João Romão VozesUma manhã normal no parque das nações [dropcap]R[/dropcap]espondo enquanto co-editor a uma professora búlgara que lecciona em Inglaterra para lhe dizer que não sou eu que estou a coordenar a publicação de um certo “volume especial” para uma revista académica, é um colega italiano. Escrevo depois aos investigadores indianos que convidaram para um interessante estudo sobre desenvolvimento turístico em zonas rurais da Índia para lhes dizer dos meus possíveis calendários para visitar a região, partindo do Japão – e também para os lembrar que temos que responder ao colega da Nova Zelândia que no dia anterior nos enviou o protocolo para utilização do programa informático que desenvolveu e que tão preciosa ajuda pode dar ao projecto. Esclareço detalhes da minha integração temporária num centro de investigação em Sapporo, que está para breve, com o respectivo director. Indeciso entre participar em excelentes conferências nas maravilhosas cidades de Hong Kong e em Split, que infelizmente decorrem nos mesmos dias, contacto o director escocês da escola de Hong Kong com quem me vou cruzando com regularidade acidental e os colegas croatas com quem mantenho contacto mais assíduo, seja por razões académicas, seja por outras mais pessoais. Coisas do Mediterrâneo… Numa relativamente longa pausa para café, respondo a mensagens mais informais de familiares e amigos, quase todos em Portugal, com proximidade facilidade pelas possibilidades das “redes sociais” e comunicações digitais gratuitas com vídeo e tudo. Faço os meus “likes” de acordo com a importância do que vou lendo ou os sorrisos que me vão suscitando algumas leituras. Acrescento novas razões a preocupações antigas sobre o que se vai passando na Turquia ao ver os “posts” das pessoas que conheci nos cinco meses em que vivi na maravilhosa Istanbul. “Desamigo” um indivíduo que insiste em partilhar as falsas notícias com que a extrema-direita vai agredindo diariamente o que nos resta de democracia, depois da pedagógica, paciente e amigável explicação no dia anterior. Dou por encerrada a sessão e dedico-me ao futebol, com as notícias e resumos dos dois jogos da véspera na Liga dos Campeões. Desta vez houve golos e foram logo 7 em dois jogos, uma fartura em comparação com a seca absoluta do dia anterior. Volto ao trabalho concentro-me na organização dos painéis de discussão que tenho que organizar, com um colega holandês e outro italiano numa uma conferência de Helsínquia, lá para o fim da Primavera. Envio detalhada proposta aos organizadores finlandeses e ao presidente da organização, também holandês. O programa está praticamente fechado mas há outra conferência a organizar pelo mesmo grupo, já no Outono mas também em terras nórdicas. Discutido o assunto internamente no dia anterior, apresento a nossa proposta inicial aos colegas sueco e israelita que organizam o evento, na Suécia. Constato ainda que, para a visita mais próxima, não tenho resposta do colega de Taiwan que contactei há mais de uma semana. A comunicação digital às vezes é um bocadinho volátil. Paciência. Estará muito longe de ser a primeira vez que organizo sozinho a visita a uma cidade que desconheço. Na realidade é um prazer e não tenho memória de alguma ter corrido mal. Dedico-me então com paciência a mais um puzzle que se há de tornar artigo académico, adicionando argumentos devidamente fundamentados em pesquisas anteriores, discutindo como o respectivo contexto e objectivos ajudam ou não à minha própria proposta explicativa, e redefinido uma e outra vez uma estrutura narrativa que parece já bastante estável e adequada. Veremos mais tarde o que pensam disto os meritíssimos “referees” da revista para onde o artigo for submetido, que ainda faltam uns meses até o puzzle estar completo e discutido com os colegas holandês e japoneses com quem trabalho neste caso. A manhã está tranquila e solarenga, as temperaturas têm estado acima dos 0 graus e a neve começa a derreter aceleradamente na cidade, muito mais cedo do que é habitual. Interrompo o trabalho para ir almoçar ao centro de Sapporo, um “ramen”, uma das mais típicas massas japonesas. Opto desta vez pela carne de porco numa deliciosa sopa de caranguejo, mas há outras variantes. Os restaurantes especializados seguem quase sempre semelhante metodologia: faz-se o pagamento e escolhe-se o prato numa máquina que imprime o talão que há de ser entregue ao balcão. No centro da cidade as máquinas têm informação em inglês (e às vezes em chinês e coreano), para facilitar a vida aos turistas (ou residentes com dificuldade de leitura, como é o meu caso). Tomo uma bica razoável no café da omnipresente cadeia coreana que tem sempre sala de fumadores e leio alguma coisa do que vai sendo publicado no Hoje Macau a medida que vou recebendo por email as notificações dos novos artigos online. Amanhã irei reler esta crónica e enviá-la também para Macau, a menos que me pareça um total despropósito que não interessa a ninguém.
Olavo Rasquinho VozesA propósito do sismo de 28 de Fevereiro de 1969 [dropcap]S[/dropcap]ão poucos os dias em que os meios de comunicação social não nos trazem notícias sobre desastres naturais que ocorrem algures pelo mundo fora. Dentre este tipo de desastres, os de carácter meteorológico são os mais frequentes: tufões no Pacífico Ocidental e Mar do Sul da China, furacões no Atlântico e Pacífico Oriental, ciclones no Índico, frio intenso na América do Norte, vagas de calor na Austrália, incêndios florestais na Europa Meridional, enfim, numerosos títulos inundam com frequência os jornais, as televisões e as redes sociais. Mesmo Portugal tem sido afetado ultimamente por fenómenos extremos, não usuais, como o furacão Ofélia que, em outubro de 2017, contribuiu grandemente para a intensificação do incêndio florestal que alastrou por vastas áreas do nosso país. Também a tempestade Leslie, que chegou a ser classificada como furacão, afetou o território continental em 13 de outubro de 2018, já como tempestade pós-tropical, causando elevados estragos. Mais raramente surgem notícias sobre sismos. Quando estes fenómenos naturais acontecem são alvo, durante dias, da difusão de imagens impressionantes de destruição de vastas zonas urbanas, cenas de populações em pânico, deslizamentos de terras, etc. Mas estes acontecimentos caem rapidamente no esquecimento. É contra este esquecimento que se levou a cabo a evocação do sismo de 28 de fevereiro de 1969, o de maior magnitude que afetou Portugal deste o terramoto do 1º de novembro de 1755 e também o de maior magnitude na Europa desde essa data. Assim, a Sociedade Portuguesa de Engenharia Sísmica (SPES) e a Associação Portuguesa de Meteorologia e Geofísica (APMG) resolveram contrariar a tendência que a sociedade em geral tem para deixar diluir na memória estes fenómenos naturais, tanto mais que Portugal se encontra numa zona do globo onde têm ocorrido sismos de magnitude significativa, principalmente nas regiões localizadas no vale do Tejo e no Algarve, no território continental e, nos Açores, principalmente nas ilhas Terceira, Faial, Pico, São Jorge e São Miguel, as mais povoadas do arquipélago. A SPES e a APMG escolheram a Fortaleza de Sagres para evocar essa ocorrência de há meio século. A escolha foi intencional, na medida em que se pretendeu, de forma simbólica, estar no local do território nacional mais perto do epicentro do sismo, junto das áreas mais afetadas em termos de vítimas e danos, evidenciando que o risco sísmico existe e é uma realidade. A presença do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, na sua qualidade de Presidente da República, mobilizou certamente a participação de numerosas entidades, nomeadamente presidentes das câmaras municipais do Algarve e da Junta da Freguesia de Sagres; representantes dos Bastonários das Ordens dos Engenheiros e Engenheiros Técnicos; Presidentes do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, do Infraestruturas de Portugal; representantes da Autoridade Nacional de Proteção Civil, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, da Infraestruturas de Portugal e Presidente do Centro Europeu de Riscos Urbanos. E foi de toda a conveniência a presença destas entidades, na medida em que ouviram de viva voz as preocupações dos representantes da SPES e da APMG e do próprio Presidente da República. Os sismólogos e os geólogos, contrariamente aos meteorologistas, lidam com fenómenos geológicos praticamente imprevisíveis. Enquanto que atualmente se fazem previsões do tempo com elevada fiabilidade para períodos de alguns dias, com recurso a modelos físico-matemáticos, os sismólogos, apesar da investigação mundialmente levada a cabo nas universidades e institutos geofísicos, pouco progresso têm conseguido na previsão de sismos atendendo à complexidade destes fenómenos naturais. Houve, no passado, quem tentasse ligar a ocorrência de sismos ao estado do tempo, tendo-se mesmo referido numa publicação de 1757, “Advertência aos Modernos que aprendem o Ofício de Pedreiro e Carpinteiro” (escrita pelo mestre pedreiro Valério Martins de Oliveira) que a “terra treme entre as onze e o meio dia, e mais no verão do que no inverno, por causa das exalações e calor do sol”. Mas, claro, tratava-se de conjeturas sem base científica. No campo científico, muito se tem avançado na identificação e estudo das fontes de geração sísmica, mas pouco no que se refere à sua previsão. A invenção do sismógrafo no século XIX, instrumento que deteta e regista sismos, deu grande ímpeto ao conhecimento dos mecanismos geológicos que despoletam estes fenómenos naturais. Curiosamente o precursor do sismógrafo, o sismoscópio, foi inventado em 132 d.C. pelo astrónomo chinês Zhang Heng, uma réplica do qual se encontra em exposição no Hotel Lisboa, em Macau. O sismo que ocorreu há cinquenta anos foi despoletado numa zona na junção das placas tectónicas Africana e Euroasiática, cerca de duzentos quilómetros a sudoeste de Sagres. A sua magnitude foi de 7,9 na escala de Richter e a intensidade chegou a atingir no território continental português os graus VII, e em alguns locais VIII, na escala de Mercalli modificada. Note-se que a escala de Richter é usada para fazer referência à magnitude dos sismos, ou seja à energia libertada, enquanto que a Escala de Mercalli se aplica para avaliar as consequências dos sismos, isto é, o grau de destruição causada. Assim, por exemplo, um sismo de elevada magnitude pode ter uma classificação muito baixa em termos de Escala de Mercalli numa região desértica, pela simples razão de que nada ou pouco há a destruir. Várias localidades algarvias foram grandemente afetadas, como por exemplo as povoações de Vila do Bispo, Bensafrim, Portimão e Castro Marim, onde muitas casas ficaram danificadas. Em Lagos também houve estragos e o lugar de Fonte de Louzeiros, no Concelho de Silves, ficou praticamente em escombros. O número de vítimas foi indeterminado, constando que houve duas vítimas mortais devido a causas diretas e treze por causas indiretas, como ataques cardíacos. Em Marrocos e em Espanha o sismo também se fez sentir. Próximo do epicentro, no mar, a navegação foi afetada. Segundo o Diário de Lisboa de 1 de março de 1969, o 3º piloto do navio mercante Manuel Alfredo, que navegava próximo do local onde o sismo foi gerado, declarou que “parecia que estávamos a andar por cima de rochas, que o navio subia escadas” e que “se o sismo durasse o dobro teríamos ido para o fundo”. Com magnitudes inferiores, muitos mais sismos ocorrem no nosso território e nas suas vizinhanças, muitas centenas por ano, na ordem do milhar, na sua esmagadora maioria microssismos apenas detetados pelos sismógrafos. No entanto, tal como resulta das leis estatísticas, mais tarde ou mais cedo ocorrerão outros de maior magnitude. Pode-se afirmar que o sismo de 1969 foi um “pequeno” sismo quando comparado com o de 1755 e que sismos com magnitude pelo menos igual a este último ocorrerão no futuro, estando identificadas fontes sísmicas capazes de os gerar. É tudo uma questão de tempo. Não só nos Açores, mas também no Algarve e no vale do Tejo, existem fontes sísmicas locais capazes de gerar sismos que, embora de menor magnitude, ocorrem a muito curta distância das zonas atingidas, pelo que, nessas zonas o grau de destruição será comparavelmente elevado. Sismos como todos os dos Açores e os de Lisboa em 1531, Portimão em 1719, Tavira em 1722, Loulé em 1856 e Benavente em 1909, são exemplos desse outro tipo de sismos que no passado também causaram vítimas e destruição no território nacional. Os eventos sísmicos de grande magnitude estão também ligados à ocorrência de tsunamis, como aquele que, em 1755, os portugueses sentiram em toda a costa algarvia, em grande parte da costa atlântica e em estuários como o do Tejo. É algo que os portugueses também esqueceram ao ocuparem desregradamente algumas zonas costeiras e estuarinas e, em especial, ao aí colocarem algumas infraestruturas vitais. O esquecimento, a rejeição e a negação da evidência científica ou a inação perante essa evidência são atitudes que contribuem para nos conduzir ao desastre. O crer que os sismos com potencial destrutivo são fenómenos do passado, ou o acreditar que nada pode ser feito perante a sua ocorrência, ou ainda confiar que estamos suficientemente protegidos são atitudes conducentes à tragédia. Há que combater estas atitudes e promover a sensibilização dos portugueses, em especial dos que têm capacidade para com as suas decisões e ações mitigar o risco a que estamos expostos. É necessário o Estado investir mais nos serviços de Geofísica para que se possa intensificar a investigação na área da sismologia tendo em vista um melhor conhecimento das falhas potenciadoras de futuros sismos; dar relevo nos curricula das escolas primárias e secundárias à explicação sobre desastres naturais, com especial realce para os sismos; intensificar as campanhas de informação e de sensibilização dos cidadãos acerca dos riscos e das atitudes a tomar, informando-os sobre os procedimentos adequados em caso de sismo; evitar que os cidadãos, ou as instituições, por ações, ou inações, contribuam para aumentar o risco sísmico a que estão expostos; garantir eficazmente o adequado comportamento das infraestruturas que suportam a nossa vida face aos eventos sísmicos. É neste contexto que o Estado tem de aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização do cumprimento da regulamentação antissísmica que existe em Portugal desde há algumas décadas, mas que na prática não é aplicada com rigor. Atendendo a que os sismos não se podem evitar, nem prever, há que atenuar as suas consequências. É que se os sismos são inevitáveis, as tragédias podem ser evitáveis. *O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Tânia dos Santos SexanáliseLeite de coco e mamas [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s riscos da publicidade enganosa são vários. A publicidade oferece-nos imagens do que é bom, mau, adequado ou desejado, isto acrescido com dados falsos, torna os anúncios muito problemáticos. A China, por exemplo, já tem uma longa história de anúncios insensíveis. Ainda bem há pouco tempo, ao anunciar um detergente de roupa, meteu um negro dentro de uma máquina de lavar e ele saiu branco. Agora a história foi diferente, tratou-se de um anúncio de uma popular marca de leite de coco de Hainan que jura que o consumo da sua bebida aumenta o tamanho das ditas redondas e voluptuosas mamas. O anúncio televisivo é qualquer coisa como mulheres a correr pela praia de t-shirts brancas e decotes generosos a balouçar o seu material e afirmando que beber leite de coco todos os dias ajuda a encher os lindos seios. Também afirmam que beber o tal leite torna as curvas excitantes. O que nos vale é que nos dias que correm este tipo de anúncios já é recebido com muita desconfiança e descontentamento. Primeiro, já foram confirmar que não há dados que defendam a tese de uma relação entre o leite de coco e o tamanho das mamas. Segundo, para uma marca tão antiga e popular, as pessoas perguntam-se se é preciso descer tão baixo. Há quem tivesse achado que o anúncio fossem um photoshop pobre e sarcástico. Mas não, este foi um exemplo de má publicidade a continuar a ser má. Para além de que não percebo bem se este esforço de se virar para o público feminino para o fortalecimento da marca foi totalmente irreflectido ou não. Porque duvido que os homens que consomem a bebida (que devem existir) vão querer alterar o tamanho das suas mamas, menos organicamente complexas, mas que não deixam de ser mamas também. A forma como as mensagens são comunicadas importa. Importa porque nos apresentam imagens do que é a mulher. Isto não quer dizer que os meios de comunicação sirvam de prescrição social: com a simplicidade de que assim aparece, assim acontece – não é nada disso. O que vale a pena analisar nestes momentos polémicos e de discussão é de como o conhecimento comum – como por exemplo, ter mamas cada vez maiores é o que as mulheres querem, por isso nossa bebida vai vender disso – é utilizado. Já para não falar no barrete que esta companhia, que parece não ter um departamento de marketing bem organizado, quer meter. Haverão clientes que de facto querem ter mamas maiores e poderão passar meses a beber o leite de coco que nada lhes trará. Nem curvas mais redondas, nem mamas mais cheias, nem o sex-appeal de quem anda com um push-up nas praias de Hainan. Sempre reforçarei a importância que é desconstruir a obsessão (já milenar) do corpo feminino porque é a original fonte de desigualdade. A forma como anúncios fazem uso da objectificação do corpo não é o problema, mas o sintoma. Os corpos femininos são lindos e os corpos masculinos também. Só que é comum levarmos ao extremo o dilema do pudor e libertinagem do corpo da mulher. ‘Parece’ aceitável andar a clamar a sete ventos o quão bom seria se as nossas mamas crescessem com uma vulgar bebida diária quando um decote generoso é ainda mal aceite na China. Quem viveu na China continental saberá que uns ombros e um decote que se querem mostrar encontrarão resistência. Por enquanto, não há leite de coco que nos valha, nem para o seu aumento, nem para mamas mais expostas e felizes.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesSistema Jurídico Integrado I [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o dia 18 do mês passado, o Conselho de Estado da China lançou as “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento de Guangdong-Hong Kong e Macau”. Guangdong, Hong Kong e Macau, incluem Guangzhou, Shenzhen, Zhuhai, Foshan, as Cidades de Huizhou, Dongguan, Zhongshan, Jiangmen, Zhaoqing, a Região Administrativa Especial de Hong Kong e a Região Administrativa Especial de Macau. As Linhas Gerais são compostas por onze capítulos. As quatro maiores cidades, Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e Macau são encaradas como os centros de desenvolvimento, e a cada uma é dado um papel diferente. Hong Kong é o centro internacional a nível financeiro, de exportação, comércio e tráfico aéreo. Precisa de desenvolver as transacções que, a nível internacional, fazem movimentar o renminbi. Deve também aperfeiçoar o funcionamento do Centro Internacional de Gestão de Valores e do Centro de Gestão de Risco, e ainda construir um Centro Internacional de Mediação para a Resolução de Disputas Jurídicas na região Ásia-Pacífico. Desta forma Hong Kong tornar-se-á uma metrópole competitiva a nível internacional. Macau é um centro internacional de turismo e lazer e uma plataforma para a cooperação comercial entre a China e os países e língua portuguesa. Macau será uma base para o intercâmbio e a cooperação, guiado pelos valores da cultura chinesa, mas num ambiente multi-cultural. Guangzhou deverá ser um centro internacional de negócios, desenvolver as competências como centro integrado de transportes, apostar no desenvolvimento nas áreas da ciência e da tecnologia e da cultura, e tornar-se uma metrópole de dimensão internacional. Shenzhen deve focar-se no projecto de se tornar uma cidade moderna e internacional, ser inovadora e conquistar influência a nível global. Quanto a Hong Kong, ressalva-se a necessidade da criação de um Centro Internacional de Mediação para a Resolução de Disputas Jurídicas na região Ásia-Pacífico. Como o nome sugere, Hong Kong deve ter o papel de mediador e árbitro, em casos de litigação ou disputas jurídicas. Guangdong, Hong Kong e Macau têm três sistemas jurídicos diferentes. A China continental, Hong Kong e Macau praticam respectivamente, o sistema jurídico socialista , o sistema da Lei Comum e o da Lei Cívil. O papel de mediador e de árbitro de conflitos reduz despesas, faz poupar tempo e evita burocracias, quando os conflitos são inter-regionais, Mediação, arbitragem e litigação são diferentes aos olhos da lei. Na mediação, ambas as partes decidem escolher um“mediador” para ajudar a resolver o conflito. Se a mediação for bem sucedida, os dois lados terão de assinar um acordo. Dependendo da lei da região, este acordo pode asssumir a forma de contrato, ou de um documento que requer a aprovação do Tribunal. Depois da assinatura do acordo, se uma das partes o violar, a outra parte pode accionar um processo em Tribunal e pode pedir uma indemnização. A grande vantagem da mediação é a sua simplicidade e a oportunidade de poupar tempo e dinheiro. A mediação e a arbitragem têm naturezas similares. Os árbitros são versados em casos “controversos” , e têm habitualmente alguma formação jurídica, embora devam ser especialistas na área em debate. Se, por exemplo, as partes em conflitos pertencerem à área da engenharia, o árbitro deve ter formação nesta área. Embora o árbitro não seja advogado, recebe formação jurídica, que se vai acrescentar à sua área de especialidade, neste caso a engenharia. A grande vantagem da arbitragem é a sua capacidade de globalização. Um acordo feito desta forma é reconhecido internacionalmente, enquanto os acordos efectuados através de um mediador apenas têm efeito a nível local. No entanto, é preciso salientar que, em certas regiões, os acordos efectuados através de arbitragem só têm efeito após terem sido reconhecidos em tribunal. A litigação é outra forma de resolver conflitos. Aqui, o caso é levado a tribunal, e competirá ao juiz a decisão final. Este processo tem a desvantagem de ser moroso e dispendioso. Além disso, a maior parte destes processos só tem efeito legal na sua própria área de jurisdição. As sugestões feitas pela Linhas Gerais para o Desenvolvimento são compreensíveis. Em Hong Kong vigora a Lei Comum, pelo que é fácil de entrar em sintonia com outras regiões que usam o mesmo sistema jurídico. O artigo 84 da Lei Básica de Hong Kong estipula que o Tribunal de Última Instância pode considerar precedentes internacionais como referência, durante um julgamento. Este artigo formula claramente que os precedentes internacionais, não são a lei de Hong Kong, mas os tribunais de Hong Kong têm o direito de os referir. Um dos cinco juizes do Tribunal de Última Instância é um juiz não permanente, contratado pela jurisdição geral da Lei Comum e não pelo Governo de Hong Kong. Neste sentido, a lei de Hong Kong é facilmente compatível com as de outras regiões. Além disso, a lei de Hong Kong está escrita em chinês e em inglês, sendo que, actualmente, o inglês é uma língua que não tem fronteiras. O Governo de Hong Kong assinou vários tratados internacionais com outras regiões. Sejam eles tratados de extradição, ou de cooperação civil para assuntos comerciais, estabelecem uma boa base de intercâmbio jurídico. Desta forma, e neste contexto, as Linhas Gerais para o Desenvolvimento focam-se na maximização de uma das presentes mais valias jurídicas de Hong Kong. Mas isto quererá dizer que a mediação e a arbitragem são processos exclusivos de Hong Kong? Não será o caso. Embora Macau não tenha a mesma estrutura jurídica de Hong Kong, é também uma região administrativa especial. O nosso sistema jurídico difere do da China continental e do de Hong Kong. Um profissional que conheça bem a lei de Macau, pode, em caso de necessidade, servir de árbitro ou mediador na resolução de conflitos jurídicos. Em certa medida, a mediação e a arbitragem de conflitos são soluções para resolver disputas inter-regionais. Desde que haja um bom apoio e boa preparação, Macau será certamente capaz de poder dar a sua contribuição nesta área. Na próxima semana continuaremos a analisar esta matéria. Obrigado.
