Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA confiabilidade da inteligência artificial (II) “A robot can acquire thousands of pieces of information about its environment through its sensors in a second—more accurate and detailed information than you or I ever could—and it will still drive off a cliff or into a wall unless you tell it not to. Robots are not really stopping at a wall. They are stopping (if you remember to tell them to) when they sense something using a very particular sensor” Sensors and the Environment (Robotics) Ian Chow-Miller [dropcap]A[/dropcap] quarta área-chave contende com a localização e rotulagem tendo em vista ensinar as máquinas. A IA responde à grande questão sobre os dados, que foram definidos em 2018, ou seja como transformá-los em valor. A principal prioridade de dados relacionados à IA para 2019, é integrar os sistemas de IA e de análise para obter informações de negócios a partir dos dados, o que constitui um objectivo realista. A IA pode ser usada com dados e análises para gerir melhor os riscos, ajudar os trabalhadores a tomar decisões mais eficientes e automatizar as operações dos clientes. Todavia existe uma grande dificuldade, pois as pesquisas indicam que as empresas não estão a fornecer a base que a IA precisa para ter sucesso. É de considerar que menos de um terço dos líderes empresariais afirmam que os dados de rotulagem são uma prioridade para os seus negócios em 2019. A grande questão é de saber como a IA aprende. A aprendizagem de máquina para detectar padrões significativos no presente e prever o futuro, deve passar por um processo de ensino e mostrar dados históricos suficientes sobre o comportamento do consumidor, por exemplo, se eventualmente será capaz de prever como esses consumidores se comportarão no futuro. Mas, para criar conjuntos de dados necessários para o treino é necessário rotular os dados, e um exemplo simplificado é determinar se um consumidor está satisfeito ou não. É de atender que para que esses conjuntos de dados possam ajudar a suportar a IA em toda a empresa (os consumidores podem interagir com mais de uma linha de negócios) é preciso criar padrões para rotulá-los de forma consistente. Um AI CoE pode criar e monitorizar padrões de dados, bem como desenvolver sistemas e processos que facilitam os trabalhadores a criar conjuntos de dados rotulados e úteis para uso futuro. A questão de novas ferramentas para preencher as lacunas passa pelo facto de que mesmo com uma melhor governança de dados, haverá desafios. Alguns problemas de negócios têm soluções de IA que exigem dados de treino que as empresas podem não ter disponíveis, mas novas técnicas de aprendizagem de máquinas simples e alargadas podem permitir que a IA produza os seus próprios dados com base em algumas amostras. e também podem transferir modelos de uma tarefa com muitos dados para outra que não tenha dados. Às vezes, a IA pode sintetizar os seus dados de treino usando técnicas como aprendizagem por reforço, aprendizagem activa, redes geradoras de adversários e gémeos digitais. As simulações baseadas em probabilidades, também podem criar dados “sintéticos” que podem ser usados para treinar a IA. Há que dar atenção à política, pois o cenário da política da IA ainda está a dar os primeiros passos e muitos formuladores de políticas, vêem esse momento como o início de uma corrida armamentista da IA que precisa de financiamento público e desregulamentação, enquanto outros estão a pedir directrizes abrangentes que abordem algoritmos éticos. O Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) (UE) 2016/679, é um regulamento de direito europeu sobre a privacidade e protecção de dados pessoais, aplicável a todos os indivíduos na EU e Espaço Económico Europeu (EEE). Regulamenta também a exportação de dados pessoais para o exterior da UE e EEE. O RGPD tem como objectivo dar aos cidadãos e residentes, formas de controlar os seus dados pessoais e unificar o quadro regulamentar europeu e a Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia (CCPA na sigla em língua inglesa) são legislações diferenciadas, mas dão aos indivíduos o direito de ver e controlar como as organizações recolhem e usam os seus dados pessoais, bem como reclamarem, recorrerem ou demandarem caso sofram danos devido a violações da segurança cibernética. As empresas devem adoptar uma abordagem global para questões reguladoras, harmonizando equipas que estão a ajudar a moldar políticas em diferentes jurisdições e a abordar a conformidade, aplicando as práticas recomendadas globalmente e de acordo com o GDPR, por exemplo, mesmo que sua empresa não tenha operações na Europa, estará disposto a fazer uso de práticas do CCPA e outras regulamentações futuras. A quinta área-chave diz respeito à reinvenção, monitorizando a IA através da personalização e maior qualidade. O aumento do limite superior e inferior do conhecimento e produtividade com a IA não é um sonho distante e muitas empresas estão a usar a IA para melhorar as operações e aperfeiçoar a experiência do cliente, mas em 2019, vários deles planearão ou desenvolverão novos modelos de negócios baseados em IA e investigarão novas oportunidades de rendimento, bem como muitos cultivarão esses novos negócios em partes separadas da sua organização, distintos dos CoEs que são mais focados internamente. Os maiores ganhos da IA, vêm de melhorias na produtividade, pois as empresas usam a IA para automatizar processos e ajudam os trabalhadores a tomarem melhores decisões. A maioria do impacto económico da IA virá do lado do consumo, através de produtos e serviços de alta qualidade, mais personalizados e mais orientados a dados. A saúde, venda a retalho e indústria automobilística podem ter benefícios imediatos. A IA na saúde, por exemplo, poderá permitir novos modelos de acordos baseados na monitorização de dados de estilo de vida do paciente; diagnósticos mais rápidos e precisos de cancro e outras doenças, bem como seguro de saúde personalizado e adaptativo. Os vendedores a retalho estão a usar a IA para antecipar tendências e orientar os negócios com o fim de atingir os seus objectivos. A próxima fase é a venda a retalho hiper-personalizada, pois a IA e a automação tornam viável aos vendedores a retalho oferecer um número crescente de produtos ou serviços feitos especificamente para um indivíduo. A partir do terceiro trimestre de 2018, existiam novecentas e quarenta empresas de IA nos Estados Unidos. O investimento em capital de risco nos Estados Unidos, que é privado, abrange setecentas e noventa empresas, representando seis mil milhões e seiscentos milhões de dólares nos três primeiros trimestres de 2018, comparados com os três mil milhões e novecentos milhões de dólares no mesmo período de 2017, e nem todo esse dinheiro está a fluir da estrada arterial no oeste do Vale do Silício, Califórnia, e das empresas de capital privado, pois os valores recordes vêm de corporações, seja através de recursos de capital de risco ou investimentos directos. É de considerar que em 2018, cerca de novecentos e trinta e oito milhões de dólares foram investidos por empresas que procuram investir fora do desenvolvimento da IA. O investimento, para desenvolver a IA, é uma tendência que se prevê de aceleramento, mas não o suficiente. Apenas 8 por cento das empresas americanas estavam a fazer investimentos directos e significativos em IA e outras 52 por cento das empresas americanas procuravam aquisições ou alianças, em 2018. A sexta área-chave refere-se à convergência que combina a IA com a Inteligência Analítica e a IoT. O poder da IA cresce ainda mais quando é integrado a outras tecnologias, como a Inteligência Analítica, Planeamento de Recurso Corporativo (ERP na sigla em língua inglesa), (IoT), Protocolo da Confiança e até eventualmente, Computação Quântica. Os benefícios dessa tendência de convergência não se limitam à IA, que é de onde os maiores ganhos de todas as oito tecnologias essenciais virão, sem descurar que 36 por cento dos líderes empresariais afirmam que gerir a convergência da IA com outras tecnologias é um dos principais desafios da IA para 2019, colocando-a em pé de igualdade com a reciclagem de trabalhadores, abaixo da garantia da confiança na IA. Ajudar a análise avançada, preditiva e de fluxo de média a evoluir ainda mais com IA é uma prioridade comum. A convergência pode tornar os novos modelos de negócios baseados em dados mais poderosos. A IoT também pode colher grandes benefícios quando combinada com a IA. Uma grande empresa pode em breve ter milhões de sensores de IoT, reunindo informações de equipamentos comerciais e dispositivos de consumo. A IA e a análise desempenharão um papel crítico na localização de padrões nessa onda de dados para suportar tudo, desde a manutenção de sistemas até à penetração de marketing. A IA incorporada contém os conjuntos de componentes electrónicos da IA directamente ligados aos dispositivos de IoT para criar inteligência local, ajudará a enfrentar esse desafio. A integração bem-sucedida da IA com outras tecnologias começa com os dados. As organizações que investiram na identificação, agregação, padronização e rotulagem de dados, com a infra-estrutura de dados e o seu armazenamento como respaldo estarão bem posicionadas para combinar IA com análises, o IoT e outras tecnologias. No entanto, para integrar a IA a outros sistemas corporativos, os especialistas terão que convergir também. Em vez de cientistas de dados concluírem um algoritmo e depois entregá-lo a um especialista em TI para codificar uma Interface de Programação de Aplicações (API na sigla em língua inglesa) ou enviá-lo para alguém da empresa que o aplicará, devem trabalhar juntos desde o início do processo. A grande parte da resposta envolve técnicas de Desenvolvimento e Operações (DevOps), que colocam equipas de desenvolvimento e operações em um ciclo de retorno da informação ou processo para colaboração constante e mudanças interactivas para novos produtos. A outra parte envolverá a criação de novas funções para os trabalhadores servirem como tradutores e contactos entre as várias equipas. É importante considerar como é a IA integrada a tecnologias e sistemas avançados que funcionam ininterruptamente, em que os seus algoritmos precisarão de um fluxo contínuo de novos dados para aprender. Caso contrário, os modelos de IA estarão a trabalhar com dados desactualizados, o que prejudicará o desempenho da IA. Os modelos também precisarão de testes, actualizações e substituições regulares. O presente ano é o tempo de se pensar em ocupar e estabelecer a estratégia da IA. A IA precisará da sua estrutura organizacional e planos de força de trabalho; algoritmos confiáveis e dados correctos para treinar esses algoritmos; um plano para reinventar o negócio e aumentar a receita e os lucros; e convergência com outras tecnologias existentes e emergentes. É uma lista de tarefas ambiciosa. Mas as empresas que estabelecem as suas prioridades também se diferenciam.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSenhorio, mas pouco… e outras estórias [dropcap]R[/dropcap]ecentemente um jornal de Macau divulgou a história de um “negócio de imobiliário” menos transparente, feito por um estudante universitário. O jovem, que está a fazer uma pós-graduação, recebeu alojamento dos Serviços Sociais da Universidade, pelo qual lhe foi cobrada, por um período de seis meses, a quantia de 8.700 patacas. Pois o nosso jovem resolveu fazer negócio e alugar o quarto a 350 patacas por dia. Para o efeito colocou um anúncio no site “Airbnb”. O negócio floresceu entre o passado mês de Outubro e Janeiro deste ano. Claro que ao fim de um mês, o “senhorio” já estava a embolsar uma bela quantia. Como a história foi divulgada na imprensa, a Universidade procedeu a uma investigação detalhada e deu ordem de despejo ao desonesto “senhorio”. O estudante deverá vir a enfrentar um processo disciplinar. Mas já existiram outros problemas relacionados com estudantes alojados na Universidade. No entanto, as histórias vão variando sempre. Em Novembro último, durante uma festa na Baptist University de Hong Kong, alguns estudantes resolveram atirar farinha uns aos outros que, em contacto com as chamas de velas, provocou uma explosão. Do incidente resultaram 12 feridos. A seguir o porta-voz da Universidade prestou declarações, tendo afirmado que os estudantes são sempre alertados para os comportamentos que devem evitar; mas é natural que ninguém se tivesse lembrado de escrever “não atirem farinha uns aos outros.” Em Setembro, foi a vez de um estudante de Engenharia Mecânica da Universidade Politécnica, irromper pelo dormitório das raparigas, onde a sua namorada pernoitava três dias por semana. O rapaz violou a namorada e as suas duas companheiras de quarto. O homem admitiu ser culpado e foi condenado a 28 meses de prisão. Depois de apelar ao Tribunal de Recurso, a sentença foi reduzida para 18 meses. Veio a apurar-se que é costume nesta Universidade os estudantes deixarem as portas dos quartos abertas, para facilitar a entrada dos amigos. De todos estes casos o primeiro é o mais grave porque implica abuso de confiança e uso, em proveito próprio, de bens que pertecem à Universidade. Além disso, acabou por introduzir no campus pessoas estranhas, aumentando assim a possibilidade da existência de roubos e de violações. Pôs em risco a segurança dos estudantes, que vivem no campus, e afectou a reputação da Universidade. Consideremos ainda o hábito de os estudantes não trancarem as portas dos quartos, circunstância que aumenta os perigos a que ficam sujeitos. Os pais que ficavam mais descansados quando os filhos se alojam no recinto da Universidade, percebem agora que estavam equivocados. É obviamente uma ideia ultrapassada nos tempos que correm. Hoje em dia é inquestionável que os estudantes alojados nos campus universitários se comportam das formas mais extravagantes. Antigamente, a farinha era, só e apenas, um ingrediente culinário. Ninguém se lembrava de a usar como brinquedo. Mas, os tempos mudaram, e esta brincadeira teve consequências desastrosas. Por aqui se vê que os tempos estão a mudar e as mentalidades também, e as mudanças sucedem-se diariamente. Será que estes factores se devem à prosperidade económica e às famílias com filhos únicos? Estes jovens mimados parecem não compreender o impacto que os seus comportamentos têm nas outras pessoas. Actualmente os jovens universitários parecem comportar-se como crianças da escola primária. É preciso explicar-lhes tudo, mostrar-lhes, a cada passo, que os seus comportamentos podem ter consequências. É preciso explicar-lhes como funciona cada dispositivo, para que o possam usar em segurança. Se esta tendência se mantiver, como será a nossa sociedade dentro de 20 anos? Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Luz VozesPorco [dropcap]2[/dropcap]019 é o meu ano no zodíaco chinês. Mas todos os anos correm sob a força do meu signo. A carne de porco é a mais consumida e apreciada no mundo. Se me permitem um acesso de canibalismo vaidoso: já me provaram? Sou delicioso, indispensável, incontornável. Mas voltemos à efeméride que marca a razão de ser desta coluna. Na China ganho dimensões místicas, que em muito extrapolam o milagre do palato que dá pelo nome de bacon e as semelhanças genéticas com os humanos. Sou o derradeiro animal do zodíaco chinês, o décimo segundo, aquele que encerra o ciclo zoológico do Reino Celeste do Meio. No início nada existia, apenas vazio, ausência, o mais próximo que a espiritualidade e a física estiveram do conceito matemático do zero absoluto. Sentado no trono da Criação, o Imperador de Jade convocou-me, assim como a outros 11 animais do zodíaco. Não tenho bem presente se me atrasei porque adormeci, ou se tive uma urgência de construção civil, mas o facto é que fui o último a chegar à reunião. A partir desse único e impreciso acidente mitológico, colaram-me o pecado capital da preguiça à minha figura. Depois de barafustar com tamanha injustiça, decidi que devia seguir esse desígnio e passei a dedicar os meus dias à dolência e à arte de enfardar em completo desrespeito às mais elementares regras de etiqueta. Há quem não aprecie os meus hábitos de higiene pessoal e me ache imundo. Há quem denigra a minha casa e lhe chame pocilga. As ignomínias que um porco ouve. Nas condições de habitualidade a que me votam sou bem capaz de dormir e comer num oceano de excremento, assumo. Admito isso sem qualquer tipo de problemas, estou a milhas do imaculado mito do Babe (o porquinho do cinema). Talvez seja por isso que tanto judeus como muçulmanos tenham nos seus livros sagrados restrições ao consumo de carne de porco. No fundo, a abstinência de bifana é um dos pontos em comum entre duas religiões habituadas ao confronto. A verdade é que sem mim não há minchi, nem chu pa pao. Além disso, minha a corpulência, em especial a generosidade nas bochechas e orelhas, é sinónimo de riqueza e fortuna. Como todos os signos do zodíaco, represento uma mixórdia de características onde credulidade e sugestões egocêntricas encaixam sempre na perfeição. Sou a sorte, excepto nos momentos de azar. Sou a bonança, tirando aquelas alturas chatas de belicismo. Sou centelha mitológica, manifestação supersticiosa que sobreviveu à idade da razão, ao mesmo tempo que me mantenho irresistível até aos olhos dos mais acérrimos gladiadores da lógica. Sou um grande porco, a perfídia com focinho, a conspurcação, a descida à vertiginosa perversão. Sou colesterol a entupir a artéria, pensamentos impuros, grunhidos de aflição quase humanos, pata negra de excelência, salsicha de Viena e o símbolo derradeiro da fortuna. Estou em todo o lado, em todas as casas e montras, dourado ou vermelho, sempre rosado e sorridente, a alma das festividades que se avizinham, o símbolo do que está para vir.
