinesa, 11.11 – 11 de Novembro – de composição numérica que reflecte os números da solteirice: um(a). Este dia é no fundo um dia de saldos online dedicado aos mimos que os solteiros deveriam oferecer-se, seja isso roupa ou outro tipo de objectos mais ou menos úteis à vida diária. O marketing para esta campanha que anualmente faz com que milhões de yuan se mexam na China é surpreendentemente eficaz. Quando o conceito foi originalmente pensado, partiu de um grupo de pessoas que queria um pretexto para celebrar a sua condição solteira, desejando, contudo, um parceiro para a vida – não é por acaso que o dia dos solteiros se celebra no dia 11.11 e não no dia 1.1 – e alguém pegou na ‘neo-celebração’ para criar o maior dia de compras online. Agora com uma ambição de fazer o dia 11.11 um fenómeno de compras global, a imprensa internacional tem realçado a importância do ‘mimo ao solteiro’, como se esse fosse realmente o objectivo máximo do evento. Não vou entrar em reflexões de como é que certas políticas económicas são importantes para a projecção no mercado internacional – porque o CEO do Alibaba sabe bem como fazê-las – mas gostaria de reflectir sobre os solteiros, o mimo, e as formas que utilizamos para chegar lá. O dinheiro não compra a felicidade, mas deve comprar qualquer coisa. Ninguém é ingénuo para pensar que vivemos num mundo de valores morais em que o dinheiro não serve para nada. Nem 8 ou 80. A linha que separa a importância do dinheiro na felicidade relacional com a felicidade livre de financiamento, não existe verdadeiramente. Por vezes cai-se numa dicotomia moral que não serve de muito à experiência humana. Tomemos o exemplo do 11.11 que em vez de ser sobre pessoas, é sobre coisas. Eu podia dizer isto sobre qualquer celebração que envolva o consumo, que é um assunto mais do que batido. O que me parece discutível, é que a vida solteira, que pode ter o seu q.b. de estigma em certas sociedades, possa ser ‘compensado’ com umas comprinhas. Todos nós gostamos de uma boa promoção, não digo que não, mas que mensagem é nos transmitida, a do dia 11? Milhares que se preparam (com dias de antecedência!) para estar à frente do computador a partir da meia-noite, para poder aproveitar os descontos e comprar todo aquilo que verdadeiramente desejam. Uma ‘festividade’ dedicada à ausência de amor romântico, e por isso um canal de gasto monetário. É claro que não se pinta assim, de forma tão pura e dura, o dia dedicado a estas promoções são simplesmente uma estratégia de suspense de vendas. Um dia dos solteiros a sério teria promoções em dildos ou outros brinquedos sexuais, em produtos de cozinha para uma maior autonomia doméstica, ou se quiser ser mais sha-la-la, teria à venda experiências que estimulem o amor de e para nós próprios. Porque o grande desafio da vida solteira não são só as expectativas socais, mas a criação de amor pessoal e íntimo, para nós mesmos.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSelecção do júri (II) [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada analisámos parte do processo de selecção do júri presente no julgamento de Donald Tsang, antigo Chefe do Executivo de Hong Kong. A utilização da língua inglesa e um pedido de isenção do dever de jurado foram as questões debatidas. Hoje continuaremos a discussão do caso. Um dos jurados presentes neste julgamento é uma enfermeira que exerce num hospital do Governo. As suas funções obrigam-na a trabalhar dois sábados por mês. Como o julgamento decorre de segunda a sexta, não está isenta de trabalhar nesses dias. A jurada reclamou formalmente junto do juiz a este propósito. Quase em cima da hora, a Directora do Departamento de Saúde, Drª. Constance Chan Hon-yee, foi convocada para o banco das testemunhas. Pediu desculpa pelos incómodos causados ao Tribunal, mas, adiantou não poder assegurar que a enfermeira viesse a ficar isenta do trabalho ao sábado durante o período do julgamento. A Drª. Constance Chan Hon-yee explicou que a enfermeira tem um contrato que a obriga a trabalhar dois sábados por mês. O regulamento da função pública, bem como exemplos anteriores, indica que o sábado não está abrangido pela isenção de prestação de serviço, por isso a enfermeira deve ir trabalhar. Acrescentou ainda que este caso não é simples, e que dependerá da decisão do Secretário da Função Pública, se ela deverá ou não comparecer ao serviço nesses dias. Mas o juiz ripostou: “E