Amélia Vieira VozesCândido [dropcap style≠‘circle’]V[/dropcap]ivemos agora o instante de Voltaire um pouco de forma inconsciente mas muito próximo da natureza dos factos que lhe deram vida. Nos «Maias» já encontrámos esta personagem, afagada por longas e manifestas rupturas com a manifestação social da sua época, mas a candura era de certa forma um atavismo da opulência de classes sociais que vivendo de forma descontraída nem por isso se sentiram menos enfastiadas, e que no arrabalde a quando das convulsões dos regimes foram descobrindo prazeres novos e simples. Porém, hoje, no gritante estertor do mundo, muitos jovens das sociedades capitalistas experimentam pela primeira vez a derrocada do dogma da sua imperecibilidade e descobrem assim prazeres, também eles novos, e formas de vida para as quais jamais alguém os preparara. Mas também Garrett glosou na sua Joaninha – a dos olhos cândidos – uma pátria que mandava para os autos-de-fé aqueles que lhes apaziguariam os dias do poder das Fúrias. Ora, «Cândido» fora censurado em Portugal dez anos após a sua publicação em 1769 por não ter compreendido bem a necessidade sacrificial de tais práticas e ao ter ficado demonstrado que nem com isso se tivesse impedido um valente tremor de terra. Mas os Cândidos de hoje não serão exactamente aqueles que na orla dos caprichos fechados das suas cidadelas trepavam pelas paredes acima à procura de situações romanescas para desviar o enfado de séculos, os nossos, são bastante menos “cândidos” são cultos, informados, versáteis e cosmopolitas: têm alucinogénios, viajam, transgridem (não se sabe já bem o quê) têm mais festins, cartões, botões, ladrões ao seu dispor e a natureza tornou-os eclécticos. Só que no meio de tudo isto se levanta agora uma alvorada de mau estar generalizado pois que em matéria de riqueza, o dinheiro, esse, seja nosso, ou de outrem, ou de aqueloutro, é agora bem mais volátil e fora dos abrigos das garantias domésticas, daí, a mudança súbita de atitude face a ele. Os nossos Cândidos surgem-nos despojados, grupais, solidários, vegetarianos, ambientalistas e prestes a fazer desmoronar a já insalubre educação burguesa recebida. Nós, educámo-los para outras coisas e ainda bem equipados nos nossos dogmas e desconhecemos agora tudo desta actual jornada. Penso que não perderam o sentido de humor nem a capacidade para nos alarmarmos perante o resultado que displicentemente fomos fabricando. E isso revela o lado impiedoso e programado das suas aparentes canduras: olharmos os factos por ângulos que nunca pensáramos ver, ampliando para níveis exorbitantes a nossa visão de derrocada. Mas a Europa de então não via também com bons olhos uma tal obra fruto da desfaçatez do mundo, a mesma que se blinda hoje de “bem-pensantes” e vai escorregando na sua prática quotidiana para começar a não querer saber destas matérias intrusivas. Já lhe basta a alienação a que chegou e certamente a última coisa que não quer escutar é que uma aflição nuclear ou um efeito da tramóia do clima a desfaça em bocados. Não há signos inocentes, e muito menos olhares desassombrados acerca de realidades difíceis, também é certo que nem a sátira é matéria aguentável num mundo onde se encontram já todos os elementos de uma transfiguração brutal. É que o mal existe e ao segregá-lo pode vir a revelar-se bem pior. E também o pessimismo vai crescendo à medida que o herói se dá conta de tantas vidas para além daquelas do interior das suas muralhas. Por ora, estamos atravessando o rescaldo amplo de todas as teorias, estamos a testar que entre a ideia e a situação há matéria para desenvolver muitas outras. No tempo do nosso herói havia ainda a fantasia de entrar numa Mesquita, talvez em busca do obituário das «Mil e uma Noites»: de que morrem afinal os felizes? E ainda se demoravam na contemplação das raparigas orando, e que os Imãs apenas se encolerizavam por isso, e as consequências da aventura que daí advinha; hoje, os nossos jovens Cândidos apenas sabem que os árabes têm uma religião que os força a eles a ter segurança, sem muito alarido, perante o também estado de terror das forças que os vão protegendo . Não dão importância aos Templos em si, mas, ao que dizem transportar nos casacos o ismaelita invasor. A contemplação da beleza uns dos outros é terra queimada e estranhamente todos capitulam na sua esfera de alienação. – Aos nossos pés dorme uma jiboia que suga impassível uns e outros numa espécie de emboscada olímpica e que insiste em não se mostrar.- Depois da desdita da facilidade, provada, provável, ainda há duas gerações, improvável, dissecam agora as mentes vindouras acerca dos seus destinos tão ameaçados, e se de aventura em aventura um sopro de existência lhes mantém um contínuo movimento, cedo perecerão na vacuidade das voltas restando-lhes apenas um magro e saudável ingrediente: o trabalho. Trabalhar de forma simples, sem grandes sonhos ou perspectivas dado a incerteza das estruturas. E assim começa um ciclo novo levando as mãos e a casa Holística onde cada um já suplantado o instinto territorial, esse atavismo dos velhos sonhadores, começará a nova construção. Cultivar cada um o seu canteiro (onde já vai o Jardim!) da sugestão comum para uma vida possível e simplificar o roteiro do mundo, agora em rede, para não se enlouquecer de vez com a “verdade” de todos. Enquanto isto, espera-se que a ingenuidade não cubra de vez a velha fábula do Jardim do Éden e saibamos que poderemos ser ainda e novamente expulsos pela razão recentemente demonstrada ; que é a de não virmos mais a ser necessários. Mas, e efectivamente, «tudo vai bem no melhor dos mundos possíveis» sabe-se lá o quão bem poderíamos estar se tudo se tivesse desenrolado ainda melhor, e do mal que deixámos de suportar por não ter corrido pior?! Do optimismo, resta a esperança que os nossos Cândidos nos desculpem por durante tanto tempo não termos notado tanta coisa! Eles vão desculpar. Somos umas das últimas espécies Humanas ainda herdeiros dos Filhos de Deus. Também nós neste momento não sabemos bem dos nossos próprios caminhos.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesA rapsódia da “Grande Baía” [dropcap]U[/dropcap]m soldado que não quer ser general, não é um bom soldado. De igual modo, um povo que não tem aspirações, não pode ser pioneiro de reformas. As “Linhas Gerais do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau” foram lançadas a 18 de Fevereiro de 2019. O novo papel de Macau nas Linhas Gerais do Planeamento é tornar-se “uma base de intercâmbio e cooperação que, tendo a cultura chinesa como predominante, promova a coexistência de diversas culturas”. Este papel deve coexistir com a sua condição de Centro Mundial de Turismo e Lazer e de Plataforma de Serviços para a Cooperação Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa. Cada local tem o seu contexto histórico e as suas características ambientais. Macau é a mais pequena das nove cidades e das duas regiões adminstrativas especiais abrangidas pela Grande Baía. Macau também tem a maior densidade populacional e o maior número de carros em circulação. Para ser um verdadeiro Centro Mundial de Turismo e Lazer, Macau precisa, em primeiro lugar, de resolver o problema criado pelo afluxo de turistas, num número que excede largamente a sua capacidade de acolhimento. Quando uma cidade deixa de ser habitável, incapaz de proporcionar emprego e de acolher o turismo em boas condições, muito dificilmente pode ser considerada um centro de lazer. Para que isto volte a ser possível, a cidade terá de reencontrar o espaço necessário para a circulação de transportes e de tráfico rodoviário, e de reduzir o afluxo de turistas para um número comportável. Quanto à sua condição de Plataforma de Serviços para a Cooperação Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, parece que o que está em jogo é mais a questão política do que propriamente a questão económica. Enquanto catalizador da cooperação comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, se se limitar a organizar o Encontro de Empresários para a Cooperação Económica e Comercial da China e os Países de Língua Portuguesa, esse papel não se cumprirá. Se analisarmos a quantidade de pessoas que, actualmente, falam as duas línguas em Macau, verificaremos este número precisa de aumentar urgentemente. É também necessário melhorar o domínio do português junto daqueles que já o falam. Embora o português seja uma das línguas oficiais de Macau, o seu ensino não está tão disseminado como o do inglês, ao nível do ensino não superior. Uma das formas mais eficazes de popularizar o seu uso, será torná-lo objecto de estudo obrigatório ao nível ensino não superior. No Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía, propõe-se que o foco na inovação em ciência e tecnologia seja uma priopridade, que é precisamente uma área em que Macau tem estado a ficar para trás. A realidade actual de Macau passa pela existência de muitas associações e comités, que acarretam inúmeras despesas sem produzirem resultados palpáveis. Nos últimos 20 anos, após a transferência de soberania, além da singular prosperidade da indústria do jogo, a realidade é que existe muito pouco investimento na área da inovação em ciência e tecnologia. O projecto de transformar Macau numa cidade inteligente está ainda numa fase embrionária. Para que se venha a tornar num verdadeiro motor do Desenvolvimento da Grande Baía, Macau tem de apostar nos seus pontos fortes, manter-se afastado das áreas em que não apresenta competências e dedicar-se de forma empenhada e competente à área do turismo e do lazer. Terá de maximizar as suas vantagens únicas, criadas pela indústria do jogo, e melhorar a imagem e as capacidades da cidade, de forma a desenvolver a qualidade da sua oferta turística. Só desta forma poderá acompanhar o ritmo de desenvolvimento de Guangzhou, Shenzhen e de Hong Kong. Para que o plano de desenvolvimento de uma cidade parta da sua própria iniciativa, e não de iniciativas alheias, é necessário que tenha vontade e poder de concretização. Se o plano não puder ser implementado com a força de trabalho local, mas implicar a contratação de especialistas estrangeiros, significa que não foi concebido pela própria cidade. Dos 660.000 habitantes de Macau, mais de 180.000 são estrangeiros não residentes. Esta população não residente criou problemas de acessibilidade, de habitação e de transportes. Estes problemas mostram que Macau está a passar por um processo de desenvolvimento que não é saudável. A prioridade deveria ser apostar no desenvolvimento do capital humano local e não na sua importação, para que Macau possa vir a ser “uma base de intercâmbio e cooperação que, tendo a cultura chinesa como a predominante, promova a coexistência de diversas culturas”. Analisando a parte do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía, que se refere à colaboração entre Macau e Zhuhai, em relação a Hengqin, ficamos com a ideia que pode vir a constituir um motivo de preocupação para as gentes de Macau. Para Macau poder encontrar uma solução para o problema da sua elevada densidade populacional, tem de maximizar a oportunidade de colaboração com Zhuhai no desenvolvimento de Hengqin. Através do Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía, Macau pode tornar Hengqin numa nova área residencial para os seus habitantes. A legislação para governar esta nova área deverá ser apresentada em conjunto pelos Executivos de Zhuhai e de Macau e posteriormente submetida à aprovação do Governo Central. A ideia é transformar a Nova Área de Hengqin numa região especial partilhada por Zhuhai e por Macau. Deng Xiaoping disse que devemos ser ousados e rápidos na acção, quando se trata de implementar reformas. Transformar a Nova Área de Hengqin num distrito satélite de Macau será, para a cidade, a principal mais valia do projecto contido no Planeamento para o Desenvolvimento da Grande Baía.