Carlos Morais José A outra face VozesOs muros improváveis [dropcap]C[/dropcap]onstroem-se muros por aí, um pouco por toda a parte, depois da época em que se deitavam abaixo e se proclamava o seu fim. O planeta comunica em barda, nunca se viajou tanto, mas as fronteiras aguçam os espinhos e não são rosas que esperam quem as pretende ignorar. Houve um tempo em que se sonhou o desaparecimento das paredes. Durante esse tempo fomos, no entanto, coleccionando tijolos e construindo muros improváveis entre nós. Cada tijolo, geralmente, porta um nome e sai do forno das pequenas frustrações que nos habituámos a não suportar. E também das grandes que derivam da falta de esperança e da desistência. Cada tijolo, singularmente, carrega um ódio, um travo amargo, uma cólera refreada. E fazemos esses muros entre nós sem dar por isso, nem perceber que os muros são a razão de nos doer a cabeça pois neles marramos continuamente, imbuídos de um prazer estranho, como se essas marradas construíssem a estrutura da nossa identidade, apesar de nos deixarem marcas e motivarem enxaquecas. Nos anos 70, saiu um álbum dos Pink Floyd sobre o muro que é construído à nossa volta pela sociedade, pela família, pela escola, pelas relações amorosas, etc.. No final, o indivíduo em questão acaba por se libertar e derrubar essa parede, inferindo que existe uma possibilidade de libertação/comunicação. Por campos de rosas e margaridas, enfrentando o sol nascente e o ciano insuportável do céu, parecia existir a possibilidade de voltar a respirar, ao modo do primeiro homem, e acreditar, ao modo da mulher primeva. Era, obviamente, mentira. Uma mentira piedosa. Hoje o muro constrói-se de dentro para fora e existe entre o que sou e o que tenho de ser, entre o que projecto e o que realmente edifico. E cada tijolo nesse muro porta um nome e carrega um inimigo que sou eu mesmo. É um muro feito de espelhos, onde deformado me contemplo e neles invento também quem me persegue e quem se levanta no meu caminho. Sou eu, contudo, que me revejo nas imperfeições dos outros. Como lhes poderia perdoar? Como não desfrutar desse alimento pútrido, como não chafurdar no chavascal de outras vidas? Depois, lá para finais dos anos 80, caiu o muro que dividia o mundo, que ficou uno e nós sem sabermos quem odiar. Foi coisa de pouco tempo pois os humanos demonstram uma capacidade assombrosa para a construção de muros. Erguem-nos numa noite como se os tivessem desmontados num recanto da casa, prontos a servir, capazes de suster as enxurradas. E, caso falte algum tijolo, há sempre alguns à mão por aí que servem muito bem. Pouco importa, no entanto, a sua verdadeira função. A mera existência é o que realmente interessa. O meu muro é mais bonito que o teu, mais glorioso e flamejante. Olha para ele. Sente-lhe a superfície rugosa, a solidez destes tijolos inchados de convicções, cimentados por uma sincera teimosia, uma calma aleivosia. Contempla, aí de baixo, a sua extrema altura, o modo olímpico como quase toca o tal ciano do céu. Aquilata-lhe a grossura das paredes e imagina o quanto seria preciso para o derrubar. Agora encosta o ouvido e escuta atentamente. Ouves os gritos, os gemidos, os suspiros, os soluços? É a banda sonora deste muro. Sim, dá-se, de quando em vez, por um silêncio, um vazio e diz-se que por esses espaços circulam outros sons, mas ninguém tem a certeza de nada. São, com certeza, um risco para a permanência do muro. Eventualmente, diluirão a sua consistência e dele farão uma ruína. Quantos muros deixámos para trás nas nossas vidas? É curiosa esta incessante actividade de construção de muros. Aparentemente, não podemos passar sem eles. Sendo uma espécie profundamente gregária, parece que não sobrevivemos sem excluir, sem negar ou emparedar. Seja aos outros ou a nós próprios. Karel Capek falava de um bicho cuja habilidade suprema consistia em construir muros, barreiras, paredes. Ao que parece não se referia às salamandras.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesMeretíssimos Juízes [dropcap]O[/dropcap] Tribunal de Recurso de Hong Kong recusou recentemente dois pedidos de recurso ao Supremo Tribunal, o do super-intendente Franklin Chu, Jing Wei, acusado de ter agredido um transeunte com um bastão, durante os protestos do movimento Occupy Central, e o do antigo membro do Conselho Legislativo, Leung Kwok-hung, que solicitava revisão judicial da imposição do uso de cabelo curto aos prisioneitos. O exercício do estado de direito em Hong Kong encontra-se, desde há muito, entre os três mais eficazes de toda a Ásia e, em termos globais, entre as posições 15 e 16. O estado de direito define as bases que salvaguardam os valores fundamentais da região. Quando, no passado dia 15, o antigo Chefe do Executivo Donald Tsang Yam-kuen foi libertado, após ter cumprido 12 meses de prisão por “má conduta no exercício de funções públicas”, afirmou que vai apelar ao Supremo Tribunal. “Compreenderão que, como cidadão de Hong Kong, que acredita no estado de direito, continue a procurar que se faça justiça. Tenho de limpar o meu nome. Não posso desistir.” Estas declarações demonstram que mantém a confiança nos juízes de Hong Kong. Segundo o estado de direito, todos são iguais aos olhos da lei. Se a lei se tornar um instrumento ao serviço do partido no poder, que permita eliminar os seus opositores, a justiça será pervertida. Durante o processo das eleições para a Assembleia Legislativa de Macau em 2017, registaram-se casos de violação de lei. O julgamento destes casos deve ser feito com justiça, imparcialidade e abertura, de forma a assegurar que o estado de direito em Macau saia ileso. Os casos da “retirada de terreno concedido para construir um parque aquático (Mundo Oceano)”, as investigações da “Fábrica de Panchões Iec Long” e do “projecto de construção no Alto de Coloane” demonstram que Macau está a reforçar o exercício de estado de direito. Estes procedimentos devem seguir o ditado chinês, “todos os males deverão ser completamente erradicados”. Na versão chinesa do livro “Pôr a Democracia a Funcionar: A visão de um juiz”, o autor diz no prefácio, “a experiência americana demonstra que a independência jurídica – Tribunais e juízes independentes – é crucial para garantir o funcionamento eficaz do sistema governativo.” Mas isso não quer dizer que os juízes não cometam erros. No livro é relatado o caso do cidadão américo-nipónico, Korematsu, que foi internado após ter recusado uma extradição, durante a Segunda Guerra Mundial. Quando o caso passou ao Supremo Tribunal, o juiz reiterou o internamento. O autor do livro acredita que o julgamento de Korematsu “danificou a imagem do Supremo Tribunal”… “sugerindo que o juiz revelou incapacidade de tomar uma decisão impopular, que iria proteger uma minoria malquista. Demonstrou também que não foi capaz de cumprir as funções de revisão judicial eficazmente, que foram consideradas por Alexander Hamilton como os fundamentos de qualquer Supremo Tribunal.” Felizmente, o caso também “demonstra a necessidade prática de o Tribunal assegurar o cumprimento da Constituição, mesmo em tempo de guerra ou de emergência nacional”. Os juízes são humanos e estão sujeitos a testes e desafios. Se são ou não capazes de defender princípios e manter-se fiéis aos seus intuitos iniciais, é uma questão de capital importância. O Dr. Chu Kin, um dos mais respeitados juízes chineses que exerceram em Macau após a transferência de soberania, morreu num acidente. Como também é sabido, os juízes portugueses foram desde sempre muito bem considerados. Soube-se recentemente que quatro destes magistrados se irão retirar em breve, inclusivamente o juiz Viriato Manuel Pinheiro de Lima do Tribunal de Última Instância. Quando eu estava na Assembleia Legislativa, compreendi que o sistema jurídico de Macau deriva do Direito Português, encarado como um sistema avançado e civilizado. Os assessores jurídicos portugueses da Assembleia Legislativa trabalharam de forma complementar com os seus congéneres chineses no processo de criação legislativa. Espero sinceramente que o Governo da RAEM contrate juízes em número suficiente para substituir os magistrados que se retiraram. Os juízes são árbitros e as suas decisões devem ser obedecidas. Se uma sentença não for considerada justa, pode recorrer-se para uma instância superior. Acho esta frase do Dr. Geoffrey Ma Tao-li, Presidente do Tribunal de Último Recurso de Hong Kong, verdadeiramente digna de apreço, “a decisão dos Tribunais está acima de qualquer interferência de factores externos à lei, mesmo dos factores políticos”. Espero que esta verdade também se aplique Macau.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesGillette [dropcap]O[/dropcap] objecto de uso comum virou polémica. Os agentes de marketing da grande marca multinacional – que em português nem é nome de marca, mas do objecto cortante em si, -resolveram dar que falar ao criar um anúncio que põe a masculinidade em causa. Não é a masculinidade de todos, mas a de um tipo em especial: a masculinidade tóxica. Mas a contestação da masculinidade tóxica já nos é bem conhecida. Por isso duvido que tenha sido com surpresa que a empresa tenha visto o anúncio – que só tenta mostrar a possibilidade de uma outra masculinidade – a agradar, mas também a consternar o público ao ponto dos fiéis clientes ameaçarem boicotar a marca. As pessoas ventilaram o seu desgosto nas redes sociais ao pegar nas suas amorosas histórias de como a gillette entrou nas suas vidas de puberdade, a quem crescem pêlos faciais para, com desgosto, excluir a gillette da masculinidade hegemónica e normativa. Eu percebo que a toxicidade de um conjunto de características que está ligada, muito na generalidade, à comunidade masculina seja vista como ofensiva. Mas melhor ou pior, eu até verti uma lágrima neste tão emocional anúncio que propõe que os homens podem chorar ou mostrar-se frágeis. E que acima de tudo podem estar à frente na mudança de perspectivas retrógradas do que o homem pode ser. Se já poucos concordam que o papel da mulher é na cozinha, também concordarão, certamente, que o homem não é sempre o bully, o forte e o responsável. A masculinidade não pressupõe que uma criança de 4 anos, ao ficar sem pai se julgue o ‘homem da família’ como já vi acontecer. De alguma forma, a discussão tem tomado formas bastante polarizadas, das quais já extensivamente reflecti neste espaço. Mas eu sou daquelas que não achou o anúncio da gillette particularmente ofensivo a quem quer que seja. Achei-o bonito e motivador e uma forma interessante de pôr na esfera pública os motivos e os desejos de mudança para uma masculinidade diferente. Mas nem tudo são rosas, senhores e senhoras. A gillette não deixa de ser uma marca a trabalhar em função de lucros e publicidade gratuita. Por isso, não querendo soar demasiado desconfiada acerca das boas intenções de uma campanha tão emocional e actual – para além da intenção de doar milhões para organizações para causas que desconstroem a masculinidade tóxica – má publicidade, é sempre publicidade. Porque é bem verdade, e não querendo soar ingrata, que a gillette ao longo dos anos contribuiu com a obsessão da (ausência de) pilosidade feminina também. Há quem tenha realçado o papel determinante da publicidade da gillette para que as mulheres sentissem os seus pêlos como pouco higiénicos e não estéticos. Para além de toda a polémica da ‘taxa rosa’ que faz com que as lâminas com uma capa rosa, i.e., para as mulheres, sejam mais caras do que a simples lâmina masculina. Moral da história: se a gillette quer mesmo puxar os limites do género teria que fazer alguma coisa para contrariar a tendência que é produzir lâminas (que têm exactamente o mesmo propósito!) de forma estereotipicamente distinta para o mercado feminino e masculino. Até pode começar com os seus anúncios, colocando mulheres com pêlos (de verdade) a serem rapadas – e não a patetice que é vermos mulheres de pele sedosa a passarem uma lâmina pelo desnecessário. Como vêem ainda há tanto que deve e pode ser feito, que nem um anúncio polémico vem resolver metade dos problemas que a gillette em si poderá produzir. Só que as empresas são espertas. Hoje em dia o consumo vem agora pautado de preocupações ambientais, conceptuais e éticas e com ele vem o desejo que se produza algum tipo de mudança. Mas, parece-me, que esta lógica não deixa de ser a da atracção para o consumo. Podia ser pior, sempre se provoca alguma discussão. Agora… se produz mudança social de facto – isso é que já é outra história.