se a decisão tomada estiver errada?” Citando a Ordenança do Júri, o juiz esclareceu que o julgamento é um processo contínuo, que não é interrompido quando a sessão diária termina. O juiz também realçou uma provisão incluída na Ordenança do Júri, que impede eventuais casos de discriminação dos jurados por parte dos seus empregadores. Se o Governo da RAEHK não abrir uma excepção, estaremos perante um caso de “RAEHK versus RAEHK”, ou seja, um processo jurídico em que o queixoso e o réu são a mesma entidade. O juiz criticou ainda os termos em que estava escrito o fax que a Drª. Constance entregou ao Tribunal. No documento podia ler-se “não nos opomos a que a enfermeira seja dispensada” para prestar serviço como jurada. “O vosso departamento não está a fazer um favor ao Tribunal, está a cumprir um dever cívico.” O juiz censurou severamente a atitude do departamento, afirmando que podia incentivar outros empregadores a seguir-lhe o exemplo, deixando assim os membros do júri à mercê da “exploração”. “Esta atitude não abona a favor da boa política governamental.” O juiz solicitou que o Governo deliberasse sobre o assunto e que enviasse uma resposta na segunda-feira seguinte. No dia marcado, o advogado Jin Pao, representante do Governo, informou o Tribunal que a administração concordava com o seu ponto de vista e que a enfermeira seria dispensada de qualquer serviço no Hospital enquanto o julgamento durasse. O advogado afirmou: “O Governo reconhece a importância do serviço prestado pelos jurados.” Acrescentou ainda que, posteriormente, não haveria qualquer dedução aos períodos de folga da enfermeira. Não há dúvida que o Governo da RAEHK tomou uma boa decisão. Seguiu as indicações do juiz. Evitou colocar-se numa situação em poderia ser criticado por não obedecer à lei. Contudo, este caso revelou que a formulação da Ordenança do Júri não é suficientemente clara. É necessária maior clareza. Por exemplo: “O jurado fica dispensado de se apresentar no local de trabalho durante o período em que estiver ao serviço do Tribunal.” Por aqui se pode verificar que, independentemente de os jurados não irem ao Tribunal ao sábado, não podem ser convocados pelos patrões para trabalhar nesse dia. A formulação é vital e, como mencionámos a semana passada, os jurados são cidadãos comuns, não são especialistas em leis. A Ordenança do Júri é a única ferramenta em que o jurado pode confiar. É fundamental que o fraseamento deste Regulamento seja simples e directo. O Regulamento é o escudo que protege os direitos do jurado. Esta protecção visa garantir a prestação deste dever. Permite sobretudo que o jurado não sofra interferências do patrão e dos colegas durante a audiência do caso. Estas interferências poderiam, em última análise, influenciar a sua decisão em Tribunal. Por outo lado, o termo “continuidade” pode ser problemático. Talvez seja difícil para um leigo compreender a natureza contínua de um processo jurídico. O caso de Donald Tsang é um bom exemplo. Se o juiz não tivesse levantado a questão da continuidade da prestação do júri durante o julgamento, não teria sido fácil para o cidadão comum compreender o conceito. A má interpretação desta Ordenança pode repetir-se vezes sem conta. Mas não é só a Ordenança do Júri que implica a noção de continuidade. Em certos crimes esta ideia também está presente. Por exemplo, se um criminoso esfaquear a vitima cinco vezes, estaremos a lidar com uma ou com cinco acusações de danos corporais? Podemos dar outro exemplo simples. Se durante um certo percurso, um condutor passar cinco sinais vermelhos, pratica uma ou cinco infracções de trânsito? É uma questão legal de difícil resposta. Para contornar esta dificuldade, o ideal será criar uma Emenda à Ordenança do Júri. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA China e a liderança na Ásia Oriental (II) “The emerging U.S.