Hoje Macau VozesPor que razão empresas e famílias precisam da China Por Wei Shang-Jin, Professor de Economia e Finanças na Universidade de Columbia [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] China beneficiará de uma normalização das suas relações comerciais com os Estados Unidos, mas é importante perceber que o mesmo também é válido para os EUA. Quando a gigante americana de tecnologia, Apple, reduziu recentemente a sua previsão de vendas, o CEO Tim Cook apontou o declínio das vendas na China – onde a guerra comercial do Presidente Donald Trump está a exacerbar os efeitos de uma desaceleração da economia – como sendo um importante factor de contribuição. A diminuição do desempenho da Apple destaca a importância do mercado chinês nos resultados de muitas empresas dos EUA – e revela os riscos que o proteccionismo de Trump representa para a economia americana. A verdade é que a Apple vende substancialmente mais iPhones e iPads aos chineses do que as estatísticas de exportação dos EUA sugerem. Da mesma forma, a General Motors vende mais carros na China do que o que está registado nos dados de exportação dos EUA – mais, na verdade, do que nos Estados Unidos e no Canadá juntos. E isso acontece porque essas empresas, como muitas outras, operam na China e vendem directamente aos consumidores chineses. Há muito menos empresas chinesas a vender directamente nos EUA. Como as empresas americanas aumentaram as suas operações na China ao longo do tempo, as estatísticas do comércio bilateral apenas refletem parcialmente a importância do mercado chinês para a economia dos EUA. De 2000 a 2018, as exportações dos EUA para a China dispararam530% –muito mais do que o crescimento cumulativo de 130% das exportações dos EUA para o mundo em geral. Isto foi um resultado directo da considerável e unilateral liberalização comercial que a China exerceu após ingressar na Organização Mundial do Comércio em 2001, inclusive reduzindo a sua taxa aduaneira aplicada de 30% antes da adesão à OMC, para menos de 6% actualmente. Além disso, aproximadamente metade das importações na China estão sujeitas a tarifas zero se a produção for para o mercado mundial. O rápido crescimento do PIB da China impulsionou as importações, mas esse crescimento também foi facilitado pela liberalização do comércio e outras reformas pró-mercado. Nenhum país desmantelou mais barreiras ao comércio ou levou a cabo mais reformas pró-mercado do que a China nas últimas quatro décadas. As reformas orientadas para o mercado, da China, desencadearam uma onda de empreendedorismo e possibilitaram que as empresas do sector privado – tanto nacionais como estrangeiras – prosperassem e, em muitos casos, alcançassem um crescimento mais rápido do que as empresas estatais. Isto contrasta fortemente com a narrativa promovida por alguns, de que a China ignorou em grande parte ou evitou os compromissos que assumiu quando se juntou à OMC. Se isso fosse verdade, a China simplesmente não teria conseguido crescer mais rapidamente do que 95% dos países do mundo, desde 2001. Alguns argumentam que, mesmo que as empresas americanas tenham lucrado com o seu acesso ao mercado chinês, o comércio entre os Estados Unidos e a China prejudica os trabalhadores americanos cujos empregos estão expostos à concorrência de baixos salários dos trabalhadores chineses. Mas a disponibilidade de produtos importados baratos provenientes da China reduz os preços não apenas para os consumidores dos EUA, especialmente famílias de baixo e médio rendimento, mas também para as empresas dos EUA, apoiando a criação de empregos. Quase 40% das importações dos EUA provenientes da China são peças e componentes, e produtos intermédios. A redução de custos que essas importações proporcionam às empresas dos EUA ajudam a alavancar a sua competitividade, permitindo-lhes contratar mais trabalhadores. Segundo a minha investigação realizada com colegas, este efeito de cadeia de fornecimento cria mais empregos do que aqueles que a concorrência directa da China elimina. Enquanto os empregos que se perdem estão concentrados num subconjunto dos sectores de produção, os empregos que se ganham com o comércio com a China estão espalhados por toda a economia, incluindo muitos sectores de serviços modernos. Graças a este efeito de criação de empregos, o comércio dos EUA com a China beneficia 75% dos trabalhadores americanos, mesmo antes de contabilizar o efeito positivo no seu poder de compra e antes de qualquer transferência de rendimentos de vencedores para perdedores. No entanto, muita gente nos EUA continua a concentrar-se unicamente no papel potencial do comércio aberto na fomentação das perdas de emprego. Quando uma empresa dos EUA demite trabalhadores, o comércio com a China é frequentemente responsabilizado. Mas quando uma empresa americana contrata mais trabalhadores, raramente se ouve falar dos produtos chineses mais baratos que tornaram isso possível. Algumas pessoas nos EUA estão a pedir uma dissociação entre as economias dos EUA e da China. Se isso acontecer, as empresas americanas que usam produtos chineses perderiam competitividade em relação às congéneres europeias e japonesas, os trabalhadores que empregam poderiam perder os seus empregos e os padrões de vida das famílias americanas de baixo e médio rendimento sofreriam com a subida dos preços de muitos artigos. Nada disto significa que a China não deveria estar a fazer mudanças. Deveria trabalhar no sentido de reduzir ainda mais as barreiras comerciais, reduzir os subsídios às empresas estatais, aliviar as restrições às empresas estrangeiras que operam no país e fortalecer os direitos de propriedade intelectual. Mas para que o comércio bilateral seja mais justo e mais eficiente, os EUA também precisam de fazer algumas mudanças. Por exemplo, deveriam reduzir as tarifas elevadas (geralmente na faixa dos 20%) nos têxteis e vestuário, uma categoria importante das exportações chinesas. E deveriam reformar o seu regime antidumping (fundindo-o com o regime antitrust), e mudar regras injustas que, ao imputarem os custos de produção de outros países de custos mais elevados à produção chinesa, colocam os exportadores chineses em desvantagem artificial. Tanto os EUA como a China ganham com a normalização das relações comerciais bilaterais. Embora as reformas políticas sejam difíceis em qualquer lugar, devido a pressões políticas e interesses particulares, uma estratégia recíproca e equilibrada pode ser a chave para o progresso sustentável em ambos os países. A questão é se os líderes terão a coragem e a sabedoria necessárias para colocarem as relações novamente no caminho certo. © Project Syndicate
Michel Reis VozesMorreu Sequeira Costa, um dos maiores pianistas portugueses [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] pianista e pedagogo português José Carlos Sequeira Costa faleceu no passado dia 21 de Fevereiro em Olathe, Kansas City, aos 89 anos de idade. O último pianista português de uma linhagem que remontava ao Romantismo, fundamentada não só no estudo profundo das obras e da técnica pianística, mas também no conhecimento do contexto social, cultural, artístico e político em que os compositores viveram, Sequeira Costa foi, no seu tempo áureo, o maior pianista português, gozando de grande reconhecimento internacional e de um repertório muito vasto. Desde a sua infância, passada em África, onde nasceu, mais precisamente em Luanda no dia 18 de Julho de 1929, Sequeira Costa recebeu formação musical ao mais alto nível. O seu primeiro mestre, o pianista português José Vianna da Motta, com quem começou a estudar aos 8 anos de idade após mudar-se para Lisboa, foi um dos últimos alunos do eminente Franz Liszt e ainda do famoso maestro, compositor e virtuoso do piano Hans von Bülow. Transportando consigo esta importante herança musical, Sequeira Costa expandiu o seu conhecimento estilístico, estudando as escolas alemã e francesa do piano com Mark Hamburg, também aluno de Liszt, Edwin Fischer, Marguerite Long e Jacques Février. Desta forma, não é de estranhar que as suas interpretações do repertório romântico, nomeadamente de Chopin e Rachmaninov, sejam frequentemente descritas como verdadeiramente autênticas. Ao longo de uma extraordinária carreira que percorreu mais de seis décadas, o alcance expansivo da variação no seu timbre e da coloração concederam-lhe o primado da autoridade em qualquer estilo, durante as quais dominou as audiências pelas qualidades do seu sedoso fraseado e pelo seu som cristalino. Em 1951, Sequeira Costa recebeu o Grand Prix de Paris no prestigiado Concurso Internacional Marguerite Long. Desde então, desempenhou um papel de relevo nos círculos pianísticos internacionais, tendo fundado em Lisboa em 1957, aos 27 anos de idade, o Concurso Internacional de Piano Vianna da Motta. No ano seguinte, foi convidado por Dmitri Shostakovitch para integrar o júri do 1º Concurso Internacional Tchaikovsky, em Moscovo, ao lado de “monstros” como Sviatoslav Richter, Dmitri Kabalevsky, Aram Khachaturian e Emil Gilels, tendo regressado sete vezes a este prestigiado concurso, do qual chegou a ser Vice-presidente. Como o mais jovem membro do júri na história da competição, era apenas alguns anos mais velho do que o famoso vencedor do primeiro certame, o recentemente falecido pianista americano Van Cliburn. A 17.a e última edição do Concurso Internacional Vianna da Motta, a que presidiu, teve lugar em Lisboa no Verão de 2010. A 12.ª e 13.ª edições deste Concurso realizaram-se em Macau em 1997 e 1999, respectivamente. O concurso tinha uma exigência enorme, o que fez com que várias edições não tivessem um primeiro classificado. Sequeira Costa estabeleceu também amizades com grandes pianistas internacionais, tais como Arturo Benedetti Michelangeli, Sviatoslav Richter, Heinrich Neuhaus e Emil Gilels. Apresentou-se em palco com os célebres violinistas Henryk Szeryng, Itzhak Perlman, Elmar Oliveira, Pavel Kogan, Jean Pierre Wallez e Igor Oistrach, com o violoncelista Janos Starker e com os maestros Paul Kletzki, Joseph Keilberth, Tibor Pesek, Eduardo Mata, Christopher Seaman, David Zinman, Walter Susskind e Maxim Shostakovitch, entre muitos outros. Apresentou-se com todas as orquestras da BBC, London Symphony Orchestra, Royal Philharmonic Orchestra, Philharmonia Orchestra, Orquestra Filarmónica de Moscovo, Oquestra Filarmónica de Leningrado, Sinfónica de Praga, Bamberger Symphoniker, Filarmónica do Japão, Metropolitana de Tóquio, Sydney Symphony Orchestra e Orquestra Gulbenkian, entre outras. Em 1976, vendo com amargura a impossibilidade de uma boa formação ou o desenvolvimento de uma carreira em Portugal e conhecendo bem as lacunas que o país sentia na segunda metade do século passado, resolve partir e aceitar a cátedra “Cordelia Brown Murphy Distinguished Professor of Piano” na Universidade do Kansas, nos Estados Unidos da América, tendo vários dos seus alunos, entre os quais se contam os pianistas portugueses Pedro Burmester e Artur Pizarro, recebido primeiros prémios em concursos internacionais de piano. As suas aparições em Portugal passaram a resumir-se praticamente à temporada de música da Gulbenkian, a recitais esporádicos no Orpheon Portuense e no Círculo de Cultura Musical, aos Cursos de Interpretação do Estoril e ao Festival Internacional da Póvoa de Varzim, o qual fundou e ao qual presidiu, e que no ano passado assinalou a sua 40ª edição. A relação de Sequeira Costa com Macau remonta a 1953, ano em que deu dois recitais no Teatro Dom Pedro V, a convite de um membro destacado da elite macaense da altura, o Dr. Pedro José Lobo, um importante empresário, político, filantropo, funcionário público, músico, dirigente associativo e dinamizador cultural de Macau, de quem o pianista foi muito amigo. Em 1980, regressou ao território com a Orquestra Gulbenkian, como solista, com a qual tocou o Concerto para Piano e Orquestra N.o 1 em Dó Maior, op. 15, de Beethoven. Na mesma ocasião, apresentou-se também com a Orquestra Gulbenkian em Hong Kong. Em 1995, interpretou os cinco concertos para piano e orquestra de Beethoven com a Orquestra Sinfónica de Xangai e a Orquestra Filarmónica de Hong Kong no IX Festival Internacional de Música de Macau. O pianista fez ainda amizade no território com o renomeado músico e compositor P. Áureo de Castro, fundador e director da Academia de Música D. Pio X e da Orquestra de Câmara de Macau. A sua última actuação no território ocorreu em 2013 por proposta do autor deste artigo à Casa de Portugal em Macau, tendo aqui realizado um recital intitulado “O Regresso do Mestre”, por ocasião do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas e das comemorações dos 500 Anos do Encontro Luso-Chinês, com o patrocínio da Fundação Macau, Hotel Grand Lapa Macau, Oulala Flower, Xcessu Lda. e em parceria com o Consulado Geral de Portugal em Macau e Hong Kong e o Instituto Português do Oriente, recital no qual interpretou brilhantemente, aos 83 anos de idade, obras de Bach, Beethoven, Vianna da Motta, Áureo de Castro e Chopin, entre outras. Orientou ainda uma série de master classes na Hong Kong Academy for the Performing Arts. Nos últimos vinte anos da sua vida, continuou a realizar digressões e a actuar nos mais importantes palcos internacionais, a orientar cursos de aperfeiçoamento e a integrar os júris de prestigiados concursos internacionais, como Chopin, Rubinstein, Leeds, Marguerite Long, e Montreal. Em Junho de 2005, fez parte do júri do 1.º Concurso Internacional Sviatoslav Richter, que teve lugar em Moscovo, pianista do qual foi amigo pessoal desde 1958 e a quem convidou a visitar Portugal, pela primeira vez, em 1969. A discografia de Sequeira Costa inclui a música para piano solo de Ravel, Chopin, Schumann, Albéniz, Bach/Busoni, Vianna da Motta e Rachmaninov e um CD dedicado a uma selecção de 23 encores, intitulado A Musical Snuffbox, na editora Camerata. Gravou também as obras completas para piano e orquestra de Schumann, Rachmaninov e Chopin e concluiu em 2006, em Londres, as gravações integrais das Sonatas para Piano de Beethoven, em 10 volumes (VMF Records). Em 2013, a editora inglesa Claudio Records lançou as suas gravações da integral das Sonatas para Piano de Beethoven em 10 volumes, assim como da integral dos concertos para piano e da Rapsódia Sobre Um Tema de Paganini de Rachmaninov. No dia seguinte ao seu falecimento, a Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Isabel Mota, afirmou em comunicado o seguinte: “A morte de José Carlos Sequeira Costa representa a perda de um dos maiores intérpretes musicais portugueses do século XX e, no momento da sua morte, a Fundação Calouste Gulbenkian presta sentida homenagem a um grande artista e a um colaborador fundamental na história da intervenção da instituição no campo das Artes”. Sequeira Costa actuou no Grande Auditório da Fundação pela última vez nos dias 7 e 8 de Abril de 2011, interpretando o Concerto para Piano e Orquestra nº 1, em Fá sustenido menor, op. 1, de Sergei Rachmaninov, com a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção da maestrina Joana Carneiro. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa nota publicada no site da presidência, refere que “Sequeira Costa será lembrado certamente como um dos maiores pianistas clássicos de Portugal e pela forma como inspirou gerações de tantos jovens músicos, alunos, ouvintes, espectadores, apaixonados pela música clássica e rendidos ao seu raríssimo talento”. Contactado pelo jornal Observador, o maestro António Victorino de Almeida considera que Sequeira Costa “faz parte dos melhores pianistas do século XX e XXI a nível mundial”, destacando ainda o facto de ter “tocado até muito tarde”. Para Victorino de Almeida, “a música de Sequeira Costa não tem décadas nem séculos. Ele é uma figura histórica”, o que o levou a passar vários anos fora de Portugal, “porque nunca poderia estar no mesmo país graças à dimensão que atingiu. Sequeira Costa passou muito tempo fora, não pelas dificuldades do país, mas pela dimensão artística, que determinou que estivesse muito tempo em viagem, na sequência dos convites que recebeu de grandes universidades e escolas de música mundiais. É um pianista de grande carreira lá fora, mas também em Portugal”, conclui o maestro. Sequeira Costa, inegavelmente um dos maiores vultos portugueses do piano, conferia a cada actuação um vasto leque de timbres e um virtuosismo espantoso, mas também uma sensibilidade aos desejos do compositor, raramente conseguida por uma nova geração de virtuosos. Estas características, aliadas ao seu fraseado sedoso e tom cristalino, tornaram-no uma autêntica lenda do piano. Não restam dúvidas que o mundo ficou mais pobre com o seu desaparecimento.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesA política da violência doméstica [dropcap]E[/dropcap]m Macau soubemos da triste história da Lao Mong Ieng e do seu estado de saúde grave. Em Portugal, desde Janeiro, já morreram 10 mulheres às mãos da violência doméstica. As agressões e mortes de mulheres, homens e crianças poderiam ser evitadas se as nossas políticas fossem um pouco mais progressivas. Parece-me claro reforçar que o problema ainda precisa de mais e melhores respostas sociais, políticas e judiciais. O primeiro problema encontrado para resoluções felizes é o deste forçoso encontro entre a esfera privada e a pública. Em que a lei entra na nossa casa e mete-se no meio do que é um lugar de conforto e conflito. Um paradoxo como tantos outros que vivemos que torna a violência doméstica um assunto extremamente difícil de ser discutido fora de casa. Às vezes é necessário meter a colher, ou é necessário relembrar que não temos que seguir a pessoa que casámos, seja ele uma galinha ou um cão – de acordo com o chengyu chinês 嫁鸡随鸡,嫁狗随狗. Mas mesmo que seja possível ultrapassar esta dificuldade que muitas vezes está culturalmente prescrita na nossa maneira de ser, as coisas continuam a não correr bem. As estatísticas mostram-nos que ainda falhamos às pessoas que são apanhadas nesta escalada de violência. Não é de todo incomum que as mulheres que morrem às mãos dos seus maridos-agressores terem já sido sinalizadas como vítimas, como aconteceu em Portugal. Este facto assustador mostra que o sistema pode falhar – e está a falhar. Claro que poderíamos focarmo-nos nas condições micro-ecológicas de onde a violência se desenvolve, como numa possível doença mental do agressor, por exemplo. Mas dada a complexidade do fenómeno, não podemos parar de exigir melhores soluções sociais também. Porque mesmo que exista um enquadramento legal para prevenir e combater a violência doméstica, uma primeira e recente abordagem legal, como é o caso de Macau com uma lei de 2016, nunca será perfeita. A lei precisa de ser constantemente analisada para que não contribua para aquilo que devia prevenir em primeiro lugar. A previsão dos legalistas é que a lei em Macau será alterada de três em três anos. Uma estimativa muito optimista e ingénua, como se assumisse simplicidade do problema. Também podemos ir mais além e propor um exercício mais difícil: a conceptualização de uma política de maior envolvimento das comunidades que são mais afectadas. Nestas questões sensíveis como a violência doméstica ouvem-se poucos especialistas no terreno pela fraca crença de que agressores e vítimas são fáceis de identificar e de prever. Enganam-se ao criar uma política preta e branca que não tem em conta as gradações de cinzento que tão frequentemente caracteriza a violência. Esta seria uma política onde ouvíssemos atentamente as queixas, as dinâmicas e as representações da violência doméstica para que as leis se desenvolvessem ao ritmo das sociedades e dos novos desafios. Porque só assim é que podemos romper as amarras que o preconceito nos prende. Uma política que concedesse poderes críticos e de escrutínio institucional para melhor perceber como é que o sistema (e as pessoas que o constituem) falha. Porque a violência doméstica não é só um produto de agressores, mas um produto de sociedades e sistemas que ainda não conseguem identificar, prevenir e resolver a violência que pode viver em casa.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesTratado de extradição II [dropcap]A[/dropcap]semana passada começámos a analisar a proposta do Gabinete de Segurança do Governo de Hong Kong ao Conselho Legislativo, no sentido de ser criada uma emenda à Ordenança de Assistência Mútua para Assuntos Criminais e também à legislação que regula a situação de criminosos internacionais em fuga. Estas medidas foram desencadeadas pelo homicídio cometido em Taiwan. As emendas são necessárias porque, sem base legal, Hong Kong não pode negociar a extradição em caso de crimes fora das suas fronteiras. Como a Ordenança de Assistência Mútua para Assuntos Criminais e a Ordenança para Criminosos em Fuga não são aplicáveis na China continental, nem em Macau ou Taiwan, o suspeito da morte da jovem Pan Xiaoying não pôde ser extraditado para ser julgado em Taiwan. As emendas propostas sugerem que o Chefe do Executivo pode vir a emitir um certificado que autorize o pedido de detenção provisória. Seguidamente será solicitada ao Tribunal a emissão de um mandato de prisão preventiva. O Tribunal terá de realizar uma audiência e depois tomará a decisão final. O certificado serve apenas para iniciar o processo, mas não tem poder de extradição. O pedido de extradição terá de ser feito pelo Tribunal. O juiz terá de rever o caso cuidadosamente e verificar se todos os requisitos estão presentes. Se as emendas propostas pelo Gabinete de Segurança passarem no Conselho Legislativo, entrará em vigor a assistência mútua e a ordenança para criminosos em fuga entre Hong Kong, a China continental, Macau e Taiwan. Esta medida estará de acordo com o espírito do artigo 95 da Lei Básica de Hong Kong. Ainda não se sabe quando é que a revisão da lei entrará em vigor, mas é necessário fazê-lo o mais rapidamente possível. O suspeito da morte da jovem Pan Xiaoying foi acusado de roubo e de lavagem de dinheiro em Hong Kong. Se for condenado por estes crimes, receberá uma pena de três anos, no máximo. Como já está em prisão preventiva há cerca de um ano, sairá pouco depois do julgamento. Se esta emenda não entrar em vigor ainda este ano, vai ser mais difícil detê-lo depois de ter sido libertado. Esta revisão da lei não se vai reflectir apenas em Hong Kong, também vai ter impacto em Macau e Taiwan. Taiwan aprovou a Lei de Assistência Jurídica Mútua Internacional em 2018, que prevê a colaboração jurídica entre Taiwan, China, Hong Kong, Macau e a comunidade internacional. Contudo, esta assistência mútua limita-se à troca de provas, não incluí a extradição de suspeitos. Se a revisão da lei for bem sucedida, Hong Kong e Taiwan podem extraditar entre si suspeitos em fuga e condenados. Se Taiwan também proceder à revisão da sua lei, os criminosos em fuga deixarão de poder esconder-se quer num lado quer noutro. Estamos apenas no início deste processo. Os conteúdos propostos para revisão vão ser debatidos e, possivelmente alterados, no Conselho Legislativo. Até agora, tem existido um vazio ao nível da cooperação judicial entre Hong Kong e Taiwan, na verdade, muitos suspeitos à espera de julgamento ou já condenados em Hong Kong, fugiram para Taiwan. É possível que o Conselho Legislativo venha a solicitar que as emendas tenham efeito retroactivo. Se isso vier a acontecer, a lei não terá apenas efeito em casos futuros, mas também em casos passados. Os criminosos que fugiram para Taiwan poderão vir a ser extraditados para Hong Kong. Ao abrigo do mesmo protocolo, o Governo de Macau pode emitir pedidos de extradição de suspeitos que aguardem julgamento no território, ou de condenados, que tenham fugido para Hong Kong, após a entrada em vigor da revisão da lei. Uma das bases legais para os pedidos de extradição é o artigo 93 da Lei Básica de Macau: “A Região Administrativa Especial de Macau pode, após consulta dos órgãos legais de outras partes do país, conduzir contactos judiciais e prestar assistência mútua de acordo com a lei.” O Artigo 93 da Lei Básica de Macau é uma das bases legais para o pedido de extradição de criminosos fugidos para Hong Kong. É também a base legal para a promulgação de leis de extradição e a base legal da extradição em si mesma. Se as emendas propostas pelo Gabinete de Segurança passarem no Conselho Legislativo, quem tenha cometido crimes em Taiwan e na China, já não pode fugir para Hong Kong. A China, Hong Kong, Macau e Taiwan deixarão de ser paraísos para criminosos que tentam fugir às suas responsabilidades, o que até aqui era possível devido a leis diferentes e diferentes sistemas jurídicos.
