Sorrisos fáceis

[dropcap]S[/dropcap]e há coisa que me surpreende muito agradavelmente sempre que passo uns dias em territórios do sudoeste asiático é a espontaneidade generalizada dos sorrisos que encontro nas pessoas com quem interajo. Uma simpatia profunda e inevitável, leve e fácil, que torna mais suaves e adocicadas as relações, mesmo que sejam as comerciais, as que resultam da prestação dos serviços necessários a viajantes mais ou menos desenquadrados daquelas realidades quotidianas, mas que também se nota para lá desse território do estrito domínio dos afetos necessários à dinâmica do capitalismo moderno, tão feito do consumo de experiências, interações, símbolos e emoções a impregnar produtos – um tráfico sistemático e permanente de sentimentos embebidos em mercadorias várias.

Vai para lá dessa traficância de afetos a genuína simpatia e o decorrente caloroso acolhimento que generalizadamente se sente por onde quer que se percorram as ruas, as praças, os mercados, as lojas, as praias ou os templos e monumentos de países como a Tailândia, o Vietname, a Índia ou a Indonésia – os que por sortes várias tive oportunidade de visitar. Encontra-se por esses caminhos uma permanente sensação de descontração e relaxamento, de descanso efetivo e aparentemente definitivo, desprovido de qualquer tensão imanente, ainda que sejam desconhecidos os lugares e incompreensíveis as línguas que se falam ao nosso redor. Há por ali um sentimento de comunidade e fraternidade que as sociedades altamente individualistas e competitivas em que nos habituámos a viver dispensam com a brutalidade inevitável e necessária que lhes caracteriza o quotidiano.

Talvez não seja alheia a estas anacrónicas e exóticas vivências comunitárias a persistência aparentemente generalizada de formas de organização social pré-capitalistas (ou “a-capitalistas”, eventualmente), alheias à motivação do lucro e dos benefícios individuais e profundamente enraizadas na defesa e promoção dos valores da coletividade e da comunidade, da prioridade à solidariedade sobre a competição, mesmo quando afinal estas práticas estão relativamente próximas – ou até intimamente ligadas – aos grandes fluxos globais de mercadorias e pessoas, com o decorrente tráfego comercial e turístico. São exemplos disso práticas ainda hoje comuns como o trabalho voluntário na manutenção e preservação de templos religiosos (também utilizados como atração turística) ou a existência de redes locais de solidariedade social (e até de administração da justiça) financiadas com contribuições de todas as pessoas, numa proporção fixa do seu rendimento, à margem (ou em complemento) dos mecanismos legais das instituições do Estado.

Sobrepõe-se esta doce e acolhedora hospitalidade às carências das mais básicas infraestruturas, como as insuficiências no tratamento e na distribuição de água que tornam o cheiro a esgoto frequente, por vezes até no centro das cidades, e relativamente arriscada a ingestão de alimentos não cozinhados, o que naturalmente inclui o gelo necessário e indispensável à preparação de cocktails vários que combatem a sede e aninam o espírito. É só um exemplo do que falta nestas sociedades e do que nos habituámos a tomar como adquirido, mesmo em Portugal, que continua longe dos níveis de desenvolvimento de outros países: os serviços médicos, os transportes, a qualidade da habitação e da construção em geral, a pobreza ainda generalizada que coexiste com os sorrisos espontâneos que vamos encontrando. Não sei se também é assim nos imensos bairros de lata que circundam as grandes metrópoles de Bangkok, Ho Chi Minh, Jakarta ou Bombaim, em todo o caso.

Certo é que a pobreza e as desigualdades profundas que prevalecem nesta zona do planeta não se traduzem num estado de insegurança permanente ou de violência regular para o turista europeu ou americano. Mesmo que não seja rico ou esteja até longe disso, esse viajante transporta inevitavelmente na carteira, só para os ocasionais gastos de férias, montantes despropositados em relação às necessidades quotidianas das pessoas que lá vivem. São esses turistas que vão usar os melhores recursos, as melhores praias, os melhores restaurantes, os melhores hotéis, as melhores lojas, que esses países têm para oferecer – e que são inacessíveis à esmagadora maioria da população local. Ainda assim, nenhuma dessas profundas injustiças inibe a simpatia, a empatia e o acolhimento numa comunidade aparentemente tranquila e protegida da competição quotidiana, intensa e permanente que nos alimenta as ambições e, dizem, o progresso. Com menos sorrisos, certamente, mas mais ricos.

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