-China bipolarity will be tense but stable because balancing will be efficient and misjudgments about each other’s capabilities and intentions will be minimized.” “Managing Hegemony in East Asia: China’s Rise in Historical Perspective” – Yuan-kang Wang [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] China no mar da China Meridional, contra as Filipinas muito mais fraca e o Vietname não-alinhado, está disposta a intensificar o discurso do seu primado histórico auto-declarado na região. O confronto de Scarborough Shoal, refere-se às tensões entre a China e as Filipinas que começaram a 8 de Abril de 2012, com a apreensão pela marinha filipina de oito navios de pesca chineses no disputado local, tendo no mesmo dia um avião de vigilância, avistado oito navios de pesca chineses ancorados nas águas objecto de reivindicação. O navio patrulha foi enviado no mesmo dia para pesquisar o local e confirmou a presença das embarcações de pesca, e as suas actividades, tendo a 10 de Abril de 2012, constatado a captura de peixe, pelos navios de pesca chineses. A equipa de inspecção filipina descobriu corais apanhados ilegalmente, mariscos e tubarões vivos dentro de um dos navios. O navio patrulha filipino tentou prender os pescadores chineses, mas foram impedidos pelos navios chineses de vigilância marítima e desde então, a tensão continuou entre os dois países. A defesa económica que a China teve na região foi mostrada pela resposta de muitos legisladores e empresários filipinos que advertiram o governo para não provocar a China, pois prejudicaria as relações comerciais entre os dois países. A reacção chinesa era de congelar a importação de frutas filipinas, arriscando o emprego de duzentos mil trabalhadores da indústria bananeira, e limitar os voos para as Filipinas por alegados motivos de segurança. Alguns meios de comunicação social chineses solicitaram que o governo se envolvesse numa guerra de pequenas dimensões com as Filipinas para resolver de vez o conflito. Após dois anos, em 2014, a China instalou uma grande plataforma de exploração de petróleo dentro da Zona Económica Exclusiva do Vietname, acompanhada de navios de guerra e da guarda costeira. Todos os navios vietnamitas que tentaram entrar nas imediações foram atingidos ou atacados com canhões de água de alta pressão. Ainda que a China esteja a explorar o petróleo, o Vietname tenta manter o equílibrio com outras potências regionais e comprou à Rússia seis submarinos de ataque a diesel, bem como uma grande quantidade de mísseis antinavio. As Filipinas, por outro lado, decidiram renovar a sua antiga aliança com os Estados Unidos, apesar das menos boas e complexas relações que os dois países atravessam, depois da eleição do Presidente Rodrigo Duterte, que pretende fazer uma política externa independente, sem a vassalagem dos seus aliados. Os Estados Unidos são o país-chave em qualquer tentativa de formar uma coligação de equilíbrio para conter o poder da China. É de relembrar que um dos momentos mais complexos dos últimos quarenta anos das relações sino-americanas, foi a crise do Estreito de Taiwan, em 1996. A política de uma China única, exerceu influência sobre os eleitores da ilha para não votarem em um partido político pró-independência, realizando uma série de exercícios militares no Estreito. Os Estados Unidos, retaliaram, em ingerência de política considerada interna chinesa, enviando dois porta-aviões para a área, sem que se tenha produzido qualquer conflito. A China, desde meados da década de 1990, empreendeu um programa bem financiado de modernização militar. É uma tentativa de contrariar a potencial projecção das forças armadas americanas, dentro das águas disputadas do primeiro grupo de ilhas. A desvalorização das forças navais dos Estados Unidos e a liberdade de movimento nos mares do Leste e do Sul da China é vital. A capacidade da China de manter a marinha dos Estados Unidos afastada das águas da Ásia Oriental, constitui uma condição necessária e quase suficiente para deter uma hegemonia regional. A grande maioria dos académicos nacionalistas reconhecem que a China cometeu um erro histórico, ao ignorar os oceanos e que a falta de preparação para a guerra naval, levou às humilhações do século XIX, e esta sensação foi mostrada em uma conferência na Universidade de Pequim, em 2007, onde a maioria dos oficiais militares, analistas do governo e académicos participantes, apoiaram a construção de uma grande marinha equipada com porta-aviões. Todavia, não é uma tarefa fácil, construir e criar uma frota de mar que poderá levar várias décadas a concretizar pela marinha do Exército de Libertação Popular, para alcançar a paridade com a marinha dos Estados Unidos. Os militares chineses estão a construir a possibilidade e a capacidade de deter as operações americanas no Leste Asiático. A sua estratégia de dissuasão poderá ser o do uso de uma táctica militar chamada de “negação de área”, que inclui o uso extensivo de mísseis