João Luz VozesTalento [dropcap style≠‘circle’]C[/dropcap]omo encontrar um unicórnio a cavalgar pelas ruas dos Iao Hon. Em Macau, terra mitológica de alegorias e quimeras, criou-se uma lenda fantástica em torno da figura do talento e da sua gambozínica busca. O conceito baseia-se na aspiração idiota trazida dos confins egomaníacos da reality tv, essa quase religião que professa o Evangelho de Narciso, essa umbilical noção de que todos somos especiais, que ninguém é banal, que todos temos uma aptidão fantástica só pelo simples motivo de estarmos vivos. Todos temos a natural inclinação para superar o outro todo que não somos numa área ainda por descobrir. Uma preposição impossível e contraditória, mas adiante. O mundo é uma carnuda maçã pronta para ser mordida com soberba e nós somos o somatório de caninos e incisivos dotados de alienáveis direitos à trinca. Mas tomando agora a questão por inteiro. Por um lado, a prioridade máxima de Macau é formar talentos locais. Pelo menos, é o que diz quem manda. O problema começa na formação, porque aí são necessários quadros superiores de fora para delapidar esse diamante em bruto que são os talentos locais, demasiado perfeitos para terem consciência da sua perfeição. Como tal, é tragicamente necessário importar talentos externos. Os problemas adensam-se neste ponto devido à aversão a estrangeiros evidenciada por aqueles que estão cá há uma ou duas gerações. Nativismo light, com raízes ao descoberto. Dessa forma, e de modo a encontrar um equilíbrio nesta equação de política psiquiátrica, tenta-se atrair talentos repelindo-os previamente. Passo a explicar esta engenhosa lógica. Ao mesmo tempo que se procuram pessoas qualificadas de fora, fazem-se os possíveis para limitar essa importação. Exigem-se limites o número talentos importados e ao tempo que podem permanecer no território. Perde-se em eficácia e ganha-se em ironia. Importa sublinhar que estamos a falar do centro internacional de coiso e tal e da plataforma para não sei quê. Uma cidade governada por luminárias que, por certo, já viajaram e apreenderam conceitos tais como: não comer, ou meter na boca, animais com cores fluorescentes, não enfiar os dedos nas tomadas de electricidade, ou que cidades vibrantes e cosmopolitas, que vingam em termos socioeconómicos, são, sem excepção, abertas ao exterior e à diversidade, não são temerosas quanto à competitividade, muito pelo contrário, aceitam a competição como imperativo essencial à excelência. Esta é a minha interpretação das coisas, uma visão enviesada e desprovida de talento, carne fraca para o canhão de Simon Cowell. Mas agora permitam-me o desabafo libertador. Eu não tenho qualquer tipo de talento, não sou especial. Sou a expressão mais ordinária do ser mediano, limito-me a cumprir as minhas funções o melhor que posso, procuro melhorar a cada dia e a corrigir as falhas que me constituem. Repitam comigo: EU NÃO SOU ESPECIAL! É óptimo, catártico, um grito primordial que expressa a posição infinitesimal que ocupamos neste universo de elementos e forças que se estão a cagar para nós. Libertem-se das amarras desse mudo de espelhos, parem com vãs tentativas de mascarar imperfeições com ideais inatingíveis, infantis, destinadas a criar privilégios infundados e egos frágeis. Para bem dos poucos potenciais talentos. Nem todos atletas merecem ganhar a medalha de ouro, isto sob pena de a medalha perder todo o valor e simbolismo. Urge salvar o que resta dos conceitos de vitória e mérito, para que signifiquem algo, muitos vão ter de perder. Lamento, a vida é assim, dura e implacável, indiferente ao orgulho, adversa ao pedantismo. Só quando nos libertarmos desta amarra psico-política poderemos viver na realidade. Raramente teremos o privilégio de avistar unicórnios fantásticos a cavalgar livres pelas ruas do Iao Hon. Receio que com a mentalidade reinante, essas criaturas únicas sejam abatidas pela virulência do tribalismo de dois dígitos de QI, ou atropelados por um taxista com a cabeça cheia de gelo.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesOs resíduos orgânicos e o desperdício alimentar “With shortages, volatile prices and nearly one billion people hungry, the world has a food problem-or thinks it does. Farmers, manufacturers, supermarkets and consumers in North America and Europe discard up to half of their food-enough to feed all the world’s hungry at least three times over. Forests are destroyed and nearly one tenth of the West’s greenhouse gas emissions are released growing food that will never be eaten. While affluent nations throw away food through neglect, in the developing world crops rot because farmers lack the means to process, store and transport them to market.” Waste: Uncovering the Global Food Scandal Tristram Stuart [dropcap]A[/dropcap]credita-se que o acúmulo de resíduos orgânicos sólidos esteja a atingir níveis críticos em quase todas as regiões do mundo. Os resíduos orgânicos precisam de ser geridos de forma sustentável para evitar o esgotamento dos recursos naturais, minimizar os riscos para a saúde humana, reduzir os custos ambientais e manter um equilíbrio geral no ecossistema. Embora haja uma enorme variação anual na composição e nas características, dependendo da fonte de resíduos produzidos, a fracção de resíduos orgânicos biodegradáveis, incluindo resíduos alimentares, é relativamente alta no fluxo de resíduos dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. A grande maioria desses resíduos provenientes dos alimentos acaba em um aterro sem qualquer reciclagem. Verifica-se que uma grande parte da emissão total de “gases de efeito estufa (GEE)” é obtida na cadeia de fornecimento de alimentos. Os países no âmbito das alterações climáticas necessitam de desempenhar acções no cumprimento das metas nacionais de redução de emissões de GEE. A Directiva 1999/31/CE do Conselho, de 26 de Abril de 1999 relativa à “Deposição de Resíduos em Aterros da União Europeia (UE)”, também tem um objectivo definido para a redução de resíduos biodegradáveis que são depositados em aterro. A redução das emissões de GEE para todos os sectores de emissão de carbono, incluindo a gestão de resíduos, é uma necessidade e não uma escolha, porque as alocações de capital dos governos estão vinculadas à sua capacidade de redução de carbono. A Comissão Europeia, a 2 de Julho de 2014, adoptou uma proposta legislativa para rever os objectivos relacionados com os resíduos contidos na “Directiva de Deposição de Resíduos em Aterros”, bem como os objectivos de reciclagem e outros relacionados com resíduos na Directiva 2008/98/CE relativa aos resíduos e na Directiva 94/62/CE relativa às embalagens e resíduos de embalagens. A proposta visou a eliminação progressiva da deposição em aterro até 2025 de resíduos recicláveis (incluindo plásticos, papel, metais, vidro e bio-resíduos) em aterros de resíduos não perigosos, o que corresponde a uma taxa máxima de deposição em aterro de 25 por cento. Atendendo a problemas associados à deposição em aterro e ao aumento das preocupações públicas sobre a degradação da qualidade ambiental, a reciclagem de resíduos orgânicos incluindo resíduos alimentares para produzir bioenergia, fertilizantes através de compostagem e/ou digestão anaeróbica (DA) estão a tornar-se economicamente mais viáveis. A procura mundial de matérias-primas está a enfrentar um aumento exponencial desde a explosão económica registada no cenário do pós-guerra. A energia e as indústrias transformadoras dependem estritamente do emprego de recursos não renováveis nos processos de transformação e produção, contribuindo para a melhoria das emissões de GEE na atmosfera e para a perda de capital natural. É com o objectivo de aumentar a preservação ambiental em termos de biodiversidade e acesso a matérias-primas, que os estudos dos impactos ambientais causados pelos diversos sectores das economias nacionais em termos de produção de resíduos, contribui para examinar os benefícios da abordagem da economia circular e para a promoção de práticas de simbiose industrial, com base na colaboração e cooperação horizontais. Assim, o desperdício de uma empresa pode tornar-se matéria-prima secundária para outras empresas que operam no mesmo ou em diferentes sectores, implementando a integração territorial e as redes no sistema industrial. Existem diversos métodos que são actualmente aplicados no tratamento de diferentes resíduos orgânicos sólidos, mais comummente, através do metabolismo microbiano anaeróbico e como em todos os processos biológicos, as condições ambientais ideais são essenciais para o bom funcionamento da digestão anaeróbica. Os processos metabólicos das arqueias arqueológicas dos compostos orgânicos dependem de vários parâmetros que devem ser considerados e cuidadosamente controlados na prática e curiosamente, os requisitos ambientais de bactérias fermentativas acidogénicas diferem dos requisitos da arqueia metanogénica. Desde que todas as etapas do processo de degradação tenham que ocorrer em um único reagente (processo de uma fase única), os requisitos dos arqueamentos metanogénicos devem ser considerados com prioridade. Os requisitos incluem maior tempo de regeneração, crescimento muito mais lento e maior sensibilidade às condições ambientais do que outras bactérias presentes na cultura mista. É de considerar o papel de diferentes resíduos orgânicos, bem como o processo metabólico de digestão anaeróbia de resíduos por arqueias na produção de biogás, que é considerado uma das opções mais viáveis para a reciclagem da fracção orgânica de resíduos sólidos. É importante considerar também uma visão geral da produção de digestibilidade e de energia (biogás) de uma variedade de substratos. O envolvimento de uma multiplicidade de microrganismos e o papel desempenhado pelos metanogénicos, bem como os efeitos de co-substratos e factores ambientais na eficiência do processo, tem sido abordado de forma abrangente. Os estudos recentes indicam que a digestão anaeróbica pode ser uma opção atraente para a conversão de resíduos orgânicos sólidos brutos em produtos úteis, como o biogás e outros compostos ricos em energia, que podem desempenhar um papel crítico no atendimento das crescentes exigências energéticas do mundo no futuro. A crescente urbanização e industrialização resultaram em um aumento dramático no volume de resíduos gerados em todo o mundo. O tratamento de efluentes resulta em grandes quantidades de lodo de esgotos tratados pelos municípios ou biosólidos. O lodo tem sido tradicionalmente descartado por meio de despejo oceânico, aterro ou incineração. Mas, devido às regulamentações ambientais cada vez mais rigorosas, esses métodos de disposição estão a ser eliminados. O aumento das populações em todo o mundo, a produção de biosólidos provavelmente continuará a aumentar em um futuro próximo. O descarte seguro de biosólidos é um grande desafio ambiental. A aplicação terrestre de biosólidos é amplamente considerada a melhor opção de descarte porque oferece a possibilidade de reciclagem de nutrientes vegetais, fornece material orgânico, melhora as propriedades químicas e físicas do solo e aumenta a produtividade das culturas. O uso de biosólidos é cada vez mais considerado como uma solução viável e técnica para reverter terras degradadas e menos produtivas e promover o restabelecimento de uma cobertura vegetal. No entanto, os benefícios devem ser cuidadosamente ponderados contra potenciais efeitos deletérios, relacionados com a fonte não pontual de poluição. Os riscos ambientais incluem o aumento da entrada de poluição potencial de oligoelementos tóxicos (PTE na sigla inglesa), a lixiviação de nitrogénio na drenagem e águas subterrâneas, contaminação de águas superficiais com fósforo solúvel, particulado biodisponível, atracção de vectores e redução da qualidade do ar por emissão de compostos orgânicos voláteis, entre outros. A maioria dos países regula as concentrações de “Toneladas Equivalentes de Petróleo (TEP)” e patógenos nos biosólidos, determinando as taxas máximas de concentrações permissíveis no solo para o manuseamento de poluentes. As preocupações associadas a efeitos ambientais adversos devido à aplicação de biosólidos no solo continuam. O desperdício de alimentos é uma preocupação importante devido aos impactos ambientais e económicos adversos e em todo o mundo, a comida é um dos impulsores mais importantes das pressões ambientais. As emissões de GEE durante o ciclo de vida dos alimentos, incluindo agricultura, fabricação, embalagem, distribuição, retalho, transporte para casa, armazenamento, preparação em casa e descarte de resíduos, são o principal impacto ambiental indesejável do desperdício de alimentos. Além das emissões de GEE, há outros impactos ambientais prejudiciais e questões de recursos relacionados ao desperdício de alimentos, incluindo o uso da terra e da água, eutrofização de corpos de água, poluição, esgotamento dos solos e mudanças subsequentes de clima e habitat. Os alimentos e bebidas na UE são responsáveis por 17 por cento das emissões directas de GEE e 28 por cento do uso de recursos materiais. As emissões de GEE associados a todos os resíduos alimentares na UE são de muitas dezenas de milhões de toneladas métricas de CO2 por ano, sendo que cerca de 0,25 por cento das emissões de CO2, ocorrem como resultado do desperdício de alimentos depostos por meio dos esgotos. É de entender que esses números incluem contribuições da produção, fabricação e distribuição de alimentos e bebidas, mas não incluem emissões relacionadas à preparação e consumo dos alimentos. A cada ano, a gestão de resíduos alimentares gera um alto custo com um significativo desperdício de dinheiro associado à manutenção de aterros sanitários, custos de transporte para o aterro e das operações nas estações de tratamento de resíduos alimentares e em todo o mundo, cerca de mais de 4 mil milhões de toneladas métricas de resíduos alimentares são produzidas por ano, sendo que 50 por cento são desperdiçadas, o que requer considerações ambientais significativas sobre opções sustentáveis de reciclagem e manuseamento. É de prever que a população mundial atinja nove mil milhões e quinhentos milhões de pessoas em 2075, pelo que a humanidade precisa de garantir a existência de recursos alimentares disponíveis para alimentar todas essas pessoas, mas com as práticas actuais de desperdiçar até 50 por cento de todos os alimentos produzidos, os engenheiros ambientais precisam de agir de imediato e promover formas sustentáveis de reduzir os resíduos do local da colheita ao supermercado e consumidor. Os engenheiros ambientais, cientistas, agricultores e outros técnicos têm o conhecimento, ferramentas e sistemas que ajudarão a alcançar aumentos de produtividade. No entanto, a pressão crescerá em recursos finitos de terra, energia e água. Embora o aumento da produtividade nos países famintos seja uma resposta apropriada à emergente crise alimentar, para garantir que se possa atender de forma sustentável às necessidades alimentares de mais de três mil milhões de pessoas no planeta até 2075, terão que ser tomadas iniciativas para reduzir a quantidade substancial de alimentos e comida desperdiçada anualmente em todo o mundo. A capacidade para fornecer entre 60 por cento a 100 por cento mais de alimentos, eliminando perdas e, ao mesmo tempo, libertando recursos de terra, energia e água para outros usos, é uma oportunidade que não deve ser ignorada. Os factores que afectam os resíduos estão relacionados à infra-estrutura projectada, actividade económica, formação vocacional, transferência de conhecimento, cultura e política. A “Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO na sigla inglesa)” deve trabalhar com a comunidade internacional de engenharia para garantir que os governos dos países desenvolvidos implementem programas que transfiram conhecimentos de engenharia, “know-how de design” e tecnologia adequada para os países em desenvolvimento. Tal ajudará a melhorar a gestão do produto na colheita e os estágios imediatos de pós-colheita da produção de alimentos. Os governos dos países em rápido desenvolvimento devem incorporar o pensamento sobre a minimização de resíduos na infra-estrutura de transporte e instalações de armazenamento que planeiam, projectam e constroem. Os governos dos países desenvolvidos devem elaborar e implementar políticas que modifiquem as expectativas dos consumidores e que devem desencorajar os retalhistas de práticas de desperdício que levam à rejeição de alimentos com base em características cosméticas e perdas em casa devido à compra excessiva pelos consumidores.