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesPensões ilegais [dropcap]R[/dropcap]ecentemente, um homem de 68 anos do interior da China, residente numa pensão ilegal, morreu devido a inalação de monóxido de carbono. A causa da morte foi determinada após análise forense. O homem habitava uma divisão que em tempos tinha sido uma cozinha, e que foi posteriormente convertida num quarto, mas onde ainda estava instalado um esquentador. A filha do falecido declarou que, quando chegou ao local, às 10.00 da manhã, a porta e a janela estavam fechadas. O pai estava deitado na cama, inconsciente. A mulher dirigiu-se de imediato à gerente para pedir socorro. O pai foi levado de ambulância para o hospital, onde o óbito foi confirmado. Posteriormente, os bombeiros foram chamados para analisar as instalações. Aperceberam-se que a porta e as janelas tinham estado fechadas com o esquentador ligado, e, desta forma, o monóxido de carbono foi-se acumulando na divisão. Esta foi, sem dúvida, a causa da morte. O secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, declarou que um grande número de agentes é enviado regularmente para verificar as condições de segurança das pensões ilegais. Os funcionários do Gabinete do Turismo, durante as inspecções a estes locais, são acompanhados por agentes da polícia, para sua protecção. Este caso chamou a atenção das pessoas para o problema das pensões ilegais. Foram levantadas diversas questões, como por exemplo: Devido às diárias muitos elevadas dos hóteis credenciados, os turistas procuram alternativas. Por outro lado, os imigrantes ilegais em Macau fazem aumentar a procura de locais baratos para viverem. Estes factores fazem aumentar o crescimento das pensões ilegais. Deveremos exigir responsabilidade criminal aos donos das pensões? Supondo que sim, teremos capacidade para investigar este tipo de casos? Além disso, é necessário distinguir as funções dos funcionários do Gabinete de Turismo das da polícia, para que não haja duplicação de tarefas. E ainda existe uma outra questão: em relação aos proprietários destas pensões, deverá será abolida a responsabilidade civil, face à existência da responsabildade criminal? Nesta equação temos ainda a considerar os agentes imobiliários que encaminham as pessoas para estas pensões. Se a responsabilidade criminal for decretada para os proprietários, também deverá ser imposta a estes agentes, na medida em que são fomentadores e cúmplices do processo. Há ainda quem sugira em alternativa o alojamento local. Este tipo de alojamento é mais barato que um hotel e bastante atractivo. Seria uma forma de controlar o crescimento das pensões ilegais. Não há dúvida que é uma boa ideia que poderia resolver grande parte deste problema. No entanto, onde é que vamos encontrar alojamento local em número suficiente, para dar resposta à procura dos turistas? Estes locais também têm de obedecer a normas de segurança, nomeadamente protecção contra incêndios, pelo que facilmente se compreende que a maior parte das casas de Macau não será adequada para este fim. Mas, mesmo que o fossem, é preciso não esquecer que a lei do arrendamento foi alterada. Como os contratos passaram a ser de três anos, a maior parte dos senhorios não os quer assinar, porque se vêem privados da possibilidade de aumentar as rendas a cada dois anos. Além disso, para se implementar o alojamento local em Macau, era necessário que os residentes tivessem casas suficientes para viver e ainda um excedente para alugar. Daqui a menos de um mês, estaremos a celebrar o Ano Novo Chinês. Nessa altura Macau será invadida por turistas. Eles serão os clientes alvo das pensões ilegais. Basta ver os sites das pensões, onde aparecem anúncios deste género, “Oferecemos ótimas condições de segurança. Somos uma residencial de cinco estrelas.” Sejam quais forem as decisões que se tomem, o problema das pensões ilegais não vai ser resolvido a tempo. Se ocorrer mais alguma tragédia num destes locais durante as celebrações do Ano Novo, a reputação de Macau será seriamente afectada. Talvez fosse aconselhável, por exemplo, ao nível das autoridades aduaneiras, aconselhar os turistas a não procurarem este tipo de pensões. O Gabinete de Turismo poderá reforçar também as inspecções, para verificar se as normas de segurança estão a ser cumpridas. Entretanto, o Chefe do Executivo já designou a secretária para a Administração e Justiça para coordenar a revisão da lei que irá regular estes hóteis. Os resultados serão brevemente anunciados. Consultor Jurídico sda Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Luz VozesMegafone [dropcap]P[/dropcap]ara que fique claro de uma vez por todas. O jornalista não é um megafone, papagaio, caixa-de-ressonância, porta-voz, moço de recados ou qualquer outro meio oficial de difusão informativa. Apesar das crises éticas nascidas da mercantilização da comunicação, da vertigem do clickbait, do controlo dos meios de informação por grandes grupos económicos e de todos os mercadores que tentam vender verdades pessoais, não é muito complicado explicar qual o propósito da profissão. Por isso, dedico esta humilde página à sensibilização de quem ainda não percebeu com clareza qual o propósito do jornalismo. Na semana passada, realizou-se o tradicional almoço entre Chui Sai On e os directores dos meios de comunicação de Macau que antecipa as festividades do Ano Novo Chinês. Depois de garantir que o Governo tem todo o respeito pela liberdade de imprensa, o Chefe do Executivo reiterou uma ideia que me deixa perplexo sempre que a ouço. Num golpe de profunda incongruência, passo a servir momentaneamen te de megafone do Governo com um par de citações proferidas por Chui Sai On. Mas prometo que são por uma boa e pedagógica causa. Aqui vão dois breves trechos do discurso do homem que está no topo da hierarquia política do território: “O Governo da RAEM respeita a liberdade de expressão dos residentes de Macau, respeita a liberdade de imprensa e de publicação e ouve as opiniões e as sugestões dos órgãos de comunicação social.” Importa esclarecer que a comunicação social tem como missão informar, esmiuçar a realidade e trazer ao de cima factos de valor informativo, em vez desta bizarra função de órgão consultivo. Mas estas não foram, no meu entender, as palavras mais problemáticas do discurso do Chefe do Executivo. “O Governo continuará, como sempre o fez, a apoiar vigorosamente o sector no desenvolvimento da sua actividade, para que os profissionais do sector possam, num bom ambiente social, desempenhar cabalmente as funções de canal de comunicação entre o Governo e a população e proporcionar serviços informativos mais diversificados ao público, com a fim de juntos contribuirmos para o desenvolvimento da RAEM.” Este é o parágrafo mais preocupante, com a irónica agravante de ter sido proferido depois do enaltecimento do princípio “um país, dois sistemas” e da liberdade de imprensa. Sejamos claros. Este não é, nunca foi, nem nunca será o papel do jornalismo. Aliás, a missão do jornalista é o completo oposto desta perigosa asserção. Se fossemos meros veículos de propaganda, servis megafones do poder, qual a necessidade da liberdade de imprensa? Que sentido faria defender a independência do jornalismo? Aliás, se formos um mero canal de comunicação, uma espécie de relações públicas do Governo, para que serve o GCS? Colocando de parte tiques autocráticos, importa recordar que a imprensa é o quarto poder. Tem o direito e obrigação de fiscalizar os poderes instituídos e trazer ao de cima a verdade, independentemente do incómodo que possa causar a quem manda. Outro dos títulos frequentemente usados para descrever o papel do jornalista é o “cão de guarda” do poder. Reparem que não é um chihuahua de de colo. Faz parte das nossas mais essenciais incumbências vigiar o poder para que este não se torne absoluto, corrupto e à margem da factualidade. Não nos interessa criticar, dar sugestões, ou o quer que seja no campo opinativo, apesar da comunicação social estar impregnada de opinião, devidamente separada e identificada fora do campo noticioso. A nossa função é informar. Naturalmente, faz também parte do nosso ofício noticiar o que é proposto ou anunciado pelo Governo. Neste capítulo, a profissão dita que se dê contexto ao que está a ser proferido, que se denunciem hipocrisias e se desmascarem mentiras ou deturpações da realidade. O desejo ardente de ser chato e as paixões ideológicas não fazem parte do nosso ADN profissional. A busca pela verdade não tem propósitos subjectivos, nem pretende atacar ninguém. A veracidade não é emotiva, não quer fazer amigos nem tem apetência para servir de megafone para as vozes com mais alcance nas esferas de comando.
Hoje Macau VozesA falsa trégua EUA-China Barry Eichengreen [dropcap]A[/dropcap] 1 de Dezembro, em Buenos Aires, o Presidente dos EUA, Donald Trump, e o seu homólogo chinês, Xi Jinping, acordaram uma moratória de 90 dias sobre os aumentos das tarifas aduaneiras para estabelecerem uma janela para negociações. Infelizmente, esta abordagem à mediação não é sempre bem-sucedida, e os investidores não ficaram impressionados – como ficou evidente com a queda de 800 pontos do índice Dow Jones Industrial, a 4 de Dezembro. E se os mercados estavam cépticos na altura, estarão ainda mais cépticos agora, com a detenção da directora financeira da Huawei, Meng Wanzhou, por violação das sanções impostas pelos EUA ao Irão. A abordagem dos dois Presidentes ao alívio das tensões comerciais tem um vasto precedente, mas estes episódios dão poucos motivos para esperança. Em Fevereiro de 1930, a Liga das Nações organizou uma conferência internacional em Genebra para enfrentar o problema do proteccionismo crescente, que “obstruía o desenvolvimento da produção em grande escala e impedia a recuperação europeia” e era geralmente implementado como “arma de guerra económica”. Trinta países enviaram delegações. Os Estados Unidos, embora não sendo membros da Liga, enviaram Edward C. Wilson, o primeiro-secretário da embaixada dos EUA em Paris. Previamente às negociações, o Comité Económico da Liga redigiu uma convenção para uma trégua aduaneira de dois anos. Mas os delegados não aceitaram este projecto de convenção, nem uma versão revista em baixa posteriormente apresentada pelos franceses. Os novos estados com planos ambiciosos de industrialização não estavam preparados para abandoná-los (algo similar ao “Made in China 2025”). Os países com défices crónicos estavam reticentes em celebrar um acordo que não incluísse o compromisso de outros países receberem mais exportações suas (uma objecção que encontrará eco em Trump). Nada de substancial foi acordado. Quando os EUA, em resposta a pressões políticas internas, adoptaram a Lei Smoot-Hawley quatro meses mais tarde, os indignados governos europeus responderam à altura. O resto, como se diz, pertence à história. O planeamento da Smoot-Hawley iniciara-se bastante antes da Grande Depressão. Mas o início da Grande Depressão aumentou a pressão para fazer alguma coisa – qualquer coisa – que pudesse aliviar o colapso do consumo interno. Dadas as discussões anteriores, a solução mais plausível seria o aumento das tarifas. Hoje, com o arrefecimento do mercado imobiliário e a contracção das condições financeiras nos EUA, não está posta de parte uma recessão nos EUA. Juntamente com um decréscimo no mercado bolsista, uma tal recessão aumentaria a pressão sobre Trump para parecer que faz alguma coisa – qualquer coisa – para estimular a economia. Muito provavelmente, essa solução seria à custa da China. Parte do problema em 1930 foi que os países participantes na conferência de Genebra tinham perspectivas muito diferentes sobre o que estavam a acordar, o que parece ser o que também acontece hoje. Enquanto a administração Trump espera uma evolução rápida na redução do défice comercial bilateral, a imprensa estatal chinesa refere-se à conveniência de uma redução “gradual”. Enquanto o comunicado de imprensa da Casa Branca especifica um prazo de 90 dias para negociações, a China não menciona qualquer prazo específico. Do mesmo modo, enquanto a declaração oficial da Casa Branca afirma que a China adquirirá exportações agrícolas, industriais e de energia “muito substanciais” aos EUA, a declaração da China diz apenas que importará mais mercadorias dos EUA. Mas claro que isso acabará sempre por acontecer, sem qualquer acção política, assumindo que a economia chinesa continua a crescer, o que é praticamente certo, dado o recente estímulo fiscal e monetário. Mais perturbadoras são as diferenças relativas à propriedade intelectual. Segundo a declaração dos EUA, a China negociará imediatamente a transferência forçada de tecnologia e a protecção da PI. Pelo contrário, a declaração chinesa apenas diz que os dois países trabalharão conjuntamente para alcançar um consenso em questões comerciais. A reforma do regime da PI (Propriedade Intelectual) é uma preocupação válida dos EUA. Na verdade, é a questão mais importante. Mas o fortalecimento das protecções da PI obrigará a uma mudança fundamental do modelo económico da China. As hipóteses de isso acontecer em 90 dias são nulas. Então, que rumo poderão tomar as negociações? Um dos cenários é que os chineses comprem mais alguma soja americana. Trump caracteriza isso como uma grande vitória. Assim que o Presidente dos EUA mostre a bandeira branca, a guerra comercial termina. Nada de importante terá mudado, mas pelo menos os ataques diplomáticos e comerciais e a incerteza disruptiva terão terminado. Mais uma vez, esta situação tem vários precedentes, já que a renegociação do Acordo de Comércio Livre Norte-Americano foi concluída deste modo. Em alternativa, poderíamos imaginar um resultado parecido ao da reunião de Trump com o líder norte-coreano, Kim Jong-un: a China anuncia, ou pelo menos a administração Trump imagina que a China anuncia uma transformação profunda da sua economia. Mas esta crença numa reviravolta é ilusória. Com efeito, nada de substancial se alterou. Quando Trump e os seus conselheiros despertarem para esse facto, as tensões voltarão a crescer, e a guerra comercial recomeçará. Qual dos cenários será mais provável? Tal como em 1930, a resposta depende de como se desenvolver a situação económica dos EUA. Se a expansão tardia continuar, como aconteceu durante a renegociação do NAFTA, Trump poderá estar inclinado a aceitar concessões cosméticas, que possa caracterizar como o “maior, mais significativo, moderno e equilibrado acordo comercial da história”. Mas se a economia dos EUA apresentar sinais de estar em recessão, Trump precisará de culpar alguém. E, neste caso, podemos estar relativamente certos sobre quem recairão as culpas. © Project Syndicate Barry Eichengreen é Professor de Economia na University of California, Berkeley. O seu último livro é The Populist Temptation: Economic Grievance and Political Reaction in the Modern Era.