anti-aéreos e antinavio, que podem causar uma alta taxa de risco para os aviões dos Estados Unidos em qualquer conflito, dentro do primeiro conjunto de ilhas, o que faria afastar a marinha americana para longe do continente chinês, dificultando a sua flexibilidade operacional. Todavia, qualquer tentativa de consideração de hegemonia regional será reduzida por várias desvantagens da China. A China, em termos de tecnologia militar, ainda se encontra muitos anos atrás dos americanos, ainda que esteja a evoluir a passos de gigante, dependendo da Rússia para a maioria dos seus equipamentos militares de ponta, incluindo motores para o seu avião de combate. Os submarinos nucleares que estão a ser construidos são similares à tecnologia da Guerra Fria e não são comparáveis ao actual equipamento da marinha americana. Os Estados Unidos, por outro lado, têm as suas debilidades. A guerra económica provavelmente funcionaria melhor contra a China, mesmo integrada mundialmente, quando comparada com a Guerra Fria contra a União Soviética que criou enormes prejuízos aos Estados Unidos e o assassinato do presidente John Kennedy. Os Estados Unidos e a China estão em um relacionamento mutuamente seguro economicamente, e cada um pode retaliar em uma guerra económica iniciada pela outra. Todas as acções mal calculadas dos Estados Unidos podem empurrar alguns dos seus aliados do Leste Asiático para o lado da China. A força da influência económica da China não deve ser subestimada. Actualmente, existem oitenta países no mundo que têm a China como seu maior parceiro comercial. O comércio com a China é vital para a prosperidade dos países da ASEAN, pois dado o tamanho da classe média chinesa ainda em crescimento, é óbvio que a Organização Regional precisa mais do mercado chinês, do que o inverso. É de prever que até 2018, a China seja a maior economia do mundo, em termos de PIB. É natural que a China deseje dominar a sua região, porque em um mundo sem uma autoridade hegemónica, somente os países que maximizam o seu poder podem, tal como defende o realismo ofensivo, garantir a sua sobrevivência. A China pode precisar de hegemonia regional para garantir o seu acesso às reservas mundiais de combustível fóssil, dado que na década de 2030, prevê-se que precisará de importar 80 por cento das suas reservas de petróleo, provenientes do Golfo Pérsico e do Estreito de Malaca. A situação, indiscutivelmente levará a China a ser ainda mais assertiva na reivindicação do primado no Mar da China Meridional. Além disso, se o crescimento económico actual da China continuar nas próximas décadas, e os seus gastos militares seguirem uma trajetória idêntica, pode ser difícil para os actores regionais resistirem ao seu poder. Se os Estados Unidos e os seus aliados regionais não conseguirem criar uma coligação de equilíbrio efectiva, terão grandes dificuldades em fazer face às movimentações da China. A China poderia alcançar a hegemonia regional de forma viável, e ser inatacável em virtude do seu tamanho económico e da sua capacidade militar. A China foi o poder hegemónico no Leste Asiático durante séculos, antes dos europeus e americanos abrirem a região ao comércio no século XIX. Após o sucesso das reformas económicas de Deng Xiaoping, a China é mais uma vez um jogador na região e no cenário mundial e de acordo com a teoria do realismo ofensivo, é provável que a China faça uma tentativa em direcção à hegemonia regional. O seu comportamento nos mares do Leste e do Sul da China, bem como o crescente poderio militar e o surgimento do nacionalismo no país, dão a entender que tal processo se iniciou. A China, no entanto, ainda não possui as capacidades militares para desafiar os Estados Unidos em um confronto directo. Se os Estados Unidos puderem criar uma coligação efectiva de equilíbrio, o poder chinês será contido. A China ainda não é uma hegemonia regional, mas se o seu potencial continuar a crescer de forma económica e militar como se prevê, pode ser uma força irresistível de conter, pelo que os actores regionais podem não ter outra escolha senão o de acomodar a China devido à sua própria sobrevivência econômica, e por falta de capacidade para contrabalançar militarmente. Se vasculharmos a memória o Comunicado de Xangai, também chamado de Comunicado Conjunto dos Estados Unidos da América e da República Popular da China (RPC), que foi assinado durante a visita do presidente Richard