Hoje Macau VozesA América tem de enfrentar a realidade da China P.H. Yu, académico da Universidade de Pequim [dropcap]O[/dropcap] acordo de Buenos Aires no passado mês de Dezembro entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e o seu homólogo chinês, Xi Jinping, levou muitos a assumir que a guerra comercial entre os dois países não tardaria a terminar. Embora esse optimismo seja descabido, também são descabidos os receios de um colapso económico global causado por uma ruptura nas relações EUA-China. Não existem dúvidas de que continuarão a existir escaramuças bilaterais frequentes, como se viu com a detenção, no início de Dezembro, do director financeiro da Huawei, Meng Wanzhou. Mas apesar de todas as rivalidades económicas e divergências políticas entre os Estados Unidos e a China, é improvável que se chegue a um resultado catastrófico, desde que os EUA enfrentem a realidade de três maneiras. Para começar, os legisladores dos EUA precisam de aceitar a “nova normalidade” de uma China que ostenta o maior PIB do mundo (em termos de paridade do poder de compra). Tal como os EUA foram a maior economia do século XX, a China sê-lo-á no século XXI. Mas, independentemente do cenário, a América continuará certamente a ser uma potência económica importante. Segundo, os EUA devem reconhecer a necessidade de reformas económicas estruturantes a nível nacional, tal como a China fez há quatro décadas, embora com um objectivo e uma trajectória muito diferentes. Em vez de culpar o seu enorme défice comercial nas práticas comerciais supostamente desleais de outros países, os EUA deveriam considerar a insustentabilidade das suas próprias políticas económicas, a deterioração da sua capacidade industrial, e o investimento insuficiente em infra-estruturas, educação e formação. Se os legisladores dos EUA continuarem concentrados em agradar a Wall Street, ao grande capital, e aos economistas neoliberais, o desempenho económico do país deteriorar-se-á e as continuarão a aumentar as desigualdades em termos de riqueza entre os americanos. Isso, por sua vez, elevará os riscos de maior instabilidade social, extremismo e populismo. As elites dos EUA não podem dar-se ao luxo de ignorar sinais de aviso evidentes, do mesmo modo que negligenciaram a bolha das hipotecas de alto risco que desencadeou a crise financeira de 2008. Finalmente, a América precisa de compreender melhor a perspectiva e as intenções geopolíticas da China – uma área onde as avaliações incorrectas podem levar a conflitos desnecessários. Por exemplo, embora as teorias ocidentais das relações internacionais prevejam que o poderio económico da China possa transformá-la numa potência global dominante, a história do país sugere algo diferente. A China nunca procurou a expansão geográfica agressiva, mesmo quando tinha poder para fazê-lo. Isto é coerente com um importante ensinamento clássico dos imperadores chineses conhecido como a Doutrina do Meio, que afirma que as tentativas de alcançar o domínio do mundo levam sempre à destruição nacional e trazem infelicidade ao povo. Além disso, a China foi severamente afectada pelo imperialismo e colonialismo de outras potências num passado não muito longínquo, e não deseja repetir a experiência. De modo significativo, a China tem-se abstido de interferir na política interna de outros países durante o recente desenvolvimento das suas capacidades defensivas. Muitos líderes globais, e especialmente Trump e o presidente russo, Vladimir Putin, parecem crer que o poderio militar e a coacção estratégica sejam os melhores modos de medir a competitividade e de garantir a segurança. Mas o domínio militar e político assente na força ou na intimidação deixaram de ser cruciais, ou mesmo relevantes, nas relações internacionais. O que a China pretende é um sistema justo e global, em que todos possam participar de modo equitativo, e que encoraje a cooperação económica. Pretende continuar a melhorar o bem-estar do seu povo, e acredita que a paz mundial é mais bem mantida quando todos os países são economicamente bem-sucedidos. E evidentemente, sendo uma das maiores economias, a própria China beneficia grandemente com um mundo em paz. Mas os líderes da China enfrentam os seus próprios graves desafios para a manutenção da expansão económica do país. Embora as empresas nacionais sejam competitivas em alguns sectores industriais tradicionais, e tenham potencial de crescimento em muitos outros, a China depende grandemente de importações de mercadorias sofisticadas – por exemplo, produtos médicos – do Ocidente. E a proibição dos EUA no ano passado, de venda de chips semicondutores avançados à empresa de telecomunicações ZTE, depois de esta ter violado os regulamentos de exportação dos EUA, demonstrou claramente a inadequação tecnológica da China. Além disso, a China tem de criar empregos suficientes para a maior população activa do mundo, que inclui oito milhões de novos licenciados por ano, ao mesmo tempo que tem de gerir os encargos de uma sociedade em envelhecimento. Nestes tempos conturbados, uma batalha ideológica sobre a superioridade dos modelos de desenvolvimento económico não beneficiaria ninguém. Sendo as duas maiores economias do mundo, os EUA e a China têm uma responsabilidade especial na gestão da transição pacífica para uma nova e multipolar ordem internacional. Conseguirão fazê-lo do modo mais eficaz, se colaborarem e gerirem conjuntamente os desafios que inevitavelmente surgirão. Para os EUA, isto significa compreenderem que tentar derrotar ou confinar economicamente a China não resolverá os seus problemas internos. Os interesses nacionais da América seriam muito mais bem servidos se enfrentassem a realidade e acolhessem a ascensão da China. © Project Syndicate
Tânia dos Santos Sexanálise VozesMulheres de Conforto [dropcap]F[/dropcap]aleceu Kim Bok-dong, uma das muitas mulheres de conforto do Exército Imperial Japonês, das poucas que viveu até aos 90 anos. Estima-se, com maior ou menor conservadorismo, que estas mulheres tenham existido às dezenas ou centenas de milhar naquilo a que chamavam ‘estações de conforto’ do exército japonês. Escusado será dizer que a expressão ‘mulheres de conforto’ é um infeliz eufemismo do tempo da II Guerra Mundial para nomear as mulheres que eram repetidamente violadas, violentadas e escravizadas. As estações de conforto foram estabelecidas por todo o império com o propósito, dizem os historiadores, de confortar os soldados japoneses. Mas este é um conceito altamente contestado. A parte mais afectada afirma que os soldados japoneses raptaram raparigas e mulheres das colónias imperiais para fazer um trabalho que muitas prostitutas japonesas já se tinham voluntariado fazer, mas que, com o crescimento das tropas, sofriam de uma clara falta de pessoal, recorrendo, por isso, à escravatura sexual. Os japoneses, por sua vez, discordam. Desde 1991 que as sobreviventes mulheres de conforto vieram a público com estes relatos de horror e desumanização para se confrontarem com muita resistência por parte do Japão em assumir a responsabilidade pelo que aconteceu – de para sempre afectar as vidas destas meninas e mulheres que julgavam ir trabalhar para fábricas de uniformes para ajudar nos esforços de guerra. Não irei estender-me demasiado acerca do desenvolvimento deste conflito, parece-me, contudo, que o ponto mais importante desta tensão é que estas estações de conforto não são assumidas como uma política regulamentada pelo exército japonês – que tinham como intuito evitar o descontrolo total das tropas. Há quem afirme que depois do massacre de Nanjing às mãos dos japoneses, que levou à morte e violação em massa, que as estações de conforto seriam uma forma de controlar (1) a raiva militar, (2) a tensão sexual e (3) evitar espalhar doenças venéreas ao circunscrever o sexo violento a estes espaços onde – os homens punham-se em fila para repetidamente violar uma mulher. Este esforço desmedido de desresponsabilizar os horrores de guerra japoneses faz-me lembrar algo: uma ideia verdadeiramente contemporânea que parece perseguir-nos cada vez que falamos de violência sexual. As vozes que contestam um movimento de reparação pública a estas mulheres, tendem a proferir o que eu já estou bem farta de ouvir: que as vítimas não são vítimas. Tudo serve para justificar esta posição, ora porque as mulheres demoraram demasiado tempo para virem a público (demoraram 45 anos para verbalizar os horrores da guerra), ora porque as mulheres conforto, como prostitutas que eram, (supostamente) faziam dinheiro com isso. Parece-me que este cliché argumentativo está no meio de uma séria tensão diplomática que não só revela perspectivas ingénuas das formas da violência sexual em contexto de guerra, mas também revela os valores definidores de uma identidade colectiva e nacional. Um país como o Japão percebe o papel que teve no conflito armado, mas ainda existem realidades (verdades?) que ainda não foram integradas. Kim Bok-dong morreu sem ouvir o que queria ouvir. Houve várias tentativas de reparações entre o Japão e a Coreia, mas Bok-dong não acreditou serem verdadeiramente honestas. Ela dedicou a vida a contar a sua história e a denunciar a violência sexual em contexto de guerra por este mundo fora – e certamente que, com alegria, percebeu que muitas e muitos ainda estão dispostos a lutar pela sua causa.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesTratado de extradição I [dropcap]N[/dropcap]o passado dia 13, o Gabinete de Segurança do Governo de Hong Kong apresentou uma proposta ao Conselho Legislativo no sentido de criar uma emenda à Ordenança de Assistência Jurídica Mútua para Assuntos Criminais e também à legislação que regula a situação de criminosos internacionais em fuga. O documento refere-se especificamente a um caso de assassínio em Taiwan, que ocorreu em Fevereiro do ano passado. Pan Xiaoying, uma jovem de 20 anos, residente em Hong Kong, viajou para Taiwan a 8 de Fevereiro de 2018. A ideia era ficar alguns dias com o namorado, Chen Tongjia, de 19 anos, para celebrarem o Dia dos Namorados. Entraram em Taiwan por Kaohsiung e registaram-se num Hotel, em Taipei, a 13 de Fevereiro. Durante este período, Chen teve indícios de que a namorada lhe era infiel e que estava grávida de três meses, de outro homem. Suspeita-se que nessa altura tenha morto Pan e escondido o corpo numa mala. As câmaras do hotel mostram que na manhã de 17 de Fevereiro, Chen saiu do hotel com uma grande mala cor de rosa. Apanhou o metro na estação de Zhuyuan, em seguida abandonou o corpo e regressou a Hong Kong. Quando o pai de Pan percebeu que a filha não tinha voltado alertou a Polícia de Hong Kong e de Taiwan. Os agentes de Hong Kong descobriram que o cartão de crédito de Pan tinha sido roubado e prenderam Chen. A 13 de Março, a polícia de Taiwan encontrou o corpo de Pan. A 16 de Março, o Delegado Público do Distrito de Shilin, Taiwan, emitiu um pedido de Assistência Jurídica Mútua, para Hong Kong, para que o suspeito fosse enviado para Taiwan para ser julgado. No entanto, as autoridades de Hong Kong não deram andamento ao pedido. Qiu Zhihong, porta-voz da Procuradoria do Distrito de Shilin, comunicou em Julho de 2018, que o Departamento Jurídico de Taiwan tinha feito um pedido de extradição: “Espero que o Governo de Hong Kong envie o suspeito para Taiwan para vir a responder perante a Justiça.” Qiu Zhihong tem esperança que o Governo de Hong Kong possa vir a criar emendas a esta lei. Embora o suspeito seja natural de Hong Kong, o crime aconteceu em Taiwan e é lá que ficaram as provas. As brechas legais provocadas por crimes de natureza internacional são uma vergonha que afecta todos os povos. As Leis Básicas de Hong Kong e de Macau regulam sobre a Assistência Jurídica Mútua e sobre a fuga de criminosos internacionais. O Artigo 93 da Lei Básica de Macau estipula: “A Região Administrativa Especial de Macau pode, após consulta aos orgãos jurídicos de outras partes do País, conduzir contactos judiciais e prestar Assistência Mútua, de acordo com a lei.” O Artigo 94 estipula: “Com o apoio e autorização do Governo Central do Povo, a Região Administrativa Especial de Macau pode tomar as medidas apropriadas para prestar Assistência Jurídica Mútua a países estrangeiros.” Em Hong Kong, a Lei Básica estipula princípios semelhantes nos Artigos 95 e 96. Para lá do âmbito da Lei Básica, Hong Kong lida principalmente com a extradição de fugitivos estrangeiros ao abrigo da Ordenança para Criminosos em Fuga e da Lei da Assistência Mútua para Assuntos Criminais. A Ordenança para Criminosos em Fuga entrou em vigor a 25 de Abril de de 1997, e estipula: 1. A extradição é pedida pela Acusação, e / ou 2. Se o sujeito já foi condenado e será feita para locais fora de Hong Kong com os quais exista acordo de extradição. A Ordenança de Assistência Mútua para Assuntos Criminais estipula as medidas de Assistência que Hong Kong deve tomar para investigar e levantar processos de acusação a pessoas que se encontrem fora do seu território. A assistência engloba a recolha de provas, investigação, detenção, entrega de materiais, convocação de testemunhas, etc. Até à presente data, Hong Kong assinou acordos de assistência com 30 jurisdições, assinou acordos de detenção com 19 jurisdições, e acordos de extradição com 15. No entanto, sem um tratado de extradição é impossível a entrega de criminosos internacionais aos países que os reclamam. Na próxima semana iremos continuar a analisar este tema e a ver como as emendas à lei poderão afectar Macau e Taiwan.
João Luz VozesCandidato [dropcap]E[/dropcap]m Macau, o conceito de “chegar-se à frente” é mais estrangeiro que um TNR. Quanto muito, chega-se ao lado, coloca-se a hipótese sub-repticiamente, por meias palavras. Mesmo que seja para ocupar o mais elevado cargo política da terra, com todo o peso e importância que isso acarreta, assumir abertamente a vontade de governar transforma o candidato na personificação da timidez. O candidato nunca é candidato, mesmo que sempre o tenha sido. É uma figura ambígua que se encontra numa espécie de limbo existencial, é sem ser, habita num estado de inexistência apesar de viver como tal. A candidatura é algo a que se aspira, que se pretende como quem não quer a coisa. E, a verdade, é que do lado dos governados não se quer mesmo a coisa. Para os residentes não há qualquer interesse na corrida, porque quem corre não tem os seus interesses como prioridade, a distância entre as duas realidades é demasiado longa. Em primeiro lugar, responde-se perante Pequim. Depois, atende-se aos interesses das famílias e negócios que constituem a elite local. Alianças e interesses alinham-se como eclipses solares, protegidos são levados pela mão para as cadeiras do poder e as sardinhas disponíveis são escassas para tantas brasas. Uma coisa é certa no meio desta invisível corrida: O mexilhão continua a formar a base alapada desta pirâmide que só tem olhos para o céu, e fica esquecido no meio desta caldeirada. Quem se coloca na posição de candidato sem o dizer claramente, mas com a total probabilidade de o ser, repete vezes sem conta que vai ouvir a opinião pública na tomada de decisão que já foi tomada. Auscultar a população para uma eleição em que não é tida nem achada é exercício perfeito da falácia. Ouvir opiniões de quem não tem qualquer tipo de poder decisório é um requisito que soa a mantra vazio, a algo que se tem de dizer porque sim, um gesto frívolo desprovido de sentido, um subterfúgio com o intuito de ganhar tempo e apoios dos senhores que estão muito acima da comunidade. Entretanto, o apuramento do estado de alma que permite apresentar uma candidatura a Chefe do Executivo transforma-se na busca pela verdadeira essência do ser. Uma coisa quase espiritual de procura do Eu. O candidato ausculta-se, sonda o seu interior para encontrar resposta à pergunta: será que tenho o que é preciso para servir a população? Mais uma vez, a questão errada que não procura sequer uma resposta. A procura não é interior. Aliás, não podia ser mais exterior. Nem a autoanálise quanto à competência executiva é factor preponderante na decisão. A busca é externa, procuram-se alianças entre aqueles que elegem e quem abençoa ascensões políticas. O poder constrói-se e atribui-se de cima para baixo, sedimenta-se na verticalidade que paira acima do quotidiano dos comuns mortais. Mas, enfim, este é o jogo que faz a política de Macau. As avalanches de dinheiro que entram nos casinos e enchem os cofres do Governo, permitem viver numa economia fictícia, uma espécie de Nárnia alucinada que protege Macau das duras realidades da economia global. Apesar da falência de alguns serviços públicos, com particular destaque para a saúde e transportes, a ascensão de Macau ao topo da montanha do PIB per capita desmotiva e afasta os residentes da política. Mesmo perante a gritante desigualdade de riqueza. Para já, resta aos videntes da política interpretar sinais nos astros deste pobre firmamento executivo. Aquilo que foi dito e o que não foi. As palavras omissas que se depreendem das ditas. O ritual de onde irá sair o próximo Chefe do Executivo não está assim tão longe. Resta saber quem está a fazer pela vida, qual a nebulosa que pode se pode transformar em estrela e qual irá colapsar num buraco negro. Uma coisa parece certa, no céu de Macau não se vão ver estrelas, estes astros vão permanecer para sempre ofuscados pela luminosidade fictícia dos casinos.
Paul Chan Wai Chi Um Grito no Deserto VozesUm brinde à saúde de todos os porquinhos [dropcap]O[/dropcap]s ocidentais, tal como os chineses, têm 12 signos do Zodíaco, mas enquanto os signos ocidentais são baseados nas constelações, os signos chineses são representados por animais. Este ano, o Zodíaco chinês é representado pelo porco. O meu primeiro desejo de Ano Novo é que todos os porcos estejam de boa saúde, já que ultimamente tem havido surtos de gripe suína africana a nível global. Os chineses têm-se dedicado à criação de porcos nos últimos setecentos ou oitocentos anos. Desde que os antepassados dos porcos foram domesticados, estes animais tornaram-se a principal fonte de abastecimento de carne. Os porcos têm como objectivo principal ingerir a maior quantidade possível de comida até ao dia em que entram no matadouro. A contribuição prioritária destas doces criaturas tem sido a sua carne, mas o seu património genético tem sido desvalorizado. Se os porcos tivessem o poder de escolha e tivessem tido oportunidade de correr livremente pelo mato, como os javalis, os seus familiares mais chegados, imagino o que iria nas suas mentes no dia em que estivessem no matadouro à espera de ser abatidos. Há quem tenha porcos como animais de estimação, porque são muito inteligentes e limpos. É o caso das pessoas que moram na Aldeia de Ka Ho, em Coloane, Macau, que têm uma série de adoráveis porquinhos de estimação. Quem quiser porcos de estimação, tem de impedi-los de comer a toda a hora, porque estes animais não percebem quando devem parar. Podem comer até se transformarem numa enorme bola de carne e isso só traz vantagens a quem os quiser usar para fins alimentares. No famoso filme de animação japonês, “A Viagem de Chihiro”, realizado por Hayao Miyazaki, mostra-se de forma metafórica os elos de ligação entre humanos e porcos. A história fala de Chihiro, uma menina de dez anos, que subitamente se apercebe que os pais foram transformados em porcos, depois terem devorado grandes quantidades de comida num restaurante. A nossa pequena heroína passa por muitas tormentas até descobrir a maneira de voltar a dar forma humana aos seus progenitores. Muitas pessoas não compreenderam porque é que esta história era sobre humanos que se tinham transformado em porcos. Um jovem japonês chegou a enviar uma carta para o Hayao Miyazaki’s Studio a expôr as suas dúvidas. Uns meses depois o estúdio respondeu à carta. Na carta de resposta podia ler-se, “Os pais de Chihiro não se transformaram em porcos logo a seguir a terem devorado toda aquela comida, foram-se transformando gradualmente ao longo de um certo período de tempo”. Por isso, o que os transformou em porcos não foi terem comido muito, mas sim a vontade com que ficaram de “continuar a comer cada vez mais, mesmo depois de já terem ingerido mais do que o suficiente”. O Hayao Miyazaki’s Studio deixou bem claro que o enredo é uma metáfora sobre o mundo em que vivemos. A transformação de humanos em porcos é uma alegoria à ganância, como parte da natureza humana. A ganância faz com que as pessoas percam as suas virtudes e o seu sentido de moralidade e, uma vez que se transfomam em porcos, é quase impossível voltarem a ser humanos. Esta história nasceu como uma ideia sarcástica às bolhas especulativas do Japão dos anos 80. Nessa época, os japoneses eram gananciosos e insaciáveis, assemelhando-se a porcos, embora não tivessem consciência do facto. Quando a economia entrou em recessão, a única coisa que souberam fazer foi queixar-se das condições económicas negativas. O realizador Hayao Miyazaki usou este filme como uma forma de alertar as pessoas contra os perigos da ganância e, possivelmente, para os pôr perante uma imagem de si próprios que desconheciam. Durante os feriados do Ano Novo, que duraram desde a véspera do Ano Novo Chinês até ao seu 7º dia, 1,4 milhões de turistas visitaram Hong Kong e 1,21 milhões visitaram Macau. É do consenso geral que este enorme afluxo se ficou a dever à abertura da Ponte Hong Kong–Zhuhai–Macau e espera-se que o número venha a aumentar no próximo ano. Durante estes sete dias, as maiores atracções turísticas, como as Ruínas da São Paulo, estiveram sujeitas a medidas de controlo de multidões. Os transportes e as ruas estavam apinhados de pessoas, dificultando enormenente a deslocações dos residentes de Macau. Mas nem tudo são histórias de sucesso económico. Não nos devemos esquecer das lojas situadas fora dos circuitos turísticos que se viram obrigadas a fechar devido ao enorme inflacionamento das rendas. Será este cenário a manifestação de uma economia moderadamente diversificada? Para Hong Kong, que possui uma área de 1.106 Km2, 1,4 milhões de visitantes numa semana, ultrapassa largamente a sua capacidade de acolhimento. No caso de Macau, que tem uma área de apenas 30,8 Km2, a grande preocupação foi fazer chegar o milhão e duzentos mil visitantes a todos os diferentes distritos turísticos em vez de os deixar concentrados apenas nos principais. Para criar porcos saudáveis, é preciso controlar-lhes a dieta e deixá-los fazer exercício. Se o porquinho se dedicar apenas a devorar alimentos tem como único destino o matadouro.
