Consciência profissional, meteorologia e ciclone Idai

[dropcap]C[/dropcap]erca das 15:00 horas do dia 11 de março de 2019, o meu telefone tocou. As palavras poderão não ter sido exatamente estas, mas o sentido foi o que se segue.
– Olá, tudo bem contigo? Já viste o que se está a passar no Canal de Moçambique?
– Olá Luís, tudo bem? Não, não vi. Do que se trata?
– Dá uma olhadela ao website www.windy.com. Verás que Moçambique está a ser ameaçado por um ciclone que aponta para a cidade da Beira.

Era o Luís Pinto Coelho, meteorologista aposentado, colega durante dezenas de anos no Serviço Meteorológico Nacional e nas instituições que lhe sucederam, Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica e Instituto de Meteorologia. O Luís sempre se sentiu muito ligado a Moçambique, onde fez serviço militar durante a guerra colonial, tendo também lá trabalhado na área da meteorologia. Durante muitos anos desenvolvemos a nossa atividade profissional, embora em turnos diferentes, no então chamado Centro Meteorológico do Aeroporto de Lisboa. Aí eram marcadas várias vezes por dia, em cartas, os valores das variáveis meteorológicas correspondentes a centenas de estações meteorológicas espalhadas por grande parte do hemisfério norte. Os meteorologistas procediam então à análise, que consistia essencialmente no traçado, nas cartas de superfície, das isóbaras (linhas de igual pressão) e na identificação de frentes e de sistemas de pressão. Nas cartas de altitude eram traçadas as isoípsas (linhas que unem pontos de igual altitude em cartas de pressão constante) em diferentes níveis isobáricos. Com as cartas já traçadas procedia-se então à elaboração dos prognósticos de superfície e de altitude. Nos de superfície assinalavam-se as zonas de tempo significativo previsto e nos de altitude as correntes de jato, zonas de turbulência, zonas de formação de gelo nas nuvens, etc. Com base nestas cartas eram feitas as previsões não só para fins gerais mas também para as atividades marítimas e aeronáuticas.

Na década de 1970 e parte da de 1980 todo este trabalho era feito manualmente. Cópias dos prognósticos de altitude e de tempo significativo eram entregues às tripulações dos aviões que partiam dos aeroportos nacionais. O trabalho era de grande valor económico, principalmente no que se referia à informação para a aviação, na medida em que os planos de voo, elaborados pelos operadores das várias companhias de aviação, eram feitos com base nesses prognósticos. As rotas eram traçadas de modo a que as aeronaves evitassem zonas de maior perigosidade, se afastassem de ventos fortes contrários e aproveitassem ventos favoráveis a fim de encurtarem o tempo de viagem. Por exemplo, nos percursos de Lisboa para a América do Norte, os planos de voo permitiam que as aeronaves se distanciassem das correntes de jato, zonas de ventos muito fortes com forte componente oeste, e aproveitassem essas mesmas correntes no percurso inverso. A quantidade de combustível e o peso da carga eram calculados em função das condições meteorológicas previstas no aeródromo de partida e em rota.

Desde meados dos anos oitenta do século passado o trabalho manual foi a pouco a pouco sendo substituído por produtos gerados por computadores, o que permitiu libertar os meteorologistas para outras tarefas e reduzir o pessoal nos centros de análise e de previsão do tempo. Graças aos modelos físico-matemáticos usados atualmente e aos satélites meteorológicos, as previsões são feitas para períodos mais alargados e a fiabilidade aumentou significativamente. Perdeu-se, no entanto, a prática que consistia na aplicação de um conjunto de regras que permitiam os meteorologistas decidirem sobre a evolução dos fenómenos utilizando, além de dados objetivos, uma certa subjetividade baseada nos conhecimentos adquiridos ao longo de muitos anos de prática.

Voltando ao telefonema do Luís, segui o seu conselho e consultei o website por ele sugerido, e de facto o aspeto do ciclone, designado por Idai, era verdadeiramente ameaçador. Acedi a outras páginas da Internet e constatei que os resultados de diferentes modelos não diferiam muito uns dos outros. Liguei-lhe então:

– Tens razão, a situação é preocupante. Se a previsão se concretizar vai haver uma grande tragédia em Moçambique.
– É verdade. Será que tens alguém conhecido ligado a Moçambique com quem possas contactar no sentido de alertares para a situação?

Na verdade, as comunicações em África nem sempre funcionam bem, o que poderia implicar um não acompanhamento eficiente da evolução do ciclone por parte dos meteorologistas moçambicanos. Além disso, a troca de impressões entre meteorologistas de países diferentes pode ajudar a clarificar situações. Com base nestes pressupostos e atendendo a que estive várias vezes em Moçambique em missões de treino meteorológico, seria lógico, no pensamento do Luís, que eu mantivesse alguns contactos. Mas como a última missão a Moçambique fora em 2002, já havia perdido os contactos com os técnicos com quem lá trabalhara.

Lembrei-me de telefonar ao Sérgio Ferreira, luso-moçambicano que desempenhou durante alguns anos as funções de diretor do Instituto Nacional de Meteorologia de Moçambique (INAM). Não seria de estranhar que mantivesse contactos mas, por estar desligado do INAM há já muitos anos, não me pôde dar quaisquer indicações. No entanto comentou que a sua experiência como meteorologista em Moçambique lhe permitia afirmar que as trajetórias dos ciclones no Canal de Moçambique são bastante erráticas, o que torna difícil a sua previsão.

Consultei então o website do INAM, onde constatei que os meteorologistas moçambicanos estavam a par da evolução do Idai e, nos boletins emitidos, já estavam a alertar para a aproximação do ciclone e das suas possíveis consequências. Passados alguns dias a preocupação concretizou-se e o Idai atingiu violentamente Moçambique, entrando no país durante a noite de 14 para 15 de março. Curiosamente esta foi a segunda vez que atingiu terra firme em Moçambique, pois alguns dias antes a depressão tropical que lhe dera origem, e que se formara no Canal de Moçambique, já atingira a costa próximo de Quelimane, na província da Zambézia.

Nesta sua primeira investida, ao entrar no continente enfraqueceu, progrediu inicialmente para oeste e depois para norte. Atingiu o Malawi, retornando em seguida para leste, entrando de novo no Canal de Moçambique. Ao chegar próximo de Madagáscar inverteu o movimento, que passou a ser de novo em direção ao continente, mas mais a sul. Estando a temperatura da superfície do mar muito elevada, a depressão intensificou, atingido progressivamente as categorias de tempestade tropical, ciclone tropical moderado, reentrando em Moçambique perto da cidade da Beira já como ciclone tropical severo, com ventos persistentes de cerca de 190 km/h, com rajadas superiores a 200 km/h, afetando gravemente as províncias de Sofala, Manica, Zambézia, Tete e Inhambane.

A cidade da Beira, capital da província de Sofala, construída numa zona pantanosa e parcialmente abaixo do nível do mar, parecia ter sido alvo de bombardeamento, tal foi o grau de destruição.

Segundo a agência Lusa e a Rádio Moçambique, o Secretário-Geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM), Petteri Taalas, referiu-se ao bom trabalho que o INAM fez no que se refere à previsão da evolução do ciclone, mas comentou que os meios para evacuar as áreas de risco foram insuficientes. Comparou ainda o ciclone Idai com o furacão Harvey que em agosto de 2017 atingiu o estado do Texas, nos Estados Unidos da América, na medida em que ambos chegaram a ter a categoria 4 da escala de Saffir–Simpson, que vai de 1 a 5. Em ambos os casos foram emitidos atempadamente avisos mas, enquanto as vítimas mortais nos EUA foram 82, em Moçambique atingiram um número próximo de mil. Comentou ainda que a grande diferença consistiu no facto de nos EUA as pessoas terem saído das áreas de risco nos seus carros, enquanto que em Moçambique não havia meios para retirar milhões de pessoas.

Numa reportagem da RTP, o jornalista Pedro Martins relatou que habitantes de uma aldeia desaparecida se salvaram graças a uma vala designada por “Vala do Moura”, construída por um português com aquele apelido. Pressuponho que se refugiaram numa zona do terreno mais elevada formada pela terra removida aquando da construção da vala. Lembrei-me então que no Bangladesh, país frequentemente afetado por cheias provocadas por ciclones ou outras situações meteorológicas, são construídas elevações de terreno estrategicamente distribuídas, com abrigos onde se refugiam habitantes e animais nas vastas zonas frequentemente inundadas. Seria útil as autoridades de Moçambique inteirarem-se do conteúdo do chamado Programa de Preparação para Ciclones (em inglês Cyclone Preparedness Programme – CPP) adotado desde 1973 pelo Bangladesh, onde se poderiam inspirar em medidas tomadas naquele país para mitigar as consequências dos ciclones. Este programa foi desenvolvido sob os auspícios do Governo e do Crescente Vermelho de Bangladesh e, graças a ele, centenas de milhares de vidas têm vindo a ser salvas. Consta essencialmente de medidas relacionadas com avisos, alertas, abrigos, primeiros socorros, evacuação, busca e salvamento, distribuição de meios de subsistência e atividades de reabilitação e recuperação.

A violência do ciclone Idai foi comparável à que caracterizou o que ocorreu nas em 1892 nas Ilhas Maurícias, atualmente República das Maurícias, que provocou pelo menos 1200 mortos.

Os países têm muito a aprender uns com os outros e a cooperação internacional é um fator primordial para promover esse intercâmbio. A OMM está a preparar uma missão de avaliação do impacto do ciclone e outras agências especializadas das Nações Unidas e ONGs estão já em ação.
Vem este texto a propósito da consciência profissional de alguém sempre pronto a alertar sobre fenómenos meteorológicos gravosos e, de passagem, para relembrar o tempo não muito longínquo da meteorologia sem computadores. Entretanto, nunca é demais alertar para facto de que as alterações climáticas são uma realidade, e os desastres naturais de carácter meteorológico poderão aumentar de intensidade e, eventualmente, de frequência.

*O autor escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico

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