Nixon à China, em 1972, tendo levado a uma aproximação sino-americana que teve um impacto dramático na geopolítica asiática. Tal, aconteceu após a visita igualmente importante e secreta à China do então conselheiro de segurança nacional de Nixon, Henry Kissinger. As palavras consignadas no comunicado são particularmente significativas, afirmando que não devem procurar a hegemonia na região da Ásia-Pacífico, e cada uma das potências opõe-se aos esforços de qualquer outro país ou grupo de países para estabelecer tal hegemonia… A China nunca será uma superpotência e opõe-se à hegemonia e política de poder de qualquer tipo. Os Estados Unidos naquele momento não reconheceram a RPC. O assento chinês na ONU foi ocupado pela designada República da China, até 25 de Outubro de 1971, quando foi aprovada a resolução 2758, pela Assembleia Geral da ONU, substituindo Taiwan pela RPC, em todas as suas instâncias e organismos. A 23 de Novembro de 1971, tornou-se membro permanente do Conselho de Segurança com direito a veto. Os Estados Unidos, contudo, só reconheceram oficialmente a RPC como o único governo legítimo da China, a 1 de Janeiro de 1979. O que fez os Estados Unidos mudarem a sua política em relação à RPC? A União Soviética e a RPC sofreram um conflito fronteiriço em 1969. A divisão sino-soviética foi um dos principais determinantes da política americana para com a China. Era geopolíticamente prudente que os Estados Unidos dividissem o conjunto de irmãos comunistas A RPC de Mao Tsé-Tung nunca se viu como um pequeno irmão da União Soviética. Existia um pensamento geopolítico bastante simples para enfrentar uma nação comunista contra outra e verificar a expansão daquele que era o inimigo e concorrente dos Estados Unidos no ambiente de segurança global. O inimigo era a União Soviética. À China, importava o entendimento com um poder extra-regional para verificar os avanços de um grande poder ao seu redor e nada melhor que a estratégia de uma nação comunista unida a uma nação capitalista para verificar as tendências hegemónicas de outra nação comunista na Ásia-Pacífico. Todavia, os cálculos geopolíticos, parecem ser muito estranhos no século XXI. Um documento de estratégia divulgado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, em Janeiro de 2012, com o título “Sustentando a liderança global: prioridade para a defesa do século XXI” afirma que o crescimento do poder militar da China deve ser acompanhado por uma maior clareza das suas intenções estratégicas para evitar causar fricção na região. Além disso, as considerações resultantes de subsequentes debates, examinam a probabilidade de uma armadilha de Tucídides nas relações entre os Estados Unidos e a China, pelo que se sentia a inevitabilidade da procura da hegemonia regional da China na Ásia-Pacífico, que poderia criar um iminente conflito entre os dois países. Assim, existe matéria combustível suficiente na região, incluindo a estratégia de negação de área/anti-acesso da China aos mares do Sul e do Leste da China versus a posição da América quanto à liberdade de navegação e operações marítimas na região e as tensões sobre o Estreito de Taiwan. O que tais situações implicam em termos de comportamento para uma grande potência e a continuidade e mudança das suas percepções de ameaças? Tal, significa que qualquer país que goze de um grande estatuto de poder ao ter uma hegemonia estabelecida no seu hemisfério, como os Estados Unidos no hemisfério ocidental, detestaria o surgimento de outro concorrente em outro hemisfério, neste caso o provável aumento da China como uma hegemonia no hemisfério oriental? Nesse caso, o medo do surgimento de outra hegemonia regional que restringa o acesso do estatuto hegemónico a essa região certamente será desafiado, independentemente de quem é o actor. A União Soviética durante a Guerra Fria foi claramente o inimigo dos Estados Unidos e teve que ser combatida por todos os meios possíveis, incluindo cedências e acordos impressionantes com uma China que tinha mais ou menos os mesmos valores políticos e que transtornou os Estados Unidos. Os Estados Unidos tentaram de tudo, incluindo apoiar as forças do Kuomintang contra as forças comunistas na Guerra Civil chinesa e, mais tarde, espicaçar uma Índia não-alinhada para actuar como contrapeso contra uma China comunista antes de procurar uma aproximação. Actualmente, um dos maiores desafios para os Estados Unidos é