João Romão VozesManga ocidental? [dropcap]R[/dropcap]egresso ao tema da manga japonesa, que tratei em crónica anterior para dar conta da minha decepção enquanto aficcionado ao constatar que no Japão há ainda uma profunda segregação de género relacionada com este tipo de literatura, que se traduz em recorrentes estereotipadas representações do corpo feminino de acordo com supostos padrões de beleza masculinos, na reprodução sistemática de tradicionais papéis sociais supostamente inerentes ao género sexual e até na existência de publicações diferentes para os públicos masculino e feminino. Há excepções, no entanto, e uma delas tornou-se recentemente um sucesso comercial nacional e internacional. Traduzido à letra, o título em português seria “Sou teu” ou “Sou tua” (“Kimi no na wa”), ainda que o título da edição internacional em inglês tenha sido adaptado para “O teu nome” (Your name). Começou por ser um filme de animação (anime) dirigido por Makoto Shinkai, tendo depois sido publicado como novela pelo mesmo autor e finalmente como banda desenhada (manga) em três preciosos volumes com a colaboração do ilustrador Ranmaru Kotone. O enredo contradiz ao máximo as ideias da representação tradicional dos papéis de género: um rapaz com uma vida cosmopolita numa grande cidade e uma rapariga de uma pequena vila em ambiente rural trocam sistematicamente de identidade e vivem temporariamente no papel do outro, sem saberem quando isso vai acontecer e em que momento vai acabar. Explorando as limitações das representações tradicionais de género, o enredo aborda também os limites entre o sonho e a realidade ou as contradições entre a vida quotidiana e as possibilidades de um futuro diferente. O sucesso da obra acabou por atrair uma produtora cinematográfica de Hollywood, disposta a produzir uma nova versão, com actores, actrizes e cenários “reais”, o que foi anunciado em finais de 2017. No entanto, mais de um ano passou sem que se conhecessem desenvolvimentos do projecto, tendo o previsível argumentista desta nova versão (Eric Heisserer) adiantado alguma explicação em entrevista recente: segunda afirma, os detentores (japoneses) dos direitos de utilização da obra exigem que o filme tenha um ponto de vista “ocidental”. A razão que adiantam é aparentemente simples (para ter uma perspectiva “oriental” podiam fazer o filme no Japão), mas acaba por remeter para uma questão maior e mais complexa: o que é uma perspectiva “ocidental” e em que se traduz essa dicotomia “oriental” vs “ocidental”, sobretudo quando se trata de uma história de dois adolescentes que tem características bastante universais (no sentido em que nada do que na história é essencial é particularmente específico do Japão)? Vivo com essa questão de forma recorrente desde que me instalei quase em permanência no Japão. É frequente usar-se essa dicotomia “oriental” vs “ocidental” em conversas informais, em notícias da imprensa ou em discussões científicas em ambientes académicos. Reconheço a minha dificuldade: não percebo o que é “ocidental”, nem o que é “oriental”, e muito menos onde está a fronteira entre esses dois supostos universos. Ficando pelo caso do cinema, que é o assunto da crónica e serve como exemplo suficiente: terá a mesma “perspectiva ocidental” um filme produzido em Portugal, em França, na Alemanha, no Brasil, na Argentina, no México ou nos Estados Unidos? Ou de outra forma, ficando pelo mesmo país: será a mesma “perspectiva ocidental” a que é transmitida num filme realizado por, digamos, Quentin Tarantino, Steven Spielberg, Martin Scorsese, David Fincher Fincher ou Spike Lee? Talvez sejam muito maiores as diferenças que as semelhanças entre as abordagens destes realizadores, ainda que todos sejam, não só “ocidentais”, como da mesma nacionalidade. O mesmo se passa, naturalmente, em relação à suposta “perspectiva oriental”. Serão assim tão semelhantes as abordagens cinematográficas no Japão, na China, no Vietname ou nas Filipinas? Haverá uma linguagem ou um fundamento comum que as distinga de uma qualquer “perspectiva ocidental”? Não há diferenças significativas de abordagens dentro de cada um destes países? Pela parte que me toca, confesso o meu limitado (ou nulo) entendimento do que me querem dizer quando no Japão me falam em “perspectiva ocidental”, o que acontece com frequência e em contextos muito diferentes. Espero, em todo o caso, que com estas singelas crónicas não esteja a representar toda uma perspectiva civilizacional “ocidental” e me responsabilize apenas a mim próprio.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA confiabilidade da inteligência artificial (II) “Artificial intelligence is changing our world faster than we can imagine? It will impact every area of our lives. And this is happening whether we like it or not. Artificial intelligence will help us do almost everything better, faster, and cheaper, and it will profoundly change industries, such as transportation, tourism, healthcare, education, retail, agriculture, finance, sales, and marketing. In fact, AI will dramatically change our entire society.” “Artificial Intelligence: 101 Things You Must Know Today About Our Future” – Lasse Rouhiainen [dropcap]A[/dropcap] segunda área-chave diz respeito à força de trabalho ensinando os cidadãos e os especialistas de IA a trabalharem em conjunto. A melhoria da qualificação de profissionais não conhecedores da Ciência de Dados e IA para trabalhar com esta, tornou-se uma parte crucial da estratégia da força de trabalho, e uma nova classe de ferramentas, incluindo a Aprendizagem Automática de Máquina (AutoML na sigla em língua inglesa) que é a automatização do processo total de aplicação de aprendizagem de máquina a problemas do mundo real e que simplificam e automatizam parte do processo de criação de modelos de IA, está a democratizá-la e cerca de 38 por cento dos líderes empresariais concentrarão esforços em ferramentas de IA para pessoas envolvidas em negócios, como a capacidade de segundo nível que cultivarão por trás de conjuntos de dados e modelos reutilizáveis. Todavia a IA amigável ao utilizador ainda é um processo complexo e mesmo com formação básica, os líderes empresariais podem não entender completamente os diferentes parâmetros e níveis de desempenho dos seus algoritmos e poderiam acidentalmente aplicá-los de forma errada, com resultados não intencionais. A resposta é uma estratégia de força de trabalho que cria três níveis de funcionários experientes em IA, e fornece meios para que todos trabalhem em conjunto com êxito. A força de trabalho é composta por cidadãos utilizadores, desenvolvedores de cidadãos e cientistas de dados. À medida que a IA se dissemina, a maioria dos funcionários de uma empresa precisará de formação para se tornarem cidadãos utilizadores do sistema, aprendendo como devem usar os aplicativos avançados da empresa, dar suporte à boa governança de dados e obter ajuda especializada quando necessário. Um grupo mais especializado, talvez de 5 a 10 por cento da sua força de trabalho, deve receber formação adicional, para se tornarem desenvolvedores de cidadãos que são profissionais de negócios, utilizadores avançados e podem identificar casos de uso e conjuntos de dados e trabalhar em estreita colaboração com os especialistas de IA. Quanto às novas aplicações de IA, um pequeno mas crucial grupo de engenheiros e cientistas de dados fará o trabalho pesado para criar, implantar e gerir aplicativos de IA. Para colocar esses três grupos em funcionamento, é necessário identificar sistematicamente novas competências e funções profissionais e desde logo surgem perguntas como o tipo de trabalho que é necessário para que os utilizadores ou desenvolvedores possam manipular? Quais os aplicativos que exige um cientista de dados experiente? É necessária então uma abordagem igualmente sistemática para preencher esses papéis, interna e externamente, e incentivar os diferentes grupos a colaborar. A qualificação profissional em toda a empresa deve abordar tanto as competências técnicas quanto as formas digitais de trabalho. As estruturas de desempenho e compensação terão que se adaptar, e muitos trabalhadores serão bem-sucedidos na qualificação para preencher novas funções, mas alguns não poderão fazer a transição, e nesse caso torna-se imprescindível a preparação para algum volume de negócios. Conhecer o desafio de empregos da IA é essencial e para muitos líderes empresariais, tentar dimensionar o impacto da IA nos empregos tornou-se uma tarefa absurda, pois sabem o que acontece e qual a quantidade do que está em jogo, seja grande ou pequeno em número, e quando constitui tema de debate. As previsões variam amplamente, incluindo as do estudo de automação de empregos internacionais, que colocaram o impacto de curto prazo em menos de 3 por cento dos empregos perdidos até 2020, mas chega a 30 por cento na metade da década de 2030. Os líderes empresarias sondados, concordam que, por enquanto, a IA não está a tirar empregos nas suas organizações e de facto, o dobro de executivos afirmou e que a IA levará a um aumento no número de funcionários (38 por cento), e os que disseram que a IA levará a cortes de empregos (19 por cento) na sua organização. O desafio, neste momento, é de preencher vagas e 31 por cento dos líderes empresariais estão preocupados com a incapacidade de dar resposta à procura por competências de IA nos próximos cinco anos. O ensino de competências adicionais a um empregado pode criar utilizadores e desenvolvedores de cidadãos, mas é provável que se necessite de contratar programadores e cientistas de dados altamente treinados. Forjar parcerias com universidades e alunos é uma forma de começar. A cultura do local de trabalho também é um grande factor. Muitos especialistas em IA querem trabalhar para uma empresa que pense em usar o sistema por longo prazo e também valorizam os locais de trabalho com a configuração organizacional, recursos, definição de funções, pesquisa empolgante e empoderamento individual que os inspirará a fazer um óptimo trabalho em colaboração com outras pessoas talentosas. A terceira área-chave contende com a confiança traduzida em responsabilizar a IA em todas as suas dimensões, pois aumentaram as preocupações sobre a mesma, que pode afectar a privacidade, segurança cibernética, emprego, desigualdade e o meio ambiente. Os clientes, trabalhadores, consultores, reguladores e parceiros corporativos questionam se podem confiar na IA, daí que não seja surpresa que os líderes empresariais digam que garantir que os sistemas de IA sejam confiáveis é o principal desafio de 2019, e como vão superar esse desafio, depende se estão a trabalhar com todas os aspectos da IA responsável, como seja a justiça, interrogando se estão a minimizar os dados e modelos da mesma e estarão a trabalhar com preconceitos quando a usam? A questão de interpretabilidade é importante pois derivam várias questões como a possibilidade de explicar como um modelo de IA toma decisões? Se podem garantir que essas decisões sejam precisas? A questão da robustez e segurança traz interrogações sobre a possibilidade de confiar no desempenho de um sistema de IA? Se os sistemas de IA estão vulneráveis a ataques? A questão da governança põe questões sobre quem é responsável pelos sistemas de IA? Se existem os controlos apropriados? A questão da ética do sistema interroga se os sistemas de IA estão em conformidade com os regulamentos e como afectarão os trabalhadores e clientes? É necessário construir a responsabilidade por cada área, seja dentro da IA CoE ou em um grupo adjacente que trabalhe de perto com o CoE. Um número cada vez maior de empresas está a supervisionar a IA responsável por meio de conselhos de ética ou directores de ética em tecnologia, como parte das suas atribuições. É uma tendência encorajadora, que é de esperar que se desenvolva. É também necessário criar funções de trabalho que combinem conhecimento técnico com um entendimento de preocupações reguladoras, éticas e de reputação. É importante configurar controlos e balancear conflitos de escolha e para estabelecer controlos sobre os dados, algoritmos, processos e estruturas de relatórios da IA, é fundamental a existência de equipas combinadas de especialistas técnicos, comerciais e de auditoria interna que testem e monitorizem continuamente os controlos. Tais equipas terão que considerar as compensações apropriadas e com a interpretabilidade, por exemplo, podem encontrar o equilíbrio certo entre desempenho, custo, importância do caso de uso e extensão da experiência humana envolvida. É de entender que um carro autónomo, um diagnóstico de assistência à saúde por IA e uma campanha de marketing conduzida por IA exigiriam diferentes níveis e tipos de interpretabilidade e controlos relacionados. As outras formas de tornar a IA mais confiável vêm dos seus avanços, particularmente na área da IA Explicável (XAI na sigla em língua inglesa). O programa XAI da Agência de Projectos de Pesquisa Avançada de Defesa dos Estados Unidos (DARPA na sigla em língua inglesa), por exemplo, está a trabalhar em algoritmos mais interpretáveis. A XAI é uma agência do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, responsável pelo desenvolvimento de novas tecnologias para uso militar. Foi criado em 1958 como uma consequência tecnológica da Guerra Fria e da qual surgiram as bases da ARPANET, a rede que deu origem à Internet. [primeira parte]
Tânia dos Santos Sexanálise VozesSobre o trabalho sexual [dropcap]O[/dropcap] trabalho sexual continua a ser um tema demasiado sensível e difícil de ser discutido, afinal, como é que se discute a sexualidade (que é difícil por si só) nos tempos neoliberais e dependentes da produção e crescimento económico? Qual é o valor do sexo, e mais importante de tudo, porque é que tudo precisa de ter um valor? Em Macau, o paraíso dos vícios, a prostituição sempre fez parte da sua história e imagética. Lembro-me bem andar pelo Hotel Lisboa e explicarem-me quem eram aquelas pessoas e o que faziam. Com desdém na voz, claro. Porque é raro falarmos sobre a prostituição sem tomar uma posição moralizadora. Não é por ser o posicionamento mais adequado, mas simplesmente – e infelizmente – porque nos é demasiado natural. Num outro momento explorei a importância de distinguir o trabalho sexual com o abuso e exploração sexual – que de bem verdade, em muitos casos co-existem. Esta confusão é legítima em certos contextos, mas não o é em muitos outros. A análise do trabalho sexual tem que ser sensível que este ramo de negócio pode ser uma escolha. Há quem queira vender a sua sexualidade para fazer dinheiro – no mundo em que o dinheiro é a única coisa que nos vale para vivermos uma vida digna. A lógica mercantil que está enraizada nas nossas vontades, espíritos e comportamentos é tão profunda que moralizamos a suposta falta de dignidade que é vender o sexo ou o corpo – mas nunca moralizamos a falta de dignidade que o pouco dinheiro proporciona. Porque aí já entra a lógica meritocrática de que ‘quem não tem dinheiro é porque não fez o suficiente para o ter’. Se se vende sexo ou outros serviços sexuais é porque a comercialização de quem somos é uma pré-condição para sobrevivermos no mundo contemporâneo. Por isso é que me parece hipócrita que os moralizantes do trabalho sexual usem a falta dignidade como justificação última para censura e criminalização deste, mas não o façam para criticarem quem, ou os mecanismos, que perpetuam a lógica económica da vida humana. Agora – eu também acho que é preciso muito cuidado com esta linha argumentativa. Porque apresentando o mundo comercializado e opressor em que vivemos, o único em que faz sentido vender o sexo, o trabalho sexual pode ser visto como a inevitabilidade de uma escrava condição deste sistema. E isto parece-me ser uma visão demasiado simplista do que é o trabalho sexual, porque também o vitimiza. Lá pelo trabalho sexual ser sintomático de um sistema neoliberal que nos obriga a vender o corpo para pagar, por exemplo, as propinas da universidade (como já aconteceu com muito boa gente), talvez seja melhor vermos para além disso. O trabalho sexual não pode ser sinónimo de exploração sexual, nem quando o sistema é o opressor. É necessário proporcionar um espaço de emancipação para que mulheres e homens escolham a carreira que lhes faça sentido. E que estas escolhas laborais tenham condições dignas de trabalho. Na era da comunicação e partilha, em que as redes sociais dão voz a quem pode tê-la, estive há dias a passar pela conta de instagram de uma stripper que é bastante honesta acerca das tensões que existem à volta do tema. Fiquei seriamente incomodada pela forma como até os seus clientes se posicionam desta forma moralizadora – vitimizando-a ou repreendendo-a. Uma conversa séria e activa envolvendo quem de facto é trabalhador sexual faz falta. Acho que passamos muito tempo a discutir de formas demasiado exclusivas, não envolvendo as pessoas a quem estes temas dizem directamente respeito. Parece-me natural que se pense nos direitos e protecção que este trabalho – que gera imenso dinheiro – precisa e exige. Se em Macau foram registados 21 crimes de exploração de prostituição até Outubro de 2018 – um crescimento que veio contrariar a tendência decrescente dos últimos anos – é necessário reflectir sobre o que estes números querem dizer. Afinal, como é que o sexo é vendido em Macau, e em que condições? Qual é a expressão de outro trabalho sexual no território? Existirão formas de contornar esta lógica de criminalização – para melhor compreender as experiências do trabalho sexual em Macau?