João Romão VozesPontapés nos impostos [dropcap]C[/dropcap]om escassos dias de diferença, duas das maiores e mais mediáticas figuras do desporto português e mundial foram condenados por tribunais do estado espanhol pela prática reiterada de crimes de evasão fiscal. Primeiro foi Cristiano Ronaldo, exímio avançado, várias vezes galardoado como melhor goleador do continente europeu e reiteradamente reconhecido como melhor futebolista do mundo: quase 19 milhões de euros teve que pagar ao fisco o prodigioso atleta, após perpetrar o maior crime fiscal da história do futebol mundial, um recorde agora devidamente homologado por competentes instâncias judiciais. Depois foi o treinador José Mourinho, temporariamente dedicado ao comentário televisivo e à patinagem acidental, condenado pelos tribunais ao pagamento de mais pequena – mas nem por isso modesta – verba, a rondar os 2 milhões de euros. Com o seu magnífico desempenho a driblar autoridades tributárias, Ronaldo ultrapassou com clareza o anterior recordista da fraude fiscal no universo futebolístico, o astro argentino Leonel Messi, cujo crime de evasão ao fisco espanhol tinha sido reconhecido por tribunal adequado no valor de 15 milhões de euros, quase quatro milhões abaixo do impressionante registo do goleador português. Com performances de nível nitidamente inferior – mas ainda assim num elevadíssimo patamar – outras reconhecidas personalidades do universo futebolístico contribuíram com cerca de 90 milhões de euros para as receitas do fisco no Reino de Espanha nos últimos anos. James Rodrigues com 11 milhões, Neymar e Sandro Rosell (ex-Presidente do Barcelona) com cerca de 5 milhões (e o que mais se verá, que o assunto continua em investigação, com Rosell a ser objecto de cerrada marcação individual em cela prisional) e ainda Luca Modric, Marcelo, Di Maria, Mascherano, Falcão, Alexis Sanchez, Casillas, David Villa, Diego Costa, Dani Alves, Fábio Coentrão ou Figo, todos eles com valores em torno de um ou dois milhões de euros. Xabi Alonso tem o seu caso em julgamento e é o primeiro futebolista que corre o risco de ser condenado por crime fiscal a uma pena de prisão superior a dois anos, o que inviabilizaria a suspensão da pena (de que beneficiaram todos os outros atletas referidos) e obrigaria a detenção efectiva. Não deixa de ser curioso que só em Espanha haja futebolistas que não apreciam particularmente o pagamento de impostos. É verdade que há casos pontuais julgados noutros países mas os tribunais espanhóis têm-se notabilizado internacionalmente pela regularidade com que condenam famosos e consagrados jogadores pela prática sistemática de crimes fiscais, que normalmente decorrem ao longo de vários anos, utilizando circuitos financeiros mais ou menos obscuros e tendencialmente dirigidos a paraísos fiscais internacionais, geralmente procurando tratar rendimentos regulares inerentes aos contratos de trabalho para a prática do futebol como se fosses rendimentos ocasionais relacionados com a exploração de direitos de imagem para os circuitos mediáticos globais. Certamente que semelhantes ardilosas habilidades processuais se desenvolvem com sabedoria noutras partes do mundo, mas pelos vistos o fisco espanhol teve a sensatez de apertar o cerco fiscalizador às transações financeiras dos milionários da bola, em vez dos trabalhadores “independentes” (“autónomos”, no caso), que com o mesmo trabalho de investigação renderiam meia dúzia de euros aos cofres do Estado. Não serão só os futebolistas, naturalmente, a fintar autoridades fiscais por esse mundo fora. Na realidade, o processo generalizado de globalização e desregulação de movimentos financeiros a que temos assistido nas últimas décadas abre novas e mundialmente distribuídas oportunidades para a ocultação de rendimentos e para a evasão fiscal. Resulta daqui uma evidente dupla injustiça: por um lado, os Estados perdem recursos que deveriam ser aplicados em políticas públicas supostamente benéficas para toda a população; por outro lado, só os milionários têm acesso a este tipo de fuga, que requer a utilização de sofisticados meios jurídicos e financeiros, devidamente suportados por técnicos de elevadíssima reputação e não menos elevados honorários. O processo de globalização económica que facilita o crime fiscal dos milionários tem também sido marcado por sistemáticas limitações nos orçamentos dos Estados em grande parte do mundo, impondo sucessivos mecanismos de austeridade, redução de gastos e limitação de investimentos em serviços públicos. Ao mesmo tempo – e certamente também por isso – aumentam todos os anos os índices de desigualdade social, com uma parte cada vez menor da população mundial a concentrar uma parte cada vez maior da riqueza. A evasão fiscal é um dos mais poderosos instrumentos para alimentar esta ganância e determinar esta obscena e insustentável evolução das sociedades em que vivemos. O problema merece, em todo o caso, escassa indignação pública. Já os golos magníficos concretizados por exímios futebolistas merecem ampla celebração em todo o mundo. Talvez não fosse má ideia equilibrar um bocadinho as coisas, digo eu, que até gosto de bola.
Jorge Rodrigues Simão Perspectivas VozesDa Meca turística ao gueto turístico “Any city however small, is in fact divided into two, one the city of the poor, the other of the rich. These are at war with one another.” The Republic – Plato [dropcap]H[/dropcap]á um consenso geral e crescente de que o turismo tem sido considerado um elemento insignificante no processo de desenvolvimento urbano e económico no debate académico; e só recentemente foi considerado como um importante domínio da mudança urbana. O turismo urbano ainda é um campo de pesquisa imaturo, que muitas vezes parece atrasar a prática do seu desenvolvimento em vez de o orientar. Essa imaturidade levou a pontos de vista tendenciosos, que promovem descrições simplistas do turismo, como uma panaceia para todos os problemas de desenvolvimento ou interpretações extremamente críticas do fenómeno do turismo. A necessidade de uma mudança de paradigma na pesquisa e na prática do turismo na cidade, foi afirmada na “3.ª Cúpula Global sobre Turismo da Cidade” que se realizou em Barcelona, entre 9 e 10 de Dezembro de 2014, intitulada de “Novos Paradigmas no Desenvolvimento do Turismo Urbano”. A cúpula destacou a necessidade de uma mudança de paradigma e uma conexão forte entre o turismo e a construção de uma “cidade inteligente, sustentável e inclusiva”. Foram convidados profissionais do sector e académicos a aceitar o desafio e superar as fraquezas das abordagens actuais para estudar e praticar o turismo na cidade. A mudança de caminho no desenvolvimento do turismo da cidade é necessária também à luz do rápido crescimento dos movimentos anti-turismo em várias cidades. Esses movimentos, enfatizam e dão voz a problemas e assimetrias que o turismo urbano cria em detrimento das comunidades locais, que reclamam o direito dos moradores à cidade, chamando a atenção para a necessária construção e gestão da relação entre moradores e turistas, que desempenham um papel crucial no desenvolvimento do turismo. Muitas vezes este aspecto foi negligenciado, com a consequência de uma explosão do fenómeno do turismo que, em certos contextos, está fora de controlo e reduz a multifuncionalidade dos centros urbanos, como é o caso de Veneza e o desenvolvimento massificado do turismo urbano em Praga. Ao invés de limitar a observação do turismo urbano à sua estigmatização como grande inimigo da cidade habitável, há a necessidade de produzir estruturas analíticas capazes de apoiar o planeamento, gestão e até mesmo a engenharia do turismo da cidade. Para este fim, a pesquisa académica pode desempenhar um primeiro papel, ao identificar o “carácter” do turismo urbano, distinguindo-o de qualquer outro tipo de turismo, colocando o “urbano” no centro do conceito de turismo. Os pesquisadores em segundo lugar, podem fornecer aos analistas, modelos analíticos, informando e orientando as políticas, não apenas por meio da promoção e comercialização do destino, mas também através da regulamentação do desenvolvimento do turismo e da sua integração no planeamento urbano mais amplo e no quadro de desenvolvimento económico, em que se destaca o surgimento de domínios analíticos que, além de abordagens consolidadas, estão a ampliar a arena de pesquisa, e fornecem evidências de uma mudança de perspectiva no campo. Tais domínios contribuem para reafirmar o turismo além da agenda pós-industrial da cidade turística, e chamam a atenção para a complexidade das cidades onde o turismo dá forma ao espaço urbano e, inversamente, é moldada por ele e pelas dinâmicas sociais e económicas que nele ocorrem. As contínuas revoluções urbanas e de viagens criam uma oportunidade única para tornar o turismo na cidade, um forte impulsionador de cidades mais inteligentes, sustentáveis e inclusivas. O turismo urbano deve abordar questões chave como o engajamento da comunidade, melhores pesquisas e dados para orientar o planeamento e a gestão, parcerias privadas, criação de “clusters” e a modernização da tecnologia, inovação e sustentabilidade. O turismo tornou-se um componente central da economia, da vida social e da geografia de muitas cidades no mundo, e está idealmente posicionado a contribuir para o aproveitamento das oportunidades decorrentes da urbanização. É necessário construir novos paradigmas no turismo urbano que passam por quatro áreas principais, como o ambiente em mutação, o conhecimento e a tecnologia, a medição e como tornar o turismo na cidade um benefício para si e suas áreas adjacentes. É de ressaltar a necessidade de desenvolver produtos orientados para o mercado e baseados em pesquisa, alertando para a falta de estudos para medir adequadamente o turismo urbano, os seus impactos e tendências. Além disso, é importante destacar a necessidade de tornar a cidade agradável a todos, quer sejam cidadãos e turistas, quer sejam investidores e distribuir os benefícios do turismo da cidade fomentando o seu progresso, multiplicando assim o seu impacto e gerindo o congestionamento. O desenvolvimento de “clusters” que envolvem actores públicos e privados de todos os sectores é apontado como central para o novo paradigma do desenvolvimento do turismo na cidade; um desenvolvimento que precisa de estar atento ao facto de que o turismo é um instrumento de política de coesão social e preservação cultural, além da sua contribuição fundamental como actividade económica, sendo necessário discutir os novos modelos de negócios emergentes da chamada economia compartilhada e avaliar a sua integração no planeamento e desenvolvimento do turismo. É importante entrosar a população local em todo o processo de desenvolvimento do turismo urbano, devendo ter sempre em mente que o turismo acontece em uma comunidade e o que não é bom para a cidade não é para os cidadãos, pelo que nunca será um bom destino turístico. Uma cidade que é boa para os seus cidadãos é boa para os turistas; uma cidade que é amada pelos seus cidadãos será amada pelos seus visitantes. O turismo de cidade é uma prioridade, pois é capaz de cumprir dois principais objectivos estratégicos, como o de superar outras indústrias e aumentar os gastos médios. As cidades são também alguns dos maiores destinos do turismo do mundo. Os turistas são atraídos, em número crescentes pela vibração, excitação e diversidade que oferecem as cidades. O impacto socioeconómico desses visitantes é extraordinário, sejam visitas de lazer, negócios ou para encontrar amigos e familiares. Os turistas contribuem para a economia local e empregos em toda a cidade. As preferências dos turistas e expectativas mudam, o mesmo acontecendo com as cidades, com o turismo e investimento constante em infra-estrutura, promoção e conservação, beneficiando turistas e moradores locais. A metade da população mundial vive em vilas e cidades e este número deverá atingir quase cinco mil milhões até 2030. O turismo urbano, em termos económicos, cria oportunidades de emprego e tornou-se um factor chave no planeamento urbano global e aumento do bem-estar de milhares de milhões de pessoas que vivem nas cidades. À medida que as áreas metropolitanas se expandem rapidamente, tanto o sector público quanto o privado enfrentam mudanças radicais, bem como oportunidades significativas. A gestão de forma sustentável do aumento do número de turistas no meio de uma paisagem urbana em constante mudança, garantindo que a cidade seja desenvolvida para atender às necessidades dos visitantes e das comunidades locais é essencial. A cidade é material, social e política, ou seja, é o produto cultural mais sofisticado para a convivência civilizada, de acordo com os clássicos. A cidade é parte da nossa cultura e história sendo o epicentro de muitas das nossas tradições. Todos vivemos e trabalhamos nas cidades e ainda assim visitamos outras cidades durante o nosso tempo livre. Como a sociedade está em constante mudança, as cidades estão a tentar adaptar-se e atender às necessidades dos moradores e visitantes, além de se tornarem atraentes. Sendo destino para os futuros visitantes, esta é uma oportunidade económica e social única, que traz dinamismo e vitalidade, crescimento e desenvolvimento, e se torna um elemento importante na vida das pessoas. O crescimento da cidade e o objectivo final do planeamento urbano devem ser a resposta lógica às necessidades dos seus moradores para aumentar sua qualidade de vida, bem-estar, qualidade ambiental e identidade cultural. As cidades estão a mudar constantemente e são construídas, transformadas e em contínuo crescimento. As cidades são também ocupadas por diferentes tipos de grupos e cada um usa a cidade de uma forma diferente, gerando uma organização espacial, alguns tipos de diferenciação residencial que também criam fronteiras invisíveis reflectindo como essa sociedade é estruturada. As cidades oferecem novas oportunidades e têm um grande impacto no crescimento económico local, por exemplo, tornando-se um elemento-chave para reduzir a pobreza. A urbanização de facto desempenha um papel positivo na redução geral da pobreza, particularmente quando apoiada por políticas bem adaptadas. É nesse processo complexo e interminável que devemos esforçar para construir a cidade o mais integrada e coesa possível. As cidades também podem ajudar a reduzir os custos de transacção, como infra-estrutura e serviços; comportando-se como redes sociais, fornecendo informações e facilitando a difusão do conhecimento. Desde a sua primeira formação, as cidades serviram como pontes entre culturas. As cidades têm sido motores de inovação desde o tempo em que os grandes filósofos discutiam no mercado ateniense. As cidades realmente unem seus cidadãos mais inteligentes e são centros de transmissão de ideias, informação e conhecimento; e as ideias e a força que emanam da colaboração humana constituem a última fonte de criação de riqueza. A necessidade de entender e estudar mais de perto a cidade como um elemento dinâmico e orgânico na vida das pessoas torna-se crucial não apenas para fins de marketing ou de produtos, mas também para ser capaz de organizar a sua sociedade, infra-estrutura e instituições da forma mais eficaz e económica. É importante realçar que não apenas vivemos ou visitamos as cidades, mas evoluímos conjuntamente com elas. Tem sido justamente assinalado que uma maneira apropriada de enfrentar a crise global é a abordagem de baixo para cima, tentando alcançar o crescimento ao nível local. Muitos países prosperam porque existem duas ou três cidades que são os motores do progresso geral. É de argumentar que o paradoxo central da metrópole moderna é que a proximidade se tornou cada vez mais valiosa, à medida que o custo de se conectar através das distâncias diminuiu. As cidades representam proximidade e densidade populacional, mas também privacidade ao mesmo tempo. Em um mundo cada vez mais globalizado, as cidades são laços interconectados. O turismo é um elemento muito importante em todas as políticas relacionadas com o desenvolvimento urbano, não sendo apenas uma estratégia para fornecer um produto competitivo e atender às expectativas dos visitantes, mas uma forma de desenvolver a cidade e fornecer mais e melhores infra-estruturas. A “Organização Mundial do Turismo (OMT)” refere-se ao turismo urbano como sendo as viagens feitas por viajantes a cidades ou locais de alta densidade populacional. A duração destas viagens é geralmente curta (um a três dias), podendo-se dizer que o turismo urbano está intimamente ligado ao mercado de férias por períodos curtos. As grandes áreas metropolitanas são, em geral, mais produtivas e em todos os países há uma correlação quase perfeita entre urbanização e prosperidade. Mas as cidades também prosperam como centros de consumo, prazer e lazer. O turismo urbano, de uma forma ou de outra, esteve presente desde a Mesopotâmia à Suméria, gerando o fenómeno de urbanização. As pessoas com os meios e propensão para o fazer foram atraídas para cidades e vilas apenas para visitar e tentar uma multiplicidade situações e estas foram os caldeirões da cultura nacional, arte, música, literatura, magnífica arquitectura e design urbano. Foi a concentração, variedade e qualidade dessas actividades e atributos que criaram a sua atracção e colocaram certas cidades no mapa do turismo. O turismo urbano sempre foi uma tarefa difícil tanto para o sector público quanto para o sector privado. A sua natureza multifuncional torna complicado planear e gerir. As áreas metropolitanas estão a crescer rapidamente e novas questões e desafios estão a surgir. A literatura insuficiente também contribuiu para a falta de compreensão do turismo e seus efeitos no desenvolvimento das cidades, daí a necessidade de examinar e identificar os novos desafios e oportunidades colocados pelo turismo de cidade. As cidades no início do século XX, começaram a conhecer-se como atracções turísticas; e as que reagiram a esse fenómeno desfrutaram de um impulso económico graças às actividades que proporcionaram aos visitantes. O turismo nos Estados Unidos, por exemplo, cresceu rapidamente, e todas as grandes cidades atraíram o turismo, o que significou uma mudança na forma como as pessoas viviam, mas também percebiam as cidades. Viajar tornou-se um elemento importante na vida das pessoas; pois queriam visitar e conhecer outras cidades. O turismo urbano torna-se uma área de interesse durante a década de 1980; e as pesquisas e publicações a partir dessa data identificam como um complexo fenómeno que afecta muitas partes interessadas na cadeia de valor. O nascimento de companhias aéreas de baixo custo, também trouxe um interesse crescente nas cidades e seu desenvolvimento em termos de turismo, por exemplo, as cidades europeias tiveram que adaptar as suas actividades de marketing para atrair um novo tipo de produto que são os curtos feriados em uma grande cidade. As cidades apelam para um mercado mais amplo, são fáceis de alcançar e têm muito a oferecer, o que também traz um novo padrão de gastos que pode ir dos que ficam em hotéis económicos ao cliente de hotéis de cinco estrelas, mas todos têm algo em mente, que é a vontade de descobrir e visitar outras cidades. As cidades precisam avaliar os seus produtos e entender quais das suas ofertas de produtos atraem o mercado. A grande questão é a de saber se o turismo urbano pugna pelo turismo de massa ou prefere o turismo sustentável ou se serão compatíveis.