usar velhas e novas ferramentas que variam entre estratégias de cooperação e coerção para gerir o crescimento da China. Os Estados Unidos, que parecem querer retirar-se da liderança global, enfrentam uma China que, sob o comando do seu poderoso líder, presidente Xi Jinping, abandonou a estratégia de ocultar e abraçou plenamente a estratégia do “Sonho Chinês” que querem partilhar com o mundo, e em particular com os Estados Unidos, para que reconheçam que o tempo da China chegou. Os chineses desejam mais influência, respeito e espaço. Esses desejos parecem todos abrangentes em termos das implicações de uma China que tem visto o crescimento político, económico e militar e mostra intenções de remodelar normas e regras globais à sua imagem. A influência económica da China é palpável mesmo entre os países com os quais compartilha equações de segurança adversas, levando a análises que alguns países queiram alinhar com a China em questões económicas e com os Estados Unidos em questões de segurança. A demarcação enganosa e simples dificilmente se desenrola facilmente na complexa geopolítica do século XXI. Os empreendimentos económicos da China, incluindo a ambiciosa “Iniciativa uma cintura, uma estrada (BRI na sigla inglesa) ”, têm objectivos estratégicos. O nome dado à iniciativa não ajuda a esclarecimentos. A “cintura” refere-se às ligações terrestres entre a China e a Ásia Central, reproduzindo a rota da seda que durante séculos foi o eixo que dominou o comércio mundial entre o Extremo Oriente e a Europa, pois foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, no final do século XV, que coincidiu com o seu declínio. A “estrada” trata-se da rota marítima através da qual a China pretende reforçar a sua ligação ao Sudeste Asiático, e conectá-la a África, onde a presença de empresas chinesas é assinalável. Os corredores de conectividade e os seus resultados económicos para a China são ingredientes do pensamento do país de distribuir bens públicos no sistema internacional como uma grande potência. Mas ainda não está claro quais são os compromissos para a generosidade chinesa e qual a oportunidade que os países estão dispostos a pagar por enredar-se com os projectos geopolíticos e geoeconómicos chineses. O que tudo isso implica para a liderança global dos Estados Unidos e compromissos com países preocupados com uma China forte, ainda estão enredados na rede económica chinesa? O julgamento ainda está fora da natureza da dinâmica Estados Unidos-China e das suas implicações para a geopolítica global. No entanto, uma coisa parece ser clara, que é a procura da hegemonia e do jogo do equilíbrio de poder ser uma constante, pois apenas os actores mudam. [LEIA A PRIMEIRA PARTE DESTE ARTIGO]
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSelecção do júri (I) [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] antigo Chefe do Executivo de Hong Kong, Donald Tsang Yam-kuen, foi acusado de ter recebido da Wave Media, uma penthouse localizada na China continental e avaliada em 3,8 milhões de Hong Kong dólares (487.000 USD). Em contrapartida, Donald Tsang tinha-se manifestado “favorável” à concessão da licença de difusão, requerida pela Wave Media, proprietária de uma rádio local, durante a sua chefia do Governo. Bill Wong Cho-bau, o maior accionista da Wave Media, tinha a casa em seu nome e pagou do seu bolso as obras de renovação. O caso vai ser ouvido no Supremo Tribunal de Hong Kong. O julgamento será presidido pelo juiz Andrew Chan Hing-wai e contará com a presença de um júri. Segundo o sistema legal de Hong Kong, sempre que esteja em causa o julgamento de um caso de maior gravidade, será necessária a presença de júri no Tribunal. Esta é a principal diferença para o sistema jurídico de Macau, que não contempla a existência de júri. Consoante a gravidade do caso, assim serão requeridos sete, oito ou nove jurados. Os jurados são escolhidos entre os residentes de Hong Kong. O júri terá apenas de decidir se o réu é culpado ou inocente da acusação. Deverá ser constituído por pessoas comuns. Não devem ser especialistas em assuntos jurídicos, nem personalidades de destaque. Os jurados deverão ser maiores de 21anos e terão de ter o ensino secundário completo. A partir do momento em que um cidadão é seleccionado como jurado, tem obrigação de respeitar a convocatória. É um dever cívico. Os jurados estão dispensados de comparecer nos seus locais de