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesBrinquedos perigosos [dropcap]N[/dropcap]o passado dia 8, durante cerca de hora e meia, o tráfego aéreo foi suspenso em Heathrow, por ter sido avistado um drone a voar nas proximidades do Aeroporto. O porta-voz local declarou que tinha havido um esforço conjunto com a polícia de forma a impedir qualquer tipo de ameaça à segurança operacional do aeroporto. Por esse motivo, os voos foram todos cancelados enquanto decorriam as investigações. O Aerpporto de Heathrow é o aeroporto mais movimentado de toda a Europa, com mais de 210.000 passageiros em trânsito diariamente. Pouco tempo depois, no dia 19, o incidente repetiu-se no Aeroporto de Geely, obrigando ao encerramento das pistas durante três dias consecutivos. A paralização do aeroporto afectou 140.000 passageiros. As autoridades não conseguiram identificar a pessoa responsável pela operação dos drones, e ninguém assumiu a responsabilidade dos incidentes. O porta-voz do Aeroporto de Geely declarou ao Times que foram gastas milhões de libras em equipamentos anti-UAVcontra drones, à escala militar, mas não revelou mais detalhes. A polícia que se encontrava no Aeroporto de Heathrow declarou que os seus elementos estavam equipados com um sistema transmissor em rede, portátil e desenhado especificamente para lidar com situações relacionadas com drones. Este sistema em rede permite capturar os drones que se encontram a voar nas imediações. O sistema defensivo contra a intrusão de drones está montado noutros aeroportos britânicos. Designado por SkyWall 100 defense system, funciona através de um transmissor que se coloca ao ombro que permite paralizar o drone, lançando de seguida um dispositivo munido de uma rede, que o captura. Depois de apanhado na rede, o drone é trazido para baixo com a ajuda de um pequeno pára-quedas, que se abre para amenizar o impacto com o solo. Os episódios relacionados com drones parecem nunca mais ter fim. A 27 de Outubro, num sábado, celebrava-se a 10ª edição da “Hong Kong Wine and Food Tour”, animada por uma exibição de drones. Mal o espectáculo começou, tinham decorrido apenas 30 segundos, foi suspenso. A assistência estranhou o ocorrido. O sistema informático detectou uma “anomalia” na exibição dos drones. O fornecedor declarou que o sinal apresentava fortes perturbações. Os drones estavam “desobedientes”. Receberam imediatamente ordem de regresso à base. Nos Estados Unidos, em Agosto, na cidade de Maryland, três homens usaram um drone para tentar introduzir produtos ilegais na prisão de Cresaptown. Em Julho, também nos EUA, um drone foi usado para transportar droga para dentro dos muros da Mansfield Correctional Institution (uma prisão no Ohio). O pacote foi largado dentro do estabelecimento correccional. No entanto, não foi apanhado pelo destinatário, mas sim por outro recluso. O episódio deu origem a um motim. No final, 200 prisioneiros foram revistados, descobrindo-se que alguns estavam na posse de drogas. Todas estas histórias demonstram que, se não houver um controlo eficaz dos drones, poderemos enfrentar situações bastante complicadas. O Governo da RAE de Macau emitiu, em Setembro de 2016, a ordem administrativa No. 62/2016, uma emenda ao Regulamento de Navegação Aérea para regular a circulação de drones. É uma norma bastante restritiva ao tráfego de drones, o que é positivo. No entanto, os drones continuam a voar por cima das nossas cabeças. Para garantir a segurança de todos seria melhor criar ainda maiores restrições. A saber: O sistema de registo devia ser obrigatório. Qualquer pessoa que compre, venda, dirija, ou seja proprietária de drones, devia estar registada no sistema informático central. Sempre que haja qualquer problema, será fácil descobrir a sua origem. O operador de drones deve também possuir uma licença. Para tal, será necessário ser submetido a formação e a um exame. Disso pode depender a segurança do público. O controlo remoto de aparelhos voadores pode sempre ser potencialmente perigoso. Os seguros são uma das melhores ferramentas para cobrir eventuais danos de terceiros. Por isso os utilizadores de drones deviam ser obrigados a ter os aparelhos segurados. Os eventos que impliquem grande concentração de pessoas, como competições e espectáculos aéreos, deverão ser regulados pela legislação. Em locais onde se junte muita gente deve ser proibida a utilização de drones. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnco de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesInstituto para os Assuntos Municipais [dropcap]U[/dropcap]ma das primeiras tarefas que o Governo da RAEM enfrenta em 2019, é a constituição do Instituto para os Assuntos Municipais (IAM), um corpo estatutário que deveria ter sido criado em 2002, para substituir a Câmara Municipal de Macau Provisória. Após um adiamento de mais de uma década, o Governo finalmente adicionou à Lei Básica a fundação do IAM. No que respeita à escolha dos membros do Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais do IAM, existem muitas opiniões favoráveis à eleição de alguns deles por sufrágio directo, uma prática de longa data, à semelhança do processo em vigor no Conselho Consultivo do IACM. No entanto, o Governo tem agido de forma a ignorar esta prática esperando que os 25 membros do Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais venham a ser escolhidos por nomeação do Chefe do Executivo. Quanto aos candidatos por auto-recomendação, a maioria é representativa do campo pró-governamental. Quando o Governo anunciou publicamente que o mecanismo de auto-recomendação era aplicável aos candidatos a membros do Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais, encoragei os membros do campo pró-democracia a apresentar candidaturas e ofereci-me para lhes obter cartas de recomendação. Espero que o Chefe do Executivo escolha, a partir das listas entregues, pessoas talentosas e competentes, de forma a que os membros do Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais possoam incluir representantes dos diversos sectores da sociedade e, assim, poder existir uma participação equilibrada entre os diferentes interesses da sociedade de Macau. Mas, por vezes, as boas intenções são estilhaçadas pela realidade política. O actual Governo mostrou, durante o último mandato, ser incapaz de quebrar o ciclo vicioso da escolha de representantes dentro dos pequenos círculos das elites político-económicas. Contas feitas, o Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais é basicamente formado por mandatários do campo pró-governamental e por membros transitórios do Conselho Consultivo do IACM. Se não se quebrar este ciclo, haverá um défice de participação da sociedade na admnistração governamental. A composição do recém-fundado Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais revela-se um caso de consanguinidade política, que carece de credibilidade. Este cenário indicia que este orgão virá a constituir uma parafernália política. Recentemente estive em Taiwan, durante as últimas eleições. Nessa altura tive oportunidade de falar com algumas pessoas e de tentar perceber a sua opinião sobre o conceito de “Um País, Dois Sistemas” e percebi que muitas delas o rejeitam. A estrondosa derrota do Partido Democrático Progressista (PDP) nestas eleições, foi um castigo infligido pelo povo pela atitude arrogante deste partido, pelo desrespeito da opinão popular e por defender, sobretudo, os seus próprios interesses. O conceito “Um País, Dois Sistemas” foi uma jogada de tudo-por-tudo de Deng Xiaoping para lidar com os problemas levantados por Hong Kong, Macau e Taiwan. Não havia precedentes que servissem de modelo para esta nova situação e a ideia destinava-se a resolver os problemas. Se o incidente de 4 de Junho de 1989 nunca tivesse ocorrido, acredito que a China estaria mais aberta ao mundo e teria avançado mais. Se os meus leitores tiverem boa memória, hão-de lembrar-se que a China declarou, à data, que Hong Kong permaneceria como estava por mais 50 anos, que não haveria tropas aquarteladas em Macau e que Taiwan poderia ter o seu próprio exército. É lamentável que Deng Xiaoping tenha falecido antes da transferência de soberania de Hong Kong. O conceito original de “Um País, Dois Sistemas” foi perdendo gradualmente flexibilidade durante o processo de implementação e, hoje em dia, é caracterizado por lutas ideológicas e desconfianças. No caso de Hong Kong, a ideia original da escolha do Chefe do Executivo por sufrágio universal passou a ser uma miragem e o fracasso da evolução constitucional provocou dissenções sociais. A parte dos “Dois Sistemas” acabou por se tornar um mero apêndice de “Um País”. Macau, continua a depender da indústria do jogo e da política de “Vistos Individuais” dos turistas continentais para manter a prosperidade e a estabilidade. Embora a economia continue em alta, ainda persistem muitos problemas sociais. O atraso desta ecologia política impediu que fossem revelados os méritos do conceito “Um País, Dois Sistemas”. A forma como os membros do Conselho Consultivo para os Assuntos Municipais do IAM vão ser escolhidos é o exemplo máximo desse atraso. Por isso, como é que o povo de Taiwan pode confiar no conceito “Um País, dois Sistemas” quando vê a forma como funciona em Hong Kong e em Macau? Este ano assinala-se na China o 100º aniversário do Movimento 4 de Maio, um movimento que exaltou ideias ocidentais, particularmente a ciência e a democracia. Mas, hoje em dia, “ciência e democracia” continuam a não passar de um slogan na China, onde a tecnologia substituiu a Ciência e a indigitação substituiu a eleição democrática. Se esta situação não se alterar, o futuro da China não será auspicioso e o princípio “Um País, Dois Sistemas” conhecerá novas crises.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesA confiabilidade da inteligência artificial (I) “Artificial intelligence is changing our world faster than we can imagine? It will impact every area of our lives. And this is happening whether we like it or not. Artificial intelligence will help us do almost everything better, faster, and cheaper, and it will profoundly change industries, such as transportation, tourism, healthcare, education, retail, agriculture, finance, sales, and marketing. In fact, AI will dramatically change our entire society.” “Artificial Intelligence: 101 Things You Must Know Today About Our Future” – Lasse Rouhiainen [dropcap]A[/dropcap]s empresas americanas esperam que o seu investimento em inteligência artificial (IA), que muitas vezes faz parte de iniciativas inteligentes de automação vá além da melhoria da produtividade e diminuição de custos. É de considerar que 20 por cento dos líderes empresariais americanos com iniciativas de IA relatam que a vão introduzir nos seus negócios em 2019, de acordo com o último relatório sobre a matéria publicado pela PricewaterhouseCoopers (PWC) que é uma multinacional de serviços sediada em Londres. As empresas vêem a IA como um caminho para o crescimento de lucros e receitas em 2019. No entanto, existem desafios, como treinar funcionários para usar sistemas de IA, e ameaças à segurança continuam a ser uma séria preocupação. O sucesso na alavancagem da IA será construído com base em estratégias para a organização e força de trabalho, para criar dados de IA responsáveis, reinventar o negócio e integrá-la a outras tecnologias. A maioria dos líderes empresariais sabe que a IA tem o poder de mudar praticamente tudo o que faz em termos negócios e pode contribuir com até 15,7 triliões de dólares para a economia global até 2030. Mas o que muitos líderes empresariais não sabem é como implantar a IA, não apenas em um projecto-piloto, mas em toda a organização empresarial, onde pode criar o máximo valor. O “como” é o ponto de atrito com qualquer tecnologia emergente, e a IA não é excepção. Como se define a estratégia de IA? Como encontrar trabalhadores conhecedores de IA ou treinar pessoal existente? O que se pode fazer para obter dados disponíveis para a IA? Como se garante que a IA é confiável? As respostas a essas perguntas geralmente variam de uma empresa para outra e o ambiente está em constante evolução. Mas as empresas não podem esperar que a poeira se estabilize. A adopção de IA, que aconteceu com intermitência, será acelerada em 2019. Para obter uma leitura acerca do actual estado das organizações, o estudo do qual resultou o relatório, entrevistou mais de mil líderes empresariais americanos que estão a investigar ou a implementar a IA. Se esses planos ambiciosos forem bem-sucedidos, muitas empresas americanas de ponta serão aperfeiçoadas por IA, não apenas em termos de custos de organização, mas em todas as suas operações. Os especialistas afirmavam que em 2018, existiam oito previsões sobre como a IA provavelmente se desenvolveria ao longo do ano, com implicações para os negócios, governo e sociedade. As tendências que foram identificadas incluíam o verdadeiro impacto da força de trabalho na IA, a necessidade de todas as empresas se concentrarem na IA responsável e as ameaças emergentes à volta da segurança cibernética e na competitividade interna americana serem ainda mais relevantes actualmente, com a actual política comercial e industrial da administração Trump. À medida que se foi aproximando 2019, com a IA a mudar cada vez mais do laboratório para os escritórios, fábricas, hospitais, locais de construção e vida dos consumidores, uma abordagem diferente tornou-se necessária e não se trata apenas de destacar o que é provável que aconteça, mas o que os líderes empresariais devem fazer com a IA. A lista de prioridades da IA para 2019, é acerca das grandes previsões nesta área que é das mais importantes a nível global, e que passa pelas empresas concentrarem os seus esforços em seis áreas-chave, o que lhes permitirá uma vantagem substancial em relação a outras empresas em 2019. A estratégia de IA deve abordar a estrutura que é a organização para o retorno sobre investimento (ROI na sigla em língua inglesa) e esforço; a força de trabalho; a formação com os especialistas de IA para trabalharem em conjunto; a confiança que é tornar a IA responsável em todas as suas dimensões; os dados que permitam localizar e classificar para ensinar as máquinas; a reinvenção que é monitorizar a IA através de personalização e maior qualidade e convergência que é combinar IA com inteligência analítica, Internet das Coisas (IoT na sigla em língua inglesa), entre outras. Quanto à primeira área-chave, sabemos que com a IA, é tempo de aumentar a produtividade ou desistir. As empresas líderes estão a começar a transferir os seus modelos de IA para a produção, onde executarão operações para melhorar a tomada de decisões e fornecer inteligência voltada para o futuro e pessoas em todas as funções. A IA vai transformar quase tudo nos negócios e mercados, sendo um bom motivo para agir, mas não o suficiente para fazer muito de forma rápida. Se for realizado correctamente, o desenvolvimento de um modelo de IA para uma tarefa específica, pode melhorar um processo existente ou resolver um problema de negócios bem definido, ao mesmo tempo que cria o potencial de se alargar a outras áreas da empresa. Acerca dos algoritmos de IA existe o facto de haver poucos, o que pode surpreender os utilizadores de negócios. Os mesmos algoritmos são capazes de resolver a maioria dos problemas de negócios para os quais a IA é relevante, portanto, se puderem ser aplicados com sucesso em uma área da empresa, geralmente poderão ser usados em outras. É exemplo, o facto, de toda a empresa precisar de processar facturas. Ao extrair informações automaticamente, mesmo de facturas que não são totalmente padronizadas, as ferramentas de IA podem automatizar o processo para reduzir custos e tempo de processamento. É possível modificar e usar o componente IA para acelerar outras áreas da empresa, como o atendimento ao cliente, marketing, impostos e gestão da cadeia de suprimentos, que também consomem enormes quantidades de dados não estruturados e semi-estruturados. O objectivo é conceber um portfólio de blocos de construção reutilizáveis, para criar um ROI rápido e um momento de escala. Os líderes empresariais estão a adoptar essa estratégia, pois classificaram os modelos de IA e os conjuntos de dados que podem ser usados em toda a organização, como a capacidade mais importante na qual se concentrarão em 2019. Quando as iniciativas de IA começam a ser praticadas por especialistas, por vezes lutam para obter uma ampla simpatia, mas quando vêm o lado comercial, os projectos podem ter um foco limitado ou não aproveitar totalmente a tecnologia e em ambos os casos, as equipas isoladas podem criar esforços duplicados ou incompatíveis. A resposta é a supervisão de uma equipa diversificada que inclui pessoas com competências em negócios, TI e IA especializadas, e que representem todas as áreas da organização. É preciso ser disciplinado, criar uma estrutura organizacional que cruze funções e permita estabelecer uma estratégia clara de IA e um centro de excelência (CoE na sigla em língua inglesa) que é frequentemente a melhor forma de construir essa base de IA, e o modelo que se espera tornar mais predominante. As empresas podem optar por adicionar responsabilidades de IA a grupos existentes de análise ou automação, ou a outros CoEs estabelecidos. Onde quer que este grupo resida, as suas responsabilidades devem abarcar questões de negócios, tais como identificar casos de uso e como desenvolver responsabilidade e governança, devendo estabelecer e supervisionar políticas de dados em toda a empresa e devem determinar ainda os padrões de tecnologia, incluindo arquitectura, ferramentas, técnicas, gestão de fornecedores e propriedade intelectual, e como os sistemas inteligentes de IA necessitam de ser e evoluir. A equipa de IA deve criar e gerir uma plataforma digital para colaboração, suporte e administração de recursos, devendo ser esse o objectivo único para os esforços de IA, como sendo um ambiente virtual com ferramentas ligáveis, onde os profissionais de negócios e de tecnologia compartilharão recursos como conjuntos de dados, metodologias e componentes reutilizáveis e colaborarão em iniciativas. [continuação]
Tânia dos Santos Sexanálise VozesBom Sexo Novo [dropcap]O[/dropcap] bom sexo novo não precisa de ser diferente. Só precisa de ter uns laivos de ambição de que este ano ser-lhe-á dada uma prioridade diferente. Com isto não quero dizer que se deva continuar com o mau hábito de criar resoluções de ano novo generalistas e vagas que não nos levam a lado nenhum. As resoluções – ou melhor – os objectivos do novo ano (que devem ser o mais directivos possível se quisermos ver alguma mudança) devem ser acompanhados de uma reflexão sobre o significado das coisas, e do sexo também. Para além dos objectivos de ano novo que podem ser, por exemplo, ter sexo de satisfação plena, que tal pensarmos sobre o sexo? Da mesma forma que o sentimos, inteiros e coerentes com os nossos desejos. Digamos que o sexo de 2018 nos desiludiu. Falo por mim como se falasse por todos porque secretamente espero que partilhem da minha opinião. A luta crescente por mais e melhores direitos sexuais mostrou-se não ser uma função exponencial de sucesso, mas uma batalha constante entre conservadorismos e libertinagem. Culparei a constante confusão de conceitos que fazem com que a família continue a ser um oásis de perfeição que nunca existiu – nem nunca existirá – de homem, mulher, filhos e total honestidade e bom carácter. O pluralismo familiar e sexual ainda é extensivamente contestado, e o sexo também. Nem com o constante lembrete de que os bebés são fruto do devaneio dos genitais por um encontro. O sexo continua a ser difícil até para os mais progressistas. E assim 2018 testemunhou retrocessos incríveis, daqueles que não julguei testemunhar na minha geração. Talvez 2019 seja diferente. Talvez porque para nos levantarmos precisamos de bater no fundo. Esse fundo pode ser a crescente consciencialização de que o mundo não é nada daquilo que julgávamos. As ditas ‘maiorias’ afinal ainda têm características e desejos menos simpáticos ao sexo. Pior: espalha-se a narrativa de que o sexo é uma escolha ideológica – que contrasta com as decisões de carácter prático e racional. E assim, se o sexo é tido como ideológico facilmente se legitimiza a pouca conversa do mesmo. Mas o sexo não deve ser – nem é – uma contingência de um sistema político. O sexo é uma possibilidade de discussão honesta. Com todos os macaquinhos e medos que possa acarretar. Mas como não quero andar com este tom pessimista – para não começar o ano com a atitude errada – nem tudo foi mau. Houve algumas conquistas sexuais também no ano de 2018. A Índia descriminalizou a homossexualidade, um passo importante para a possível aceitação da homossexualidade como um facto natural da vida. Na Austrália o casamento homossexual é uma realidade para satisfação de muitos aqueles que já viviam uma vida em união de facto. Enfim, existem alguns avanços palpáveis por esse mundo fora mas tenho a sensação que a conversa do sexo ainda está muito além do que seria desejável. Um bom sexo novo podia ser comprar aquele brinquedo sexual que as reviews garantem não desiludir, ou dar asas à imaginação e concretizar as fantasias mais loucas. Objectivos importantíssimos, de facto. Mas um bom sexo novo precisa de muito mais, já nem sei bem do quê. Precisa de irreverência e revolução, mas também precisa de carinho, afecto e compreensão. Se 2019 nos trouxer um pouco mais de espaço para pensarmos nestes desafios – e tantos outros – que o sexo nos propõe, não seria um mau ano.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesCigarros da discórdia [dropcap]P[/dropcap]or volta das 23.00h do passado dia 3, três homens do continente, apresentando sinais de alcoolismo, saíram do Diamond Hall do Galaxy Hotel, na Taipa, e vieram fumar junto à porta do edifício. Um polícia, dirigindo-se-lhes em Putonghua, pediu-lhe que apagassem os cigarros. No entanto os homens ignoraram o aviso e, também em Putonghua, partiram para os insultos. O agente insistiu no pedido, mas voltou a ser ignorado. De repente, um dos homens exaltou-se e atacou o polícia. A seguir, os outros dois juntaram-se ao ataque. Com a situação fora de controle, foram requisitados reforços policiais. Como os homens não paravam de atacar o agente, este viu-se obrigado a puxar do bastão. Os atacantes tentaram agarrar o bastão e o equipamento de comunicação, que acabou por cair ao chão. Nessa altura o polícia sacou da arma e intimou-nos a parar. A desobediência continuou e o agente viu-se obrigado a disparar um tiro para o ar. Depois dos disparos os homens pararam de atacar, mas continuaram a provocar verbalmente o polícia. Posteriormente os reforços chegaram e os desordeiros foram detidos e levados para a esquadra. O agente ficou ferido no abdómen e nas mãos. Foi levado de ambulância para o hospital, onde foi assistido. Teve alta às 3.00h da manhã do dia 4. Os três homens, acusados de seis crimes, foram transferidos para a Procuradoria durante a tarde do dia 4, para serem inquiridos. Durante o interrogatório, os acusados identificaram-se como homens de negócios. Foram acusados de roubo, insulto, atentado à integridade física, etc. Negaram todas as acusações, alegando que o que se tinha passado não estava bem clarificado. Não é a primeira vez que, em Macau, a polícia se vê obrigada a disparar para o ar. No entanto, parece ter sido a primeira vez em que foi necessário recorrer a esta medida, num caso em que, inicialmente, só estava em causa a proibição de fumar no local. Não será certamente um crime comparável a um assalto à mão armada. O agente também está sob investigação devido aos disparos para o ar. Mas, tendo em conta o comportamento dos três homens, não parece que o agente venham a ter qualquer problema. E este comportamento terá ocorrido devido ao consumo de alcoól? A resposta será encontrada durante a investigação. Mas vale a pena que Macau reflicta sobre este caso. A polícia disparou para o ar. Ninguém ficou ferido. Mas disparar para o ar também comporta riscos, porque uma bala em queda pode na mesma ser perigosa e atingir inocentes. E é evidente que, num caso destes, o polícia que dispara também não pode ser considerado culpado. O que é que se deve fazer numa situação similar? Será que se deve encontrar uma alternativa aos disparos para o ar? Além disso, se uma pessoa inocente ficar ferida, a quem compete a responsabilidade de garantir a indemnização? E a quanto deverá ascender essa indemnização? Que leis estão em vigor em Macau que regulem este tipo de compensações? Mas o que é mais importante é apurar a responsabilidade de quem obrigou a polícia a disparar. Nestes casos, qual é a responsabilidade legal dos desordeiros? Saliente-se ainda que este incidente podia ter sido pior se, em vez de agentes da polícia, tivesse envolvido pessoal do Gabinete de Prevenção e Controlo do Tabagismo. Os polícias têm armas para garantir a sua segurança. Mas se alguém deste Gabinete tivesse sido atacado, como é que se teria podido proteger? Existe alguma resposta coordenada entre a polícia e os funcionários da Prevenção e Controlo do Tabagismo para lidar com situações deste tipo? A causa de toda esta situação não deixa de ser trivial, mas as consequências acabaram por ser sérias. É preciso que os fumadores tomem consciência de que, em Macau, aos poucos, vão sendo tomadas medidas para proibir o fumo em quase todos os locais públicos. Isto não quer dizer que não se possa fumar, no entanto, só será possível em locais próprios. Se os fumadores respeitarem as normas, não se criarão conflitos constantes. É totalmente desnecessário. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Hoje Macau VozesUma solução recíproca para a disputa comercial entre os EUA e a China Por SHANG-JIN WEI* [dropcap]P[/dropcap]ara muitos aliados dos Estados Unidos, as falhas na guerra comercial do presidente Donald Trump com a China – que está suspensa durante 90 dias após o encontro entre Xi e Trump na Argentina – estão na estratégia, não na motivação. De facto, a Europa e o Japão partilham muitas das queixas de Trump. O que eles não reconhecem é que também há muito que eles podem fazer para tornar o sistema de comércio global – e as suas relações com a China – mais justo e mais eficiente. É certo que a China precisa de tomar medidas para reformar as suas políticas. Para começar, as tarifas e as barreiras não-tarifárias da China são mais altas do que as dos EUA e de outros países de elevado rendimento (embora não mais altas do que as da maioria dos países em desenvolvimento com níveis de rendimento comparáveis). E há muitas restrições para as empresas estrangeiras que desejam operar na China, incluindo limites na propriedade estrangeira de empresas nacionais. Reduzir as barreiras ao mercado chinês beneficiaria não só os produtores estrangeiros, mas também as famílias e empresas chinesas que utilizam peças importadas. A liberalização comercial funcionaria como um corte nos impostos, aumentando os rendimentos e melhorando a eficiência, sem exigir que o governo aumentasse o défice orçamental. A passada liberalização comercial da China, após a sua adesão à Organização Mundial do Comércio há 17 anos, indica que uma medida semelhante não levaria a um aumento do desemprego, desde que o mercado de trabalho chinês permaneça suficientemente flexível. A China também faria bem em responder a outra queixa crucial, reforçando a protecção da propriedade intelectual. O governo chinês alega que abandonou a política de exigir às multinacionais estrangeiras que partilhem a sua PI em troca de acesso ao mercado, há duas décadas. Mas as câmaras do comércio dos EUA e da Europa na China dizem que as práticas são efectivamente diferentes. No passado, quando a própria capacidade inovadora da China era fraca, uma protecção mais forte da PI significaria meramente mais rendas para as empresas estrangeiras. Hoje, no entanto, à medida que as empresas chinesas estão a desenvolver a sua própria PI valiosa, e a sua presença global tornou-se maior, mais forte e recíproca. As protecções da PI beneficiariam tanto as empresas chinesas como as empresas estrangeiras. A China também deveria reformar os seus programas de subsídios e o seu regime de políticas industriais. A maioria dos países utiliza impostos e subsídios para promover determinadas actividades económicas. Ainda assim, a proporção de programas governamentais que criam distorções e ineficiências, em vez de lidarem com as falhas do mercado, é maior na China do que nos países de elevado rendimento. Tais políticas incluem subsídios que favorecem as empresas públicas em detrimento das empresas privadas, levando ao desperdício e perda de produtividade. A fim de nivelar o campo de jogo entre as empresas chinesas e as empresas estrangeiras, os programas governamentais deveriam ser submetidos a uma análise mais sistemática de custo-benefício. Mas para que o comércio global seja realmente justo, as economias avançadas – e, em particular, os EUA – também precisam de fazer algumas mudanças. Na verdade, as barreiras desses países aos bens e investimentos chineses não são tão baixas como comummente se julga. Nos EUA, por exemplo, as tarifas sobre muitas importações de têxteis e vestuário, das quais a China tem sido o produtor mais eficiente do mundo, estão na faixa dos 20%, muito acima da taxa média americana. Aumentar ainda mais as tarifas efectivas que as empresas chinesas enfrentam é um regime anti-dumping que é frequentemente utilizado como um instrumento de proteccionismo, com regras que são tendenciosas contra os produtores chineses. A tarifa média dos EUA subestima seriamente as tarifas reais aplicadas aos produtos chineses. Da mesma forma, os acordos de livre comércio dos EUA têm desviado artificialmente a procura dos EUA de produtores chineses mais eficientes, para empresas menos eficazes em termos de custo em países como o México. Apesar da palavra “livre” no nome, os acordos de livre comércio não são verdadeiramente sobre um comércio mais livre, pois eles discriminam empresas em países fora dos ALC em favor de empresas algumas vezes menos eficientes nos países participantes. Esse efeito – que não é suficientemente limitado pelas regras existentes da Organização Mundial do Comércio – enfraquece a atribuição eficiente de recursos e prejudica não apenas os trabalhadores em países fora de um ALC, mas também, em muitos casos, famílias com baixos rendimentos que aí residem. Além disso, o regime dos EUA que rege o investimento estrangeiro nem sempre é justo, previsível ou transparente. Quando se trata de rotular um investimento proposto como sendo uma ameaça à segurança nacional, os critérios parecem muito discricionários. Segundo os advogados norte-americanos com quem falei, que fornecem aconselhamento sobre fusões e aquisições transfronteiriças, uma vez que os processos de triagem nos EUA para acordos que envolvem investidores chineses podem enfrentar longos e imprevisíveis atrasos, as empresas chinesas muitas vezes têm de pagar 15% extra para tornarem as suas propostas viáveis. Dessa forma, o regime de investimento estrangeiro dos EUA, efectivamente, expropria as empresas chinesas que desejam investir nos EUA. As políticas ineficientes ou geradoras de distorções raramente são simples erros. Como regra, elas atendem aos interesses dos grupos de interesses especiais poderosos e bem organizados que provavelmente resistem a qualquer mudança. Mas se a China e os EUA conseguirem um grande negócio sobre um pacote de mudanças políticas que reduzam ou eliminem as distorções em ambos os lados, a resistência interna pode ser mais fácil de superar. Essa cooperação poderia ser alargada para ajudar a conseguir um acordo nas reformas da OMC que apoiariam ainda mais a equidade no sistema global. Por exemplo, as regras anti-dumping poderiam ser melhor harmonizadas com as regras anti-monopólio nacionais e poderiam ser criados ou reforçados regulamentos para minimizar os efeitos discriminatórios dos ALC e para evitar que os governos utilizem subsídios nas empresas públicas para contornar as regras da OMC. Uma estratégia assim tão equilibrada e recíproca ajudaria a aliviar as tensões sobre o comércio e o investimento transfronteiriços. Igualmente importante, fortaleceria a justiça e a eficiência nas duas maiores economias do mundo – uma mudança que beneficiaria não apenas os EUA e a China, mas todo o mundo. © Project Syndicate www.project-syndicate.org * ex-economista-chefe do Asian Development Bank, Professor de Chinese Business and Economy e Professor de Finance and Economics na Universidade de Columbia.
João Romão VozesFlorestas, turismo e desigualdades [dropcap]G[/dropcap]osto da imponência das florestas tropicais, da sua esmagadora dimensão, de como são dificilmente domesticáveis à vontade das pessoas, antes impondo modestos e sistemáticos processos de adaptação e convívio com uma natureza cujo poder só muito vagamente controlamos. É nesses contactos com a brutalidade e a beleza destes magníficos ecossistemas que ainda recupero alguma esperança no futuro e na viabilidade de um planeta que consumimos desenfreadamente e destruímos cada vez mais depressa. E no entanto, é de avião que chego a estes lugares, mais um entre milhões de viajantes na massificada indústria do turismo contemporâneo, onde em nome da “experiência” se invadem paisagens rurais e urbanas, ecossistemas sensíveis, cidades em que a facilidade da visita implica dificuldades para quem lá vive, modos de vida e culturas locais transformadas em mercadoria para consumo acelerado. As circunstanciais preocupações com a “sustentabilidade” do turismo que as entidades internacionais que regulam e promovem o sector não escondem a inviabilidade do atual processo de massificação global: as mesmas entidades que reconhecem que as viagens aéreas contribuem pelo menos com 5% para o total das emissões de CO2 no planeta, regozijam a cada ano com um novo recorde no número de passageiros internacionais. Neste caso, foi na pequena povoação de Ubud, no centro da ilha Bali, que tive oportunidade de celebrar a entrada no novo ano, num restaurante espetacularmente integrado na paisagem da floresta, insuspeito a quem o olha ao nível do passeio, mas que se vai revelando à medida que vamos descendo no seu interior, com vistas para o rio que passa no fundo do vale e para uma variedade aparentemente infinita de árvores e flores. Ubud é um desses sinais da necessária humildade da civilização, sempre em precário equilíbrio numa permanente adaptação à incontrolável força da natureza em ambientes tropicais. Mas Bali é também, já se sabe, um dos locais mais simbólicos da massificação turística do planeta. Sendo as praias e o entretenimento noturno nas áreas mais urbanizadas do litoral o centro dessa massificação, a impressionante diversidade paisagística e cultural da ilha oferecem uma diversidade de “experiências” a potenciais visitantes que a tornam atrativa para os mais variados públicos. Famílias completas, casais dos mais variados géneros e idades, viajantes solitários à procura de aventura, entretenimento ou conhecimento, encontram-se em Bali os mais variados tipos de turistas, das mais variadas idades e origens. Ainda assim, a ilha está longe de estar preparada para esta afluência de visitantes, o que se nota, desde logo, na mobilidade e nos transportes, sobretudo para quem, como eu, se foi habituando aos padrões das economias mais avançadas do norte da Europa ou Japão, com uma prioridade absoluta ao transporte público e escassa utilização de transportes privados. É o contrário de Bali, onde praticamente não há transportes públicos e os automóveis e motorizadas invadem permanentemente estradas, ruas e até passeios. Será talvez mais problemática a situação dos centros urbanos do litoral, mas são também penosamente demoradas as viagens pelas congestionadas estradas do interior. Esta insuficiência de infraestruturas nos países menos desenvolvidos faz com que as populações pobres que habitam estes países paguem mais que as populações ricas que vivem nos países mais desenvolvidos: a falta de soluções que aumentem a eficiência colectiva implica custos privados em viaturas, combustíveis, acidentes, demoras e poluição sistemática que os países mais desenvolvidos vão conseguindo evitar, ou pelo menos mitigar. Escusado será dizer, já agora, que a mobilidade em Portugal continua mais próxima dos padrões do mundo menos desenvolvido, com um privilégio sistemático ao transporte privado e manifestas insuficiências nos vários tipos de transporte público. Em todo o caso, com ou sem infraestruturas adequadas, são turistas quem mais usufrui dos magníficos recursos de lugares como Bali: os melhores restaurantes, as melhores lojas, as melhores praias (em geral privatizadas ou com acesso difícil para quem não está instalado num hotel à beira-mar) praticamente não são utilizados pela população local. As classes médias dos países mais desenvolvidos, mesmo quando não são ricas, têm um poder de compra suficientemente alto para excluir desses inflacionados consumos os residentes locais. Na realidade, também muito disto vai acontecendo em Portugal, onde a habitação e o lazer em certas áreas das cidades mais turísticas se vão tornando proibitivos para quem lá vive. A economia da “experiência turística” vai-se fazendo muito à custa do trabalho precário e mal pago e da exclusão social, um pouco por todo o mundo.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO rosto por desvendar [dropcap]R[/dropcap]ecentemente o Chefe do Executivo, Chui Sai On, deslocou-se a Pequim para apresentar o relatório oficial sobre o trabalho desenvolvido em Macau. Nessa ocasião, pediram-lhe que indicasse quem julgava ser o candidato ideal para lhe suceder no cargo. Chui limitou-se a declarar que daria o seu melhor para facilitar a transição do Executivo, mas não adiantou nenhum nome para seu sucessor. Mas, seja ele quem for, o quinto Chefe do Executivo tomará posse a 20 de Dezembro de 2019. Faltam apenas alguns meses para que seja formada a Comissão Eleitoral do Chefe do Executivo e, penso eu, os trabalhos preparatórios para a Comissão já devem estar em marcha. Obviamente que o Governo Central não irá, para já, revelar a sua posição em relação ao próximo Chefe do Executivo de Macau, mas, aposto que toda a informação necessária, recolhida através dos diferentes canais disponíveis, já foi enviada para ser tomada em linha de conta. Na verdade, no contexto político actual, não existem muitas pessoas em Macau qualificadas para se candidatarem a este cargo. No entanto, talvez possamos encontrar algumas pistas, se analisarmos o percurso dos dois Chefes do Executivo precedentes. Após a fundação da RAEM, Edmund Ho assumiu o cargo durante o primeiro e o segundo mandatos. Foi uma figura adequada à função, até porque o seu pai, o falecido Ho Yin, foi um patriota que, no seu tempo, muito contribuiu, quer para a China, quer para Macau. Mas, antes de Edmund Ho ter sido eleito para Chefe do Executivo, passou por um estágio de formação política, porque a sua área de especialidade se limitava aos negócios e à finança. Foi ganhando experiência política na Assembleia Legislativa, primeiro como deputado, e depois como vice-presidente do plenário, altura em que anunciou a sua candidatura a Chefe do Executivo de Macau. Muitos dos deputados nomeados durante a segunda legislatura, em 2001, pertenciam à esfera dos negócios, à semelhança de Edmund Ho. Chui Sai On, a quem couberam os terceiro e quarto mandatos de Chefe do Executivo, tinha sido eleito directamente como deputado da Assembleia. Ocupou este cargo durante quatro anos, antes de ter sido indicado para Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Quer Edmund Ho, quer Chui Sai On, possuiam experiência legislativa e administrativa antes de se candidatarem ao mais alto cargo da cidade. Analisando o percurso dos anteriores Chefes do Executivo, não será de admirar que Ho Iat Seng, Presidente da Assembleia Legislativa, venha a ser considerado o candidato ideal para assegurar a sucessão. Noutras paragens, em Singapura, o Governo prepara a quarta geração de líderes. E quais são os pré-requisitos para a liderança desta cidade-estado? O Primeiro-Ministro de Singapura, Lee Hsien Loong, estabeleceu quarto critérios de referência, que anunciou na conferência bianal da formação no poder, o Partido de Acção Popular (PAP). A saber: (1) possuir o conhecimento aprofundado dos valores politicos fundamentais do PAP e a habilidade política para evitar a dissenção e os confrontos sociais; (2) abandonar todos os interesses pessoais e servir o País e o povo; (3) ter enorme capacidade de perseverança; (4) saber gerir todo o tipo de interesses, de forma equilibrada e justa e de acordo com a lei, é o maior desafio de um Primeiro-Ministro. Se estes critérios se adaptarem ao perfil do próximo Chefe do Executivo, isso quererá dizer que a pessoa em causa será um patriota que ama Macau, capaz de gerir os interesses dos diversos sectores, de prevenir as divisões sociais, imparcial, e que irá lidar com os vários assuntos de acordo com a lei e com capacidade para governar. Até agora, no quadro politico actual, existem muito poucas pessoas capazes de servir Macau à luz destes critérios. Ser o rosto do poder em Macau é certamente uma honra, mas também um pesado fardo, porque o quinto Chefe do Executivo terá de lidar com uma série de questões por resolver, incluindo a renovação das licenças de jogo dos diferentes parceiros, e a construção da Região Metropolitana da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, da qual Macau se encontra gradualmente a realizar o objectivo de se tornar “Um Centro e Uma Plataforma”. Se o próximo Chefe do Executivo conseguir alcançar todas estas metas será digno de louvor, caso contrário irá sofrer sérios dissabores. A sociedade é composta por muitas entidades e a sua estabilidade não pode depender de câmaras de vigilância. nem de uma justiça com a mão pesada. A estabilidade a longo prazo só acontece quando os interesses gerais e o desenvolvimento social são tomados em linha de conta. Por isso, seja quem for que venha a assumir o governo de Macau durante este quinto mandato, terá de lidar com desafios de um outro nível.
João Romão VozesFamília, sexo e outros afazeres domésticos [dropcap]É[/dropcap] cedo, é verdade, mas ainda assim esta é a minha última crónica anterior à consoada e só estarei de volta ao Hoje Macau depois de devidamente celebrada a chegada de novo ano, pelo menos de acordo com o calendário a que nos habituámos na Europa. Não é que a quadra natalícia seja assunto especialmente relevante em para a população japonesa, de larguíssima maioria budista ou shinto (uma variante local largamente tributária do budismo mais tradicional), mas ainda assim não escapo às promoções e decorações comerciais natalícias e às respetivas musiquinhas com que se faz questão de irritar os frequentadores de cafés e espaços comerciais um pouco por todo o mundo. Por estas paragens é outra a festa em que se reúne a família, assinalada por três convenientes feriados consecutivos a meio de Agosto, ocasião para intenso tráfego turístico interno no Japão. Celebram-se os antepassados já falecidos, cujo espírito visita os familiares por estes dias. Lanternas iluminadas em templos e altares domésticos assinalam a ocasião e a mesa das refeições inclui lugares para os vivos e para os mortos de cada família. São notoriamente diferentes as relações familiares no Japão em relação ao que nos habituamos a ver em Portugal ou na Europa, por muito diversos que sejam os padrões e comportamentos nas sociedades contemporâneas. Deixo de lado as minhas impressões pessoais, necessariamente enviesadas pela circunstâncias que o acaso faz com que me rodeiem, e recorro aos resultados mais recentes (publicados em 2017) do inquérito que a Associação de Planeamento Familiar do Japão (APFJ) publica a cada dois anos, com base em milhares de entrevistas supostamente representativas da população japonesa. Escusado será dizer que este é assunto de particular importância num país com acelerado envelhecimento populacional (mais de 60.000 pessoas acima dos 100 anos) e tendência para o decréscimo da população, mesmo em áreas metropolitanas como Tóquio, que um pouco por todo o mundo tendem a concentrar uma proporção cada vez maior dos residentes. Mostram as estatísticas demográficas que nas sociedades atuais já não se verifica apenas um processo sistemático de urbanização, com deslocação crescente das áreas rurais para as urbanas, mas também um movimento cada vez mais significativo da população de pequenas cidades em direção às grandes metrópoles. Um dos resultados que mais preocupa os autores do referido estudo é a escassa atividade sexual da população japonesa, uma tendência que já se notava em inquéritos anteriores e que se vem intensificando: os dados mostram que 47% dos casais não teve relações sexuais no mês anterior à entrevista – um aumento de 2,6 pontos percentuais em relação ao inquérito anterior (publicado em 2015) e de 15,3 pontos percentuais em relação ao primeiro inquérito (publicado em 2005). Doze anos de redução “dramática” (segundo o diretor da APFJ) das práticas sexuais de uma população cujos problemas demográficos têm naturalmente importantes implicações económicas (disponibilidade de força de trabalho ou sustentabilidade da segurança social). Entre as causas desta sistemática abstinência destaca a tradicional fadiga pelo excesso de trabalho (referida por 35% dos homens) mas também uma perspectiva do casamento em que a esposa é vista como “um familiar próximo” e não como uma parceira de romance. Talvez por isso, do lado das mulheres a “inconveniência” é a causa maioritariamente apontada, referida em 22% dos casos. Na realidade, esta perspetiva do casamento – em que o homem procura uma mulher que tome conta de si e do lar, é ainda comum numa sociedade altamente patriarcal, onde é frequente as mulheres abandonarem as carreiras profissionais depois de casar, mesmo quando têm muito elevadas qualificações (só 30% das mulheres japonesas trabalham). Também não é raro encontrar homens que sentem como uma “desonra” que a mulher trabalhe, porque isso de alguma forma representa a sua incapacidade de sustentar a família. Pelo contrário, são cada vez mais frequentes os casos de mulheres que viajam sozinhas ou com os filhos, enquanto os respetivos maridos trabalham e pagam a conta. O estudo também refere que esta generalizada ausência de vida sexual não se limita a pessoas casadas: entre a população solteira com idades entre os 18 e os 34 anos, 42% dos homens e 46% das mulheres nunca tiveram relações sexuais. De resto, 40% das mulheres adultas solteiras no Japão são virgens, segundo revelam os dados do estudo. Talvez estes comportamentos sejam também o reflexo de práticas culturais profundamente enraizadas, onde o contato físico – e até visual – entre pessoas é altamente restringido (até à inexistência, na realidade). Mas estes relatórios também mostram que a tendência para uma vida assexuada tem vindo a aumentar com o tempo, não se explicando apenas pela tradição histórica. Talvez a celebração do Natal não seja uma urgência num país de fraca tradição cristã. Mas já a recuperação natalidade parece ter uma urgência crítica para a viabilidade demográfica, económica e social do país. Não será o Japão caso único, ainda assim: na realidade, Portugal é o país europeu onde a evolução demográfica mais se assemelha à japonesa. Tende então um bom Natal e procriai, se vos aprouver.
Carlos Morais José Editorial VozesExemplo a seguir [dropcap]F[/dropcap]alta um ano para que duas décadas se cumpram sobre o advento da RAEM. Durante este período, Macau conheceu claramente duas fases, que correspondem aos governos de Edmund Ho e de Chui Sai On. A primeira foi caracterizada por um crescimento exponencial, a segunda pela consolidação desse excesso de quase tudo, principalmente de fundos nos cofres governamentais. Dos poucos dramas que este território enfrenta, porque a abundância financeira evita muitos problemas, é precisamente a falta de uma visão clara quanto ao futuro, nomeadamente quanto ao modo de aplicar inteligentemente os fundos no aumento da qualidade de vida dos cidadãos. A verdade é que o nosso Governo não consegue projectar quase nada porque se sente aflito quando faz quase tudo. O exemplo crítico passa pela Secretaria para os Assuntos Sociais e Cultura que não consegue iniciar um projecto com alguma envergadura, sem motivar e aceder aos protestos que sempre se levantam, no seio de uma sociedade mimada e insaciável. Foram os casos do Hotel Estoril, em que os protestos levaram ao cancelamento de um projecto de Siza Vieira, e do Antigo Tribunal, cuja transformação em biblioteca se tem arrastado miseravelmente ao longo dos anos. No entanto, também qualquer projecto ligado às Obras Públicas e Transportes parece também sofrer de irremediáveis problemas. São o caso do metro ligeiro e do Hospital da Taipa, cuja inconclusão manchará para sempre o Executivo de Chui Sai On. Fica a impressão de que o Governo não consegue ou não quer construir equipamentos sociais, seja por incompetência, no primeiro caso, seja porque vai contra certos interesses particulares, no segundo. Os elogios do presidente Xi Jinping ao Chefe do Executivo e ao Governo de Macau pecam — e despertam mesmo um sorriso de complacência — quando sublinham o sucesso na “diversificação económica”. Os números não mentem e demonstram que, pelo contrário, cada vez a região está mais dependente do Jogo e que as restantes actividades económicas debatem-se com graves problemas, nomeadamente ao nível das PMEs. Ao elogiar a diversificação económica, quando esta basicamente não existe, Xi retira valor ao elogio. E ficamos satisfeitos por saber que a RAEM tem sido um filho fiel do regime e da Pátria. De facto, neste ponto não terá Pequim qualquer razão de queixa ou antes pelo contrário. Macau não tem causado quaisquer problemas políticos, sobretudo se comparado com Hong Kong. Pelo contrário, por aqui proliferam os que são mais papistas que o papa. Outros dos macro-objectivos, desde 2003, as relações com os países lusófonos, não correu como seria de esperar. Passámos aqui anos de uma espécie de fingimento, de paródia à questão. Os empresários locais não demonstraram agilidade para empreender o caminho de África, do Brasil, de Portugal ou sequer de Timor-Leste. Nem agilidade, nem vontade. Foram precisas alterações radicais no Fórum Macau, bem como a visita do primeiro-ministro Li Keqiang e famoso discurso dos 19 pontos, para que a elite local percebesse que se trata de algo inevitável, pois resulta de uma directiva inteligente do Governo Central. Contudo, muita coisa boa se passou nestes 19 anos. Entre elas, e nada despiciente, o modo carinhoso como o Governo da RAEM continuou, ao longo de todo este tempo e sem interrupções, a tratar a comunidade portuguesa. Que, por seu lado, tem contribuído e muito para a construção da RAEM e prepará-la para os confrontos e desafios da nova era. Os portugueses continuam a desempenhar um papel importante nesta cidade, sendo responsáveis por uma parte significativa das suas manifestações culturais e pela internacionalização de Macau, além do Jogo, como cidade patrimonial ímpar. Ainda na semana passada, o actor Nicholas Cage, convidado de honra do Festival Internacional de Cinema de Macau, referiu que grande parte do interesse desta região passa pela presença e mescla de duas culturas tão diferentes: portuguesa e chinesa. E tem toda a razão. Neste sentido, acreditamos que os futuros dirigentes da RAEM saberão preservar este património único e que possibilitarão que a nossa comunidade continue a desempenhar um papel de relevo na sociedade local. Como está bem claro na Lei Básica, Macau é de todos nós, sobretudo dos que aqui deixam o seu suor e saber, ao serviço do engrandecimento de Macau e da China. O grande País do Meio sabe quem são os seus amigos e esta amizade secular entre os dois povos conhece no presente um dos seus momentos mais elevados. Que o futuro confirme e reforce estas relações que são, desde já, um exemplo a seguir, um modelo de comportamento, para a comunidade global de futuro partilhado.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesConstituição chinesa e leis básicas [dropcap]N[/dropcap]o início deste mês, a comunicação social de Hong Kong divulgou uma entrevista com o Professor Wang Zhenmin. Professor de Direito da Universidade Tsinghua, Wang Zhenmin afirmou na entrevista que, após o regresso de Hong Kong à soberania chinesa, a Constituição chinesa deverá inevitavelmente vir a ser aplicada com carácter vinculativo. A promulgação da Lei Básica de Hong Kong (LBHK) não teve como objectivo a criação de uma outra “constituição”. A Constituição chinesa aplica-se sempre que na LBHK não exista legislação específica, ou nos casos em que a legislação não seja suficientemente clara. Não houve necessidade de incluir a Constituição chinesa no Anexo III da LBHK, porque esta é, por natureza, aplicável em Hong Kong. Rao Geping, professor de Direito da Universidade de Pequim, defende que a Constituição chinesa e a LBHK são os alicerces que consolidam o princípio “um País, dois sistemas”. As duas formam um todo e, de forma alguma, se deve sobrepôr a constitução chinesa à LBHK. No entanto, há quem apenas mencione a Lei Básica e ignore a Constituição. Esta é geralmente a atitude daqueles que se lhe opõem, com base numa determinada argumentação. Rao Geping acredita que é preciso estar vigilante. Em relação a Macau, este especialista considera que o trabalho de esclarecimento nesta área, está a ser mais bem feito do que na própria China continental. Shen Chunyao, Presidente da Comissão dos Assuntos Parlamentares do Comité Permanente do Congresso Nacional do Povo e Presidente do Comité Legislativo de Hong Kong, participou no simpósio dedicado ao “Dia da Constituição Nacional”, realizado no passado dia 4, em Hong Kong. Nessa ocasião, declarou que a Constituição chinesa é o simbolo da China, e que o seu alcance cobre o território nacional, incluindo Hong Kong. A Constituição e a LBHK constituem no seu conjunto a estrutura política e operacional da Região Admnistrativa Especial de Hong Kong (RAEHK). Sendo a Lei Básica de Hong Kong a autoridade máxima do sistema legal da cidade, qualquer lei, incluindo as leis originais de Hong Kong ao abrigo da lei comum, não podem , em circunstância alguma, entrar em conflito com ela. Shen afirmou ainda que a Constituição Chinesa é a lei fundamental e suprema de toda a China, e que o País tem uma só Constituição, cujo alcance cobre o território de Hong Kong. Após o regresso de Hong Kong à soberania chinesa, foi implementado o princípio “um País, dois sistemas”. Ou seja “dois sistemas” dentro de “um País”, princípio que incorpora a essência do estado de direito na China e dos valores consagrados na sua Constituição. A Constituição chinesa é detentora do supremo estatuto, e da suprema autoridade e supremos efeitos legais. Os povos de todas as nacionalidades, incluindo os habitantes de Hong Kong, terão de respeitar a dignidade da Constituição chinesa e garantir a sua implementação. Os artigos 31 e 62 da Constituição providenciam a base constitucional para a formulação da Lei Básica de Hong Kong, bem como a implementação das políticas subjacentes ao princípio “Um País, Dois sistemas”. Do ponto de vista legal, existe uma relação hierárquica entre a Constituição e a LBHK. A Constituição é a “lei mãe”; a LBHK derivou dela e estabelece um conjunto de princípios legais que lhe estão subordinados. Por outras palavras, as declarações destes peritos deixam bem claro que o estatuto da LBHK é inferior ao da Constituição da China. A Constituição prevalece sempre sobre qualquer outra Lei, em qualquer parte do País. Por este motivo, o seu efeito estende-se a Hong Kong, e deverá ser também implementada na RAEHK. Estas ressalvas legais centraram-se em Hong Kong. Quanto a Macau, a primeira questão centra-se na implementação da Constituição chinesa na cidade e também nas eventuais diferenças que este processo possa vir a ter nas duas RAEs. Em segundo lugar, se as duas Regiões Administrativas Especiais implementarem a Constituição chinesa, vir-se-ão a deparar com alguma legislação que não é considerada nas suas respectivas Leis Básicas? Esta é provavelmente uma das questões que preocupa um maior número de pessoas. Que tipo de lei é implementada, e como é implementada, é sem dúvida uma questão pertinente. A lei é um padrão que baliza o comportamento das pessoas, e também um fasquia que eleva a responsabilidade de cada um. O amor à Pátria decorre do sentimento de pertença. Orientadas por uma relação de confiança e de amor mutúos, sob a bandeira da implementação da lei, iremos sem dúvida ver a China e as RAEs tornarem-se cada vez mais harmoniosas, estáveis e prósperas. Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Polotécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesO Inverno do nosso contentamento [dropcap]Q[/dropcap]uando alguém está desesperado, pode chegar ao suicídio. Se uma sociedade vive sem esperança, enfraquece aos poucos. Quando os governos sabem que só têm mais um ano de mandato, não é expectável que prestem atenção ao descontentamento do povo, nem que empreendam mudanças radicais. Ao actual Governo de Macau resta apenas um ano em funções. Para além do Chefe do Executivo, acredito que alguns Secretários também se estão a preparar para sair. Durante o debate anual das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro, na Assembleia Legislativa, o público só tem acesso a parte do Relatório, ao passo que a versão mais detalhada das Linhas de Acção Governativa, nas diversas áreas, só é facultada às partes directamente interessadas, como os membros do Governo, os deputados e os jornalistas. Na versão do Relatório das Linhas de Acção Governativa para o ano financeiro de 2019 distribuída ao público, os conteúdos de cada área mal ocupam 30 páginas. Mas, na versão detalhada, a parte que cabe à Área de Transportes e Obras Públicas tem 37 páginas, muito inferior às 91 páginas referentes à Área de Segurança e às 61 da Área de Assuntos Sociais e Cultura. Será que o Secretário dos Transportes e Obras Públicas já finalizou as suas tarefas e pouco mais tem a acrescentar sobre as matérias da sua competência? Dos diferentes sectores sob a alçada dos cinco Secretários do Governo da RAEM, a Área de Transportes e Obras Públicas é a que tem sido mais sobrecarregada por uma série de problemas. O plano de construção da quarta ligação Macau-Taipa transformou o idealizado túnel sub-aquático numa ponte, sob o pretexto de que as motas teriam dificuldade em aceder ao túnel. Espera-se que a ponte esteja pronta em 2024. Para além disso, está em curso um estudo de viabilidade para a construção de uma quinta passagem sobre as águas (sem referência à data de construção). Este projecto nada tem a ver com o melhoramento do fluxo de tráfico entre Macau e as ilhas, nem com o reforço das capacidade de resistência da cidade à agressão dos tufões e compromete seriamente a possibilidade de construção de uma ponte ferroviária, para a passagem do metro ligeiro, na Zona A dos Novos Aterros. A ideia no seu conjunto revela a falta de uma visão global sobre o planeamento do sistema de transportes. Quanto ao projecto do Metro Ligeiro, ainda se espera que a Linha da Taipa esteja a fincionar em 2019 e que a Linha de Seac Pai Van Line esteja terminada em 2022. Já a ligação para a Estação da Barra não vai estar pronta antes de 2024. Também não há novidades sobre a Linha Leste do Sistema de Metro Ligeiro, nem sequer quanto ao seu traçado. O projecto de construção do Metro Ligeiro em Macau deixou de ser um “elefante branco” e passou a ser digno de uma candidatura aos “Recordes Guinness” da história ferroviária, pela quantidade brutal de dinheiro envolvido e pela demora em se ficar a saber a data da sua conclusão. Pela apresentação das Linhas de Acção Governativa do Secretário Raimundo Arrais do Rosário, depreende-se que é um fiel seguidor do Chefe do Executivo Chui Sai On e que se irá retirar com ele. Alguns jornalistas publicaram no Facebook que a melhor parte do debate das políticas do Governo, foi o lanche com tostas de carne, fornecidas pelo quiosque da Assembleia, que os ajudou a sobreviver ao tédio das sessões do parlamento. Quem se preocupa verdadeiramente com o futuro de Macau, deveria estar presente nestas sessões de debate. É a única forma de perceber o desempenho dos membros do Governo e dos deputados. Quem conhece a verdade não deixa os seus assuntos por mãos alheias. Quando se realizou em Macau a Consulta sobre Desenvolvimento do Sistema Político, em 2012, mais de 100.000 pessoas subscreveram um abaixo-assinado em apoio à proposta “2+2+100”, o que provocou um retrocesso do processo democrático. Nas eleições directas para a Assembleia em 2013 e em 2017, o suborno e a corrupção foram incontroláveis e, em consequência, o populismo e os interesses instalados triunfaram sobre a democracia. Da total cumplicidade entre o Executivo a a Legislatura advém a perda da função reguladora da Assembleia e os améns a todas as decisões do Governo. Devido ao aquecimento global, o Inverno deixou de ser Inverno. As pessoas andam iludidas e esquecem-se que é preciso fazer preparativos para o frio. No entanto, as leis do desenvolvimento económico ensinam-nos que o suposto “desenvolvimento sustentável” é mera propaganda usada pelos políticos, mas a acumulação dos problemas sociais acabará por vir a ser a força motora da transformação política. Nos 20 anos que passaram sobre o regresso de Macau à soberania chinesa, a cidade atingiu o pico económico. Quanto ao que virá a seguir, tudo irá depender das capacidades do quinto Chefe do Executivo. Como diz o ditado, nada é eterno neste mundo. Quando o Inverno bate à porta, a Primavera já não está muito longe. O Tempo abre janelas de oportunidade para quem está bem preparado.