Sérgio de Almeida Correia VozesNa encruzilhada do porco “As montanhas são altas e o imperador está longe” (山高皇帝遠), provérbio chinês [dropcap]L[/dropcap]i Chunsheng, Chefe do Departamento de Segurança Pública de Guangdong, e que é também Vice-Governador de Cantão, aproveitou o facto de estarem reunidos dezenas de representantes oficiais da cidade de Maoming para perante o Governador Provincial, Ma Xingrui, anunciar a visita, no final deste ano, do Presidente Xi Jinping a Macau, por ocasião do 20.º aniversário da transferência de administração de Portugal para a RPC. Será então esta a oportunidade para se fazer uma reflexão telegráfica sobre Macau, a RPC, o momento que ambas atravessam e o que o futuro nos reserva. 1. No XIX Congresso do PCC, realizado entre 18 e 24/10/2017, o Presidente Xi Jinping deixou claras quais as linhas que iriam compor o “Pensamento Socialista com Características Chinesas para a Nova Era”. Salientou, entre outras, a necessidade da “realização da modernização socialista e o rejuvenescimento nacional tendo por base “a conclusão da construção de uma sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos”, conjugando um desenvolvimento equilibrado com as necessidades do povo, fortalecendo a “confiança no rumo, na teoria, no sistema e na cultura do Socialismo com características chinesas”. Em suma, construindo um país “sob o império do rule of law socialista”. 2. Se durante os anos que antecederam o XIX Congresso se assistiu a um fortalecimento do poder do Secretário-Geral do PCC e da sua novel elite dirigente, mercê das operações de limpeza interna visando afastar e punir todos aqueles dirigentes e quadros que se desviaram da disciplina partidária, a partir de Outubro de 2017 o PCC e o Presidente Xi Jinping – alcançadas que estavam as duas primeiras metas: (i) “garantir que as necessidades básicas da população estavam asseguradas” e “as suas vidas são em geral decentes” e que (ii) se ergueu uma sociedade com “uma economia mais forte, mais democracia, ciência e educação avançadas, cultura próspera, maior harmonia social e melhor qualidade de vida” – concentraram-se no terceiro objectivo estratégico da política de abertura, o qual deverá ser alcançado quando a RPC celebrar o seu centenário, isto é, dentro de 30 anos (2049): (iii) “modernização e transformação da China num país socialista moderno”. 3. Relativamente a Macau e Hong Kong, no seu discurso ao XIX Congresso o Secretário-Geral do PCC sublinhou que o regresso destas regiões ao seio da Pátria tinha sido um “estrondoso sucesso”, provando-se que a fórmula “um país, dois sistemas” fora a melhor solução para as questões “legadas pela História, e a melhor garantia institucional de estabilidade e prosperidade a longo prazo”. 4. Xi Jinping sublinhou ainda o alto grau de autonomia de que gozavam e a necessidade de harmonização com a Constituição chinesa das respectivas leis básicas, reforçando os meios para a melhoria dos sistemas e mecanismos por estas consagrados, e manifestando a continuação do apoio ao seu desenvolvimento no contexto global da nação, “melhorando o bem-estar do povo, dando os passos necessários para o avanço da democracia, mantendo a lei e a ordem, e cumprindo a responsabilidade constitucional de salvaguardar a soberania da China, a sua segurança e o desenvolvimento dos seus interesses”. 5. Por fim, e para aquilo que aqui interessa, o Secretário-Geral do PCC manifestou (iv) a resolução da questão de Taiwan para a completa reunificação da China como uma aspiração de todo o povo chinês e objectivo fundamental para a realização dos seus interesses, recorrendo para tal aos princípios da “reunificação pacífica” e de “um país, dois sistemas” para o desenvolvimento das relações no Estreito e o processo em vista. 6. Concluído o XIX Congresso, escolhidos os homens para integrarem a nova Comissão Permanente do Politburo do Comité Central do PCC e dirigirem a execução das tarefas em vista, assistimos ao aprofundamento de iniciativas como “uma faixa, uma rota”, ao lançamento do desígnio da “Grande Baía”, a um reforço da centralização do poder, ao endurecimento e radicalização do discurso político interno, que veio acompanhado de um cada vez maior controlo da Internet, dos cerca de 800 milhões de utilizadores e das redes sociais, da realização de novos investimentos no Exército Popular, na Força Aérea e na Marinha, de ameaças de intervenção militar fora do continente (Taiwan, Mar do Sul da China, fronteira com a Índia), tudo para cumprimento de uma agenda securitária, com extensão a Macau e Hong Kong, e o prosseguimento de uma política interna que vinha de trás de silenciamento de eventuais opositores, dentro e fora do próprio PCC. 7. Concomitantemente, no plano internacional multiplicavam-se iniciativas diplomáticas em várias frentes, de certo modo aproveitando o vazio criado pelos EUA. O afastamento destes dos grandes palcos internacionais dá-se no seguimento de uma política unilateral de cariz proteccionista e desligada das grandes preocupações da comunidade internacional, mercê de uma alucinação colectiva que levou Trump à Casa Branca. O desfecho dessa alucinação é ainda incerto, mas para além de ter constituído um desafio à própria história do país e a uma herança de envolvimento mundial vigoroso desde Wilson, que sempre foi mais do que simples retórica, não obstante a sua desprezível política de segregacionismo interno, abriu portas para que a R.P. da China ocupasse o vazio criado. 8. O início de 2019 trouxe uma versão modesta do Fórum Económico Mundial, este ano marcado pelo conflito comercial EUA/CHINA, onde se notou a ausência dos Presidentes dos EUA e de França, da Chanceler alemã e de Putin, acabando Pequim por enviar o seu primeiro-ministro. Tudo tão discreto que um articulista do The Guardian chamou a atenção para a atmosfera “flat” do evento por comparação com anos anteriores. Noutros pontos do globo – Venezuela, Síria, Brasil, Europa Central – aumentaram as preocupações e pela primeira vez tivemos a percepção dos danos que a guerra de tarifas traz ao comércio mundial, e os elevados custos que as partes envolvidas estão já a pagar. 9. Apesar de no último dia de 2018, num artigo do New York Times, Alexandra Stevenson e Cao Li chamarem a atenção para o arrefecimento da economia chinesa e as ordens vindas de cima para que “o porco fosse melhorado com baton”, em 18 de Janeiro pp. o People’s Daily dava conta das palavras optimistas de Ma Yun (Jack Ma), o patrão da Alibaba no fórum de Xangai, alinhando pelo diapasão traçado em Davos pelo primeiro-ministro chinês, permitindo-se titular na primeira página da edição semanal (24-30/12/2018): “Curso Estável – A economia da China é certamente uma das razões para se estar optimista em direcção a 2019 (“Steady Course – China’s Economy is certainly one of the reasons to be optimistic heading into 2019”). 10. Pura ilusão. Propaganda genuína. Os sorrisos e os números avançados para o crescimento da economia chinesa esmoreceram quando logo a seguir se ouviram as contundentes palavras de George Soros sobre o perigo no horizonte e a “farsa” da iniciativa “uma faixa, uma rota”, nas suas palavras, desenhada para promover os interesses chineses, e não os dos países recipientes, alertando para a inviabilidade económica de muitos projectos. O que por Soros foi dito complementou-se pela notícia da reunião de quatro dias do Presidente Xi Jinping e Wang Huning, número cinco do PCC e seu ideólogo mais influente, com altos quadros, alertando-os para a presença de “cisnes negros” e “rinocerontes cinzentos” no seu seio, bem como para a identificação da dissensão política como uma prioridade a combater, estando “preparados para o pior cenário”. 11. Quando o primeiro responsável do PCC e Presidente da RPC se apressaram (22/01/2019) a indicar os riscos que o Partido e os seus dirigentes devem tomar em atenção nos próximos meses – políticos, ideológicos, económicos, tecnológicos, sociais, ameaças internacionais e internos –, apelando à unidade em torno do líder e dos dirigentes para se assegurar a segurança política do regime, a confiança do povo e a estabilidade, isso só queria dizer uma coisa: a situação é bem mais grave do que aquilo que se vinha pintando. Os riscos de uma crise grave e de consequências internas imprevisíveis são reais. De outro modo, como é óbvio, o discurso não teria mudado tão rapidamente e em tão curto espaço de tempo. 12. Nos próximos dias o mundo irá continuar a assistir ao desenvolvimento das negociações entre EUA e China, à crise entre Otava e Pequim e ao fenecimento do regime madurista – cuja queda pode agravar ainda mais a situação económica chinesa devido aos mais de 50 mil milhões de dólares de ajuda que ficarão perdidos –, sem esquecer o que se passa na Malásia, no Brasil, na frente síria, na Argentina – com uma estação de rastreio espacial chinesa que está a causar incómodos políticos e a gerar contestação social –, e ainda em África com a chamada “ajuda chinesa”. Em Março terminará o período de tréguas na guerra tarifária com os EUA, altura em que também ocorrerá a reunião magna da Assembleia Popular Nacional, de onde sairão seguramente as linhas para a eleição do próximo Chefe do Executivo da RAEM. É este o ponto que a Macau interessa. 13. Até agora têm estado na linha da frente como putativos candidatos para exercerem o cargo de Chefe do Executivo, o Presidente da AL, o Secretário para a Economia e Finanças e o Secretário para a Segurança. Esta lista parece-me curta. E ilusória. Sei que há muita gente que não gostar de o ler, mas outros nomes há que poderiam integrá-la. Por exemplo? O actual Procurador da RAEM ou mesmo o Comissário Contra a Corrupção. Pelo perfil, pela experiência, pela formação jurídica. Com a vantagem de poderem ser dos poucos que sabem ler, escrever e exprimir-se com fluência em português e chinês, isto é, em cantonense e mandarim, o que não será desprezível no contexto de Macau e do programa “uma faixa, uma rota”. Estes são atributos que nem o actual nem o anterior Chefe do Executivo possuíam e que muita falta têm feito. Seria bom que o próximo os possuísse. Essa seria também uma forma de valorizar a Lei Básica, bem como a identidade e autonomia de Macau no contexto da Pátria, dando um sinal para dentro. 14. O passado já mostrou, quer em Macau quer em Hong Kong, que a entrega do poder a homens de negócios por parte do PCC nem sempre se revelou a escolha mais acertada. E muitos menos a quem esteja umbilicalmente ligado às famílias, aos magnatas, empresários e associações locais tradicionalmente próximas do poder, que na sua acção tendem a desvalorizar o respeito pela legalidade formal e substancial e pela essência da norma, colocando em causa com a sua vontade de agradar a Pequim o rule of law, a autoridade do governo, a autonomia e a estabilidade política e social. Recorde-se aqui que em 01/02/2019 Bernard Chan escrevia ser necessário ter em atenção o que aconteceu noutros países: “If life is going to get harder or at least more uncertain in the year ahead, cynicism and anger could spread unexpectedly” (SCMP, “Is Hong Kong heading for a populist revolt?”). 15. Creio, aliás, que não há melhor prova de mudar o rumo quando a propósito do caso Sulu Sou/Scott Chiang alguém se permitiu dizer, em resposta a declarações do deputado que referira não poder ser julgado pelo crime de manifestação ilegal, que “é preciso compreender como é que funciona Macau” e que “é preciso ver Macau com olhos de Macau” (HojeMacau, “Neto Valente nega que se tenha metido no caso Sulu Sou”, 14/06/2018). 16. Quanto a isto, o Tribunal de Segunda Instância, pela lapidar decisão de 31 de Janeiro pp., tirada por unanimidade e que deu provimento ao recurso oportunamente interposto pelo arguido Scott Chiang, determinou a repetição do julgamento devido a uma nulidade tão grave que se revelou insanável: violação dos direitos de defesa dos arguidos. Ficou então esclarecido, para quem tivesse dúvidas, com que olhos o TSI vê Macau e como é que Macau funciona: funciona dentro da legalidade. Ponto. Não podia ser de outra maneira. E já se tinha visto isso com a Lei de Terras. E agora façam o favor de repetir o julgamento em pleno período de cumprimento das formalidades que levarão à escolha do próximo Chefe do Executivo. Para se voltarem a discutir os atropelos à legalidade cometidos durante o processo de levantamento da imunidade ao deputado, mais o que aconteceu durante a manifestação “ilegal”, mais o que se disse e se escreveu, assim queimando politicamente e em lume brando quem não queria ouvir falar no assunto e pensava que este estava arrumado. Eu sei que para alguns é desagradável ler isto, mas em matéria de bom senso político e respeito pelo Estado de direito ficamos então conversados. 17. Num cenário de agravamento da situação económica e de instabilidade internacional e regional, seria importante que da reunião da segunda sessão anual do 13.º Congresso Nacional Popular saíssem escolhas claras, projectadas para o futuro, numa linguagem simples, capaz de dar conforto e segurança emocional à população da RAEM. 18. Soluções de continuidade já provaram trazer mais malefícios do que benefícios pela situação de fraqueza em que partem devido ao trade-off eleitoral e à submissão aos parceiros locais que tendem a encapsular e “condicionar” a capacidade de decisão do Chefe do Executivo. Veja-se de novo o caso da Lei de Terras e a forma como o Governo foi “obrigado” a pôr ordem em casa e a iniciar o processo de declaração de caducidade dos terrenos que não foram aproveitados durante o prazo das concessões, o que em meu entender só se fez por vontade expressa de Pequim e contra os maiorais locais que, não obstante o inequívoco texto da lei, pretendiam “soluções à Macau”. Ou seja, as que nos conduziram à actual situação e que Pequim obrigou a corrigir. Daí o aviso à navegação. 19. A liderança da RPC tem a noção exacta dos tempos difíceis e perigosos que aí vêm. Isso não poderá servir de desculpa para defendendo a Nação se atropelar o segundo sistema na RAEM. Até porque vem aí o concurso para as licenças do jogo e a reputação de Macau e da RPC estão a ser internacionalmente escrutinadas. Não se admitem soluções “à Macau”. 20. É hoje indiscutível que a qualidade de vida de Macau e de Hong Kong piorou (a propósito de HK: Peter Kammerer, “Ugly truth is city got worse in past 10 years”, SCMP, 29/01/2019), e que os mesmos erros políticos graves (o realismo e a auto-crítica marxistas não permitiriam dizê-lo de outra forma) foram cometidos nas duas regiões – na economia, no imobiliário, em matérias políticas, sociais, de transportes e obras públicas –, onde altos responsáveis acabaram detidos e julgados por corrupção, depois de durante anos andarem a cometer desmandos, favorecendo familiares, amigos e parceiros de negócios, deixando uma péssima imagem da sua acção, prejudicando os cidadãos das duas regiões e deitando por terra a confiança depositada por Pequim nas autonomias. O discurso oficial pode ser outro. A realidade é esta. E se quiserem podemos discuti-la. 21. Em Hong Kong as coisas já começaram a mudar. E vão mudar muito mais. Que ninguém tenha dúvidas. Veja-se a forma como Carrie Lam encaixou as inúmeras críticas que lhe foram feitas e se predispôs a aceitar o criticismo sobre as controversas matérias da segurança social, as lições de humildade que lhe quiseram dar e a abandonar uma mentalidade elitista, depois de estudos de uma universidade local revelarem que se tinha atingido a mais baixa taxa de aprovação popular desde Julho de 2017 (SCMP, 31/01/2019, p.3). Nessa mesma edição, o SCMP dava conta de que sendo o Chefe do Executivo escolhido por Pequim, jamais permitiria uma alteração às leis anticorrupção que permitisse ao Chefe do Executivo aceitar vantagens patrimoniais. E no dia anterior esse matutino informava que os preços aumentaram 37,6 % num período de cinco anos, enquanto que os salários só subiram 3% (SCMP, “HK Homes Among the Least Affordable”, baseado em Knight Franck’s, “Global Affordability Monitor”). E em Macau? 22. Em Macau as coisas também vão mudar. E essa mudança não será realizada para satisfazer as “obsessões especulativas” dos mandarins locais mas para dar resposta à vox populi em matéria de qualidade de vida e aos objectivos definidos pela liderança do PCC. Acabou o recreio. As palavras e a postura do Chefe do Executivo da RAEM no discurso do Ano Novo Lunar são a melhor evidência disto. Pequim não quer gente nas ruas a manifestar-se contra o Governo e o Chefe do Executivo, nem a clamar por mais e melhor segurança social, saúde, educação, habitação, transportes, ambiente, higiene urbana, tratamento de resíduos ou veículos eléctricos. Muito menos a dar conferências de imprensa sobre a Lei de Terras. Pequim quer mais e melhores respostas aos problemas básicos. E isto envolve rédea curta sobre a corrupção, o nepotismo, o favorecimento político ou empresarial ou a Lei de Terras, instrumento único e fundamental para a resolução desses problemas. 23. Nenhum regime sobrevive com convulsões sociais e sem aprovação e apoio popular. Em democracia ou em ditadura. Por mais consolidada que seja a autocracia ou o poder dos oligarcas. E quando o regime político não é democrático, aqui entendido em termos liberais e ocidentais, sabe-se que a sua legitimidade é discutida diariamente nas ruas quando se vai ao mercado, quando se entra no autocarro ou se olha para o recibo da renda de casa ou da farmácia. O Presidente Xi Jinping sabe que para acomodar cisnes, rinocerontes e, já agora, patos bravos, vai ter de limpar a poeira e o lixo acumulados nos pilares do regime. Como em qualquer operação de limpeza muitos terão de usar máscaras, vai haver muita poeira no ar, muitos detritos em suspensão nas águas durante algum tempo e limitar os panchões. Até que se volte a respirar melhor, se possam dar algumas braçadas no mar sem correr o risco de sair de lá contaminado e que o povo saia à rua satisfeito. 24. Quando o Presidente da República portuguesa vier a Macau em Abril próximo, muita coisa terá entretanto acontecido. Nessa altura estará terminado o conclave que começará em 5 de Março e serão muito mais claras as linhas para o futuro. Também para as escolhas dos 400 membros da Comissão Eleitoral que designarão o futuro Chefe do Executivo da RAEM. O aumento de 100 membros vai baralhar as contas e é natural que quem tão cedo se posicionou e manifestou apoios a putativos candidatos seja obrigado a recuar e a “renegociar acordos”. Há coisas que dificilmente se poderão mudar. Outras (e outros) andarão no ar, na expectativa. Mas de uma coisa todos podem ter a certeza: quando no final deste ano o Presidente Xi Jinping chegar a Macau quase tudo será diferente. E não me refiro apenas ao Chefe do Executivo, qualquer que seja o escolhido. É muito provável que até lá também muitos camaleões “patriotas” tenham mudado de cor. 25. Como Wen Yang escrevia há semanas, e sim, vou voltar a citar o China Daily: “It is time to clear up the source and return to the basic of human rights”. Na RAEM também. Porque Macau não é Hong Kong. E sem isso, com turbulência, falta de visão estratégica e muito sebo, continuando a alimentar a fauna que por aí tem proliferado, indiscriminadamente, não haverá desenvolvimento. Nem será possível ter uma autonomia respeitável e respeitada até ao final de 2049, mantendo uma imagem internacional compatível com os anseios dos seus cidadãos. Um Bom Ano do Porco é o que a todos desejo. Que seja gordo, limpo, produtivo e com muita saúde.
Tânia dos Santos Sexanálise VozesLube [dropcap]A[/dropcap] lubrificação vaginal não recebe a atenção merecida – assim concorda a investigação social que se debruça sobre os seus significados e representações. Surpreendentemente ou não, muito já se estudou sobre a erecção masculina e as dificuldades, pressões e ansiedades que advêm do derradeiro momento em que a pessoa detentora de um pénis exige para o coito. A lubrificação, que é uma espécie de apresentação equivalente, mas para pessoas detentoras de uma vagina, continua escondida atrás da cortina e ainda não tomou a sua forma teatral e majestosa que precisa. Mas também seria demasiado redutor equipará-la com a erecção quando, na verdade, a lubrificação vaginal existe até fora do sexo. A lubrificação existe quando se quer e não quer. A pouca investigação que existe, contudo, aponta para a complicada relação pessoa-vagina. A dificuldade desta ligação vaginal já não é novidade para ninguém. Se continua a não ser fácil lidar com a naturalidade dos pêlos púbicos ou com o aspecto natural das nossas vulvas, a lubrificação tende a ser mecanizada e instrumentalizada (e até ignorada) para (simplesmente) ser entendida como uma forma fisiológica de estar da vagina– supostamente, sem nenhuma ligação à nossa construção e imaginação da mesma. Mas agora sabemos que a lubrificação tem muito que se lhe diga, e todos nós podemos opinar sobre ela extensivamente, só que raramente o fazemos. Um estudo publicado na Feminism & Psychology mostrou que um grupo de mulheres que representava e discutia a lubrificação com múltiplas dimensões e tensões – sim, é uma forma fisiológica de se mostrar excitação -, concluiu que esta é uma forma de ligação amorosa e sexual com o outro, uma forma de prazer e de confiança, mas também é um factor de ansiedade: porque (na imaginação das entrevistadas) é possível estar-se lubrificada de menos ou de mais. Isto é interessante porque parece que a lubrificação – como muitas outras valências da sexualidade dita feminina – está na incessante procura de um equilíbrio perfeito. A lubrificação pode ser de menos e proporcionar uma penetração vaginal dolorosa, causar fricção e dor e ter consequências na relação com o parceiro, mas também pode ser demais e parecer uma assustadora torneira a esguichar secreções vaginais. Para acrescentar a esta dinâmica, o mesmo estudo aponta para uma responsabilização individual da ‘potencial’ anormalidade na secreção e, por isso, sugere que julgamos o processo como unilateral. Não considerando, assim, a natureza da relação com o outro e de como pode afectar a vagina e a sua acção. Sem descurar, claro, que há situações particulares como a menopausa onde é característica uma diminuição da lubrificação natural, porque há um cocktail hormonal que assim o dita. De qualquer modo, julgo que esta tensão provoca alguma reflexão de como o corpo detentor de uma vagina é frequentemente representado e sentido como o responsável pelo bem-estar sexual do próprio e do outro. Independentemente da libertação sexual que já se conquistou até agora, teorias feministas parecem concordar que nestas questões do sexo é normal as mulheres responsabilizarem-se para atingir a perfeição. Ao ponto – também uma referência deste artigo – de existir uma prática subsaariana em que mulheres propositadamente secam a sua vagina para que a penetração vaginal seja mais apertada, como a de uma virgem. Escusado será dizer que esta prática traz problemas de saúde sérios – mas é este é só um exemplo exagerado de como há um desejo de tomar controlo sobre os nossos corpos para atingir algo… que muitas vezes não se sabe muito bem o que é. A autora também reforça esta imagem (e medo) do exagero, e de como certas representações de objectos femininos são contaminados pelo medo do excesso: à gordura, à celulite, ao sangue menstrual, às expressões emocionais ou aos malfadados e supostos ‘histerismos’ de outrora. A lubrificação também não escapa a esta dinâmica. A solução é sempre comunicativa, de partilha e abertura para falar com o outro acerca de como sentimos o nosso corpo e, especialmente, de como queremos vê-lo representado.
David Chan Macau Visto de Hong Kong VozesEmbriaguez assassina [dropcap]N[/dropcap]os finais de Dezembro do ano passado, o Macao Daily publicou um artigo sobre a decisão tomada pelo Departamento Jurídico de Taiwan relativa à condução sob os efeitos de álcool. Caso a percentagem de álcool no sangue ultrapasse uma determinada medida, o condutor passará a ser acusado do crime de “homicídio intencional de terceiros”. Esta proposta de emenda à lei é pertinente porque recentemente tem havido muitos acidentes rodoviários em Taiwan. Num dos casos mais graves, um carro que capotou provocando um choque em cadeia, resultaram dois mortos. A investigação apurou que o condutor estava embriagado e era reincidente. O mérito desta emenda é a introdução do conceito “intencional”. A partir de uma certa quantidade de álcool no sangue o condutor pode ser acusado de homícidio intencional. Assim, se após um acidente, for sujeito a um teste de alcoolemia, e os valores forem elevados, a possibilidade de ser condenado em Tribunal será bastante alta. O resultado do teste passa a constituir prova de culpabilidade. Quando falamos de provas, temos de considerar em primeiro lugar a sua função. O Artigo 114 do Código Penal de Macau estipula: “A avaliação das provas é feita a partir das regras da evidência e é adjudicada à entidade competente, excepto nos casos em que a lei estipule em contrário.” Ou seja, não existem quaisquer restrições na lei, o juiz pode basear-se na sua própria experiência e conhecimentos para aceitar ou rejeitar uma prova que lhe é apresentada. As provas podem ter naturezas diversas. Podem ser apresentadas por testemunhas, provas de natureza oral, documental etc. No entanto, esta é apenas a primeira classificação. Em Hong Kong, as provas são classificadas consoante os seus efeitos legais. Existem pelo menos três tipos de provas: O primeiro é a “Prova Conclusiva”. Se esta prova é aduzida por uma das partes em litígio, a parte contrária fica impossibilitada de arrolar qualquer prova que a refute. Ou seja, a “Prova Conclusiva” possui o máximo efeito legal. É disso exemplo o “Certificado Corporativo” de uma companhia limitada. Uma vez que o registo é efectuado, a empresa cumpre todos os requisitos para funcionar com Comp. Lda. Ninguém pode aduzir prova em sentido contrário. O segundo tipo é a “Prova Suficiente”. Esta prova, quando aduzida por uma das partes, demonstra de forma suficiente a veracidade dos factos que se pretende provar. Podemos indicar como exemplo, os resultados académicos dos estudantes publicados no final do ano escolar. Os estudantes passam ou chubam. Não é necessária mais nenhuma prova para validar este facto. No entanto, nesta situação, a parte contrária é autorizada a aduzir prova para rebater. Mas, se esta nova prova não for suficientemente forte, será muito difícil convencer o Tribunal da sua validade. O terceiro e último tipo é a “Prova Prima Facie”. Se esta prova for aduzida por uma das partes, a parte contrária tem forçosamente de arrolar provas que a refutem. Caso contrário, a “Prova Prima Facie” será aceite pelo Tribunal e a vitória é atribuída a quem a apresentar. À semelhança do que estipula o Código Penal de Macau, em Hong Kong o juiz pode basear-se na sua experiência e conhecimentos para aceitar ou rejeitar uma prova que lhe é apresentada. Se o Departamento Jurídico de Taiwan criar uma emenda que regule a apresentação de provas e passar a considerar a condução sobre os efeitos excessivos de álcool como “homícidio intencional”, e vier a considerar como “Prova Suficiente” o resultado do teste de alcoolemia, a hipótese de os condutores responsáveis escaparem à justiça passa a ser muito baixa. No entanto, poder-se-ia perguntar: porque é que o teste de alcoolemia não pode ser usado como “Prova Conclusiva”? A resposta é simples. No caso de homicídio provocado por “condução sob os efeitos de álcool”, a acusação precisa de provar que o condutor consumiu álcool de forma voluntária. Se, por hipótese, o condutor tivesse ingerido uma bebida alcoólica sem o seu conhecimento, a sua responsabilidade não poderia ser a mesma do que se a tivesse ingerido de forma consciente. Por este motivo, utilizar o teste de alcoolemia como Prova Conclusiva, para provar a culpabilidade do condutor, é impróprio e injusto. A lei define os padrões básicos do comportamento em sociedade. Sempre que uma lei é emendada ou revista, é preciso fazê-lo de forma muito cuidadosa. Se houver alguma falha, pode vir a comprometer-se a ideia original dos legisladores que a criaram. Consultor Legal da Associação para a Promoção do Jazz em Macau Professor Associado do Instituto Politécnico de Macau Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog Email: legalpublicationsreaders@yahoo.com.hk
João Luz VozesA incompetência [dropcap]O[/dropcap] ego de Macau passa cheques que a sua capacidade intelectual não tem como cobrir. Eu vivo desse desequilíbrio. Sou soberana neste reino de inaptidão, o fio condutor, a inábil tintura que corre pelas artérias da cidade tingindo tudo com uma espécie de fuligem negra. Qualquer tarefa se torna numa odisseia digna da pena dos poetas, homens que destilavam liberdade por todos os poros e que só através da loucura e da intoxicação escaparam à mundana incapacidade com que pintei tudo e todos (Olá, Pessanha!). Imprimir um documento com três páginas é algo que implica a intervenção de um técnico especializado e um requerimento para a NASA. Carimbar um papel, que cumpre todos os absurdos requisitos da máquina, é algo que carece de santíssima bênção do topo da pirâmide hierárquica. A impertinencia de pedir um esclarecimento é visto como uma ofensa à reinante ociosidade. Como se diz em cantonês, “Hea”! Algo que vai muito além do bom e velho desleixo e que é um dos pilares de Macau. O meu grande aliado é o medo de errar, de fazer má figura, o pavor de assumir a responsabilidade por actos que são naturais face à incumbência profissional. Assim se esbanja habilidade na cidade dos talentos. Ninguém, em lado nenhum, nunca soube nada! Os políticos podem dizer o que quiserem que ninguém liga ou reage, poucos reportam, ainda menos se interessam. Se vos pedem documentos incertos numa repartição pública, coisas que talvez venham a dar jeito para olear a máquina, certificados que podem dar sorte no holístico andamento do processo, isso é Macau. Sou uma das heranças dos portugueses, que não deixaram apenas pastéis de nata, catolicismo, calçada, poesia e esperma em ventres asiáticos. Sou mais que isso. Sou indolência e vacuidade, absoluto pavor do erro e da voz alta do patrão. Sou a porta escancarada para a corrupção, por afinidade ou negligência. Terreno fértil para a perfídia, facilitismo e adulteração da lei, morte da decência e de tudo o que devia ser sagrado na terra da harmonia. Sou o incentivo ao crime, das mais altas esferas aos mais humildes funcionários, a perversão e o oposto dos grandes mantras oficiais de pureza e amor aos governados. Multiplico-me como uma praga num ecossistema onde funcionários são promovidos pelo simples facto de não estarem mortos. Um percurso onde o mérito não tem lugar e é visto como uma pedra na engrenagem da coisa pública, a tal “res” que fica no rés-do-chão do funcionalismo. Sou invencível também entre as novas vagas pós-coloniais de portugueses que aqui chegam prenhes de inteiros reinados, carregando sem esforço egos morbidamente obesos. Chego a todos os domínios. Instalações de gás que são hinos à fuga, ruas que se remendam como meias rotas, janelas com caixilharia desproporcional face ao vazio na parede, taxistas que não conseguem encaixar o conceito de cliente, médicos que colocam nas mãos dos doentes importantes decisões terapêuticas. A minha obra está em todo o lado. Sou a falta de preparação dos alunos que por aqui estudam, a ignorância de que houve guerras mundiais, Tiananmen, rock n rol e blues do outro lado do mundo. Sou a cegueira numa terra que beneficiou de uma luxuosa abertura no contexto regional. A lengalenga das “vantagens singulares” de Macau e do posicionamento político gentilmente concedido pelo País ao abrigo do santíssimo princípio “um país, dois sistemas”. Tudo muito bonito e imaterial, um castelo de areia se não fossem os biliões nascidos nas mesas dos casinos. Estas são as matrizes na terra onde tudo é permitido na sombra, enquanto a face se mantém intacta à superfície, sustentada em discursos puritanos proferidos pelos meus soldados.
João Romão VozesA semântica da bosta [dropcap]U[/dropcap]ma singela frase com três palavras apenas, devidamente descontextualizadas, trouxe ao país grandioso alvoroço semântico: que queria dizer Mamadou Ba quando em curto texto de resposta a um comentário numa famigerada “rede social” escreveu “bosta da bófia”: referia-se o assessor parlamentar e membro do SOS Racismo à episódica atuação de indivíduos da polícia num caso de manifesto uso de desnecessária e desproporcional violência sobre cidadãos desarmados ou tratou-se de um insulto generalizado às forças de segurança pública da nação? O assunto tem ocupado jornais, rádios, televisões, mais as respectivas versões online e as suas populares e magníficas caixas de comentários, as ditas “redes sociais” e certamente muitas conversas de café e tasca, eventualmente serões de família e outras animadas tertúlias. Diligente, um deputado à Assembleia da República entregou mesmo o assunto às autoridades judiciais para que averiguem do significado e implicações de tais palavras. Investigue-se, pois. Vinha a frase a propósito da forma violenta como a polícia, chamada a resolver um desacato entre vizinhos, tratou uma família residente num bairro conhecido como “Jamaica”, na periferia da área metropolitana de Lisboa. As imagens captadas por moradores e rapidamente difundidas não sugerem a mínima hipótese de ter havido qualquer ataque ou ameaça às autoridades por parte das pessoas agredidas. Em todo o caso, foram pedras alegadamente atiradas sobre os agentes que motivaram a violência, na versão divulgada pela polícia e prontamente adoptada por toda a imprensa, sem o devido contraditório. É que a violência policial e práticas racistas das autoridades portuguesas têm amplo e notório reconhecimento internacional: como referiu em entrevista recente uma advogada do Comité Anti-Tortura do Conselho da Europa, Portugal é dos países da Europa ocidental com mais casos de violência policial, sendo mais alto o risco de abuso perante pessoas estrangeiras ou afrodescendentes portugueses. Uma bosta, portanto – e também um aviso suficiente para que a imprensa não tome como verdade absoluta a versão policial neste tipo de acontecimento. Também um relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, do Conselho da Europa, refere que a polícia em Portugal integra indivíduos que simpatizam com discursos de ódio, racistas e homofóbicos, o que ficou amplamente demonstrado por estes dias em várias páginas e grupos de discussão em “redes sociais” dinamizadas ou activamente participadas por agentes da autoridade – e que tardiamente parecem começar agora a ser objecto de investigação pela própria polícia. É que à parte das elementares considerações éticas que o assunto possa suscitar, cabe lembrar que a lei portuguesa não permite a discriminação de pessoas em função da nacionalidade, etnia ou preferências sexuais. Que haja indivíduos responsáveis pela aplicação da lei que não estão dispostos a cumpri-la é outra grande bosta, naturalmente. Foi este o contexto – que Mamadou conhece bem e que testemunhou dezenas de vezes nas últimas décadas – em que surgiu a frase: “sobre a violência policial, que um gajo tenha de aguentar a bosta da bofia e da facho esfera é uma coisa natural”. Não terão sido as palavras mais adequadas ao momento e ao contexto, como o próprio reconheceu rapidamente. Debalde, no entanto. Segundo o próprio, nos dias seguintes recebeu largas de centenas de mensagens insultuosas e ameaças de violência e assassinato. Foi assediado na rua por membros de um partido de extrema direita e agredido à chegada a um debate numa Universidade. Uma enorme bosta, portanto, mas que esteve longe de motivar a mesma indignação que as tais palavras tinham causado. Também eu andei algum tempo pelo SOS Racismo, há mais de 20 anos, e foi nessas andanças que conheci a dedicação, o empenhamento e a qualidade do trabalho do Mamadou. Mudou pouco o discurso desde então: o que dizíamos na altura é o mesmo que se repete agora, as denúncias são as mesmas, a reivindicação “nem menos, nem mais, direitos iguais” tem a mesma pertinência e atualidade. E no entanto, Lisboa – a grande metrópole do país, que como outras grandes áreas metropolitanas do mundo concentra e expõe com mais evidência as contradições e conflitos das sociedades contemporâneas – transformou-se muito. Estão mais bonitos os bairros centrais da cidade, melhoraram os transportes públicos, os automobilistas não vivem num permanente engarrafamento, pode andar-se a pé e disfrutar da magnífica paisagem urbana. Chegam mais e mais turistas de todo o mundo e Lisboa é uma referência mundial enquanto destino de visita. Também encareceu a habitação, ao ritmo desenfreado da especulação imobiliária. E persiste a miséria nos bairros periféricos da metrópole: as dificuldades de transporte, a ausência de serviços e infraestruturas básicas, a falta de qualidade mínima na habitação. O chão do Bairro da Jamaica por onde os agentes policiais arrastaram pelos cabelos cidadãos desarmados e indefesos não é de calçada portuguesa, é de barro. Os prédios parecem amontoados de tijolos suportados por precárias estruturas: uma construção embargada onde famílias encontraram abrigo, sem água nem luz. A vida é dura e a repressão é violenta, como cantou Chullage com detalhada precisão no seu álbum de 2015, dedicado a quem vive nestes sítios só lembrados por casos de violência e agressão. Esta miséria que coexiste com a opulência crescente do centro da cidade é outra grandessíssima bosta.