trabalho, enquanto o julgamento estiver a decorrer. Neste período, cada jurado recebe do Governo uma diária de 830 Hong Kong dólares. Actualmente, em Hong Kong, o réu tem o direito de escolher a língua que será usada durante o julgamento. Pode escolher entre o chinês e o inglês. Neste caso, como o advogado de acusação é originário do Reino Unido, será utilizado o inglês. Segundo os noticiários, a selecção do júri para este julgamento tem sido muito criteriosa, embora já tenha havido alguns casos a salientar. Em primeiro lugar houve um homem que apelou ao direito de excepção. O homem justificou o apelo, afirmando: “Não gosto de Donald Tsang.” O juiz começou por rejeitar o apelo, alegando que o motivo não era suficientemente forte. Mas, depois de o advogado de defesa se ter oposto à inclusão do homem no júri, o juiz acabou por anuir. O segundo caso assinalado envolveu uma mulher, rejeitada pelo juiz porque não conseguia pronunciar em inglês as palavras, “afirmo, solenemente e veredicto”. A rejeição baseada no mau inglês da potencial jurada, acaba por ser um motivo injusto para o réu. A terceira pessoa a ser rejeitada foi uma jornalista. A bem da isenção noticiosa, o juiz considerou que a sua profissão era incompatível com esta função. A quarta, e última rejeição, foi também baseada na má pronunciação do inglês. Desta feita, a senhora em questão, não conseguia pronunciar “almighty” (todo poderoso). O juiz voltou a manifestar a sua apreensão em relação às exclusões baseadas no mau domínio da língua inglesa. Teme que este factor possa afectar o resultado final. Como se pode ver, o juiz tem sido muito cuidadoso no tratamento dos assuntos relacionados com este caso. Devido à proeminência social do réu, qualquer erro pode resultar numa anulação do julgamento e conduzir a críticas severas ao Tribunal. No primeiro caso de exclusão, o juiz insistiu na permanência do convocado, e, inicialmente, não aceitou a “antipatia pelo réu” como motivo suficiente para o isentar das suas obrigações. Se qualquer pessoa pudesse alegar esse motivo para ser isentada destas funções, o sistema de jurados deixava de funcionar em Hong Kong. Só motivos muito mais fortes costumam ser aceites. Mas a recusa do advogado de defesa em aceitar esta pessoa, deu motivo suficiente ao juiz para aceitar o apelo. Deve fazer-se tudo para evitar recursos e aumento das despesas de Tribunal. No entanto, esta posição pode ser questionável. Será que existe uma boa razão para obrigar alguém a ser jurado, mesmo que o advogado de defesa insista que a “antipatia pelo réu” é motivo para que não possa ser aceite? Imagine-se que num caso futuro o advogado de defesa alega o mesmo que alegou o de Donald Tsang. A decisão vai ser a mesma. O círculo vicioso mantém-se e o problema nunca terá solução. Outra questão que merece ser discutida é a adopção da língua usada em tribunal. Neste caso dois jurados foram excluídos por não falarem bem inglês. O juiz não tinha confiança do seu domínio da língua. Se os jurados não compreenderem bem inglês, não podem acompanhar o julgamento e não terão bases para tomar uma decisão justa. Por aqui se pode ver como a escolha da língua do julgamento pode ser problemática. Os advogados e o juiz são obrigados a dominar o inglês, mas os jurados não são. Será que o Governo deve acrescentar uma emenda à Ordenança dos Júris, a requer que os jurados falem inglês fluentemente? Se essa condição for exigida por lei, acabará por perder a utilidade se o julgamento for em chinês. A questão parece ser complicada. Aplica-se o mesmo princípio a qualquer região ou país com um sistema legal bilíngue. Em que circunstâncias se deverá adoptar uma ou outra língua, é a primeira questão, se ambas as partes em confronto dominam a língua escolhida, é a outra. Num sistema legal bilíngue, os juízes e os advogados dominam as duas línguas. Contudo, esse pode não ser o caso das testemunhas e do réu. Nesses casos, poder-se-á recorrer à tradução para solucionar o problema? A sociedade deverá considerar todas estas questões. Se todos os documentos tiverem duas versões, será um desperdício de tempo e de dinheiro e, além disso, implicará mais demoras no julgamento. Será isso que todos nós queremos? Como o caso de Donald Tsang é complicado, continuaremos a nossa análise na próxima semana. Até lá, despeço-me dos meus leitores. Professor Associado do IPM Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau